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sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24565: Notas de leitura (1607): "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", por António Carreira; edição de autor, Lisboa, 1984 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
António Carreira continua a ser um nome sonante da historiografia guineense. Poucos anos antes do seu falecimento tomou a iniciativa de publicar um estudo que se revela ainda hoje incontornável para quem queira organizar a história da presença portuguesa na região, procura responder a questões basilares para as quais infelizmente continua a não haver uma sequência cronológica consolidada: o fracasso dessa presença, as razões por que se limitavam os portugueses a terem de se contentar com um território eufemisticamente designado por Senegâmbia Meridional, e desmontando ou desmistificando a teoria da conquista de uma região, que, como ele diz, terá tido posse efetiva uns 60 anos, e daí se compreender como tudo foi tão duro e tão difícil, e por vezes tão sangrento, nas chamadas operações de pacificação, sobretudo após a definição de fronteiras, em 1886.

Um abraço do
Mário



Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900) – 1:
Leitura indispensável


Mário Beja Santos

António Carreira (1905-1988) foi um administrador colonial que deixou um impressionante legado historiográfico, a Guiné foi o centro dos seus trabalhos. "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", edição de autor, Lisboa, 1984, é uma obra de leitura obrigatória, insere uma síntese admirável sobre diferentes incursões do autor nos campos da etnografia, da economia, do tráfico negreiro e o histórico da presença portuguesa na Senegâmbia meridional. Em jeito introdutório, Carreira diz-se interessado em compreender as razões do fracasso da fixação dos portugueses na Costa Ocidental Africana, na área geográfica compreendida entre o rio Senegal e o norte da Serra Leoa. Adianta que as relações comerciais com os povos da costa, de Arguim ao Cabo Verde continental tiveram algum incremento nas primeiras décadas de 1500; e mais tarde tal relacionamento intensificou-se de Cabo Verde à Serra Leoa. Mas irrompeu a concorrência e esta fez decair a presença portuguesa a partir da segunda metade do século XVI, é hoje assunto alvo de consenso de que a União Ibérica lesou seriamente tal presença em detrimento espanhol, francês, holandês e inglês. O autor lembra-nos que a região era conhecida por Rios de Guiné de Cabo Verde por este período.

E dá como móbil do seu trabalho, pôr à disposição informação do seguinte teor: a) as principais causas da perda pelos portugueses das posições que pretendiam assegurar; b) as fraquezas, as misérias e as incúrias que concorreram para o fracasso; c) as razões por que os portugueses tiveram de se contentar com o território compreendido entre o Cabo Roxo e a Ponta Cajé; d) desmontar/desmistificar a teoria de conquista de uma região que terá tido posse efetiva uns 60 anos.

Discorre sobre a toponímia da Costa Ocidental Africana nos séculos XV a XVII, isto para nos alertar a existência de profundos desconhecimentos da geografia. Cadamosto deu à Costa Ocidental Africana a designação de Baixa Etiópia e à população chamou-lhes Negros da Etiópia. Jerónimo Münzer, no Itinerarium (1494), alude que os etíopes andam sempre em guerra uns com os outros, fazem-se mutuamente prisioneiros e vendem-se por uma bagatela. Duarte Pacheco Pereira fala em Etiópia Inferior ou Etiópia Baixa Ocidental que iria do rio Senegal até ao Cabo da Boa Esperança, dando-lhe o nome de Guiné, e o nome de Etiópia Oriental era conferido à Abissínia. Todos estes viajantes falavam de um amplo espaço de Nigrícia. Quando a expressão de rios de Guiné de Cabo Verde começou a cair em desuso o nome então em voga era Senegâmbia, reservando-se para a área onde era mais notória a presença portuguesa a Senegâmbia Meridional. Carreira repertoria os principais grupos étnicos do Senegal, da Gâmbia e da Guiné.

E questiona algumas das causas do fracasso da ocupação dos rios da Guiné pelos portugueses. Para Carreira era o interesse comercial que predominava, devido à falta de recursos a necessidade de ocupação só começou em meados do século XVIII e por força da concorrência. Até lá, a política régia era arrendar, foi assim que nasceu o contrato com Fernão Gomes numa fase dinâmica em que era preciso ir conhecendo mais da Costa Ocidental Africana. Não deixa de referenciar o fenómeno dos lançados e define as zonas de comércio dos portugueses – escala sempre muito temporária, contratos acidentais – pagava-se aos régulos para estacionamento nos portos (as daxas), a penetração nas comunidades africanas acabou por ficar reservada a um número muito restrito de europeus (cristãos, judeus e cristãos-novos) e mestiços de Cabo Verde. A Coroa bem procurou reprimir o fenómeno dos lançados, tomaram-se disposições régias para combater o aventureirismo comercial, com resultados praticamente nulos.

Carreira regista figuras que acabaram por ter significado como presença portuguesa, caso dos judeus de origem portuguesa: o judeu João Ferreira, natural do Crato, a quem foi dada a alcunha de Gana Goga (homem que fala todas as línguas) que penetrou no reino dos Fulas e o grumete de apelido Gomes que deixou a sua presença no que é hoje a Guiné Conacri (Gomissia).

Mas é facto que se começou a registar um comércio a partir de meados de 1600 nos rios Casamansa, Cacheu, estuário do Geba (Bissau, Geba e Fá), rio de Buba ou Biguba. Regista igualmente as posições até final do século XVII de aldeias de judeus portugueses, caso de Porto Dale ou Portudal, Rufisque, com judeus estrangeiros, Joala, com filhos da terra, bem como posições nos rios Gâmbia e Cantor. Mas não deixa de acentuar que a proclamada soberania portuguesa não passava de um mito. E deixa-nos depois notas sobre portos e rios de tratos e resgate, o tipo de praças e presídios.

A Restauração obrigou o rei D. João IV a dar mais atenção aos problemas desta costa africana. Os castelhanos, no intuito de manter o fornecimento regular de escravos para as suas possessões nas Antilhas e na América Central, tentaram assenhorear-se dos rios da Guiné, entre o rio Gâmbia e o estuário do Geba. Eram apoiados por negociantes portugueses residentes em Sevilha que por sua vez possuíam agentes de confiança em Cacheu (o patriotismo dos portugueses erodia-se perante o prestígio das patacas das Índias…). Houve, pois, que aumentar encargos e trazer soldadesca para Cacheu, Bissau e Farim. Começa a aparecer documentação que explica claramente a concorrência comercial de estrangeiros e a agressividade das populações locais; o comércio circunscrevia-se à compra de escravos, cera, cola e algum marfim, vendendo-se tecidos, ferro, adornos, aguardente, etc.; a indisciplina reinante no povoado de Cacheu entre portugueses e lançados é facto comprovado; como comprovado se encontra a total impossibilidade de fixação de brancos nos Bijagós, face à oposição sistemática das populações. Em pleno século XVII, a presença portuguesa estava condicionada a Cacheu, Farim, Geba, Bissau e Rio Grande de Buba.

E diz Carreira:
“A precariedade da ocupação por europeus nos rios em geral, demonstra toda uma atividade puramente mercantil e de ocasião. Não tendo sido possível o conseguimento de condições de segurança para a montagem de rede de comércio fixo em cada ponto, todo o sistema obedecia à movimentação dos negociantes, consoante o que permitiam as populações nativas”. E termina estas considerações sobre mercadorias usadas no comércio negreiro, vão desde a aguardente aos tecidos, balas de espingarda, contas e conchas, espingardas, missanga diversa, pedreneira, sal, bebidas capitosas e vinho – o rol de tecidos é muito grande. Os produtos de origem africana enviados para a Europa e Américas passavam por dentes de elefante e de cavalo-marinho, cera e couros. As maiores quantidades destes produtos saíam (cera e marfim) dos rios Senegal, Gâmbia, Casamansa e Cacheu.

Mais adiante vamos falar do comércio negreiro.

(continua)
Mapa de África (1689), de van Schagen
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24554: Notas de leitura (1606): "Um cripto na terra vermelha da Guiné", por Humberto Costa; 2.ª edição, 2020, Eudito (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24415: Notas de leitura (1591): "História Global de Portugal", com direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva; Temas e Debates, 2020 - Monopólio da Guiné: Exploração económica pluricontinental, 1468 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Neste novo olhar da História Global, entendeu-se que este caso de exploração económica pluricontinental que se encetou com o exclusivo do comércio da costa da Guiné a Fernão Gomes, iria marcar um comportamento do poder régio durante séculos. Mesmo desconhecendo-se o teor do contrato, Fernão Gomes ficou com uma enorme responsabilidade, que terá cumprido, explorou cerca de 3 mil quilómetros de costa, chegou até ao atual Gabão. Contrato que enfatiza para além das iniciativas da Coroa a iniciativa privada nunca foi arredada a participar na exploração económica do Império, era tudo uma questão de oportunidade, a monarquia tanto podia explorá-los diretamente por meio de oficiais régios, como cedê-los a privados por meio de contratos de arrendamento. E o de Fernão Gomes foi o primeiro de uma longa série, expediente jurídico que se revelou essencial não só na captação de rendimentos para a monarquia mas também para que esta se alinhasse, ao longo de séculos com os particulares.

Um abraço do
Mário



Monopólio da Guiné: Exploração económica pluricontinental, 1468

Mário Beja Santos

"História Global de Portugal", com direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva, Temas e Debates, 2020, é seguramente um dos acontecimentos editoriais do ano transato, na medida em que rompe com o velho paradigma da escala local e nacional e tece uma abordagem inovadora do que se pode entender por História Global de Portugal, as permanentes interações que conduziram à identidade que temos e à globalização em que nos inserimos. Como os diretores nos explicam:
“Anteriormente, através dos velhos manuais escolares, que refletiam o que se produzia nas academias, aprendia-se a conhecer a história de um país. Adotava-se uma perspetiva iminentemente nacional, centrada no Estado-nação. Cada nação era o umbigo do mundo, sendo o resto uma paisagem necessariamente secundária e ignorada, ou um campo de projeção das vanglórias nacionais. Além da Pátria, existia um conjunto de países com os quais se estabeleciam relações de cooperação, transação, influência, domínio, conflito, separação, negação ou, nalguns casos, acolhimento. A história era conhecida de forma bipolar, dualista: existíamos nós e os outros (…) À luz das tendências da história global, os países, as regiões, as cidades e as aldeias já não são considerados espaços fechados nas suas fronteiras, antes devem ser perspetivados como plataformas territoriais tomadas na extensíssima duração do processo de humanização”.

E ao longo de largas dezenas de textos vários especialistas ocupam-se de longos períodos da Pré-História e História de Portugal tomando conta desse trânsito de trocas bem anteriores à chamada Era dos Descobrimentos, o povoamento das nossas regiões atlânticas, a passagem do Bojador e o que significou em termos de globalização o monopólio da Guiné. Como escreve a autora do referido trabalho, D. Afonso V concedeu, em novembro de 1469, por um período de cinco anos, o exclusivo do comércio da costa da Guiné a Fernão Gomes. O monopólio excluía o comércio da feitoria de Arguim (em território da atual Mauritânia). O monarca terá exigido a Fernão Gomes que explorasse anualmente cem léguas do litoral africano para lá da Serra Leoa, limite meridional das navegações henriquinas. Conhecemos esses aspetos através do historiador João de Barros, cerca de 80 anos depois, o texto do acordo não chegou aos nossos dias. A data atribuída do contrato será junho de 1468. O arrendamento terminou em 1474, depois de ter sido prorrogado por um ano. Enquanto vigorou, caravelas armadas por Fernão Gomes exploraram cerca de 3000 quilómetros da costa, tendo descoberto todo o litoral setentrional do golfo da Guiné, até ao atual Gabão.

Este contrato de arrendamento do comércio da costa da Guiné obviamente que suscitou debates em torno do papel da monarquia nas navegações do Atlântico Sul. Houve quem o visse como expressão do desinteresse do monarca, seria um contrato monopolista que permitiria à Coroa concentrar recursos financeiros na persecução das conquistas em Marrocos, deixando à iniciativa privada as navegações e a atividade mercantil na costa da Guiné. Mas há outras leituras que lembram o facto de a monarquia não ter voltado a doar o exclusivo da navegação do comércio da Guiné que integrara a casa do Infante D. Henrique. D. Afonso V foi o responsável pela constituição da Casa da Guiné, em Lisboa, no ano de 1463. Para uma certa historiografia, Fernão Gomes seria o exemplo paradigmático de interesses mercantis pela costa ocidental africana, por oposição às conquistas militares de Marrocos. Era como se a atenção da nobreza estivesse polarizada em Marrocos e outros setores da sociedade portuguesa se tivesse mobilizado na abertura de novas rotas e na comercialização de novos produtos. Mas há mais dados que contribuem para um novo olhar. Fernão Gomes exerceu o cargo de recebedor dos escravos da Guiné, para o qual fora nomeado em 1455, ofício que não só lhe deu acesso privilegiado à informação sobre o comércio da região como terá permitido a sua inserção em redes de negócio. Como não se conhece o contrato, ignora-se se a iniciativa se deveu à monarquia ou ao próprio Fernão Gomes. Para além do exclusivo, Fernão Gomes recebeu ainda o privilégio de isenção de pagamento de direitos alfandegários de todos os bens que os seus navios trouxessem da Guiné, com exceção da malagueta, monopólio régio, mas que mais tarde acabaria por ser cedido a Fernão Gomes, por 100 mil reis anuais.

Se se pensar que o Papado, através da bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1455, excluía toda e qualquer navegação na Guiné sem licença expressa do rei de Portugal, pode compreender-se que a Coroa via este regime como o mar que lhe pertencia exclusivamente, fundado na prioridade da descoberta, na evangelização dos gentios e na Guerra Santa movida contra os infiéis. Só que este privilégio foi contestado por outras potências e rapidamente todo o Litoral desta vasta Senegâmbia de então passou a ser percorrido por uma forte concorrência. A despeito desta, manteve-se formalmente o exclusivo da navegação e do comércio nos senhorios ultramarinos – Índia, Brasil, Guiné, Costa da Malagueta, Mina, Angola, Ilhas de Cabo Verde e de São Tomé, a Coroa cedia aos vassalos este exclusivo consoante as áreas geográficas do Império.

Neste exclusivo imperial, como igualmente observa a autora, a monarquia reservou para si a distribuição de certos bens. Foram os casos da malagueta africana, do ouro da Mina e do pau-brasil no Atlântico. Também o comércio dos escravos foi exclusivo da monarquia até 1659. Mas o que fica também esclarecido é que a iniciativa privada nunca esteve arredada da possibilidade de participar na exploração económica do Império, tanto na navegação e no comércio como na distribuição de bens monopolizados. E a autora conclui que o acordo estabelecido com Fernão Gomes foi tão-só o primeiro de uma longa série de arrendamentos contratados com particulares. No quadro da exploração do Império, este expediente jurídico mostrou-se crucial, não só na captação de rendimentos para a monarquia, mas também no alinhamento de interesses com os particulares.

Carta Corográfica da Guiné Portuguesa, 1862, Biblioteca Nacional, com a devida vénia
Retirado do trabalho Tecnologias geoespaciais na demarcação da fronteira da Guiné-Bissau, por Maria do Carmo Nunes, Fernando Lagos Costa, Ana Raquel Melo e Ana Maria Morgado, publicado nas Atas das I Jornadas Lusófonas de Ciências e Tecnologias de Informação Geográfica, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, com a devida vénia
Pormenor do Monumento ao Esforço da Raça, Praça dos Heróis Nacionais, Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24403: Notas de leitura (1590): "O Cântico das Costureiras - Crónicas D'Uma Vida Adiada - Guiné 1964 - 1965", por Gonçalo Inocentes; Modocromia Edições, 2020 - As Peregrinações de Gonçalo Inocentes, zombeteiras e resilientes (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24162: Historiografia da presença portuguesa em África (360): As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Corresponde a um período em que Carreira desbravou imensa documentação nos arquivos, toda esta pesquisa sobre o comércio negreiro destinado primordialmente ao continente americano. Esta análise sectorial mostra claramente a crescente vigilância inglesa nas águas destes pontos da costa africana, mas igualmente muito ativa nas Antilhas. Resistiu-se por todos os meios, tentou-se enganar a vigilância, e a ninguém assombra que a escravatura tivesse recrudescido entre os povos da região, à falta da exportação. Ao tempo começa o comércio da mancarra, é uma nova lógica comercial que se instala, incentivar culturas e propor novos mercados de exportação, favoráveis aos propósitos coloniais. Aqui se deixa o testemunho de agradecimento a todos estes trabalhos pioneiros de Carreira, a historiografia anterior sempre fugiu a decifrar e a mostrar os cenários deste hediondo comércio.

Um abraço do
Mário



As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde

Mário Beja Santos

A Junta de Investigações Científica do Ultramar deu à estampa em 1981 um trabalho de António Carreira intitulado “O Tráfico de Escravos nos Rios de Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)”. Aqui se tem feito referência ao conjunto de obras de Carreira sobre o comércio negreiro, ele foi um pioneiro nestes estudos que hoje conhecem franco desenvolvimento. Aqui se pretende somente fazer referência, formalmente abolido que estava o tráfico, à sua repressão, o investigador alega escassez de informações nas pesquisas arquivísticas que fez. Atenda-se ao que ele escreve:
“Tudo indica que os negociantes de escravos residentes em Cabo Verde se tornaram extremamente dinâmicos a partir dos primeiros anos do século XIX – talvez na razão do aperto da fiscalização. Pelo menos é o que se conclui dos relatos das comissões mistas, quer a sediada na Boa Vista, quer a da Serra Leoa e pelo próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros português.
Os navios espanhóis apoiados em Cabo Verde navegavam com bandeira portuguesa e passaporte concedido pelo governo de Cabo Verde. À sombra dessa proteção acolhiam-se armadores espanhóis e um ou outro brasileiro, isto se falar numa espécie de caçadores furtivos procedentes de outras áreas.
Das listas oficiais de navios apresados, de 1835 a 1839, com escravos a bordo ou por simples indícios de se dedicarem ao tráfico e dos que foram declarados suspeitos de implicação no tráfico pelas comissões missões, referenciamos 36 armadores com um total de 55 navios. De entre os condenados, 14 transportavam escravos e 25 teriam a bordo mercadorias próprias para o negócio da escravatura.
Também estavam sujeitos a apresamento e confisco do casco os navios que tivessem: escotilhas com grades abertas; repartimentos, coberta corrida ou separações em maior número que é costume; tábuas aparelhadas para formar segunda escotilha; gargalheiras, algemas, anjinhos, cadeias ou outros instrumentos de contenção; maior quantidade de água em pipas ou tanques do que é necessário para o consumo da tripulação; quantidades extraordinárias de selhas, gamelas ou bandejas para a distribuição do rancho do que a necessária para o uso da equipagem; quantidade extraordinária de arroz, feijão, carne, peixe salgado, farinha de pau, mandioca, milho ou outras farinhas.
Pode dizer-se que se preparava o caminho que viria a permitir aos ingleses a imposição a Portugal das estipulações do Tratado de 3 de julho de 1842”
.

E assim nos aproximamos concretamente do comércio negreiro nos rios da Guiné e Cabo Verde. Carreira faz referência a uma carta de maio de 1835, o embaixador inglês Howard de Walden comunica ao ministro português que fora apresada em 14 de agosto de 1834 na ilha de Cuba a escuna Felicidade transportando a bordo 174 escravos pertencentes ao governador de Bissau. Desembarcados os escravos, a escuna foi levada para Serra Leoa e aí entregue à comissão mista. A escuna Felicidade estava inscrita no arquivo da Praia, nota-se, no entanto, uma discrepância em vários elementos, mas não deixa de ser flagrante a coincidência do nome do navio e o número de escravos apresados. Entre 1836 e 1839 terão sido apresadas embarcações com uma média anual de cerca de 1000 escravos. Interrogando-se quanto aos portos em que teriam sido embarcados os escravos, Carreira diz que talvez se possam apontar os rios Casamansa, Cacheu, Geba, ilhas de Bissau e dos Bijagós ou nas rias do Sul – Nuno, Pongo e ilha dos Ídolos – como sendo as áreas de procedência da maioria das carregações.

Continuamos a citar António Carreira:
“Para o volume de escravos apresados, os 41 transportados pela escuna Liberal que navegava com passaporte passado pelo governo de Cabo Verde, e detectados pelo brigue brisk, a 14 de abril de 1839, constituíram uma gota de água no imenso oceano de tráfico ilícito. E daquele número unicamente 3 foram dados como pertencentes a Honório Pereira Barreto, por cuja infração foi condenado pela comissão mista à pena de incapacidade de exercício de funções públicas por 5 anos, agravada com a multa de 2 contos de réis! Foi inegavelmente uma condenação política, a que talvez não tivesse sido estranha a influência dos próprios patrícios que lhe invejam a posição preponderante que desfrutava.
No actual estado das pesquisas arquivísticas sobre a matéria (arquivos de Lisboa e de Cabo Verde – já que na Guiné há absolutamente nada) apenas podemos indicar outro caso de tráfego ilícito, não por apresamento de navios e/ou escravos, este registado na correspondência da comissão mista da Serra Leoa e o Ministério da Marinha e do Ultramar. Ao dar a conhecer ao governo de Cabo Verde as conclusões da referida comissão, o Ministério dizia: O rio Nuno há 3 anos que não tem sido visitado por um navio de escravos; contudo, tem sofrido a influência do muito ativo comércio estabelecido em Bissau, de onde são enviados agentes ao rio Nuno a fim de comprar escravos que mandam para Bissau em ocasião oportuna. O negociante Caetano Nosolini tem tido a maior parte deste negócio e emprega para este fim em rio Nuno dois agentes europeus, além de gente de cor empregada em seu serviço. De 1841 em diante, a documentação encontrada alude com frequência a navios suspeitos em circulação nos rios de Guiné e a navios usando ilegalmente a bandeira portuguesa”
.

Tudo levava a crer que o comércio negreiro sofrera uma baixa sensível em quase todos os bens conhecidos mercados da costa africana, tão intensa era a vigilância dos cruzeiros britânicos. Carreira reflete do seguinte modo:
“É muito possível que em uma ou outra região os naturais tivessem assaltado e destruídos as instalações de recolha de escravos, libertando-os; mas isso sem carácter generalizado, pois na altura os régulos islamizados haviam já lançado a campanha contra os animistas, reduzindo-os à escravidão, e vendendo uns aos negreiros europeus (através dos Djilas) e outros no interior do continente, onde os utilizavam como força de trabalho, necessária à manutenção de todo o séquito próprio de régulos Fulas e Mandingas”. Carreira observa ainda que o tráfico ilícito continuava nas ilhas de Cabo Verde e mostra documentação. Há um relatório do Diretor da Alfândega de Bissau, datado de 22 de dezembro de 1857 e dirigido ao Visconde de Sá da Bandeira onde se afirma que em 1842 cessou completamente a exportação de escravos de Bissau e Cacheu. Carreira observa que esta informação não lhe parecesse inteiramente exata quanto a Bissau, pelo menos, e cita documentação contraditória. E, escreve mais adiante: “Tudo indica que houve um recrudescimento do tráfico ilícito nas zonas do interior que utilizavam Bissau como o melhor porto de saída de escravos, sobretudo oriundos de Geba. Por essa altura já havia sido desencadeada a guerra (1840) entre Fulas e Mandingas, e que viria a terminar com a derrota dos últimos, em 1853. E os vencidos nestas lutas, como era norma, foram vendidos nos mercados do interior e outras vezes levados para os portos da costa e negociados com os europeus, ou então passavam a engrossar os exércitos dos régulos e utilizados em trabalhos agrícolas e outras atividades de interesse mais direto dos chefes políticos e religiosos, designadamente no cultivo da mancarra”.

O investigador reconhece que traçou um panorama necessariamente parcelar e incompleto, teve mesmo que desistir de tentar fazer a contabilidade do número aproximado de escravos movimentados e portos onde teriam sido embarcados.


Castelo de São Jorge da Mina, construído pelos portugueses na Costa do Ouro (hoje Gana) em 1482, de onde saíram mais de 30 mil escravos rumo ao Brasil, em navios portugueses.
Foto com a devida vénia a vinteculturaesociedade

Cartaz do previsto Simpósio Internacional Cacheu Caminho de Escravos, bem procurei documentação, nada encontrei, provavelmente foi cancelado atendendo à pandemia
Foto com a devida vénia a Plataforma9

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Veja-se o pormenor da capa deste livro, parece objeto estranho, mas é peça em chapa de ferro espessa, destinada à prisão de escravos pelos tornozelos e pelos pulsos, simultaneamente. O indivíduo era obrigado a permanecer sentado, sem se poder levantar; a peça é provida de um fecho com chave, tem 35cm de comprimento, e é proveniente de Ouro Preto, pertence à coleção do Museu Nacional de Etnologia. No seguimento da primeira narrativa, estamos chegados agora à existência de companhias majestáticas, António Carreira encontrou documentação do maior interesse nos arquivos, refere os dois grandes mercados do tráfico, a Senegâmbia e Angola e a importância de Santiago, daqui "a mercadoria" partia para o Brasil e Cuba. Obra fértil em explicações quanto à importância da economia cabo-verdiana, a contabilidade das companhias majestáticas, ficamos a saber como era identificados os escravos, a conhecer os tipos de instrumentos de prisão, de tortura ou de humilhação, a dor maior virá na descrição dos tipos de castigos corporais, é arrepiante. Obra pioneira, é justo aqui realçá-la por ter aberto portas a estudos mais fundamentados para o conhecimento de aspetos do nosso colonialismo que permaneceram muito tempo na penumbra.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (2)

Mário Beja Santos

O livro Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos, por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O comércio negreiro feito por portugueses irá sofrer uma profunda alteração em 1755 com a criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que iria atuar numa área entre o Cabo Branco a Angola, limites que vieram a ser restringidos para a área entre o Cabo Branco e o Cabo das Palmas, limitação que tinha em vista a formação de uma outra empresa, a Companhia de Pernambuco e Paraíba, atuando no setor de Angola. Interessa-nos falar da primeira, António Carreira encontrou farta documentação sobre este tráfico e procura explicações para o seu reduzido volume: a existência entre grupos étnicos de cultura islâmica de um forte poder dos régulos, em particular dos Mandingas; o desvio de levas de escravos para os mercados do interior (no Senegal, no Mali, e zonas periféricas). É uma pertinente investigação, que ele assim remata: “A conclusão a tirar da análise da evolução do tráfico através dos tempos e dos sectores é de que foi a Angola a grande sacrificada. O sector Senegal-Serra Leoa gozou de verdadeiro privilégio. O território angolano sofreu uma sangria demográfica em benefício da América do Sul (em especial o Brasil) e central (Cuba)”. Mas também esclarece o seguinte: “Por reduzidos que tivessem sido os contingentes saídos dos rios de Guiné e de Cabo Verde, não podiam ser tão insignificantes. E se não tivéssemos levado a efeito o levantamento da contabilidade da empresa monopolista do século XVIII, pouco ou nada se podia apresentar”.

A posição portuguesa que fora de relevo no século XVI e até às primeiras décadas do século XVII não suportou a concorrência da Inglaterra, da Holanda e da França, que passaram a ter um papel dominante nesta área do Atlântico. E tece o seguinte comentário: “O nosso traficante era tímido e hesitante. Não se aventurava a empates de dinheiro a médio ou longo prazo. Tanto na Inglaterra como na Holanda as casas reinantes e a alta finança investiam no tráfico e em navios para o corso. O século XVII marcou a viragem para a formação de companhias fortemente apetrechadas, destinadas aos tratos e aos resgates. A situação na Guiné e em Cabo Verde continuou a piorar e levou à formação da Companhia de Cacheu, Rios e de Comércio da Guiné, mal terminou o prazo concedido a esta empresa foi criada a Companhia do Estanco, do Maranhão e Pará, empresa que foi muito mal recebida. Anos volvidos é formada outra empresa, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde”.

O investigador António Carreira analisa um conjunto de fenómenos sociopolíticos e económicos suscitados pelo aparecimento do ouro e de diamantes no Brasil, que vai criar um entusiasmo entre os portugueses para ali irem viver, e disserta sobre as relações económicas entre a colónia brasileira e Lisboa. Os dados que compulsou permitiram-lhe apresentar dados sobre os escravos comprados pela Companhia do Grão-Pará e Maranhão, o papel económico desempenhado pela urzela de Cabo Verde, os panos de algodão produzidos nas ilhas de Cabo Verde, a natureza de subsídios, donativos e outras taxas, as alcavalas cobradas na última fase do tráfico e assim chegamos à marcação a ferro quente dos escravos. Escreve Carreira: “Numa primeira fase a marcação tinha por finalidade principal a identificação dos escravos pertencentes à Coroa, fossem eles adquiridos, fossem recebidos em pagamento de direitos ou de rendas pelos contratadores. Poucos anos depois, os contratadores, para não serem defraudados, passaram igualmente a marcar os seus escravos”.

Refere também a identificação dos escravos, e desperta-nos para alguns aspetos curiosos quanto a designações:
“Adultos: cabeça; peça; marfim ou ébano de Guiné; escravo ou negro lotado; escravo ou negro com ponta de barba; escravo ou negro boçal; escravo de grilhão; escravo mulato; escravo mascavo ou mascavado.
Adolescentes: moleque ou moleca; moleque ou moleca lotado; molecão ou molecona; molecona de peito atacado (a que tivesse os seios bem formados); mocetão ou mocetona.
Crianças: minino; cria de peito; cria de pé (a que anda).
Peça-de-Índia definia o escravo jovem, alto, robusto e sem defeitos físicos. Em época adiantada do tráfico, usou-se a bitola de 1,75m de estatura para designar a peça-da-Índia.
Escravo ou moleque lotado era aquele que, pela sua compleição física, podia fazer parte de um lote para efeito de venda.
Escravo barbado ou com ponta de barba correspondia ao adolescente com barba bem formada. Era já homem.
Escravo boçal era todo aquele que não se soubesse expressar em crioulo ou português, e não tivesse ainda sido submetido à catequese e batismo.
Escravo ladino era o escravo esperto que se fazia compreender facilmente em crioulo ou português, ou que tivesse alguma profissão ou ofício.
Escravo de grilhão era todo aquele que tivesse sido alguma vez castigado com a pena de prisão com grilhão nos pés.
Escravo mulato correspondia ao produto de mestiçagem de sangue entre homem branco e mulher preta ou mesmo de pais mestiços.
Escravo fujão era aquele que tivesse propensão para fugir ao trabalho ou à tutela do seu senhor.
Escravo mascavado era aquele que possuísse aleijão ou deformidade física.”


Carreira também nos dá uma lista de tipos de instrumentos de prisão, é uma lista horrível, inclui instrumentos de tortura, de prisão ou de humilhação, devem ter sido copiados e aperfeiçoados os modelos usados pela Inquisição. Esta lista de castigos corporais merece a Carreira bastante detalhe, custa ler tanta violência, tanta severidade e tanta desumanidade.

É vasta e muito útil a bibliografia que António Carreira anexa sobre o tráfico português de escravos. Obra pioneira pois, é justo relembrá-la pelo timbre de rigor e a abertura que deu a novas investigações.

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
É inegável que a historiografia sobre a Guiné portuguesa tem uma enorme dívida com o António Carreira. Aqui se faz jus a um trabalho pioneiro sobre o comércio negreiro na costa ocidental africana, Carreira era homem de arquivos, deplora frontalmente a negligência dos investigadores no estudo do tráfico português de escravos. Felizmente que todo este acervo documental passou a ser muito mais escrutinado nas últimas décadas, todo este fenómeno socioeconómico cultural começa a esclarecer-se. A narrativa de Carreira é profundamente didática, tem o mérito de poder ser acompanhada por iniciados e leigos, verifica-se que é um trabalho altamente fundamentado e cumpre o desejo do autor: abre imensas portas a quem queira investigar o papel dos portugueses no tráfico de escravos.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (1)

Mário Beja Santos

O livro "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O investigador abre as suas considerações enfatizando a dívida com que o continente americano ficou com o escravo africano, sem este imigrante forçado teria sido inviável a cultura da cana sacarina, o cultivo do fumo, o apanho das drogas do sertão, a criação extensiva de gado, a extração de ouro e pedras preciosas. A situação do comércio negreiro só conhecerá profunda alteração com a Imigração branca iniciada no século XIX. E adianta também: ”Não foi apenas na América e em África que se sentiram os efeitos da grande imigração forçada de povos africanos e que ficou mais conhecida como tráfico de escravos. Este tipo de migrações transformou a economia de muitas nações europeias, em especial a da Inglaterra, a da França, a da Holanda, a da Espanha, a de Portugal, e outras. No final do século XVIII, só na Inglaterra existiam mais de 14 mil escravos negros. A América cultivava o algodão, utilizando para o efeito o escravo africano, e a Inglaterra industrializava-o, produzindo os tecidos de exportação. Tudo irá mudar com a independência dos EUA, houve que procurar noutras áreas as matérias-primas, e Inglaterra decidiu coartar o fornecimento de mão de obra escrava à América do Norte e a outros países que se lhe opunham como concorrentes ao comércio africano”. Iniciava-se a campanha abolicionista, mas a ilegalização do sistema da escravização, em termos que não foram absolutamente práticos só foi alcançada no final do século XIX.

Carreira dá conta da vastidão do seu trabalho: “Dobrado o Cabo Bojador, a área conhecida por Guiné passou a ter enorme extensão: abrangia a faixa de território que, a partir da foz do rio Senegal, se estendia até ao rio Orange! Depois, quando se conheceu melhor a costa, foi encurtada, limitando-se ao setor do rio Senegal até à Serra Leoa, espaço da capitania de Cabo Verde.” Para baixo temos a Costa da Mina, indo até à Costa de Angola, abrangendo os chamados reinos de Loango, Sonho, Cabinda, Congo, Angola e Benguela.

Debruça-se Carreira sobre as motivações do Infante D. Henrique, a literatura de viagens, a captura de negros, mas o tráfico autêntico ainda não se organizara, a Coroa não possuía organização adequada, confiou a exploração do negócio a particulares, logo Fernão Gomes, em 1468, ele podia resgatar escravos com exceção da terra firme defronte das ilhas de Cabo Verde e do castelo de Arguim. É um período em que surgirão muitas desinteligências com os moradores Santiago, com transgressões ao estipulado pela Coroa. Aumentarão os conflitos entre os negociantes de escravos e as populações africanas, a Coroa tomou decisões: proibiu expressamente as operações de razia e captura de negros, impondo a prática da compra, por permuta por vestuário, manilhas de latão, missangas, contaria, etc., assim como por animais domésticos, isto dentro de uma lógica das preferências dos mercados africanos. E sintetiza Carreira:
“Podemos, em resumo, e baseados em textos portugueses dos séculos XVI e XVII, determinar os principais processos usados na obtenção de escravos:
1. Os prisioneiros de guerra e os capturados nas frequentes operações de razia.
2. Os aprisionados nas lutas travadas entre classes sociais ou profissionais (corporações de ofícios nos Mandingas), de uma mesma etnia e também os resultantes da imposição de credos religiosos.
3. Os condenados por decisões de régulos à pena de morte, e a seguir comutada pela de escravização.
4. Os condenados por decisões proferidas através de ordálios a serem vendidos e a suas famílias como escravos.
5. Os vendidos pelas famílias e os que se vendiam a si mesmos e aos seus familiares nas épocas de fome ou calamidade, etc., etc.”


Dá-nos seguidamente o role dos sistemas de exploração entre o século XV e o século XVII, refere alguns dos principais contratos de arrendamento e nomes dos contratadores, num arco geográfico entre os rios da Guiné e Angola. O comércio da Guiné no século XVI foi o primeiro, destinava-se sobretudo a terras brasileiras. O autor dá-nos a relação do tráfico africano para a Baía em vários ciclos, a concorrência estrangeira, como a dominação espanhola afetou profundamente o comércio português, e dá-nos conta das suas investigações: “Através de números compilados dos livros de registos alfandegários, de relatórios e de correspondência oficial endereçada a Lisboa, e ainda das estatísticas organizadas em algumas áreas do Brasil, podemos ter uma ideia, embora incompleta, da evolução do tráfico de escravos na costa ocidental africana. Há falta de dados durantes longos períodos e temos de ter em linha de conta o contrabando de escravos em todos os setores, parece situar-se numa ordem de grandeza aproximada entre 40-50% do total de saídas registadas na documentação oficial.” Interessa-nos aqui referir a região da Senegâmbia, área compreendida entre a foz do rio Senegal e o limite sul da Serra Leoa, englobando as ilhas de Cabo Verde, das quais a de Santiago teve durante mais de um século a função de depósito ou entreposto de escravos destinados à exportação. Na segunda metade do século XV faz-se referência a uma média anual de 700 a 800 escravos destinados à Península Ibérica e a mercados árabes. Nas primeiras décadas de 1500, o tráfico passou a processar-se mais a sul, entre o rio Senegal e a Serra Leoa, são analisados os contratos de arrendamento. E em meados dos século XVIII surgem as companhias majestáticas do comércio em geral e a do tráfico de escravos.

(continua)


O comércio negreiro feito pelos árabes, os antecessores dos europeus
Livro importante para o estudo do tráfico negreiro árabe-muçulmano
Pintura do francês Jean-Baptiste Debret, 1826, retrata escravos no Brasil
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24111: Historiografia da presença portuguesa em África (357): História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira; Edição do Autor, 1983 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24111: Historiografia da presença portuguesa em África (357): História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira; Edição do Autor, 1983 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Das suas andanças pelo Arquivo Histórico Ultramarino, António Carreira catou alguns documentos que haviam escapado ao grande pesquisador que foi o Padre António Brásio, autor de uma notável coletânea (5 volumes, de 1342 a 1650) dos melhores repositórios sobre a área dos rios de Guiné e Cabo Verde. "Estudados detidamente, pensei logo em divulgá-los, com anotações e comentários, alguns deles em edição fac-similada. Só que nenhuma instituição cultural e/ou científica se mostrou interessada em fazê-lo. Não é de estranhar. É a eterna contradição que caracteriza a sociedade portuguesa designadamente no campo da cultura. Apregoa-se insistentemente a existência de Centro de Estudos Africanos destinados a apoiar e a orientar este tipo de investigação; mas salvo uma ou outra exceção não o podem fazer dada a posição de apagada e vil tristeza em que vivem. Daí que a investigação de campo e o estudo e a publicação dos seus resultados se confine, em regra, a tarefas individuais de uns tantos maduros e destituída de apoios das instituições estatais e privadas". E António Carreira fez edição de autor, temos hoje livro raríssimo, obra que faz falta em qualquer desses Centros de Estudos Africanos, pôs na capa um dragoeiro, cuja goma ou resina foi utilizada durante largos anos na farmacopeia. Como ele escreveu: "Como se fala agora com tanta insistência na proteção da natureza, parece que ela deve ser objeto de medidas especiais que impeçam a sua destruição".

Um abraço do
Mário



O dom de investigar, o dom de saber comentar:
António Carreira, aquele historiador sempre indispensável


Mário Beja Santos

A obra intitula-se Documentos para a História das Ilhas de Cabo Verde e “Rios de Guiné” (séculos XVII e XVIII), por António Carreira, Edição do Autor, 1983. Explica a razão da publicação: “Divulgação de documentos de grande interesse para o conhecimento da ação dos portugueses na costa ocidental africana nos anos de 1600 até final de 1700. Eles mostram as vicissitudes por que passaram os contratos de arrendamento de tratos e resgates, e as falcatruas cometidas pelos contratadores, falcatruas essas facilitadas pela impossibilidade do Governo controlar os negócios; e de outro lado, o contrabando de escravos e a desenfreada concorrência comercial de Franceses, Ingleses e Holandeses, por vezes apoiada na guerra de corso, visando pôr termo às atividades dos portugueses na costa a partir do Cabo Verde até à Serra Leoa”. É uma documentação úbere de informações de tempos e lugares em que a presença portuguesa esteve permanentemente em causa, tanto pela hostilidade de estrangeiros como pela guerrilha dos autóctones. O estudioso tem acesso a relatórios, cartas, pareceres, regimentos, despachos que permitem conhecer a agressividade dos régulos em torno da Praça de Bissau, os problemas alfandegários, a situação comercial na região, contratos de arrendamento, regimento do presídio e alfândega de Farim, reclamações dos comerciantes contra as taxas de direitos.

António Carreira foi um investigador modelar, encontrava nos arquivos manuscritos e sabia comentá-los como ninguém. Veja-se como ele introduz a questão do termo Rios da Guiné, que era a expressão mais utilizada na documentação antiga, precedeu o uso da expressão Guiné, mas sempre com sentido indefinido, fazia parte da área da jurisdição da Capitania de Cabo Verde, cujo governador entregava regimento ao capitão mor de Cacheu, o regimento de 1614 recomendava: a difusão da religião católica através da catequização dos gentios; a fiscalização da navegação e do comércio de e com os estrangeiros, impedindo a venda de escravos, de cera, de marfim e de ouro; impedir por todas as formas a entrada em Cacheu de algodão proveniente da Gâmbia e de outros pontos; exercer o controlo dos preços de compra dos escravos. Carreira comenta que os princípios de que os capitães mores, feitores e ouvidores dos rios de Guiné de estarem subordinados ao Governador das ilhas de Cabo Verde não tinha significado efetivo e real.

Aborda depois o investigador topónimo Guiné que designava uma larga zona sem limites compreensíveis. E recorda que o Padre Baltazar Barreira em carta escrita em Santiago a 1 de agosto de 1606 procurou esclarecer assim os limites da Guiné: “Esta parte de África que os portugueses propriamente chamam Guiné começa no rio Senegal e corre pela costa até a Serra Leoa, obra de 180 léguas de norte a sul”. Viajando no tempo, Carreira dá-nos conta dos ciclos económicos enquanto se apertava o cerco à presença portuguesa até que se chegou a uma situação, que precede as decisões da Conferência de Berlim em que a nossa presença na Senegâmbia era constituída por as praças e presídios de Ziguinchor, Cacheu, Farim, Geba, Fá, Bissau e Guinala. Estas praças e presídios, também designadas por feitorias, estavam instaladas nas margens dos rios, em limitados espaços formando pequenos povoados de comerciantes europeus, filhos da terra (grumetes) e mestiços cabo-verdianos, espaços ocupados mediante licença das autoridades tradicionais, contra o pagamento de renda anual (a daxa). Refere o autor a história destas feitorias, o aparecimento da primeira Fortaleza de Bissau, construída em 1696, a história das diferentes companhias comerciais de vida breve, a gradual presença portuguesa a partir do século XIX, observando Carreira que da soberania portuguesa só se deve falar a partir de 1915, dando-nos o contexto das turbulências vividas no solo continental por quase todo o século XIX: em 1840 eclodiu um conflito entre Fulas e Mandigas, que levou à derrota destes últimos e as guerras sucessivas que assolaram o Alto Geba, no Gabu e no Forreá. Lançara-se entre 1842 e 1845, no Quínara, a cultura da mancarra, que se mostrou florescente, mas com a guerrilha que se intensificou a partir de 1876, tudo se perdeu. E o autor não deixa de enfatizar que a chamada Guiné portuguesa é uma figura política e jurídica surgida da Convenção Luso-francesa de 1886.

Temos depois o rol dos documentos do século XVII, o autor chama à atenção para a incapacidade organizativa da Coroa em afastar ou punir a concorrência, limitava-se a estabelecer contratos de exploração por administração direta por vários anos; mostra igualmente o autor a existência de conflitos entre o Governador de Cabo Verde e os agentes do rei nos rios; e assim chegamos ao relato do feitor da Fazenda Real, em Bissau, José António Pinto, caminhamos para o final do século XVIII, dá-nos conta da situação nas praças e presídios, veja-se a pungente descrição que ele faz do presídio de Geba:
“O pequeno número de que se compunha a sua guarnição são negros, pardos e alguns brancos, tanto uns como outros ali são mandados degredados por tremendos crimes, os quais são brancos já não conservam sentimentos alguns da sua cor nem de costumes europeus vendo que ali são degradados por toda a vida, continuam em dar exercícios aos seus diabólicos costumes, roubando armazéns de noite. Sargentos, furriéis e cabos são da mesma natureza, brancos, negros, pardos, ladrões e facínoras, de forma que como sequazes dos soldados não só não há respeito, mas quando o pretendem ter, opõem-se-lhe e rebelam-se os culpados que ficam sem castigo (…)”. É extensa a denúncia, dá-nos depois a descrição do porto de Bissau, das ilhas de Cabo Verde e sua guarnição militar, refere a Fazenda e o negócio da panaria e da purgueira, refere as ilhas e as forças militares.

A obra de António Carreira faz-se acompanhar de muito texto em fac-simile, dos documentos aludidos dá por inteiro o regimento da Alfândega de Cacheu de 1797, temos igualmente um apenso documental com requerimentos, nota de emolumentos, reclamações, lista de navios chegados a Bissau no final do século XVIII.

Obra de indiscutível interesse para quem pretende estudar estes séculos da nossa precária presença naqueles pontos da costa ocidental africana.

Fortaleza do Cacheu
Planta da Praça de S. José, Bissau, 1864
Interior da Fortaleza de S. José da Amura, cerca de 1925
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24089: Historiografia da presença portuguesa em África (356): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (10) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24023: Notas de leitura (1548): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
A organização da História de Portugal e do Império Português, pelo académico A. R. Disney, em dois volumes, tem as suas originalidades e não deixam de provocar surpresa ao leitor português. O primeiro volume abarca desde a Pré-História até ao fim do Antigo Regime e o segundo começa no Norte de África, com a conquista de Ceuta e vai até ao Império do Oriente na era colonial tardia. O que tem a ver com a Guiné inicia-se com a exploração das costas da África Atlântica e finaliza ao tempo da segunda fortaleza de Bissau, da nossa presença também no Cacheu e nalguns outros locais. Foi esta tímida presença, espartilhada pela França a Norte, num Senegal onde a Inglaterra tinha encravado a Gâmbia, a Sul uma Guiné Francesa que pretendia expandir-se, que se obteve, com o sacrifício do Casamansa, a legitimidade territorial da Guiné Portuguesa, que é hoje o território onde se confina a Guiné-Bissau. Daí o autor estar altamente motivado a falar do tráfico de escravos, verificou que a missionação foi altamente esporádica, e termina a sua exposição exatamente no tempo em que vão começar as explorações de produtos agrícolas. Um livro rigoroso que importa saudar.

Um abraço do
Mário


A Guiné no Império Português, segundo A. R. Disney (2)

Mário Beja Santos

Considerado pela crítica uma investigação de gabarito pela originalidade da estrutura e pelo inventário bibliográfico e documental, como este académico observa no prefácio do segundo volume, que aqui cabe fazer referência, está organizado de forma um pouco diferente do primeiro. Na obra de arranque, A. R. Disney centra-se na Pré-História de Portugal, prossegue pela Idade Média, a construção do Portugal de Avis, o que ele designa por a Idade de Ouro, a época de declínio, a Restauração e a Reconstrução, o esplendor barroco, a era do Marquês de Pombal, o final do Antigo Regime. Neste segundo volume é toda a evolução do Império, desde as Praças do Norte de África até o Império do Oriente na era colonial tardia é matéria de análise – "História de Portugal e do Império Português", Volume II, por A. R. Disney, Guerra e Paz Editores, 2011.

Vimos que o envolvimento na África Atlântica ditou uma forma de presença portuguesa naquilo que o autor designa por Alta Guiné mediante um contrato de arrendamento que favoreceu marcadores portugueses e cabo-verdianos. Instituiu-se a figura do lançado também designado por tangomão quando se aculturava. A Coroa era muito severa relativamente à área destinada a trato comercial, os mercadores estavam impedidos de ir a Arguim ou descer até S. Jorge da Mina. O tráfico de escravos destinado a diferentes paragens foi alvo de concorrência, a presença portuguesa no período pós-Restauração fragilizou-se ainda mais. Como o autor observa, a concorrência já era enorme antes do período filipino. “Na década de 1530 embarcações normandas e bretãs frequentavam a região para comerciar. Juntaram-se-lhes os Ingleses, na década de 1550, e os Holandeses, a partir de 1580. Estes concorrentes europeus foram muito bem recebidos pelos governantes africanos e rapidamente se estabeleceram na Alta Guiné. Com o tempo cada nacionalidade começou a concentrar-se em áreas particulares: os Franceses no Senegal, os ingleses na Gâmbia, os Holandeses e os Ingleses na Serra Leoa”. Encetara-se uma concorrência áspera, as nações europeias pensaram mesmo em erigir fortalezas, o que não era do agrado das chefias africanas, que queriam negociar sem restrições e com quem lhes parecesse vantajoso. Facto comprovado, os portugueses foram perdendo terreno na Alta Guiné, não podiam dispor de fornecimentos tão satisfatórios como os concorrentes. Em abono da presença portuguesa, os viajantes e mercadores tinham uma mais antiga experiência na região onde se tinham fixado em povoamentos informais que já estavam enraizados. A grande concentração era no Cacheu. Em 1589, o chefe Papel do Cacheu, depois de muita hesitação, concordou em permitir a construção de um forte, supostamente para a proteção dos lançados contra possíveis ataques de inimigos europeus. No início do século XVII, a cidade tinha duas igrejas e uma população cristã de quase mil pessoas.

Em 1614, a Coroa Portuguesa decidiu tornar a colónia oficial e nomeou um Capitão para o Cacheu que se iria tornar, quase durante dois séculos, no principal entreposto português para os escravos da Alta Guiné. Chegada a Restauração, decidiu-se que no Cacheu seriam pagos os direitos alfandegários da exportação de escravos, em substituição da cidade da Ribeira Grande. Esclareça-se que havia também lançados na ilha de Bissau, houvera bom acolhimento pelo chefe Papel local que se convertera ao catolicismo por franciscanos portugueses e deu autorização para a construção de uma fortaleza, em 1696. Pouco tempo depois, Bissau foi declarada uma Capitania portuguesa. As dificuldades cresciam, os concorrentes eram imbatíveis, tentou-se uma reestruturação, experimentaram-se as companhias comerciais. Foi instituída uma companhia para o comércio da África Ocidental, em 1664, revelou-se um fracasso. Foram encetadas outras companhias em 1676, 1682, 1690 e 1699, todas subcapitalizadas e condenadas a uma vida curta. A despeito da Guerra da Restauração, D. João IV, em 1646 autorizou a continuidade do tráfico de escravos para a América espanhola. Em 1701, Lisboa decidiu encerrar o Forte de Bissau. Durante a metade do século seguinte, os portugueses competiram nos Rios da Guiné com extrema dificuldade, tendo sempre à ilharga os franceses e os britânicos. Os estreitos laços económicos e políticos de Portugal com o Reino Unido trouxeram alguma vantagem sobre os franceses. Isto para significar que a primeira metade do século XVIII teve longe de ser um período próspero para os portugueses na Alta Guiné.

Seguiu-se a reforma pombalina acompanhada da decisão de construir outro forte em Bissau, a partir de 1752, houve oposição dos Papel, mas a estrutura foi concluída em 1775. A fortificação permitiu aos portugueses ir exercendo ascendência nos Rios da Guiné, apesar da presença inglesa rival, tanto nas ilhas Bijagós como no continente. Registou-se uma modesta recuperação no tráfico de escravos, em parte sob o estímulo da Companhia do Grão-Pará e Maranhão de Pombal, surgida em 1755. A Companhia deteve o monopólio português do comércio e navegação para a Alta Guiné até 1778 e levou mais de 22 mil escravos africanos para as até aí negligenciadas capitanias do Norte do Brasil.

Cacheu, Bissau e outros pequenos povoamentos nos Rios da Guiné continuaram nas mãos portuguesas e a crescer, mesmo depois da aposentação forçada de Pombal. É este conjunto de possessões que acabará por formar o núcleo da colónia da Guiné Portuguesa que ganhará fronteiras em 1886, alvo de algumas correções, que dão hoje o território da República da Guiné-Bissau.

A. R. Disney prossegue o seu trabalho com o ouro de S. Jorge da Mina, importa recordar que Fernão Gomes, devido ao seu contrato de 1469 a 1474, não só adquiriu grandes quantidades de ouro em várias aldeias costeiras dos atuais Costa do Marfim e Gana, zona da Baixa Guiné, mais tarde chamada Costa do Ouro, a que os portugueses chamavam a Costa da Mina. Em janeiro de 1482, D. João II despachou para a Costa da Mina uma armada comandada por Diogo de Azambuja e depois de conversações com o chefe local começou imediatamente a construção da fortaleza. Os portugueses nunca conseguiram estabelecer contato comercial direto, o ouro da Mina foi sempre uma operação sedentária, conduzida a partir da fortaleza. O ouro era trazido por mercadores indígenas que tratavam igualmente da distribuição dos produtos portugueses importados por todo o Interior. Resta dizer que S. Jorge da Mina é representada nos mapas do século XVI sobranceira à costa da Guiné, imagem algo errónea. A fortaleza não era imponente, o poder de ataque dos portugueses era mais ou menos limitado ao alcance do seu canhão. Resta dizer que o domínio marítimo português na costa da Mina durou cerca de 150 anos, e de modo algum se pode associar a presença portuguesa na Guiné diretamente com a fortaleza de Arguim ou a fortaleza de S. Jorge da Mina, eram tratos comerciais completamente distintos. E terminam as referências a este reconhecido trabalho sobre a História de Portugal e do Império Português, no que concerne à Guiné, mas História anterior à ocupação efetiva.

Imagem da Cacheu antiga, gravura do século XIX
Fortaleza de Cacheu, vestígios de estátuas da Guiné Portuguesa
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Notas do editor:

Poste anterior de 23 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24007: Notas de leitura (1546): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (1) (Mário Beja Santos)

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segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24007: Notas de leitura (1546): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
A. R. Disney é um investigador que tem dedicado bastante atenção ao império português, e merece muito crédito. Obra em dois volumes. No primeiro concentra-se na Pré-História em Portugal até à formação da nacionalidade, temos depois a construção de Portugal de Avis, o período áureo dos Descobrimentos e como eles se repercutiram na literatura e nas Artes, depois o declínio será contemporâneo do Portugal dos Habsburgo, virá a Restauração, indo por aí fora até ao final do Antigo Regime. A organização do segundo volume será diferente, pois será dedicada só ao Império Português, e é no envolvimento na África Atlântica que ele se vai focalizar na Alta Guiné, uma designação puramente arbitrária, para contrastar com a Baixa Guiné, geograficamente situada no Golfo da Guiné. Dir-se-á que não traz elementos inovadores, mas no mínimo saúda-se o trabalho sério, todo ele pautado pelo rigor e objetividade.

Um abraço do
Mário



A Guiné no Império Português, segundo A. R. Disney (1)

Mário Beja Santos

Considerado pela crítica uma investigação de gabarito pela originalidade da estrutura e pelo inventário bibliográfico e documental, como este académico observa no prefácio do segundo volume, que aqui cabe fazer referência, está organizado de forma um pouco diferente do primeiro. Na obra de arranque, A. R. Disney centra-se na pré-História de Portugal, prossegue pela Idade Média, a construção do Portugal de Avis, o que ele designa por a Idade de Ouro, a época de declínio, a Restauração e a Reconstrução, o esplendor barroco, a era do Marquês de Pombal, o final do Antigo Regime. Neste segundo volume é toda a evolução do Império, desde as praças do Norte de África até o Império do Oriente na era colonial tardia é matéria de análise – História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney, Guerra e Paz Editores, 2011.

E é no capítulo referente ao envolvimento na África Atlântica que começa a narrativa que se acomoda à contextualização da primeira fase da presença portuguesa do que o autor designa por Alta Guiné. Começa por observar que a chegada dos portugueses entre as décadas de 1940 e 1950 encontraram muita hostilidade nas populações autóctones. Segue-se o arrendamento do comércio da região a Fernão Gomes, D. João II pretendia que se erguessem estabelecimentos permanentes em terra, tentou persuadir-se os senhores africanos locais a reconhecer a soberania portuguesa. Em 1485, D. João II adotou o sonante título de “senhor da Guiné”, mais uma pretensão do que uma realidade, como ele anota, nem Portugal nem qualquer outra potência europeia exerceu um domínio político genuíno sobre um qualquer segmento significativo da África Ocidental na era pré-moderna. D. Manuel I tinha outros planos, estava concentrado em Marrocos e nas vias de acesso ao Índico. Mas ainda no reinado de D. João II houve uma aproximação diplomática junto de um chefe no reino Jalofo, um estado a sul do rio Senegal, os portugueses chamavam-lhe D. João de Benoin, tudo acabou mal, e continuou-se a prática de arrendamento dos monopólios do comércio nesta região da África Ocidental. No início do século XVI havia quatro contratos: para a região do Senegal, para a Gâmbia, para os Rios da Guiné (correspondente aproximadamente ao território da colónia e do país independente) e para a costa da Serra Leoa.

No final do século XV, para além dos mercadores que vinham de Cabo Verde, havia também vários portugueses e mestiços que se tinham estabelecido de forma permanente, a Coroa começou por os tolerar e depois perseguir, em vão, estes colonos informais e seus descendentes afro-portugueses espalharam-se e enraizaram-se cada vez mais. Havia de tudo, degredados, pessoas condenadas ao exílio, gente perseguida por diversos tipos de ofensas. Terá havido gente de origem social variada: oficiais-régios, marinheiros, aventureiros, forros e até escravos. Serão conhecidos como lançados (rejeitados), muitos seriam de origem cabo-verdiana.

Gravitavam em torno dos rios e estuários, agrupavam-se em pontos de acesso às redes comerciais. A maior parte destes lançados tornou-se o híbrido cultural, falavam um crioulo amplamente utilizado como língua de comércio na África Ocidental, alguns lançados cafrealizavam-se e passavam a ser designados por Tangomãos. Os comerciantes lançados e afro-portugueses viajavam centenas de quilómetros ao longo dos rios e pelas suas margens, na Alta Guiné. Conheciam o país e as pessoas melhor do que os visitantes europeus, por essa razão acabaram por se constituir os intermediários habituais no comércio europeu com a África Ocidental. Entre os mais bem-sucedidos consta o nome de uma mulher, Bibiana Vaz de Cacheu, no final do século XVII. Estes lançados não estavam diretamente envolvidos na agricultura.

O autor invoca vários historiadores que notaram que a África atlântica anterior ao século XIX não necessitava de importações europeias, o que escolhiam comprar aos portugueses eram produtos de luxo e de prestígio, como têxteis, peças ornamentais e álcool. O ferro era relativamente escasso nas regiões costeiras; por isso também gostavam de utensílios e ferramentas de metal barato. Mais tarde, no século XVIII queriam armas de fogo, pólvora e acima de tudo o tabaco preparado na baía, o fumo (tabaco baiano de fraca qualidade tratado com melaço). Aqui cabe talvez fazer uma observação, não só os historiadores portugueses referem que nesta economia de troca os cavalos tinham um grande peso, aliás há rol de comércio negreiro em que o termo de troca era o cavalo por determinado número de escravos.

Mais adiante o autor que na Alta Guiné os portugueses, para além de procurarem escravos e ouro, compravam marfim, cera, malaguetas e muitos outros produtos. Os escravos eram fornecidos pelas autoridades africanas bem como pelos comerciantes africanos. Cada área tinha os seus fornecedores conhecidos e mais ou menos fiáveis. Por exemplo, na Serra Leão, por meados do século XVI, eram principalmente os Mani-sumbas que abasteciam os portugueses de cativos sapis ou de outros povos costeiros. Nos Rios da Guiné e na Gâmbia, os escravos eram trazidos dos povos Mandinka e Cassanga. Outra fonte eram os Bijagós, do arquipélago do mesmo nome, que, a partir de finais do século XVI, ofereciam regularmente aos portugueses escravos que tinham adquirido entre os Beafadas e os Papel das zonas mais próximas do continente.

A partir de finais do século XV e até à década de 1510, a Alta Guiné era a principal fonte de escravos africanos para Portugal. Ironicamente, foi precisamente quando a oferta da Alta Guiné passou a declinar que se abriu um vasto novo mercado do outro lado do Atlântico: primeiro na América espanhola e depois no Brasil. Em 1513 introduziu-se um sistema de licenciamento que permitia a importação de escravos de África a um preço por cabeça estabelecido, pago pelo traficante de escravos.

As estatísticas destas exportações não são fidedignas. Os escravos destinados à América espanhola provinham sobretudo da Alta Guiné; depois passaram a trazê-los da Costa dos Escravos, através de S. Tomé; e finalmente, a partir de finais do século XVI até 1640, de Angola. Entretanto, as plantações coloniais portuguesas do Brasil tinham, desde meados do século XVI, começado a importar um número cada vez maior de escravos africanos. Quando o tráfico de escravos cresceu, a Alta Guiné deixou de ser a principal fornecedora.

Deixamos para próximo texto a explicação que A. R. Disney oferece sobre as origens da presença portuguesa e o contexto que nos oferece sobre o ouro de S. Jorge da Mina, Benim, iniciara-se um período de obscuridade na presença portuguesa, com altos e baixos, a situação só será diferente no século XIX, primeiro com a desafetação da Guiné de Cabo Verde e depois com a Convenção Luso-Francesa de maio de 1866 em que a política portuguesa ficou obrigada a pacificar e a ocupar. Mas isso já é outra história.

(Continua)

Carta náutica de Fernão Vaz Dourado (c. 1520 - c. 1580), incluída num atlas desenhado em 1571. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa.
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Nota do editor

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