Mostrar mensagens com a etiqueta Umaru Baldé. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Umaru Baldé. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17905: (D)o outro lado do combate (13): Jovens recrutas do PAIGC... (Jorge Araújo)


Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral > Pasta: 05222.000.172 > Título: Jovens durante treino militar para o Exército do PAIGC > Assunto: Jovens durante treino militar para incorporarem o Exército do PAIGC e a luta de libertação nacional > Data: 1963-1973 >  Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.

(Reproduzido com a devida vénia...).

1. Mensagem do Jorge Araújo, nosso colaborador permanente, com data de hoje:

Caro Luís,

Parabéns pela tua síntese/reflexão construída a partir dos meus últimos postes sobre as propostas de Amílcar Cabral (AC) a Sekou Touré (ST) (setembro de 1972).

Caso entendas incluir uma foto dos jovens guineenses em instrução (futuros guerrilheiros do PAIGC) no poste  P17902 (*), aqui vai uma...

Citação:
(1963-1973), "Jovens durante treino militar para o Exército do PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43792 (2017-10-25)

Ab.
Jorge Araújo.



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > Centro de Instrução Militar de Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > > O Valdemar Queiroz, com os recrutas Cherno, Sori e Umarau (que irão depois para a CCAÇ 2590 / CCAÇ 12). Estes mancebos aparentavam ter 16 ou menos anos de idade. Eram do recrutamento local.

Foto: © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Comentário do editor LG:

Obrigado pela foto dos "jovens recrutas" do PAIGC. "Arrebanhados à força" ? De facto, não têm, aparentemente,  as caras mais felizes do mundo...  Vão a marchar, é certo, a aprender "a ordem unida", que é o princípio da disciplina militar em toda parte...Vão mal fardados..

Já na foto que acima se publica, de instruendos do CIM de Contuboel (talvez de finais do 1º trimestre ou início do 2º trimestre de 1969), tens outros recrutas, com "outro ar"... Quem está "mal fardado" é o graduado metropolitano, o fur mil Valdemar Queiroz... O jovem (ou adolescente, mais corretamente) da direita, o mais pequeno, com ar de "djbi",  o Umaru Baldé (1953-2004) (membro a título póstumo da nossa Tabanca Grande), escreveria mais tarde, refugiado em Portugal,  o seguinte sobre o seu recrutamento e partida para a tropa, em carta comovente,  sem data, enviada ao Valdemar Queiroz ("Amor Nunca Acaba"):

O Umaru Baldé um ano e picos depois,
já combatente calejado  da CCAÇ  12 (1969/71), 
em Bmbadinca,  ao tempo da CCS/BART 2917 (1970/72).
Foto de Benjamin Durães (1970).
(...) "Ninguém esquece o passado, seja bom ou mal, eu  me lembro do dia 12 de março de 69, quando fui chamado para a vida militar portuguesa. Na verdade eu tinha poucos anos de idade e era filho único de meu pai. Minha mãe revoltou-se, dizendo que eu não tinha idade para ir para a guerra. Mas o alferes, que tinha vindo para nos levar, não podia ouvir esse grito de revolta. O alferes disse: 'Somos todos portugueses,  viemos de muito longe para defender a Pátria Portuguesa, e então,  para o povo saber que em Portugal não há raças nem cores, todos os cidadãos têm que ir cumprir o serviço militar português'.

"Minha mãe chorou, e disse: 'Ai, meu Deus, tenho o meu único filho que me vai deixar para ir morrer na guerra'... Essa data foi dia de tristeza e de lágrimas para o povo de Dembataco e de Taibatá. E lá ficamos até às 4 horas da tarde para depois entrarmos nas viaturas militares e sguirmos para Bambadinca" (...) 

[Revisão e fixação de texto: LG] (**)

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17714: (De) Caras (93): O (e)terno "puto" Umaru, o Umaru Baldé (1953-2004), da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, 1969) e da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1969/71)... O seu maior desejo era ser... Português! (Abílio Duarte)


Foto nº 1 > Porto, s/d > Muito provavelmente na casa do ex-alf mil Pina Cabral, cmdt do 4º Pelotão da CART 2479 / CART 11: o Umaru Baldé e o Leonel (ex-1º cabo cripto


Foto nº 2 > Porto, s/d > Muito provavelmente no restaurante onde se realizou o convívio da CART 2479 / CART 11: o Umaru Baldé, de casaco e, ao peito, a sua inseparável esferográfica, tendo por detrás uma foto da zona histórica do Porto, com a ponte Dona Maria Pia (inaugurada em 1877, é uma das obras-primas do engº francês Gustave Eiffel e da sua equipa)  em primeiro plano.

Fotos do álbum do Leonel, cedidas ao Abílio Duarte.

Fotos: © Abílio Duarte  (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas daa Guiné]



1. Mensagem de hoje, do Abílio Duarte [Foto à esquerda: ex-fur mil, CART 2479, mais tarde CART 11 e, finalmente, já depois do regresso à metrópole do Duarte, CCAÇ 11, a famosa Companhia de “Os Lacraus de Paunca” (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70); está  reformado como bancário do BNU - Banco Nacional Ultramarino]:

Caro Luís,

Como prometi, no post P16525 (*), aqui vão as fotos, que o amigo Leonel (ex-1.º cabo cripto), me enviou, a meu pedido, que regista uma das vezes que o Umarú, Baldé esteve nos nossos convívios.

Excelente pessoa, pois na conversa que tive com ele, e ainda hoje recordo, estranho como é que alguém, que passou o que ele viveu e sentiu, fosse tão claro nos seus desejos: ser PORTUGUÊS!

O ser humano, resiste aos milhares de anos que atravessa, com uma alma que ninguém entende. O Umarú sobreviveu a muitas desventuras, que não nos passa pela cabeça, sequer entender.

Um abraço, e me desculpa por este desabafo,
Abílio Duarte

2. Comentário de L,G:

Abílio, obrigado. O Umaru Baldé (1953-2004), o "puto", está a sorrir, lá no alto do nosso poilão mágico... Ele adorava ser fotografado e rever-se nas fotos dos seus camaradas da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, março/junho de 1969) e depois da CAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)... Sempre o vi "puto", e traquinas, nunca o vi crescer... De resto, nunca mais o vi, depois do meu regresso a casa em março de 1971, mas também nunca o esqueci...

Nenhum, de nós, que lhe deu instrução., a ele e aos outros "putos", no CIM de Contuboel, era capaz de imaginar o pesadelo (e a tragédia) que lhes estava reservado, aos camaradas guineenses que vestiram a farda do exército português... O Umaru queria ser português, não sei se morreu português, aos olhos da lei...nem isso agora é relevante. Cultivaremos e honraremos a sua memória como um dos "nossos"...

Não tens, meu amigo e camarada,  que pedir desculpa pelo desabafo... Eu também não tenho, de momento, palavras para legendar as duas fotos que mandaste. Obrigado ao Leonel, Diz-lhe que o blogue também é dele, e estamos aqui para o receber de braços abertos, se for essa a sua vontade, a de integrar a nossa Tabanca Grande, como tu e o Umaru.
____________


(...) Comentário de Abílio Duarte:

Caro Luís: Num almoço aqui uns anos atrás, realizado em Coimbra, pelo nosso canarada Aurélio Duarte, o Umaru Baldé, esteve presente, não sei quem o levou, mas quem o trouxe para a Amadora fui eu.

Tenho algumas fotos em que ele está, mas não consegui encontrá-las, mas continuarei a procurar, caso o Valdemar tenha ou outro camarada nosso, principalmente o Alf Pina Cabral ou o 1º Cabo Cripto Leonel.
Vem este meu comentário, porque ao ler acima as tuas questões, veio-me á lembraça, a grande conversa que tivemos, os dois,  desde Coimbra.
Contou-me todas essas aventuras, que já estão relatadas, e das dezenas de vezes que tentou entrar em Portugal, segundo me disse que quando veio para Portugal , veio da Lbia, onde conheceu alguém que o levou a trabalhar para a construção civil, e que trabalhou para a SOMEC. aquando da EXPO 98.´

Pela primeira vez ouvi relatos do que aconteceu aos antigos nossos camaradas de armas, especialmente Fulas, e o assassínio de varios militares em armazén de Bambadinca.

Penso que o alferes a que ele se refere é o Alf Pina Cabral, que foi o seu comandante, durante a instrução em Contuboel, e que ele me contou, escreveu-lhe muitas cartas, foi com uma Carta de Recomendação, daquele Camarada, que ele veio para Portugal.

Naquela altura em que foi este almoço, ele já não trabalhava, estava doente e em casa, aqui na Amadora. Na altura deixou o seu NIB bancário para que o pudessem ajudar, o que felizmente alguns de nós o fizeram. 

Quando encontrar as fotos enviarei.

Agora un áparte, sobre uma conversa que tive com o ex-presidente Luís Cabral, quando este foi corrido pelo 'Nino', e veio, como outros para Portugal!!!  Ele e o Vitor Saúde Maria e mais alguns, ficaram como exilados politicos numa casa que aqui há na Amadora, para o efeito.

Um dia deu-me na tampa. O Luís Cabral era cliente do BNU, na Amadora, eu estava lá colocado, e cada vez que via o dito, dizia para mim, "porra este gajo anda sempre bem disposto e a rir, parece que a ele não aconteceu nada#. Então ele veio ter comigo, que estava a espera de uma transferência, referente a comissões de um negócio qualquer, tratei-me de informar e disse-lha o que havia, Ao despedir-se, pedi-lhe para me dar um minuto de atenção, e perguntei-lhe se achava bem o acolhimento que o Governo Português lhe estava a dar, comparado com aquilo que o PAIGC, fez aos soldados africanos PORTUGUESES, na Guiné.

A  resposta foi:  pegou-me na mão, olhou-me aom aquela cara de sorriso eternamente satisfeito, e afirmou: "a vida e a politica dão muitas voltas". E assim foi na sua paz de alma.

E nós,  a aguentar isto. Depois dele foi o 'Nino' que foi corrido, e também veio pa Portugal. Só os nossos camaradas que juraram a nossa Bandeira, é que ficaram indefezos, nas mãos destes criminosos.(...)

 26 de setembro de 2016 às 21:19

(**) Último poste da série > 27 de agosto 2017 >  Guiné 61/74 - P17704: (De)Caras (95): Abna Na Onça, cap 2ª linha, comandante de uma companhia de polícia administrativa, regedor do posto do Enxalé, prémio "Governador da Guiné" (1966), morto em combate em Bissá, em 14/4/1967, agraciado a título póstumo com a Cruz de Guerra de 1ª Classe (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Enxalé e Ilha das Galinhas, 1966/68)

domingo, 2 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16546: Manuscrito(s) (Luís Graça) (98): Requiem para Iero Jaló, um bravo soldado

Requiem para Iero Jaló
um bravo soldado,

 

por Luís Graça





A guerra,
essa coisa tão primordial que é a guerra,
que estaria inscrita no teu ADN,
segundo dizem os sociobiólogos.
A guerra é a continuação da evolução

...por outros meios,
dirão os entomólogos,
especialistas em insetos sociais,
para quem a morte de um
ou de um milhão ou mais
de formigas, de alforrecas ou de seres humanos,
é-lhes totalmente indiferente.
Desde que triunfe o ADN,
um projeto de ADN,
forte e bem musculado.

Para ti, "tuga", 
a guerra é a aprendizagem da morte,
aos vinte e dois anos,
é a inocência que se perde para sempre
ao ver morrer pela primeira vez um homem, 

a teu lado.
É o impossível luto,
é a descoberta do mal absoluto.
─ Fight or flight!─
Não precisaste de fugir nem de lutar.
Recusaste o egoísmo genético,
recusaste a lógica absurda de matar ou morrer,
recusaste o cinismo,
recusaste a fria e calculista resignação
com que se juntam e amortalham
os cadáveres seguintes
e se contam nas paredes da caserna
os dias que faltam para a peluda.

Quarenta e cinco anos depois, venho dizer-te,
Iero Jaló, meu querido "nharro",
as palavras que ninguém te disse
no teu grotesco enterro:
– Descansa em paz, Ieró Jaló,
meu herói,
soldado atirador do 2º Grupo de Combate
da CCAÇ 2590
que virá mais tarde a chamar-se CCAÇ 12,
companhia de tropa-macaca,
o nosso bando de primatas sociais,
territoriais, 

predadores,
"tugas" e "nharros"...


Fazíamos parte da nova força africana
de Herr Spínola, o prussiano,
como eu lhe chamava, 

ao nosso Comandante-Chefe.
Não, não ligues, são outros contos,
outras histórias,
outros ajustes de contas
com as nossas doridas memórias.

Descansa em paz, Iero Jaló,
descansa em paz
debaixo do poilão secular,
sagrado,
na tua tabanca, 

no chão fula,
belíssimo poilão de uma triste tabanca,
cercada de arame farpado,
trincheiras 

e valas de abrigo.


Sei que eras do regulado de Cossé,
lá para os lados de Galomaro.
Desculpa-me ter esquecido o nome 

da tua tabanca
e a cara dos teus filhos
e o rosto das tuas mulheres,
agora órfãos e viúvas, sozinhos neste mundo.
Os teus campos estão tristes e inférteis,
já não dão o milho painço 

nem o fundo
nem a mancarra 

nem a noz de cola.
Os homens partiram para guerra,
voltam agora numa caixão de pinho.
Restam os feios e macabros jagudis,
poisados no alto da tua morança,
cheirando a morte,
pressagiando a desgraça.


Oito de setembro de 1969,
região do Xime.
operação Pato Rufia.

Progredimos toda a noite,
desde as 1h30 até ao amanhecer.
Morreste em linha,
aprumado como o teu poilão,
no assalto a um aquartelamento temporário do IN,
próximo da antiga estrada da Ponta do Inglês.
IN ?
Que estranho termo ou expressão,
uso-o por força do hábito,
por comodidade,
por lassidão,
por economia de análise.

Regressamos ao Xime com o teu cadáver às 16h00.
O heli só levou os feridos, incluindo o Malan Mané...

Curioso, nunca soube a tua idade,
não tinhas bilhete de identidade
de cidadão português.
Eras um fula preto,
um fula forro, não creio que fosses futa-fula.
Mas eu e o teu comandante de pelotão

levámos-te a enterrar na tua aldeia,
mais os teus camaradas, cristãos e muçulmanos,
que foram dizer-te o último adeus.
Com honras militares,
tiros de salva,
e a bandeira verde-rubra dos "tugas" 

por cima do teu caixão.
De pinho,
do verde pinho de Portugal.
Nem isto te deixaram fazer, o teu enterro,
à boa maneira dos teus,
o corpo embrulhado num pano branco,

metido na vertical...
sem o inútil caixão de verde pinho.

Portugal ? 

Ainda te lembras, Iero Jaló ?
Os brancos, os "tugas",
os senhores que vieram do norte e do lado do mar.
Não, já não tens que saber de geografia,
nem de história,
nem de geopolítica,
no sítio onde moras, debaixo do teu poilão.
Mas eu, mesmo ao fim destes anos todos,
eu deveria saber o nome da tua aldeia, no chão fula.
O teu nome, esse não esqueci: Ieró Jaló.
Esqueci foi o lugar onde nasceste,
e onde foste enterrado,
talvez Sinchã ou Sare qualquer coisa,
mas não faz mal.

O que interessa é que chorei por ti,
confesso que chorei por ti,
que morreste a meu lado,
e que levavas um prisioneiro,
teu irmão, negro, pela mão.
E que não eras meu irmão,
nem grande nem pequeno,
nem tinhas a mesma cor de pele,
nem a mesma religião,
nem a mesma língua,
nem a mesma pátria,
nem o mesmo continente.
Não comias carne de porco
nem bebias água de Lisboa.
Eras apenas um guinéu, um "nharro",
soldado-atirador de 2ª classe,
ganhavas 600 pesos de pré,
mais um saco de arroz por mês para alimentar a tua família.
Para mim, eras apenas um homem,
da espécie "Homo Sapiens Sapiens",

o que em latim quer dizer homem duplamente sábio,
a única que chegou até aos nossos dias,

o que primeiro que eu vi morrer a meu lado.


Nunca mais chorei por ninguém,
chorei por ti, Ieró Jaló,
chorei de raiva,

pela tua morte e pelo teu enterro.
Nascemos meninos,
mas fizeram-nos soldados,
azar o meu e o teu,
por termos nascido no sítio errado,
no tempo errado.
Imagino-te "djubi", 

à volta da fogueira,
na morança do marabu ou do cherno da tua tabanca,
decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas que eu trouxe da tua terra,
e que eu guardo na minha memória,
são os "djubis" à volta da fogueira,
soletrando tabuinhas em árabe ou coisa parecida.
Lembro-me de quereres aprender as letras dos "tugas"
para poderes ser soldado arvorado
e um dia chegares a primeiro cabo,

e, quem  sabe, sargento, alferes, capitão 
dos comandos africanos.

E
de repente, o capim,
o capim alto,
o sangue,
o capim pisado e empapado de sangue.,,
Pobre Ieró,
morto por um dilagrama dos nossos.
Alguém branqueou a tua morte,
alguém salvou a honra da companhia.
Um dilagrama rebentou no ar,
na tua cara,
na nossa cara.
Defeito de fabrico, alegou o autor do relatório, 

acidente de serviço no auge da batalha,
quando avançávamos em linha, no assalto
ao acampamento do IN,
levando pela corda o teu "turra",
o teu guia, o teu prisioneiro,
ainda mais jovem do que tu.
Malan Mané, mandinga,
tão crente como tu,
tão observador dos preceitos corânicos
como tu, meu querido "nharro".

E agora, Ieró,
que foste poupado à humilhação da derrota
e provavelmente até ao poilão dos fuzilamentos de Bambadinca,
e não viste o teu país sentar-se de pleno direito
à falsa mesa redonda do mundo...
Que farias tu com esta independência
contra a qual lutaste
sem querer,
sem saber,
sem poder ?
Onde estarão os teus filhos ?
E as tuas mulheres ?
E os teus netos ?

E os homens grandes da tua tabanca do Cossé ?
E os líderes do teu povo
que te obrigaram a combater ao lado dos "tugas" ?


Spínola, o homem grande de Bissau,
esse já morreu há uns anos largos atrás.
Não lês os jornais,
não chegaste a aprender o alfabeto latino
e a juntar as letrinhas e ler,
com a torre de Belém ao fundo:
– Esta é a minha pátria amada…
Pois é, o homem grande da Guiné morreu,

o Caco Baldé, 
como os "tugas" lhe chamavam, morreu,
não de morte matada, como a tua,
mas de acordo com a lei natural das coisas.
Quanto ao teu régulo,
devem-no tê-lo miseravelmente fuzilado
na parada de Bambadinca,
tal como aconteceu ao poderoso régulo de Badora,

Mamadu Bonco Sanhá,
tenente de milícias,
que havia trocado o cavalo branco
da gesta heroica do Futa Djalon,
por uma prosaica motorizada japonesa de 50 centímetros cúbicos...
Dono de centenas cabeças de gado, dizia-se,
e de uma harém de cinquenta mulheres,
uma em cada aldeia de Badora…
(Sei que não é verdade, 
segundo me jurou um dos seus netos,
nem o nosso puto Umaru Baldé era filho dele,
o Umaru que também já lá está  na terra da verdade, 
como a maior parte dos nossos camaradas guineenses,
da CCAÇ 12).

Hoje o que resta dos heróis do passado sucumbem
sob o peso das cruzes de guerra
ou pedem esmola nas ruas de Bissau,
tal como os teus filhos e netos.
Ou morrem de desespero e insolação
às portas do templo da deusa Europa,
em Ceuta e em Melilla,
em Lampedusa,
em Lisboa ou em Paris
e até em Lesbos, ilha grega à porta dos otomanos.


Que voltas o mundo deu, meu soldado,
desde esse dia já distante
em que a tecnologia da guerra
ou a lotaria do ADN te ceifou a vida.
Porquê tu, meu herói,
três meses depois de jurares bandeira
e te comprometeres,
por tua honra,
a defender uma pátria,  que não era tua,
até à última gota do teu sangue ?!
E do Malan Mané não tenho notícias,
se é isso que queres saber,
duvidava que ele tivesse sobrevivido
aos graves ferimentos do dilagrama dos "tugas".
Mas alguém me disse,
um camarada de Mansambo,
que sim, 

que o vira no hospital de Bissau,
em novembro de 1969.

E agora deixa-me dizer-te, amigo e camarada,
à laia de despedida:
não sei se um dia ainda terei coragem de voltar
à tua terra, ao teu chão.
Mas se porventura o fizer,
gostaria de perguntar pela tua aldeia,
e de procurar-te
e de ter tempo para conversar contigo,
só tu e eu, debaixo do teu poilão,
tendo apenas como testemunhas
Deus, Alá e os nossos bons irãs.

Guiné, Bambadinca, 8/9/1969
V9 24set 2016


PS –Voltei à tua terra, Iero Jaló, 

em março de 2008, 
mas não pude ainda, dessa vez, 
cumprir a minha promessa... 
Atravessei Badora e Corubal, a caminho do sul, 
mas não o Cossé, 
onde imagino que seja a tua tabanca...

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 23 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16519: Manuscrito(s) (Luís Graça) (97): O 'prisioneiro' Malan Mané... a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram um arma e uma bandeira e um hino

sábado, 1 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16544: (In)citações (103): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte VI): A última mensagem, de 18/4/2003... "Eu queria [saber] se [a] nossa malta me podia ajudar [a obter] meio[s] para [comprar] bilhete [de avião] para África, porque estou muito mal"... Ainda foi à sua terra, Demba Taco, antes de voltar, cada vez mais doente, para morrer em Portugal


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > O Umaru Baldé, soldado da CCAÇ 12 (1969/71)... Depois da independência, veio para Portugal, ao fim de 24 (!) anos de exílio. Morreu em 2004, de doença prolongada... Vários antigos camaradas seus, "tugas", ajudaram-no a sobreviver (mesmo com limitações, trabalhou, no Parque das Nações, numa empresa de construção civil, graças aos bons ofícios do João Gonçalves Ramos, ex-soldado radiotelegrafista, da CCAÇ 12, 1969/71; o seu antigo comandante, hoje cor inf ref, Carlos Brito, assinou um documento para ele se poder candidatar a deficiente das forças armadas, etc.).

Para mim, que o cheguei a comandar, várias vezes, em operações, era uma criança na guerra... Não teria mais do que 16 anos quando eu conheci, em Contuboel fez a recruta e a especialidade (entre março e julho 1969)...

Era um belo efebo, com o seu inseparável cachimbo que ele usava para lhe dar o ar de "homem grande" que não tinha nem podia ter ...

Apesar de "puto", foi um bravo combatente e um temível apontador de morteiro 60, que manobrava como se fosse um morteirete, debaixo de fogo... Chegou a ficar com as mãos queimadas, numa das ocasiões em que fomos emboscados,,,  Fula, pertencia ao 4.º Gr Comb, 2.ª Secção (comandada pelo nosso querido amigo e camarada António Fernando R. Marques).

Não seio se casou, se deixou víúva(s), filho(s)...

Em homenagem à sua vida e à sua memória, decidi integrá-lo, a título póstumo, na nossa Tabanca Grande... Repousa em paz, Umaru... Serás o nosso grã-tabanqueiro nº 729... Tenho pena de nunca te ter visto mais, desde os últimos dias que passámos em Bambadinca, em março de 1971, antes do meu regresso a casa... Com tanta canseira da guerra, faltou-nos tempo para pôr a conversa em dia sobre a tua vida do "menino de sua mãe", nascido em Demba Taco, por volta de 1953... (LG)

Foto: © Benjamim Durães (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas daa Guiné. Todos os direitos reservados


1. Última de quatro cartas do Umaru Baldé (Demba Taco, c. 1953 - Lisboa, 2004), dirigidas ao Valdemar Queiroz, que foi seu instrutor, na recruta, no Centro de Instrução Militar de Contuboel, região de Bafatá, entre março e maio de 1969.





Outras cópias de igual teor devem ter sido dirigidas a camaradas da CART 11 e da CCAÇ 12 que se quotizaram para lhe comprar o bilhete de avião de regresso à Guiné-Bissau. 

Entretanto, como o estado de saúde do Umaru Baldé piorou, como era previsível (sem acompanhamento médico, esgotado o "stock" de medicamentos que levou, para a sua terra, etc.), ele teve de voltar para Portugal,  graças de novo à solidariedade dos seus amigos e 
camaradas (o António Fernando Marques, o João Ramos, etc.)... 

Não sabemos exatamente em que data é que regressou... Terá morrido, ao que parece, não no hospital (como supúnhamos), mas no quarto que tinha alugado, na Damaia, Amadora...  Está sepultado no cemitério do Lumiar, em Lisboa, no talhão dos muçulmanos... Prometo passar lá um dia destes, para o "último adeus" que não lhe pude dar em 2004.


Transcrição da carta, revisão e fixação de texto (parte manuscrita):


Sr. Queiroz, já é [há] uma ano [que] que não me telefonaste [telefonas],

nem [queres] saber como [é que eu] estou [a] viver neste momento.

Até você[s] devem saber que toda  [a] minha

confiança está nas pessoas que eu conhecia

desde a Guiné. E hoje estou cá em Portugal.

Sr. Queiroz, [é] para saber que neste [este] momento

é  muito difícil para mim, nem [até ] para comer

é cota a cota [gota  a gota] porque não estou  [a] trabalhar

porque estou doente. E na verdade estou à

espera da minha reforma. Mas antes disso 

estou mal. Eu queria [saber] se [a] nossa

malta me podia ajudar [a obter] meio[s] para

[comprar] bilhete [de avião] para África, porque estou muito

mal. Tenho [de] comer e pagar quarto e

luz e água, nem trabalho tenho.

Melhor[es] cumprimento[s] para ti e abraço

do Umaro [Umaru]  Baldé.

Lisboa, 18 abril [20]03
_____________

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16537: (In)citações (102): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte V): O Umaru Baldé que eu conheci... O "show" de morteiro 60 que o "puto" deu, no CIM de Contuboel, em exercício de fogo real, na presença do próprio gen Spínola em maio de 1969... (Valdemar Queiroz, fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Centro de Intrução Militar (CIM) > CART 2479 / CART 11 >  c. março/maio de 1969 > O instrutor (Valdemar Queiroz) e o recruta Umaru Baldé, "menino de sua mãe"...

Foto: © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados


Resende > Convívio do pessoal de Bambadinca (1968/71) > 1999 > O Umarú Baldé, à esquerda, 30 anos depois da foto de cima, com o Fernando Andrade Sousa (ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71) e outro camarada guineense que não foi possível identificar. Na altura, foi o Virgílio Encarnação quem levou o Umaru Baldé e o colega até Resende. O Encarnação também foi um dos que, a par do João Gonçalves Ramos, arranjou trabalho ao Umaru Baldé na Expo 98 / Parque das Nações.

Foto: © Fernando Andrade Sousa (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso amigo e camarada Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; instrutor do CMI Contuboel] [, foto atual à esquerda]

Data: 27 de setembro de 2016 às 23:49
Assunto: As outras cartas da guerra... > Umaru Baldé

Ora viva, Luís Graça.

Como já escrevi no nosso blogue, encontrei-me em novembro de 1999, com o Umaru Baldé, a primeira vez na Damaia, Amadora [,onde ele tinha um quarto alugado, depois que entrou em Portugal, pela primeira vez, em 15/4/1999]. Encontrámo-nos ainda mais duas ou três vezes e também fui vê-lo a Torres Vedras [, ao Hospital do Barro, em 2000].

O nosso primeiro encontro foi surpreendente, pois estava à espera de ver o 'puto', mais crescido por certo, mas eis que aparece o Umaru com mais de 1,80. Embora passados trinta anos, conhecemo-nos logo e fizemos uma grande festa, mas já não me lembro do que falámos.

Nos encontros seguintes, o tema das nossas conversas era sempre o mesmo: ele arranjar documentos que comprovassem ter sido militar do exército português. Sei que fez vários requerimentos / exposições da sua situação sem conseguir o que pretendia.

Inclusive, tanto o Cap Analido Pinto como o Alf Pina Cabral e o 1º Sarg Ferreira Júnior [, da CART 2479 / CART 11] fizeram um documento, devidamente assinado, expondo a autenticidade de ele ter sido soldado recruta, com o seu número e tudo, da nossa CArt 2479. Mas de nada serviu.

Também falámos dos acontecimentos da Guiné-Bissau naquela altura em que ele era apoiante politico do 'Grupo de Bafatá'. [Partido da Resistência da Guiné Bissau - Movimento Bafatá, RGB - MB, fundado em 1986].

Julgo, não me lembro, nunca termos falado do tempo da guerra [, ou seja, da CART 11 e da  CCAÇ 12], a não ser que veio para transmissões em Bissau [, em 1972, já como posto de 1º cabo].

Não sei explicar como foi o processo do seu recrutamento na Guiné, por já não me lembrar a não ser o que ele conta numa das suas cartas [, já aqui publicadas: vd. poste P16525] .

Recordo-mo de ele ser muito 'djubi', ele e outros, e não teria mais de 16 anos. Basta dizer que ele era mais baixo que eu (1,68 m) e quando nos encontrámos na Damaia media mais de 1,85 m.

Mesmo com pouco físico, [o 'puto' Umaru]  era o homem do morteiro 60 e exímio apontador. Houve, na bolanha de Contuboel, um exercício de fogo real de morteiro, com a assistência do Gen Spínola, Cap Almeida Bruno e Maj Carlos Azeredo, em que os tiros do morteiro do Umaru foram de grande precisão, de tal modo que criaram grande espanto a todos os presentes.

De resto não me lembro de ter havido outro acontecimento relevante em que ele interviesse.
O resto já todos sabemos o que lamentavelmente aconteceu.

Um abraço
Valdemar Queiroz

Guiné > Setor L1 > Bambadinca >
CCAÇ 12 (1969/71) >  O fur mil Henriques,
o José Carlos Suleimane Baldé  e o Umaru Baldé,
em Finete, 2º trimestre de 1969.
Foto de LG
2. Comentário do editor:

Obrigado, Valdemar, pelos teus esclarecimentos adicionais. Ainda temos uma quarta (e última) carta para publicar, das que enviaste, escritas ou ditadas pelo Umaru Baldé e dirigidas a ti e, eventualmente,  a outros camaradas da Guiné, da CART 11 e da CCAÇ 12 [como foi o caso do António Fernando Marques, seu comandante de seção, da secção nº 2, do 4º Gr Comb / CCAÇ 12; o João Gonçalves Ramos (ex-sold radiotelegrafista), o ex-1º cabo, do 4º G Comb. Virgílio S. A. Encarnação; ou o até o próprio cap inf, hoje cor ref, Carlos Alberto Machado Brito].

Quando o Umaru Baldé precisou da ajuda do nosso blogue, ele ainda não existia, tendo nós começado timidamente em 2004 (ano em que se publicaram os primeiros... quatro postes). Mas sinto que o Umaru Baldé (c. 1953-2004) deve ficar, entre nós, na Tabanca Grande, a título póstumo, por muitas razões, e até pelos seus contributos (póstumos), as cartas, o relato do seu infortúnio, a expressão do seu amor à "Pátria Portuguesa", a solidariedade que gerou..., contributos esses que são relevantes para a história da "africanização" da guerra e do processo de retirada das NT, bem como para a reconstituição do "puzzle" da nossa memória... 

Dos originais militares guineenses da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1960/71), só temos, na Tabanca Grande, o nome do José Carlos Suleimane Baldé, vizinho do Umaru Baldé: o Zé Carlos era de Amedalai e o Umaru era de Demba Taco. Era, de resto, o único 1º cabo, do recrutamento local, que integrava a companhia: havia soldados arvorados que seriam promovidos a 1ºs cabos, logo que fizessem o exame da 3ª ou 4ª classe... 

Na altura o Cherno Baldé saudou a nossa decisão de integrar, em 2012, o  Zé Carlos na nossa Tabanca Grande nestes termos:

"A tua decisão de integrar o Suleimane na nossa Tabanca Grande terá, certamente, pouco efeito prático, mas reveste-se de um grande significado simbólico e de homenagem a todos os ex-milícias e soldados africanos que serviram na guerra da Guiné que, como costumo referir, foram voluntários da sua própria desgraça." (**)

Integrar o Umaru Baldé na nossa Tabanca Grande tem o mesmo significado. É um gesto de homenagem, de reparação moral, de solidariedade e de camaradagem. O Umaru Baldé é outro exemplo paradigmático da desgraça que aconteceu a todos aqueles guineenses, fulas e não só, que acreditaram no sonho de uma Pátria Portuguesa onde todos podiam caber, e que combateram nas nossas fileiras... Spínola foi o arauto desse sonho mas também o seu coveiro... A História nos julgará a todos!
___________________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores:

 28 de setembro  de 2016 > Guiné 63/74 - P16532: (In)citações (102): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte IV): "Viva Médicas e Médicos Portugueses. Viva Portugal com os Negros Unidos" (sic) (carta de 15 de novembro de 2000)

27 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16530: (In)citações (101): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte III): E a propósito...o Umaru Baldé e o Luís Cabral que eu conheci... Eventualmente por uma diferença de alguns anos não se encontraram, no "terminal da morte" que era então o Hospital do Barro, em Torres Vedras, a vítima (Umaru Baldé, c. 1963-2004) e o carrasco (Luís Cabral, 1931-2009) (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70)

27 de setembro 2016 > Guiné 63/74 - P16527: (In)citações (100): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte II): "Portugal, os portugueses e os políticos que querem esquecer os passados" (sic)... Ou a Pátria portuguesa que lhe foi madrasta...

26 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16525: (In)citações (99): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte I): "Filho único e menino, minha mãe chorou quando, em 12 de março de 1969, alferes me foi buscar a Dembataco para defender a pátria portuguesa"

(**) Vd. poste de  18 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9922: (In)citações (39): Integrar o Suleimane na Tabanca Grande foi de um grande significado simbólico e de homenagem a todos os guineenes que serviram na guerra da Guiné (Cherno Baldé)

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16532: (In)citações (102): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte IV): "Viva Médicas e Médicos Portugueses. Viva Portugal com os Negros Unidos" (sic) (carta de 15 de novembro de 2000)


Foto: © Fernando Andrade Sousa (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Torres Vedras > Barro > O Fernando Andrade Sousa, ex- 1º cabo aux enf da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71), em véspera de ir passar umas férias à Tunísia, mais o Umaru Baldé, já doente, no Hospital do Barro, nas imediações de Torres Vedras, em agosto de 2000 (e não de 2007, como erradamente foi indicado no poste P16382) (*). Foi a última vez que o Fernando (com a esposa) esteve com ele.

O Hospital do Barro (, instalado num antigo convento do séc. XVI), hoje desativado, fazia parte do Centro Hospitalar Oeste - Unidade de Torres Vedras. O Fernando lembrar-se de ele, Umaru,  ter desaconselhado, ao casal,  a viagem à Tunísia. Durante 24 anos, de 1975 a 1999,  o Umaru Baldé andou em bolandas pela África subsariana e pelo norte de África,  tentando chegar a Portugal, o que só conseguiu em 15/4/1999.

Esteve internado no Hospital do Barro em 2000 e, ao que parece, terá voltado para lá para morrer (no final do ano de 2004, segundo informação do António Fernando Marques, que foi ao seu funeral;: está sepultado do cemitério do Lumiar em Lisboa, no talhão dos muçulmanos) (**).









1. Carta do Umaru Baldé, "ex-1º Cabo [da] Força Armada Porttuguesa", datada de 15 de novembro de 2000, de agradecimento a quem o apoiou no momento difícil da sua doença (**):

(i) "obrigado minha médica [do] HJMAJ, TV - Hospital [dr.] José Maria Antunes Júnior, de Torres Vedras, ou Hospital do Barro, hoje desativado (, pertencia ao Centro Hospitalar do Oeste), a pneumologista dra. Paula Raimundo;

(ii) os drs. Júlio e Félix,  do Hospital de Pulido Valente, Centro Hospitalar de Lisboa Norte,  Lisboa (onde o Umaru foi operado em 11/10/2000) [julgo tratar-se, respetivamente, do dr. Júlio Semedo, pneumologista,  coordenador da unidade de pneumologia de intervenção; e do dr. Francisco José Pimenta Félix, que dirige o serviço de Serviço de Cirurgia Torácica];

(iii)) antigos camaradas portugueses na Guiné, ex-alf mil Mário Pina Cabral (CART 11, 1969/70), ex-fur mil [António Fernando] Marques e ex-sold radiotelegrafista João Ramos [CCAÇ 12,  1969/71) (com quem trabalhou na Somague, durante 8 meses);

(iv) e ainda povo da freguesia  de Ventosa, Torres Vedras;

A carta,  escrita no dia em que teve alta do Hospital  Pulido Valente, termina com dois vivas;

"Viva Médicas e Médicos Portugueses";
"Viva Portugal com os Negros Unidos" (sic).

O Umaru Baldé diz explicitamente que teve "10 meses" internado nos hospitais portugueses, entre o Hospital Curry Cabral (, especializado em doenças infetocontagiosas) e o Hospital do Barro. de retaguarda (onde funcionava um serviço de pneumologia). O Umaru Baldé não esconde a gravidade da sua doença: a dra. Paula Raimundo, do Centro Hospitalar Oeste,  tratou-o durante 9 meses da doença pulmonar de que sofria, já estava "curado" há 2 meses dos pulmões, quando surgiu outra "doença muito grave", tendo sido referenciado para o Hospital Pulido Valente.

Na carta o Umaru Baldé diz que, desde que chegou a Portugal, em 15/4/1999,  esteve 12 meses sem trabalhar, sem tendo sequer título de residência.

Mais diz que, ao ao fim no seu exílio de 24 anos (desde que saíra da sua terra natal. em finais de dezembro de 1974),  nunca tivera confiança em hospitais que não fossem portugueses...

Tratado em Portugal, acabou por sobreviver mais alguns anos: não sabemos exatamente a data da sua morte, mas pensávamos que teria ocorrido em finais de 2004 (e não em 2007/2008, como indicado erradamente em postes anteriores).

A última carta que o Valdemar Queiroz, seu instrutor no CIM de Contuboel em março-maio de 1969, recebeu dele, tem a data de 18 de abril de 2003, quando o Umaru estava a tentar arranjar dinheiro para a viagem de regresso à sua terra, cada vez mais doente, sem trabalho e sem esperança... Seriam também os seus antigos camaradas (da CART 11 e da CCAÇ 12) que se quotizaram para lhe pagar o bilhete de regresso a Portugal, possivelmente já em 2004.

Não temos a certeza se morreu no antigo Hospital do Barro onde, ironicamente, haveria de morrer, anos mais tarde,    Luís Cabral (1931-2009), também ele vítima de doença prolongada... O Umaru esteve no Hospital do Barro seguramente em 2000, falta confirmar se lá voltou depois do seu regresso da Guiné-Bissau (c. 2003/2004).

Não se encontraram, mas poderiam hipoteticamente ter-se encontrado (e essa seria uma ironia da História!), no "terminal da morte" que era então o Hospital de Barro, a "vítima" (Umaru Baldé) e o "carrasco" (Luís Cabral)...

Foi sob o regime de Luís Cabral que se assistiu à perseguição, prisão, tortura  e, em muitos casos, execução brutal, sumária, de antigos militares guineenses que integraram as nossas NT (incluindo milícias e polícia administrativa). Estes crimes, qualquer que seja a sua tipificação (crimes de guerra, crimes contra a humanidade, etc.) não podem prescrever... Pelo menos na nossa memória e no nosso blogue, não prescrevem... (LG)

_____________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16382: Álbum fotográfico de Fernando Andrade Sousa (ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 12, 1969/71) - Parte III: Lembrando, com saudade, o "puto" Umaru Baldé

 (**) Vd. postes anteriores:

27 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16530: (In)citações (101): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte III): E a propósito...o Umaru Baldé e o Luís Cabral que eu conheci... Eventualmente por uma diferença de alguns anos não se encontraram, no "terminal da morte" que era então o Hospital do Barro, em Torres Vedras, a vítima (Umaru Baldé, c. 1963-2005) e o carrasco (Luís Cabral, 1931-2009) (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70)

27 de setembro 2016 > Guiné 63/74 - P16527: (In)citações (100): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte II): "Portugal, os portugueses e os políticos que querem esquecer os passados" (sic)... Ou a Pátria portuguesa que lhe foi madrasta...

26 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16525: (In)citações (99): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte I): "Filho único e menino, minha mãe chorou quando, em 12 de março de 1969, alferes me foi buscar a Dembataco para defender a pátria portuguesa"

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16530: (In)citações (101): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte III): E a propósito...o Umaru Baldé e o Luís Cabral que eu conheci... Eventualmente por uma diferença de alguns anos não se encontraram, no "terminal da morte" que era então o Hospital do Barro, em Torres Vedras, a vítima (Umaru Baldé, c. 1963-2004) e o carrasco (Luís Cabral, 1931-2009) (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70)

1. Comentário de Abílio Duarte ao poste P16525 (*)


[Foto à direita; Abílio Duarte , ex-fur mil, CART 2479, mais tarde CART 11 e, finalmente, já depois do regresso à metrópole do Duarte, CCAÇ 11, a famosa Companhia de “Os Lacraus de Paunca” (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70); est+a reformado como banc+ario do BNU - Banco Nacional Ultramarino]:


Olá,  Luís,

Num almoço,  aqui uns anos atrás, realizado em Coimbra, pelo nosso canarada Aurélio Duarte, o Umaru Baldé esteve presente, não sei quem o levou, mas quem o trouxe para a Amadora fui eu.

Tenho algumas fotos em que ele está, mas não consegui encontrá-las, mas continuarei a procurar, caso o Valdemar tenha ou outro camarada nosso, principalmente o alf  [Mário] Pina Cabral ou o [1º cabo] cripto Leonel.

Vem este meu comentário, porque ao ler acima as tuas questões (*), veio-me á lembrança, a grande conversa que tivemos, os dois,  desde Coimbra.

Contou-me todas essas aventuras, que já estão relatadas, e das dezenas de vezes que tentou entrar em Portugal, segundo me disse que quando veio para Portugal, veio da Líbia, onde conheceu alguém que o levou a trabalhar para a construção civil, e que trabalhou para a SOMEC. aquando da EXPO 98.

Pela primeira vez ouvi relatos do que aconteceu aos antigos nossos camaradas de armas, especialmente Fulas, e o assassínio de vários militares em armazéns de Bambadinca.

Penso que o alferes a que ele se refere é o alf [Mário]  Pina Cabral, que foi o seu comandante, durante a instrução em Contuboel [, no CIMC - Centro de Instrução Militar de Contuboel], e a quem , pelo que ele me contou, escreveu muitas cartas. Foi com uma Carta de Recomendação, daquele Camarada, que ele veio para Portugal [, em 15/4/1999].

Naquela altura em que foi este almoço, ele já não trabalhava, estava doente e em casa, aqui na Amadora. Na altura deixou o seu NIB bancário para que o pudessem ajudar, o que felizmente alguns de nós fizeram.

Quando encontrar as fotos enviarei.

Agora um aparte, sobre uma conversa que tive com o ex-presidente Luís Cabral, quando este foi corrido pelo 'Nino', e veio, como outros, para Portugal!!!

Ele e o Vitor Saúde Maria e mais alguns, ficaram como exilados politicos numa casa que aqui há na Amadora, para o efeito.

Um dia deu-me na tampa. O Luís Cabral era cliente do BNU - Banco Nacional Ultramarino, na Amadora, eu estava lá colocado, e cada vez que via o dito, dizia para mim, "Porra, este gajo anda sempre bem disposto e a rir, parece que a ele não aconteceu nada". Então ele veio ter comigo, que estava a espera de uma transferência, referente a comissões de um negócio qualquer, tratei-me de informar e disse-lhe  o que havia... Ao despedir-se, pedi-lhe para me dar um minuto de atenção, e perguntei-lhe se achava bem o acolhimento que o Governo Português, lhe estava a dar, comparado com aquilo qque o PAIGC fez aos soldados africanos PORTUGUESES, na Guiné.

A resposta foi:  pegou-me na mão, olho-me com aquela cara de sorriso eternamente satisfeito, e afirmou: "A vida e a politica dá muitas voltas". E assim foi na sua paz de alma.

E nós a aguentar isto, depois dele foi o 'Nino' que foi corrido [do poder], e também veio para Portugal.

Só os nossos camaradas que juraram a nossa Bandeira, é que ficaram indefesos, nas mãos destes criminosos.

Por hoje um abraço.

Abílio Duarte´


Lourinhã, Vimeiro_> 25º Convívio da CART 2479 / CART 11, "Os Lacraus" (Contuboel, Nova Lamego, Piche, 1969/70) > 30 de maio de 2015 > Da direita para a esquerda, o Pinheiro e o Pina Cabral.

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz & Renato Monteiro (2015). Todos os direitos rservados (Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

2. Comentário do editor:

O nosso "puto" Umaru Baldé, como eu lhe chamava, levou 24 anos (!)  a chegar a Portugal [desde que, perseguido, foi forçado a sair  da sua terra natal, em 31/12/1974, governada então por Luís Cabral (1931-2009)]...

Depois da última (?) estação do calvário, a Líbia, conseguiu por fim um visto para entrar na "Pátria Portuguesa" que ele tanto amava, .... Chegou doente a Portugal... Esteve internado cerca de 10 meses, ao longo do ano 2000, nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, mesmo sem título de residência, segundo ele conta numa das suas cartas.  Acabou por sobreviver mais cinco anos,  tendo morrido, ao que sabemos, em finais de 2004 (, segundo o nosso amigo, camarada e grã-tabanqueiro, António Fernando Marques, ex-fur mil at inf, CCAÇ 12, Contuboel e Bambabinca, 1969/71. que deu em vida todo o apoio possível ao Umaru Baldé e que foi ao seu funeral).

Sabemos que o Umaru voltou à Guiné-Bissau, em 2003,  e regressou, cada vez mais doente,  a Portugal, para morrer no antigo Hospital do Barro (ou no Hospital Curry Cabral ?), onde, ironicamente, haveria também de morrer,  cinco anos mais tarde, em 30/5/2009, o antigo presidente da Guiné-Bissau,    igualmente vítima de doença prolongada, como o Umaru Baldé...

Hipoteticamente, poder-se-iam ter encontrado, no "terminal da morte" que era então o Hospital de Barro (hoje desativado), a "vítima" (Umaru Baldé) e o "carrasco" (Luís Cabral)... Há um forte simbolismo nesta eventual coincidência... De qualquermkodo, os dois passaram pelo Hospital do Barro, "terminal da morte", memso que em épocas diferentes, o Umaru Baldé, pelo menos em 2000, e o Luís Cabral, em 2008...

Não é preciso recordar  que foi no tempo de Luís Cabral.  que se assistiu à perseguição, prisão, tortura  e, em muitos casos, execução brutal, sumária, pública ou clandestina, de antigos militares guineenses que integraram as nossas NT (incluindo milícias e polícia administrativa).

Não é preciso recordar que Luís Cabral, o primeiro presidente da Guiné-Bissau independente, foi derrubado por um golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, levado a cabo pelo seu camarada  'Nino' Vieira (1939-2009).

Aberta a "caixa de Pandora" da violência revolucionária, os guerrilheiros no poder começaram, eles próprios, a matar-se uns aos outros. 'Nino' ´é cruelmente assassinado em 2/3/2009, dois meses antes da morte "natural" de Luís Cabral, exilado em Portugal e que o nosso camarada Abílio Duarte conheceu como "simples cliente" da agência do BNU na Amadora....

Enfim, ironias da História!... De resto, eu acredito mais na justiça dos homens (leia-se, da História) do que na justiça divina...  Se há um "juízo final", é o da História,  é a História que nos vai julgar a todos... (LG)

_______________

Nota do editor:

Postes anteriores da série:

27 de setembro 2016 > Guiné 63/74 - P16527: (In)citações (100): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte II): "Portugal, os portugueses e os políticos que querem esquecer os passados" (sic)... Ou a Pátria portuguesa que lhe foi madrasta...

26 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16525: (In)citações (99): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte I): "Filho único e menino, minha mãe chorou quando, em 12 de março de 1969, alferes me foi buscar a Dembataco para defender a pátria portuguesa"

Guiné 63/74 - P16527: (In)citações (100): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte II): "Portugal, os portugueses e os políticos que querem esquecer os passados" (sic)... Ou a Pátria portuguesa que lhe foi madrasta...



Guiné > Setor de Bafatá > Centro de Instrução Militar de Contuboel > Março de 1969 > Umaru Baldé, fula, natural de Demba Taco, regulado de Badora, da incorporação de 1969 soldado recruta nº mec 82115869










1. Continuação da publicação das cartas do Umaru Baldé, que nos chegaram por mensagem, de 17 do corrente, do nosso grã-tabanqueiro Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; instrutor do CMI Contuboel] [, foto à esquerda]

Esta segunda carta que publicamos não tem data, mas deve ser posterior  a 2000 (ano em que o Umaru Baldé foi internado no Hospital Curry Cabral e operado a um pulmão).

Durante um ano e meio (talvez 2001/2002) trabalhou num estaleiro de construção civil, da empresa Edificadora Luz & Alves Lda  num posto de trabalho "melhorado", compatível com as limitações de saúde.

Creio que foi um antigo camarada da CCAÇ 12, o ex-sold radiotelegrafista João Gonçalves Ramos, residente na Quinta do Conde / Barreiro, que o ajudou muito nesta fase. Disseram-me, há tempos atrás, que ele foi "um pai para o puto Umaru Baldé".

Depois o Umaru perdeu o emprego, conseguiu voltar à sua terra natal (por volta de 2003), acabando por voltar a Portugal, para morrer em finais de  2004... (Entretanto, a Edificadora Luz & Alves, com sede na av 5 de Outubro, Lisboa, irá à falência em 2011, como muitas outras grandes empresas de construção civil).


O "puto" Umaru Baldé, em Bambadinca, 1970.
Talvez por ser o "menino de sua  mãe" era
acarinhado  por toda a malta da CCAÇ 12
Foto de Benjamim Durães
Nesta carta, dirigida a Portugal, aos portugueses e aos políticos portugueses que querem "esquecer os passados" (sic), o Umaru Baldé continua a reivindicar, com orgulho, a sua antiga condição de militar português ao serviço do exército de Portugal na Guiné (de 1969 a 1974), e defender os seus direitos.

Relata que foi alvo de perseguições na Guiné-Bissau, a seguir à independência, o que o obrigou a fugir para o Senegal, no final do ano de 1974...

Já vimos, na carta anterior (*), alguns dos países subsarianos por onde ele andou, refugiado..., Ficamos a saber que a sua longa diáspora incluiu também países como a Líbia e o Níger.

Através do antigo ex-alf mil da CART 2479 / CART 11, Mário Pina Cabral, que foi seu instrutor no CIM de Contuboel, tal como o fur mil Valdemar Queiroz, consegue obter um visto para entrar em Portugal (, o que ocorre finalmente em 15/4/1999, vinte e quatro anos depois do início do seu calvário ou odisseia...).

Não sabemos como sobreviveu estes anos todos, e para mais doente. Em Portugal, conheceu a miséria, a solidão e o agravamento da doença.  tendo sido ajudado por antigos camaradas e tratado no Serviço Nacional de Saúde.

Mas, no essencial, nunca conseguiu,como tanto outros ex-camaradas  nossos guineenses, o que pretendia,  o seu reconhecimento como antigo combatente... A Pátria Portuguesa, que ele tanto amava, foi-lhe  madrasta. (LG)



Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > O Valdemar Queiroz ao lado do alf mil Pina Cabral e o 4º.Pelotão... Os soldados guineenses desta subunidade fizeram a recruta no CMI de Contuboel na mesma altura que o Umaru Baldé (que foi para a CCAÇ 12).


Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas >  O ex-sold radiotelegrafista João Gonçalves Ramos, residente na Quinta do Conde / Barreiro, que, segundo me disseram, foi um pai para o puto Umaru Baldé, que veio morrer a Portugal, de Sida e de Tuberculose, no antigo Hospital do Barro, Torres Vedras...

Foto (e legenda): © Luis Graça (2009). Todos os direitos reservados



Portugal > Resende > 1999 > Num dos convívios do pessoal de Bambadinca, de 1968/71, o Umaru Baldé. já com 46 anos, e acabado de chegar há poucas semanas (em 13/4/1999) parece ter mais de um metro e noventa de altura... Ao centro o Fernando Andrade Sousa e outro camarada da CCAÇ 12 que não é possível identificar. Em 1969, com 16 anos, chamávamos-lhe o "puto Umaru"...

Foto (e legenga): © Fernando Andrade Sousa (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16525: (In)citações (99): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte I): "Filho único e menino, minha mãe chorou quando, em 12 de março de 1969, alferes me foi buscar a Dembataco para defender a pátria portuguesa"

~
Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > > O Valdemar Queiroz, com os recrutas Cherno, Sori e Umarau (que irão depois para a CCAÇ 2590 / CCAÇ 12). Estes mancebos aparentavam ter 16 ou menos anos de idade. Eram do recrutamento local.

Foto: © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados





Envelope da carta enviada pelo Umaru Baldé ao José Valdemar Queiroz Silva (foi deliberadamente rasurado o nome da rua do destinário)







Fotos: © Valdemar Queiroz (2016). Todos os direitos reservados


Transcrição, revisão  e fixação de texto  (LG):

[Carta sem data nem local, tem a sua foto ao canto superior esquerdo] 

AMOR NUNCA ACABA

Amor nunca acaba,
ninguém esquece dos passados ceja [seja] bem ou de mal,
eu me lembro de dia 12 de março de [19]69,quando foi [fui]
chamado para [a] vida militare [militar] Portugues[a]. na
verdade eu tinha pouco[s] anos de idade e eu era 
único filho deo meu pai, e na verade minha Mamãe
revoltou[-se].disse que eu não tenho [tinha] idade para ir na guerra,
mas a pena [é que] Alferes que tinha vindo para nos levar, não podia
ouvir esta revolta, Alferes disse-nos todos somos Portugueses,
saímos [de] muito longe para defender [a] Pátria  Portuguesa, antão [então],
para povo saber que [em] Portugal não há raça ben [gente] de cores, todos [todo]
cidadadão tem que ir cumprir serviço militar português.

Minha mamãe chorou, disse ai, meu Deus, ten ho meu filho único
que vai me deixar para ir morrer na guerra. Esta data era[foi] dia 
de tristeza i [e] lágrimas para [o] povo de Demba Taco e Taibatá, na 
verdade ficámos até às 4 horas das tarde [até] entramos no [bas] viaturas militares
para Bambadinca.

Eu com a pouca idade que eu tinha, o que podia fazer ? Todo como
homem, que sou, quando foi [fui] na recruta [em Contuboel], foi [fui] o melhor apontador de morteiro 60 1115mm [?]. Depois na especialidade foi [fui] levado para mesmo na primeira companhia [que] foi na CCAÇ 2590 [/] CCAÇ 12] onde nunca esqueço [o] sufrimento [sofrimento] que sofri para [pela]
Minha Pátria Portuguesa, na Guiné Portuguesa.

Na verdade, [em] dois anos e alguns meses que fez [fiz] como operacional,
fez [fiz] 78 operações no mato do Xime, [na] zona do Xitole e até [em] Medina [Madina] do Boé, ao lado de Ganjadude [Canjadude]. Na minha companhia, 
durante  dois anos só sofremos 5 soldados [mortos], 4 pretos e um vranco [branco].
Depois fui transferido para Bissau como primeiro cabo, onde fui colgado [colocado]
no comando das transmissões [, quartel de Santa Luzia,]
até ao fim de[da] guerra em 1974.

A pena [Apesar de] todosos portugueses era para [terem de] sair, eu com toda a vontade e [como ]sou [era] militar português, fui  entre [foi-me entregue] um documento que disse [dizia que]  tenho [tinha] licneça não limitada, até 31 de dezembro [de] [19]74, para [me a]presentar
em qualquer parte [em] que encontrar [enciontrasse]  serviço português militar
ou civil.  Na verdade já não podia estar na Guiné-Bissau
porque [o] partido que venceu [, o PAIGC],  não quer [queria] ver nenhum soldado que era [fosse]  português. Depois eu  fui morar na República do Senegal
onde teve [estive] 11 anos [, até cerca de 1985]. Não tenho [tinha] meio[s] para ir para Portugal.

Depois de[do] Senegal, fui para a República do Mali onde teve [estive] um ano,
[também] não podia ira para Portugal, depois fou [fui] para [a] Costa do Marfim onde teve [estive] dois anos, [de seguida] fui para [o] Gana, 2 meses, fui para Burkina-Faso, onde fez [fiz] sete meses, fui oara [o] Togo, duas semanas,
fui para [o] Benin, [d]donde regressei-me para [a] Guiné-Conacri, 
porque eu era [estava] já doente da perna direita.

Na verdade não podia voltar na [à] Guiné-Bissau
porque eu sabia muito bem que o ódio não acabou [acabara ainda] na governante [no Governo], é por isso [ e por essa razão eu] não tinha coragem de entrar nos hospitais de [dos] antigos inimigos. [Assim], curei-me [tratei-me] no estrangeiro [e] quando teve [tive] saúde,  procurei-me caminho para a [voltei à] Guiné-Bissau.
Desde que regressei na [à] Guiné-Bissau já é [há] 6 anos,
na verdade ainda não temos democracia no País, é por isso [que]
hoje vou procurar   onde está [estão]  Portugueses no mundo, 
dico [digo] bem alto Adeus, Guiné-Bissau, sou Umaru Baldé, antigo militar Português na Guiné. [Assinado U Baldé, presumindo-se que a carta seja datada de 1999, ano em que finalmente conseguiu um visto e chegou a Portugal]


1. Mensagem, de 17 do corrente, de Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70] [, foto à direita]


Anexo umas cartas  que me foram enviadas, nos finais dos anos 90 e princípio dos anos 2000, pelo Umaru Baldé que estava a residir na Amadora.[São quatro cartas, só duas das quais datadas, uma de 2000 e outra de 2003].

O Umaru Baldé foi aquele menino soldado da CArt 11 e da CCaç 12 que já foi por nós muito falado. [Foto à esquerda, Bambadinca, 1970, foto de Bemjamim Durão]

Estas cartas que julgava desaparecidas, foram por ele ditadas a alguém com máquina de escrever ou computador e até por ele escritas.

Faz a narrativa, muito interessante, de como foi para a tropa  [, recrutado em 12 de março de 1969, em Demba Taco, regulado de Badora] e como passou as passas do Algarve, neste caso a mancarra, depois da independência da Guiné,  quando atravessou quase metade de África para chegar a Portugal [, em 15 de abril de 1999, tendo vivido ou sobrevido no Senegal (11 anos), Mali (1 ano ), Costa do Marfim (2 anos), Gana (2 meses), Burkina Faso (7 meses). etc, passando por Benin, Guiné-Conacri, de novo Guiné-Bissau, etc.  e, por fim, Portugal].

Por cá também não teve grande sorte, quer por não arranjar trabalho [estável], quer por já estar muito doente [, em 2000 esteve interno no Hospital Curry Cabral, emLisboa]. Por cá andou uns anos, voltou a ver camaradas do tempo da guerra [João Ramos, António Fernando Marques, Pina Cabral...] e sempre a tentar arranjar forma de ser reconhecido como militar do Exército Português.

Por fim e, depois, de passar por várias internamentos hospitalares tentou arranjar dinheiro para regressar à Guiné e à sua Demba Taco em Bambadinca.

Sempre concretizou o seu desejo, mas pouco tempo depois veio a morrer da grave doença que o apoquentava.aonde viria a morrer em Portugal [no  antigo Hospital do Barro, em Torres Vedras, por volta de 2007/2008, com cerca de 55 anos].

As cartas estão com as letras um pouco sumidas, pelo que para serem lidas terão de ser um pouco aumentadas para melhor leitura.

Valdemar Queiroz

______________