Mostrar mensagens com a etiqueta amor. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta amor. Mostrar todas as mensagens

sábado, 2 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18036: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (29): “Amor à Pátria”

Ponte Edgar Cardoso


1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 22 de Novembro de 2017 enviou-nos mais uma memória bem recente para integrar as suas outras memórias da guerra.


Outras memórias da minha guerra

28 - “Amor à Pátria”

Após meses e meses de assédio telefónico para assinar novo contrato por parte de certa empresa de telecomunicações, não resisti às constantes e boas promessas, bem como à obrigação da mudança.
Porém, nova pressão me veio incomodar. Agora, também através de e-mails: “Senhor Fulano, envie-nos os documentos de novo e com nova assinatura, uma vez que a que recebemos, não coincide com a do seu BI“.
Ainda me justifiquei com a penúltima trombose que me alterara a sensibilidade em alguns dedos da mão direita e, por via disso, se nota agora alguma diferença na minha escrita. Todavia, a compreensão desejada não encontrou eco em tanta exigência.
- Vê se resolves isso, porque vamos ficar encravados. – gritava a minha mulher, já farta de ver esquivar-me a este assunto.
- Nem é tarde, nem é cedo, vou agora mesmo.
- Isso, vai e vê se arranjas mais convívios de ex-combatentes, porque parece que é a única coisa que te interessa… e te faz bem.
Saí porta fora, aproveitando o momento e a reclamação sobre o almoço atrasado.

Passar defronte a Crestuma, torna-se obrigatório afrouxar para admirar a sua beleza

Este mês de Novembro já vai a mais de meio e o calor não nos larga. Nunca se viu tal. Até parece coisa do diabo e dos lóbis dos incêndios. Ora eu, o friorento crónico, até ando muito melhor.
Aproveito tudo para me deleitar com o sol e com a paisagem e, num repente, eis-me a deslizar suavemente pela margem direita do Douro, em direcção ao Porto. E, embora a quantidade de curvas na estrada prejudique bastante a atenção à magnífica paisagem que nos envolve, é notório o relaxe que me provoca.

Arnelas é outra lindíssima povoação ribeirinha de V. N. de Gaia

Estes bons momentos, enriquecidos por boa música, apanhada nos intervalos da sintonia radiofónica, foram interrompidos por um telefonema do Joaquim Coelho, o Presidente do MAC – Movimento dos Antigos Combatentes:
- Como vai isso das tuas mazelas? Ainda tens aquele reforço vitamínico que te dei? A segunda trombose está a passar?
Dou-lhe respostas positivas e ele insiste:
- Tem cuidado, não te envolvas demasiado, porque és um afectado com o stresse daquela maldita guerra. Sabes bem o que se passa com a chamada “peste grisalha” e o que nos espera. Estamos a morrer todos os dias.
De seguida, entusiasmado, aproveita para informar:
- Olha que aquele nosso projecto, de apoio aos ex-combatentes mais necessitados, está a andar. Tem havido reuniões e já entregámos novo projecto.
- Ok, Comandante, sabes bem que vos apoio, apesar de já não fazer parte dos Corpos Gerentes. Também sabes que não tenho a tua paciência para aturar essa cambada que nos tem governado. Estamos condenados por esta geração de políticos “democratas”, apátridas e cobardolas, mais especializados na mentira e na corrupção.

Casa do Gramido

Desta vez, a intenção era chegar à Maia e falar com o representante da tal empresa de telecomunicações, mas queria almoçar junto do Rio e, desta forma, aproveitar para prolongar e melhorar uns bons momentos de prazer. Para quem conhece aquela zona próxima da Casa Branca do Gramido, de belos passadiços e bons restaurantes, sente-se tentado a estacionar por aí. Mas, como ia sozinho, optei por procurar mais próximo do Porto um restaurante de aspecto mais modesto e de rápido atendimento.

Eram cerca de 14:00 horas. Já havia várias mesas vazias e desarrumadas, com sinais evidentes de terem sido usadas recentemente. Sentado junto do balcão, espreitava o esplendor do Douro pelos espelhos das prateleiras das garrafas.
- Na horinha, temos frango assado e carne à jardineira – disse o empregado.
Já eu pedira a maçã assada, quando noto a presença de três idosos, de aspecto humilde, junto do balcão. O mais alto (magricela) solicitou meio frango e três pães. O médio não parava de olhar fixamente para o arroz de cabidela disponível sobre a mesa mais próxima. O mais baixo, com os olhos apontados para a cozinha, esticava-se para ser notado:
- Dona Guidinha, não esqueça uns ossinhos para os nossos cãezinhos.
O primeiro saco foi entregue, ao mesmo tempo que se ouvia:
- São 3,90€.
O segundo saco ia ser entregue ao baixinho. Este agarrou bem o boné alusivo à campanha eleitoral do partido do governo, enterrou-o bem na cabeça, esticou-se para receber o “saquinho dos ossos” e esboçou um rasgado “muito obrigado”, ao mesmo tempo que exibia um sorriso com o único dente visível, o que lhe restava. Ao esticar o braço, deixou ver uma tatuagem que dizia: “Amor à Pátria”. Estava gravada sobre o Escudo Nacional e, por baixo estava gravado: “Guiné 1967-69”.

Nota:
Isto aconteceu na semana passada. Qualquer semelhança com a irrealidade é pura ficção.

Silva da Cart 1689
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17263: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (28): Gostaria de lhe chamar pai, autoriza?

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Guiné 51/74 - P17679: Manuscrito(s) (Luís Graça) (122): um soneto de amor (dedicado àquela que amo e que faz hoje anos)


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 11 de dezembro de 2011 > Autorretrato do poeta entre castanheiros, carvalhos e vinhedos...


Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Soneto do amor

(o primeiro soneto que dedico à minha Chita)


O italiano Francesco Petrarca (1304-1374) foi o inventor do soneto (14 versos de 10 sílabas métricas, sob a forma de duas quadras e dois tercetos). E com isso, foi o fundador da moderna  poesia de amor. Ficam para a história aos seus sonetos a Laura. Camões e tantos outros poetas maiores da língua seguiram o modelo. Fernando Pessoa acharia ridículo escrever  cartas e, pior ainda, sonetos de amor.  Para mais publicamente, num prosaico blogue dedicado à guerra da Guiné de que já ninguém se lembra. E para mais repproduzido no Facebook que ele abominaria, se fosse vivo. Mas não tive outro jeito: poeta menor, nascido em meados do século passado, jubilado, descobri agora o encanto do soneto. Faço sonetos por encomenda, para batizados, casamentos e funerais, Não chego às barbas nem sequer aos calcanhares dos grandes, e vais-me desculpar a minha menoridade poética. Mas também sei que os teus amados nunca te escreveram, em vida,  um soneto de amor. Eu ousei, tentei e aqui está um, o primeiro que te dedico. Sei que és facebook...eira. Em dia de anos, toma lá soneto em primeira mão. Come-se como o chocolate. Di-lo-ei em público, no fim da caldeirada de peixe, que é o prato que vai ser servido na Tabanca de Porto Dinheiro, do régulo Eduardo Jorge Ferreira, meu amigo e camarada. O ramo de rosas vermelhas, como tu gostas, virá depois. A esta hora a florista ainda está fechada. Um bom dia de anos, meu amor!... LG




O amor é como o bacalhau,

P’ra cada dia tem uma receita,

Ora se rapa com colher de pau,

Ora se estraga e nada se aproveita.



Se queres ser um (e)terno enamorado,

Amor é arte, mais do que ciência,

Primeiro, nunca o sirvas requentado,

E, depois, tem do santo a paciência.



Quem o diz, é a minha dama e mestra,

Que faz hoje setenta e dois aninhos:

Que pena eu não ter aqui uma orquestra,



Com coro, para os parabéns lhe dar,

E, entr’as velas e os búzios dos moinhos,

Lhe jurar que a continuarei… a amar!



Lourinhã, Tabanca de Porto Dinheiro, Restaurante "O Viveiro", 18 de agosto de 2017


_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 15 de agosto de 2017 >  Guiné 61/74 - P17672: Manuscrito(s) (Luís Graça) (121): poema à minha igreja do Castelo, Lourinhã, setembro de 1964...

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17634: Os nossos passatempos de verão (17): Cantigas de escárnio e mal-dizer, à desgarrada... Parte II: Carta de amor (José Teixeira)

1. Resposta do nosso camarada José Teixeira ao nosso repto (*)



Carta de amor

por José Teixeira


Duas horas esperei,
Confiado em te ver,
Não me amas, eu bem o sei,
És a razão do meu viver.

Tens uma bela flor no peito,
A rosa que não colhi,
Tens um corpo tão bem feito,
Mais bonito, eu não vi.

Meu coração bate tanto
Quando te vê a passar,
És para mim o encanto
Que dá força para te amar.

A tua boca de riso
Dá-te um ar assim tão belo,
É tudo quanto preciso
Para nutrir amor singelo.


Teu coração é um jardim
Que está cheio de flores,
Um canteiro de jasmins
Onde afogo meus amores.

José Teixeira

______________

Nota do editor:

(*) Vd. Último poste da série > 30 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17632: Os nossos passatempos de verão (16): Cantigas de escárnio e mal-dizer, à desgarrada... Parte I: A amazona (Luís Graça)


(...)  Quadras populares, de sete métricas, quem não as sabe fazer? 

À desgarrada, dá mais pica. Mandem-nas para a nossa caixa do correio ou para a caixa de comentários deste poste, que a gente publica no blogue em próximo poste.
Venham daí os poetas populares. Só é preciso ter graça, serve. humor, mais negro ou mais amarelo, tanto faz... Ou esverdeado, ou avermelhado, das cores da nossa bandeira desbotada. É preciso animar a caserna, vazia, no verão.

Mandem quadras, mandem fotos. A única restrição já sabem qual é: no blogue da Tabanca Grande não se fala de política, futebol e religião... nem de incêndios. Quando o último eucalipto deste país arder, despeçam o último bombeiro, por extinção do posto de trabalho.

Os ex-combatentes da Guiné andaram 13 anos a apagar fogos, sem honras de exposição mediática (contrariamente, ao que acontece hoje aos incêndios florestais e aos seus incendiários). Hoje, eles, ex-combatentes, estão à espera do merecido descanso, não no panteão nacional, porque eles merecem muito mais e melhor: a Tabanca Grande. (...) 

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16488: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (34): A “santidade” do Santos

1. Em mensagem do dia 10 de Setembro de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta boa memória da sua guerra:


Memórias boas da minha guerra

33 - A “santidade” do Santos

Conhecia o Rui Santos desde meados dos anos 50. Eu frequentava ainda a catequese e via-o, mais velho uns 5 anos, muito ligado à igreja, onde até chegava a ajudar nas exéquias religiosas. Tinha estado pouco tempo no seminário, mas salientava-se bastante pela sua religiosidade, aliás, bem demonstrada pela sua assiduidade em todas as actividades ligadas à igreja. Por certo, trouxera de lá esse hábito acentuado da adoração a Deus, através das várias práticas religiosas.

Trabalhava no escritório de contabilidade de um primo de Mozelos. Andava sempre limpinho, engraxadinho e bem vestido. De mãos bem tratadas, unhas bem aparadas e envernizadas, chegava a “incomodar” a malta que o apelidava de “Ruisinha”. Por vezes, querendo explorar-lhe esse aspecto meio efeminado, até lhe apalpavam o cu. Porém, com as miúdas, que o consideravam um rapaz delicado e bonito, ele relacionava-se muito bem. Por isso, era normal encontrar o Rui convivendo com elas, especialmente com uma lindíssima rapariga chamada Geninha. Além da sua beleza natural bem visível, onde se salientava a pele aveludada e morena, os cabelos lisos e os olhos cor de avelã, a Geninha, com o seu comportamento discreto, tinha uma imagem de beata, aliás sempre escolhida para fazer de santa nas recriações religiosas, nos espectáculos promovidos na cave da Residência Paroquial e no cortejo de oferendas, por sinal também bastante participado. A sua beleza pura e o seu porte suave e ponderado, faziam-na uma “santa” de verdade. Digamos que encarnava facilmente a figura mística de Nossa Senhora. Pois, enquanto as outras miúdas se batiam pelos rapazes mais “bandalhos”, esta “santa” parecia dar preferência às “mariquices” do Rui.

Ela pertencia á família “dos da Bouça” (Maria Joaquina e Manuel Augusto), proprietários da Quinta da Bouça, lá do outro lado da aldeia. Os “da Bouça”, de aparência humilde eram bastante recatados. Tinham simpatia e eram bem conhecidos pela dedicação à igreja e ao amanho das suas terras. E como também valorizavam muito o comportamento religioso do Rui, pareciam vê-lo como um bom partido para a sua Geninha.

A “Tijona” (Eugénia), madrinha e tia da Geninha, solteirona por vocação, nunca largava aquela sobrinha, que com ela vivia desde a nascença. Não era por acaso que sempre que o Rui estava por perto da Geninha, a “Tijona” também marcava presença. Digamos que ela era o “anjo da guarda”, garantia da santidade daquela relação. Nunca se cansava de acusar os homens de feios, porcos e maldosos.

Por sua vez, o Tio Albino, também solteiro, completava a família. Nas horas vagas fugia para a caça ou pesca, chegando a faltar à missa, o que demonstrava já não sentir a mesma confiança divina de outrora. Diz-se que este seu comportamento tem a ver com o mau desenlace de um amor que sentiu por uma vizinha. Entregara-se todo a ela, respeitando-a em tudo, inclusive na sua promessa de castidade antes do casamento. Porém, quando já preparavam a boda, descobriu-se que ela estava grávida de um tal Zé Mecânico, de Lourosa. Desde então, parece detestar todas as mulheres, considerando-as “umas putas” e o “animal” mais manhoso que habita à superfície da terra.

Na minha imaginação de católico adolescente, quando pensava naquela relação amorosa, via os jovens, juntinhos, sentados no muro da pequena ponte romana, à beira do moinho velho. Estavam envoltos naquela paisagem bucólica, onde se destacam em fundo verde, as cores matizadas das flores primaveris. O ribeiro de águas cristalinas, onde escalos, bogas e trutas abundavam, serpenteava no fundo do vale, por entre fetos de vários tamanhos, arbustos diversos, altos choupos e frondosos amieiros. Os jovens pareciam escutar o borbulhar da água, também incluído naquela basta orquestra de pássaros, onde cada um procurava salientar o seu cântico, seu palreio, seu pio ou seu chilreio. Sobre o regaço da Geninha, poisam algumas flores campestres, presas pela sua mão delicada, levemente sobreposta pela mão do apaixonado Rui. Olham para o céu azul, onde algumas nuvens brancas lhes fornecem formas e figuras imagináveis. Ora enriquecidas pela presença das andorinhas esvoaçando em círculos, parecendo mover-se ao ritmo da passaral orquestra. Aí, parecem descobrir as imagens mais sagradas da Santa Madre Igreja, à qual manifestam o seu amor, sua adoração e, ao mesmo tempo, lhes prometem o respeito da sua santa relação.

Naqueles anos seguintes, as coisas evoluíam normalmente, sem surpresas nem sobressaltos. Com a fórmula da promoção dos três “éfes” (Fátima, Futebol e Fado) vivia-se na paz do Senhor. Tudo a preto e branco, claro. Até parecia que nada se alterava. Reinava a ditadura do Estado Novo. Todo o Império continuava bem controlado por Salazar, bem auxiliado pelo Cardeal Cerejeira e fortemente protegido pela PIDE. Estava tudo tão bem controlado que, nas eleições presidenciais de 1958, em que o povo se abriu massivamente em apoio ao General Humberto Delgado, viu os seus resultados falsificados escandalosamente.

No início de 1960 o Rui integrou o serviço militar no RAP 2. Estava perto de casa, pelo que não sentia grandes dificuldades em cumprir essa sua prestação obrigatória. Porém, já se acentuavam ventos muito adversos em direcção ao regime político de Portugal.

******

Logo no início de 1961, surgiu a sublevação do norte de Angola, conduzida pela UPA (FNLA). A revolta de Cassange foi reprimida com bombardeamentos da FA. Porém, a acção da UPA acentuou-se em Março, especialmente no dia 15, com vários ataques a Fazendas, Postos Administrativos e Postos de Polícia. Foram mortos cerca de 1200 brancos e 6000 negros.

A sublevação do norte iniciou-se com uma greve dos trabalhadores agrícolas.

Chegada a Lisboa em festa, do paquete Santa Maria, a 16 de Março. 

Entretanto, a 22 de Janeiro, numa acção aparentemente concertada com a revolta africana, um grupo de 23 exilados, chefiados pelo Capitão Henrique Galvão, assaltou o paquete de luxo Santa Maria, a caminho de Miami, que funcionou durante quase um mês como propaganda anti-regime Salazarista. Todavia, o MPLA (apoiado pela URSS e Cuba) só dá como início da guerra colonial, a data de 4 de Fevereiro de 1961, data dos ataques à Prisão de São Paulo de Luanda e a uma Esquadra da Polícia. .

UPA massacra negros e brancos

O MPLA aponta o 4 de Fevereiro como início da Guerra Colonial

Entretanto, o Ministro da Defesa, Botelho Moniz, quer substituir o Salazar por Marcelo Caetano. Pensa em dar um rumo diferente à política ultramarina. Porém, o seu amigo Presidente Américo Tomaz, não lhe faz a vontade e é logo demitido dessa pasta ministerial, que agora passa a ser acumulada pelo próprio Salazar. Diz-se que este golpe, conhecido como “Abrilada”, morreu antes de nascer. Dois dias depois, a 13 de Abril, todo o mundo assistiu ao discurso de Salazar, do qual sobressai a célebre frase: “Para Angola, rapidamente e em força”.

É nesta fase que se desenvolvem em Portugal sentimentos de patriotismo e de vingança. Processa-se uma mobilização bastante alargada; os militares têm que seguir para Angola, outros serão reintegrados no serviço militar e outros iniciam preparação intensiva, para reforçar os contingentes. Entre o medo e o dever, existe a confiança inabalável de que a nossa razão, aliada à supremacia militar, vai vencer facilmente, “aqueles pequenos grupos de terroristas infiéis”

O Rui, com cerca de um ano de tropa, já fazia contas e mais contas, para organizar a sua nova vida pós-serviço militar. Porém, vê-se, de repente, mobilizado. Mudou para Mafra, para uma breve especialização de um mês e a 5 de Maio, seguiu de barco, com os primeiros combatentes, para defender Angola. Ele sentiu as emoções fortes daquele desembarque festivo em Luanda. A população, agradecida, aplaudia o desfile dos militares desarmados, abraçava-os e beijava-os. Contam que estes momentos inesquecíveis alimentaram o espírito num misto de patriotismo, solidariedade e vingança.

Chegada a Luanda das primeiras tropas, para responder aos ataques subversivos.

Foram alojados lá, na alta da cidade, nuns prédios em construção, pertencentes ao Seminário, ainda sem janelas e sem acabamentos. Depois de uma breve adaptação pelo Grafanil, seguiram para norte, para onde tinham ocorrido os referidos massacres. Porém, adivinhando-se grandes dificuldades de locomoção, foram de barco, entraram no Rio Zaire e desembarcaram em Noqui, de fronte de Matadi. Inicialmente, tudo parecia abandonado nas fazendas e pequenas povoações dizimadas. Os “turras” dominaram a seu bel-prazer e os indígenas que escaparam, atravessaram o Rio Zaire e fugiram para o Congo. A tropa encontrou várias dificuldades, por falta de alimentos e de equipamentos adequados para o combate. À medida que avançavam para sul, maiores eram as dificuldades e mais eram os confrontos. O terror exposto no início da guerra, por parte da UPA, voltava sempre que a oportunidade surgia. Só que, agora, as nossas tropas retaliavam com a mesma moeda e maior motivação. Dos terrores da guerra, pouco se fala. As situações extremadas trouxeram ao de cima o mais cruel e mais condenável da raça humana.

******

Lembro-me da chegada do Rui e da festa que lhe fizeram. Não se falava do que ele terá passado por lá, por Angola. Nessa altura havia muita mobilização de militares e era inconveniente falar-se em coisas ruins. No entanto, não faltaram foguetes, discursos patrióticos e muitos abraços. E lembro-me também do falatório de então, referindo que o Rui estava muito diferente e que já não estava interessado na Geninha. Todos os dias saía da aldeia de manhã e aparecia à noite. Logo, familiares, vizinhos e amigos comentavam que o rapaz ficara diferente por influência dos horrores que havia passado. E quando constou que namorava uma rapariga, desconhecida, do Porto, acrescentava-se a possibilidade de causas de “bruxedos africanos”.

Mas, como eu já não frequentava a JOC, nem outras actividades ligadas à Igreja, perdi o contacto do Rui, da Geninha e de outros jovens do lado de lá da aldeia. Uns anos mais tarde, quando a minha mãe fez os 80 anos, “obrigou” os filhos a participarem numa excursão a Fátima. Alugou um autocarro e completou-o com as pessoas amigas, que costumavam ir com ela no cumprimento de promessas. Foi nessa viagem que tive a oportunidade de falar com o Rui e saber das suas lembranças vividas na guerra de Angola. Foi ele que me deu todos esses pormenores, desde a sua mobilização até à sua chegada. Ainda pensei em falar-lhe daquele namoro com a Geninha mas, a seu lado estava a sua mulher, uma senhora que transmitia muita simpatia, apesar de nunca tirar os óculos escuros. Falámos também da Angola que eu conheci, tendo participado num concurso de pesca, em 1973, que venci, em Santo António do Zaire, local onde ele também estivera durante o serviço militar.

Equipa de pesca da Câmara Municipal de Cabinda com o pargo de 14,2Kg que nos daria a vitória, no concurso junto à foz do Rio Zaire

Dos pormenores pessoais, fui procurar satisfazer a curiosidade, junto de minha mãe. Fiquei então a saber que o casal era um casal exemplar, de quem todos gostavam, que frequentavam a igreja assiduamente e que tinham um filho padre que estava lá para junto do Papa, em Roma. E exclamou:
- A D. Teresinha é uma santa. Sempre há homens que têm tanta sorte! Nem queiras saber! Eles costumavam ir comigo a Fátima e conhecia-os bem, lá da igreja. Eu só vi boas acções desta família.

E, quando lhe perguntei por aquela moça muito bonitinha, conhecida por Geninha, “dos da Bouça”, a minha mãe olhou-me de lado e, parecendo gaguejar um pouco, foi dizendo:
- Também costuma vir a Fátima. Não digas nada, mas parece que ela disse que a Tia, a “Tijona”, é que é o grande amor da sua vida.

******

Em Abril de 2013, integrei um grupo de ex-combatentes que foi ao Palácio de Belém entregar uma petição visando a intervenção do Presidente da República, Cavaco Silva. Claro que ele não teve sensibilidade para nos receber, naquele dia, nem nos anos que ainda governou. O objectivo era simples: conseguir o regresso dos corpos dos ex-combatentes mortos na guerra do ultramar e recuperar, também, os ex-combatentes sem-abrigo, que continuam desamparados nas ruas. Só quem anda nestas lutas se apercebe da triste, da hipócrita e da repugnante postura que os nossos governantes têm para com os ex-combatentes.

Entrega de petição à Presidência da República

Naquelas horas de convívio encetei conversas com vários camaradas. Um deles, a determinada altura interpelou-me:
- Ó Pá, pela tua fala, fazes-me lembrar um amigo cabo que tive, de Santa Maria da Feira.

Logo lhe respondi:
- Acertaste, mas olha que o concelho é muito grande, tem trinta e tal Freguesias.

E ele continuou:
- Chamava-se Santos, sim Rui Santos. Era um gajo muito delicado, educadinho, certinho e limpinho. Fomos dos primeiros a chegar a Angola.

Eu interrompi-o:
- Não digas mais. Também era religioso?
- Não era religioso, era um santo! Imagina o gajo sempre a rezar e a obrigar-nos a fazer o mesmo. E, até, a fazermos promessas!

E, após mais algumas referências a esse rapaz especial, confessou:
- Não digas nada, porque prometemos segredo, mas ele, durante uma emboscada lá no norte, em que nossos colegas foram mortos e esquartejados, prometeu casar com uma prostituta, no caso de se salvar. Por acaso, não sabes nada dele?

Fiquei sem fala.

No regresso de Lisboa, quase não falei com os colegas do MAC - Movimento Cívico dos ex- Combatentes. Inicialmente, ainda os acompanhei na revolta contra o desprezo dos governantes e o desinteresse ou desmobilização dos nossos camaradas. Depois, bem,… depois, foram quilómetros e quilómetros de imaginação a passar pela minha cabeça.

“O Rui, acabado de chegar, envolto nos festejos e nos carinhos, a evitar a Geninha, aludir cansaço, e o querer dormir bem, para iniciar o cumprimento da sua promessa. 

Começar pelo Café Derby, seguir pelo Royal, descer a Banharia, Rua Escura, Ribeira e subir até os Caldeireiros. Talvez, no regresso vir pelo Bonjardim. Olhar para todas as raparigas e não saber o que decidir.

Mas, como fazer despesa em todas as casas que visitasse? Como aguentar tantos copos e petiscos? Como se adaptar ao ambiente ou, como se ajustar a uma daquelas raparigas? Umas viciadas e outras não, mas todas portadoras de uma história incrível, das tais, capazes de fazer chorar as pedras da calçada.

Desorientado, refugia-se na Igreja de Santo Ildefonso, descansa, pensa e pondera. Por fim, parecendo iluminado pela Virgem Maria, a santa que o salvou, toma a decisão: Seguir à risca o que prometeu e perguntar à respectiva Madrinha qual a rapariga mais desgraçada, para a pedir em casamento.

A Madrinha, comovida perante uma causa tão séria e tão importante, começa a benzer-se, vai a correr acender uma vela, junto à imagem de Nossa Senhora de Fátima e grita:
- Milagre! Milagre!

Logo as “donzelas” disponíveis acorrem para junto da Madrinha, querendo saber o que se passa. A Madrinha levanta bem a cabeça, volta-se para elas e exclama:
- Nossa Senhora de Fátima mandou este belo rapaz vir buscar a nossa Micas Zarolha.

E, voltando-se para o Rui, continuou:
- Fique sabendo, meu santo, que um dia me virá dizer que foi aqui que encontrou o grande amor da sua vida.”

Silva da Cart 1689
____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16268: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (33): O rapaz do “sorriso parvo”

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16484: Contraponto (Alberto Branquinho) (55): Guerra e Charme (sem história de amor lá dentro)

1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), datada de 12 de Setembro de 2016 com mais um Contraponto que nos obriga a meditar:


CONTRAPONTO

55 - GUERRA E CHARME (sem história de amor lá dentro)

Pensei escrever assim qualquer coisinha com charme sobre a guerra, a nossa guerra colonial, as nossas guerras coloniais.

Então, coloquei uma folha A4 debaixo do nariz e entalei o lápis entre os dedos. Olhei as profundidades do papel, naquele ponto central onde se cruzam as duas diagonais imaginárias que vão de canto a canto da folha. Fiz força, força, força… mas nada saía.

Então, olhei em volta, à procura da “ideia”. Acabei por fixar-me no espaço da estante onde, bem juntinhos, estão “Os Centuriões”, “Os Mercenários” e “Os Pretorianos” de Jean Lartéguy. Larguei o lápis e puxei os livros. Folheei-os, folheei, folheei, procurando aquela passagem que, há muitos anos (antes da experiência da Guiné), me marcou muito. Não consegui localizá-la. Era assim: em Dien-Bien-Phu, um oficial francês, dentro de um abrigo, ouvia um jornalista que o interrogava e falava largamente sobre guerra. O oficial, saturado da conversa, respondeu-lhe, mais ou menos, isto: 
- A guerra seria aceitável se eu pudesse sair deste abrigo e berrasse: ”A guerra acabou. Os mortos podem levantar-se.”

******

Agora, tantos anos passados depois desse escrito de Jean Lartéguy, questiono-me se não terá sido essa afirmação do oficial francês que inspirou o criador do “paintball game”.
____________

Nota do editor

Poste anterior de 2 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16440: Contraponto (Alberto Branquinho) (54): Literatura da guerra colonial, o que é?

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16381: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (4): Joãozinho, nunca na vida te deixarei sozinho

1. Deliciosa história de amor, enviada pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com todos os ingredientes: amores, desamores, violência conjugal e o inevitável perdão.


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

4 - Nunca na vida te deixarei sozinho

Nunca na vida te deixarei sozinho, disse a Isabel ao seu marido joãozinho, na véspera de meter outro homem na sua cama.

A Isabel não andou na Faculdade, para assim falar tão bem nas traseiras do sentimento, mas foi criada de servir em Bissau, o que, numa aldeia do mato, era um curso superior. Isabel era uma mulher muito bonita, daquelas que são sempre futuro, ainda que a pele se engelhe. As suas formas afeiçoavam-se aos olhos, mais despindo a existência do que o corpo. Uma espécie de mulher à flor da pele, bem calculada por dentro. Mulheres paridas de si mesmas, sem vida nos outros. Mulheres de além-desejo, voo de ave, caminhando fora dos passos. Isabel, o torvelinho das tonturas do Joãozinho.

Joãozinho, servente da messe, sabia a mulher que tinha e todo se babava quando a gente dizia que ela era mais linda que surucucu empinada, mais pura que fruto de caju. Todo ele era uma viagem por dentro da Isabel, adivinhando-lhe o mundo no contar das coisas. Manhã levantada era sol de todo o dia, noite deitada era sonho que não morria.

Um dia…

Encontrava-me eu frente à palhota da Isabel, limpando com uma compressa embebida em permanganato de potássio, as feridas do dorso das vacas, verdadeiros buracos abertos pelos estilhaços das granadas e pelos pássaros pica-sangue, impiedoso tormento dos animais, quando ouvi atrás de mim uma voz de asas, leve de tempo, onde não havia destino, medida por lonjuras de sonho.
- Sr. Doutor, Sr. Doutor.

Do peito me nasceu um soluço que só anos mais tarde se escapou.
- Olá Isabel, que bela surpresa!
- Doutor, tenho galinha que consegui arranjar e vou fazer frango à cafreal para Doutor e nosso Capitão.
- Isabel, tu és um anjo, e nosso capitão, todo católico, vai pensar que é dádiva do céu, quando eu lhe contar.

Todos somos fingimento quando o sangue não se entorna no desaconchego da solidão. O provisório serve o regresso da alma, o fogo de outros calores invade os olhos através de janelas que há muito se não abriam. O capitão não mediu a fome nem a galinha, esqueceu a comunhão do Padre Gama, sonhou o despir da Isabel até à nudez pecaminosa e espetou os olhos no cair da noite.

Ao cair da noite, lá fomos os dois à palhota da Isabel, enquanto o Joãozinho lavava a loiça na messe. A Isabel estava no último acto da confecção do delicioso cafreal da tabanca. Primeiramente refogado, apenas em sumo de limão e piri-piri, depois grelhado na brasa e em seguida frito com cebola.
Notei que os olhos do capitão se cruzavam constantemente com os meus, não na galinha mas nas ancas da Isabel. Seguiam a luz sensual do petromax, que penetrava abusivamente na malha de tule até às roupas que vinham de dentro. Senhora de reflexos e de encontros, Isabel não prestava menos atenção à sedução do que à galinha.

- Doutor, nosso Capitão, tenho gira-disco e morna, mim dançar para doutor e nosso capitão.

Não nos empenhámos em perceber como é que uma pequena caixa e um disco de madeira giravam música. O esvoaçar do tule era o centro do mundo, o arder da fogueira de todo o nosso frio. Toda a força daquele colo maternal, toda a ternura da silhueta envolta em cabelos penosamente desfrisados durante longos anos, toda a firmeza das carnes subtis, todo o trigo desse abrigo adormecido, toda a tempestade recolhida nesse pedaço de noite tombaram sobre nós quando a Isabel iniciou o strip-tease.

Não me lembro do sabor da galinha. Recordo apenas uma espécie de vento fustigando as entranhas, reduzindo-me a um calção e uma camisa, ardendo dentro de mim com sabor a cinza.
Olhámos um para o outro, sorrimos, assumindo o que sempre estivera assumido, antes de darmos ao espírito a momentânea liberdade de um passeio pelo sonho que morre ao pé dos coqueiros.

Aconteceu nessa noite ou na noite seguinte. O Joãozinho entrou em casa e deu com alguém a fugir da cama da Isabel. Pobre do Joãozinho, sofreu mais com a sova que deu na mulher do que com a traição. Sofreu mais pelo avesso do que ela dissera na véspera, nunca na vida te deixarei sozinho, do que em todas as noites que passara enterrado na bolanha à espera de turra.
Doeu muito mais do que picada de escorpião.

Isabel apresentou queixa no Chefe de Posto. Argumentava e provava com as equimoses, dificilmente visíveis na sua pele de negra. Dolorosas como as equimoses em pele de branca. Afastara bondades de Joãozinho, denegrindo sua violência, grande de mais para coisa de momento. Não ser vontade de ela, mas força de imaginação que vem de dentro. Destino de todo fogo que acende rápido.

Foi constituído o tribunal. Perante o Chefe de Posto, Capitão e eu, compareceram queixosa e réu. O Joãozinho estava disposto a perdoar, a despeito de um sonoro desabafo, bengala de toda a sua alma, letra de toda a sua filosofia, resguardo de toda a sua defesa.
- Boca de ela ser boca de mim, olho de ela ser olho de eu ver, dor de ela corpo de mim qui dói, vida de ela valer morte de mim, mim ca pude pensar que Zabel durme cum gajo na cama de mim, dibaxo di memo tecto… inda si foi sinhô dôtô ou nosso capeton…!

NOTA: O capitão, personagem desta história, foi o capitão Brito e Faro, grande amigo, residente no Porto, há pouco tempo falecido.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16363: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (3): Os prisioneiros

terça-feira, 14 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16201: Álbum fotográfico de Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089, ao tempo do BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73) - Parte III: Canchungo e o amor em tempo de guerra




Foto nº 14 > Maio de 1973 > Casa  de tipo colonial, situada na avenida. Em primeiro plano, a Maria Helena Gamelas



Foto nº 16 > Habitação nativa típica,  na tabanca de Cachungo, março de 1983


Foto n º  12  > Janeiro de 1972 > Edifício do ciclo preparatório do ensino secundário e casa do director (à esquerda),  Foi nesta casa que nos instalámos. A Maria Helena Gamelas foi a professora de português no lano lectivo de  1972/73. Em frente, do outro lado da ruam ficavam as camaratas dos sodlados da 35ª CCmds.






Foto nº  8 > Embondeiro (ou cabaceira)



Foto nº 9 > Bolanha



Foto nº 10  > Cais acostável

Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Janeiro 72 / maio de 1973


Fotos (e legendas): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Ediçõa: LG]



1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Francisco Gamelas (*), ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73), adido ao BCAÇ 3863 (1971/73) e novo membro da nossa Tabanca Grande [, foto à direita, em Capó, janeiro de 1972) (**).

Francisco Gamelas:

(i) é engenheiro eletrotécnico de formação;

(ii) foi quadro superior da PT Inovação, estando hoje reformado;

(iii) vive em Aveiro;

e (iv) acaba de publicar "Outro olhar - Guiné 1971-1973. Aveiro, 2016, ed. de autor, 127 pp. + ilust. P.reço de capa 12,50 €. 


No seu livro, a pp. 16 e ss., pode encontrar-se  mais imformação sobre a vila (e depois cidade) de Teixeira Pinto daqueles tempos, de 1971/73:

[Vd. fotos 10, 12 e 14].(Gamelas, 2016, pp. 18-120). [Respeitámos a opção do autor que escreve de acordo com a "antiga ortografia". Reprodução de excerto, por cortesia do autor.]


(…) A cidade tinha um posto médico  aberto à população local, suportado médicos milicianos militares, um posto de correios e telefones, logo à saída do quartel, do lado leste, um ciclo preparatório do ensino secundário, apenas com uma sala de aulas, anexa à casa do diretor escolar, cujo edifício  se situava em frente das camaratas dos comandos [, 35ª CCmds,] na primeira saída da avenida para oeste.(…) Havia também um lavadouro público, o edifício da Assembleia do Povo, onde os chefes tribais da região se reuniam regularmente, uma cas de espectáculos onde se projetactavam filmes de vez em quando e se reaalizava um ou outro espectáulo musical, com artistas europeus, ambos gratuitos e abertos à comunidade local (…)

(…)  A cidade tinha distribuição de energia elétrica e água canalizada, ploe mnos no quartel e ao longo da avenida. Anexa ao quartel, ainda que no exterior, oara oeste, existia uma pequena pista de aterragem parta pequenas aeronaves e ehelicópteros. Um caminho em terra batida ligava o quartel à bolanha. No seu terminus, um maciço em cimento  delimitava um cais de acostagem para pequenas embarcações, em princípio  militares” (…)


2. Capa (abaixo, do lado direito,) do livro de Francisco Gamelas ("Outro olhar - Guiné 1971-1973. Aveiro, 2016, ed. de autor, 127 pp. + ilust. P.reço de capa 12,50 €. Os interessados pode encomendá-lo ao autor através do seu email pessoal franciscogamelas@sapo.pt.

O design é da arquiteta Beatriz Ribau Pimenta. Tiragem: 150 exemplares. Impressão e acabamento: Grafigamelas, Lda, Esgueira, Aveiro.

O livro, feito de pequenas crónicas e poemas, e profusamente ilustrado com as fotos do álbum da Guiné, é dedicado "à memória de Maria Helena" e às as "nossas filhas Sara Manuel e Maria João e os nossos netos  Sara, Francisco José e João Gil". 

Sobre a sua primeira esposa, Maria Helena, já falecida, e sua companheira da aventura guineense, o Francisco escreveu um belíssimo poema "Amor em tempo de guerra" (pp. 99/101), de que reproduzimos um excerto:

(...) “Mesmo assim, amor, decidimos casar
e começar a nossa vida em comum
neste reino de guerra sempre latente
aproveitando os intervalos
de alguma normalidade
para nos inventarmos
como casal.
Éramos jovens.
Sentíamo-nos imortais
apesar da evidência em contrário.(...)

(...) Foi aqui, no Canchungo,
e nestas condições que aceitámos,
que o nosso amor floriu,
que nos fomos aprendendo
na partilha permanente,
nas cumplicidades do presente
e nela germinou a semente
que foi crescendo
no teu ventre,
sangue do nosso sangue,
carne da nossa carne,
até nos acrescentar
em forma de rebento
a quem demos o nome de Sara
Então,

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15692: Notas de leitura (803): "Cartas de Amor de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem" (António Graça de Abreu / Márcia Souto, da editora Rosa de Porcelana)




Capa e contracapa do livro "Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem". Organização de Iva Cabral, Márcia Souto e Filinto Elísio. Praia, Cabo Verde: Rosa de Porcelana, 2015. (Cortesia da página do Facebook de Filinto Silva, cofundador da editora Rosa de Porcelana).



1. Mensagem de Antonio Graça de Abreu, escritor, poeta, sinólogo, nosso camarada, ex-alf mil, CAOP 1 [Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74], membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 170 referências:



Data: 21 de janeiro de 2016 às 11:43

Assunto: Cartas de Amor de Amílcar Cabral

Meu caro Luís

O Jornal "ponto final", Macau,  quinta feira,  21 jan 2016, de hoje portanto, traz este artigo de Márcia Souto (será mineira, brasileira?), que creio vale a pena publicar no blogue.

A editora Rosa de Porcelana creio que é de Cabo Verde. [Fundada em 2013 por Márcia Souto e Filinto Elísio]

Abraço,

António Graça de Abreu


2. O Amador e a Coisa Amada: considerações acerca da edição do livro "Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem"

por Márcia Souto

"Ponto Final", Macau, 21 de janeiro de 2016 (reproduzido com a devida vénia)


Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude de muito o imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Luís Vaz de Camões


Há alguns meses, senti algo estremecer e este estremecimento, compartilhado com meu companheiro de vida e de lida, tornou-se enternecimento.

Confiadas pela historiadora Iva Cabral, tivemos, eu e Filinto Elísio, a grande honra de poder trabalhar, enquanto Editores, as cartas inéditas de Amílcar Cabral à sua primeira esposa, Maria Helena Vilhena Rodrigues. As missivas datam de 1946 a 1960.

Pelo facto, compreende-se o estremecimento e a emoção, bem como a responsabilidade que nos coube em editar tão valiosos textos. Desde o dia da generosa prenda, legada pela primogénita do casal Amílcar Cabral e Maria Helena, dormimos e acordámos envolvidos numa atmosfera de encanto. Já disse Guimarães Rosa que as pessoas não morrem, ficam é encantadas; assim, ressuscitados, senão mesmo transformados pelas cartas escritas por um Amílcar Cabral,  colega, amigo, namorado e marido de Maria Helena, estas passaram a habitar muito do nosso trabalho, da nossa casa, do nosso corpo, do nosso pensamento.

Do encantamento ao labor. Tratava-se de um livro de 53 missivas de/com amor, em que fomos vendo o desfiar de um belo romance nascendo, tomando corpo e caminhando firme, não só no tempo, mas no espaço, posto que por terras portuguesas, cabo-verdianas, bissau-guineenses e angolanas.

São cartas em que se vão descortinando aos poucos o Homem por trás do Mito, assim como a
Mulher, companheira e camarada, que, por meio do afeto e da confiança, permite-se estar na História. O amor a mover o mundo... O amor entre duas pessoas a metonimizar o amor pela Humanidade.

Superados os estremecimentos, arraigado o enternecimento, surgiu-nos um pudor estranho ("Mineira é Fogo!"): como tornar públicas letras tão íntimas? Ato contínuo, percebemos que a importância de se compreender Amílcar Cabral, uma das grandes figuras da nossa contemporaneidade e um dos arautos da luta anticolonial e anti-imperialista no século XX, superaria quaisquer sensações de invasão da privacidade. É que muito da intimidade de Amílcar, pelo teor germinal, explica o tanto do "homem do mundo" em que se tornara Cabral. Embora "amilcariano", como o próprio intitula seu estilo epistolar, não se pode fechar os olhos ao "cabralismo", já patente, então, no jovem estudante de engenharia agronómica ou consolidado, mais tarde, no competente engenheiro, que se compromete, por inteiro e com coerência, à luta pelo direito à autodeterminação e à independência dos povos africanos.

Ao invés dos frios e longínquos anexos, tomámos, na edição do nosso labor, a decisão de destacar
os textos fac-similados (razão de ser do livro), acompanhando cada transcrição com o seu respetivo
original, de modo a propiciar aos leitores não só o acompanhamento, no calor da leitura, do texto manuscrito (o papel, a letra e os estados de alma, elementos que possam vir a revelar mais acerca do autor no momento da feitura da carta), mas também para facilitar alguma atenção especial que
os mesmos possam ter em relação a alguma passagem e facilitar o contato mais próximo com o texto autógrafo.

Nesta edição da Rosa de Porcelana, amadora transformada, consoante a semântica camoniana, creio que operámos a tão barroca e moderna transubstanciação: vivemos, com alegria e consciência, como editores, parceiros, companheiros e amantes, um pouco da vida de Amílcar e Lena, com a certeza de que o mesmo pode acontecer aos muitos leitores que desejamos para esta obra.

Márcia Souto



Amílcar e Maria Helena recentemente chegados a Bissau, em 1952



Da direita para a esquerda: Amílcar Cabral, Maria Helena e Clara Schwarz, na estrada de regresso de Dakar para Bissau em 1954.


As presentes fotos do arquivo pessoal de Clara Schwarz, a decana da Tabanca Grande, que vai fazer completar este mês de fevereiro, no dia 14, 101 anos!... O seu marido, o escritor e jurista Artur Augusto Silva, é que conviveu mais com Amílcar Cabral. Clara, que foi professora no Liceu de Bissau, traduziu textos de Cabral para francês. O nosso querido e saudoso amigo Pepito, o filho mais novo, nasceu em Bissau, em 1949 e morreu em Lisboa, em 2014. [LG]

Fotos (e legendas): © Clara Schwarz / Pepito  (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

3. Comentário do editor LG:

Obrigado, António, pela tua atenção, sentido de oportunidade e gentileza (*). A Rosa de Porcelana é, de facto, uma editora luso-caboverdiana, com sede na Praia. O livro "Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem" tem já  sessões de lançamento para: (i) 12 de fevereiro, na cidade da Praia; (ii) 26 de fevereiro, na cidade de Luanda; e  (iii) 18 de março,  em Lisboa. A informação é do Filinto Elísio [ou Filinto Silva], na sua página no Facebook.

Esta edição tem apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e da Fundação Amílcar Cabral, com sede na Praia.

Maria Helena [de Ataíde] Vilhena Rodrigues, engenheira agrónoma,  transmontana de Chaves, casou em 1951 com Amílcar Cabral, de quem teve duas filhas, Iva e Ana (**). Iva Maria nasceu em 1953, é hoje historiadora e vive na Praia, Cabo Verde. (Eu conhecia-a pessoalmente em Bissau, em 2008, por ocasião do Simpósio Internacional de  Guiledje).  Ana Luísa nasceu em 1962 e, segundo li, licenciou-se em  medicina e vive discretamente em Braga. 

Maria Helena e Amílcar separaram-se  definitivamente em meados da década de 60.  Cabral irá casar, em segundas núpcias, com Ana Maria Foss Sá, mais conhecida como Ana Maria Cabral, em maio de 1966. É assassinado em 20 de janeiro de 1973, na presença da segunda mulher. 

Sobre o resto da história de vida de Maria Helena,não sabemos grande coisa, nem se está viva. Casou, em segundas núpcias, com Henrique Cerqueira,  já falecido, um exilado político, português, em Rabat, Marrocos, que deu o alarme do desaparecimento do general Humberto Delgado, assassinado pelo agente da PIDE Casimiro Monteiro, perto de Badajoz,  em 13 de Fevereiro de 1965.  (Recorde-se que os cadáveres do general e da secretária apenas serão descobertos no dia 24 de Abril 1965.) Henrique Cerqueiro é autor de um livro panfletário, "Acuso", em dois  volumes (Aveiro, Editorial Intervenção, 1976), que terá diversas edições em Portugal.
_________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 31 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15691: Notas de leitura (802): "Genocídio Contra Portugal", edição SNI, Lisboa, 1961 (Manuel Luís R. Sousa)

(**) Vd. poste de 13 de fevereiro de  2012 >  Guiné 63/74 - P9477: Notas de leitura (333): Maria Helena Vilhena Rodrigues, mulher de Amílcar Cabral (Mário Beja Santos)

(...) Na revista História de novembro de 1983 vem um artigo assinado por António Duarte “Amílcar Cabral visto pela viúva”, título de mau gosto, Maria Helena Vilhena Rodrigues foi a primeira mulher do líder do PAIGC, a viúva chama-se Ana Maria Cabral. 

O que conta é o retrato humano que ela nos oferece do namorado, marido e lutador pela independência. O que ela aqui menciona vem já reproduzido noutros textos, na sua tese de doutoramento Julião Soares de Sousa refere abundantemente o seu depoimento. 

Conheceram-se no primeiro ano do curso de Agronomia. Amílcar cedo se tornou popular, tanto como aluno distinto como pela sua simpatia. A aproximação fez-se no terceiro ano do curso, quando transitaram apenas escassos 25 dos 220 alunos iniciais. Ela recorda que Amílcar a ajudava muito nos estudos, ela sentiu-se muito atraída: “Achava que ele era uma pessoa extraordinária, com uma grande cabeça. Quando ele me pediu namoro, não recusei”. E adianta: “Admirava a sua maneira de estar na vida, de interpretar a vida. Apesar de ignorante de tudo o que se passava lá fora, eu interrogava-me muito sobre certos aspetos ligas à pobreza. Não entendia as razões das diferenças sociais… Serenamente e de uma forma clara, tudo isso o Amílcar me explicava”. Quando passeavam de mão dada, ouviam-se comentários, afloravam-se preconceitos. Maria Helena recorda que ele tinha sempre uma explicação, nunca perdia o controlo: “Eu vim de longe. É natural, sou diferente deles. Você é uma moça muito bonita que namora comigo. Compreende-se…”.

(...) Casaram-se em 1951, Maria Helena estava ligeiramente atrasada, ele apresentou trabalho sobre os solos e andou pela aldeia de Cuba no Alentejo, ela dedicou-se à botânica e pastos.

(...)  Partem para a Guiné-Bissau [, em 1952], é aqui que vai nascer a primeira filha do casal, Iva. Vão permanecer três anos na Guiné-Bissau, Amílcar vai ficar a conhecer a Guiné de lés a lés, tudo graças ao recenseamento agrícola. Ambos adoecem e regressam a Lisboa. Ele trabalha temporariamente na brigada fitossanitária, em Santos, Maria Helena entrega finalmente a tese. Os professores de Agronomia arranjam trabalho para Amílcar e ele vai para Angola. Ela acompanha-o em 1957, fica como professora em Luanda e no Lobito. Nesse ano têm já casa na Avenida Infante Santo, em Lisboa. Data dessa época a vigilância da PIDE (...).

Estamos em dezembro de 1959, Cabral viaja até Paris. É daqui que ele lhe envia uma carta a Maria Helena em que lhe comunica que não volta, tem o seu caminho a seguir. Maria Helena parte para Paris, Cabral pede-lhe para regressar a Lisboa mas, logo a seguir, defende que Maria Helena e a filha devem abandonar Portugal. Sem alarde, ela abandona o país do ano seguinte, nessa altura já havia uma ordem de captura contra ela. Vai para Paris com a filha, ficam ali 8 meses. Cabral partira para Londres, já estava em plena atividade. Depois passa por Paris a caminho de Conacri. A vida do casal torna-se muito atribulada, Cabral, para sobreviver em Conacri trabalha como técnico agrícola, não tem dinheiro para pagar a habitação onde vive. Depois Cabral arranja uma casa que virá a ser a sede do PAIGC. Foi à porta dessa casa que ele será assassinado, na presença da Ana Maria Cabral, na noite de 20 de Janeiro de 1973. Maria Helena vai trabalhar como professora de liceu em Conacri, Cabral deixa o trabalho para se dedicar exclusivamente à luta de libertação. 

Maria Helena recorda: “Vivíamos praticamente só com o que eu ganhava no liceu. Era uma vida difícil. Tanto mais que estava para nascer a nossa segunda filha, Ana. Eu gostava muito de estar em Conacri porque todos ali eram meus amigos. Entretanto, tinham chegado, também, o Luís Cabral, o Aristides Pereira e a mulher, a Dulce Almada e o Abílio Duarte. E, mais uma vez, tive me separar do Amílcar. Ele achava que eu devia ter o bebé onde houvesse condições. Em Conacri não havia hospitais. Fui para Rabat”.

Seguem-se as opções de fundo, ambos vivem muito longe um do outro, Cabral achava que Maria Helena não devia fazer parte do PAIGC, depois do nascimento da filha, ele achou que ela não devia regressar a Conacri. A distância pesou no que virá a ser a separação do casal em 1966. Ela é omissa nesta entrevista, vários historiadores adiantam que tinham sérias divergências ideológicas. Cabral irá casar com Ana Maria, Maria Helena, em Rabat, casa com Henrique Cerqueira, ajudante de campo do general Humberto Delgado no exílio. Cerqueira irá ser muito badalado em Portugal, depois do 25 de Abril por ter escrito o polémico livro “Acuso!”, sobre o caso Delgado.

E ela termina dizendo: “O PAIGC ainda fez um esforço para salvar o nosso casamento. Convidaram-nos para passar umas férias na União Soviética, mas o Amílcar não quis ir… Foi assim”. (...)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15678: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (21): Amores e Desamores

1. Em mensagem do dia 15 de Janeiro de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), mandou-nos uma excelente história para a sua série "Outras Memórias da Minha Guerra".


Outras memórias da minha guerra

20 - Amores e Desamores

Quando entrei no Destacamento do Quartel de Santarém (Escola Prática de Cavalaria), faltavam menos de 15 minutos para o limite máximo de entrada. Num dos bancos de jardim, instalados ali na frente, já havia escrito a alguns amigos, manifestando o meu estado de espírito, carregadinho de incertezas.
Ainda hoje me custa aceitar que eu tenha merecido 7 punições durante as primeiras 5 semanas de recruta. Aliás, só à 5.ª semana consegui licença para ir a casa. Lembrei-me então de pedir ao CMDT de Esquadrão para me deixar participar nos Fiéis Defuntos, alegando o facto de ser órfão e, como irmão mais velho, querer acompanhar a família nessa dolorosa função.

Foi durante esse período de fins-de-semana cortados que tive a oportunidade de conhecer e conviver mais de perto com o Diogo Carvalho que, por opção, também não ia a casa. Inicialmente pareceu-me evidente o seu temperamento emotivo e revoltado quase com tudo o que o rodeava. Depois, após vários dias de convívio restrito, constatei que se tratava de um indivíduo maduro, já bastante espremido pela vida e pelos seus azares.

- Então, também voltaste a não ir de fim-de-semana? – perguntei.
- Não, nem tenho interesse em ir. Já há uns meses que decidi afastar-me da terra.
Perguntei:
- Estás chateado ou magoado com algo muito importante?
- Não gosto de falar disso, mas tens razão.

Após uns momentos de silêncio, abeirou-se um pouco mais, olhou-me frontalmente, de forma a falar só para mim.
- Ofereci-me como voluntário para a tropa para fugir de lá. Ainda pensei em emigrar, mas ponderei as consequências e optei por antecipar o serviço militar. Depois, se há-de ver o que virá.

Contou coisas que muito o marcaram, tais como a morte da mãe, que ainda era jovem, a do avô pouco tempo depois e, ainda, mais tarde, o comportamento do pai, que engravidou uma jovem casada, que trabalhava lá em casa.
Enfim, o Diogo, apesar da sua juventude, já acumulara um sem número de acontecimentos pessoais que o tornaram, precocemente, num homem maduro. Porém, o que mais mexeu com ele foi o desfecho de uma paixoneta por uma vizinha rica.

Viviam da lavoura. Tanto o pai, Laurindo Carvalho, como o avô paterno, Augusto Carvalho, destacavam-se na criação do gado arouquês, o que lhes trazia fonte de rendimento suficiente para pagar as rendas aos senhorios Morgados e ainda desfrutarem de algumas possibilidades na boa criação do Diogo, o único descendente.

Desde menino que o Diogo se destacava entre os seus amigos. Tinha bom aspecto, era inteligente, muito educado e irradiava alegria permanente. Por isso, entre o grupo da JOC (Juventude Operária Católica), ele era o mais admirado.

As miúdas também lhe dedicavam muita simpatia. Porém, em criança, já ele parecia mais focado na Guidinha dos Morgados, a bisneta do Comendador Afonso e sobrinha do Padre Benjamim Morgado. Embora desfasassem quase um ano de idade (ele era mais velho), frequentavam a mesma classe, vinham da escola primária quase sempre juntos, acompanhados pela criada Manuela, porque os Morgados a mandavam ir buscar a miúda.

Este relacionamento era normal, uma vez que viviam na mesma zona da aldeia: ela no Casal dos Morgados e ele, logo mais abaixo, perto da Casa do Feitor, na casa do Senhor Augusto. Além disso, há muitos anos que a família do Diogo estava ligada aos Morgados não só por questões de boa vizinhança mas também por boas relações pessoais e interesses laborais. O Diogo era querido pelos Morgados, especialmente pelos pais da Guidinha.

Durante o tempo da escola primária, havia um relacionamento quase fraternal. Quando a criada Manuela os ia buscar, procurava passar perto do seu namorado, Alcino, que trabalhava na Casa do Brandão.
Por vezes, ela ficava com ele e deixava o Diogo e a Guidinha irem para a beira do Rio Arda. Num dia de calor, a Manuela ficou aflita ao vê-los nus, a aprender a nadar. Todavia, como não os podia acusar dessa ousadia, teve que os tolerar mais vezes. Noutras vezes, já eles andavam na 4.ª Classe, a Manuela encontrou-os a brincar aos beliscões e apalpadelas.

A Guidinha não queria estudar. Gostava muito da família, da natureza e daquele ambiente rural. Por outro lado, temia muito afastar-se dali. Os pais não se preocupavam muito com isso, até porque, ali, não era tradição a continuação dos estudos por parte das mulheres. Além disso, como herdeira de um elevado património, não sentia necessidade de se sacrificar por qualquer outra valorização profissional.

Ele, o Diogo, enquanto pôde, estudou no Colégio dos Carvalhos. Nesse período, os contactos com a Guidinha resumiam-se às actividades de fim-de-semana, ligadas à igreja. O relacionamento de amizade manteve-se bastante próximo.

Logo que faleceu o avô Augusto, o Diogo teve que ir para casa. O pai que já havia entrado em depressão com a falta da jovem mulher, inesperadamente falecida por doença cancerosa, sentia, agora, grandes dificuldades em aguentar o habitual trabalho agrário. Com menos de 17 anos, o Diogo era, então, um jovem sobrecarregado de trabalho nas lides da terra e do gado, obrigado a ajudar o sustento da família, bem como os seus compromissos.
Nesta fase, o jovem Diogo era merecedor dos maiores elogios e de simpatia generalizada. Em pouco tempo, o Diogo fez-se homem. Além disso, ele era solicitado, frequentemente, para colaborar nas responsabilidades das actividades da JOC.

Foi nessa altura que, após as cerimónias do Corpo de Deus, os dois, quando regressavam a casa, se viram junto ao Rio Arda, nos mesmos locais onde desfrutaram de grandes momentos de alegria e de pura convivência. Recordaram aqueles tempos, riram-se de situações inesperadas e brincaram com alusões ao aspecto físico de cada um. Sentados na berma do rio, descalçaram-se para usufruírem da frescura das águas límpidas, naquele dia de grande calor. De repente, estavam no rio a lançar água um ao outro, como faziam nos tempos de crianças. Passaram para a outra margem, acessível só pelo lado do rio, e foram secar as roupas molhadas.
Ao tirar a folgada blusa branca, a Guidinha expôs um bom par de mamas, devidamente sustentadas por um apertado soutien, de cor carnal. Por sinal, era também a cor da calcinha sedosa que cobria o encontro de duas coxas, bem torneadas e bastante atractivas.

Quando o Diogo, de costas, “ameaçou” tirar as calças, já ela se estendia sobre as ervas tenras do pequeno verdeiro. Olhou-a e estremeceu. Foi um momento ímpar. De repente sentiu que toda a pureza daquele relacionamento se esfumara e que outro o amedrontava. Agora via ali disponível a mulher que desejava, aquela formosa rapariga de olhos negros e cabelos lisos e retintos. Deitados ao sol, quase nus, aproximaram-se e encostaram-se.
Beijaram-se sem experiência, agarraram-se com volúpia e murmuraram algumas palavras de amor. A Guidinha, entusiasmada, expôs-se abertamente, entregou-se e desejou tudo do Diogo. Ele procurou satisfazê-la pudicamente com beijos e algumas massagens, sem que tivesse que a desflorar. Assaltaram-lhe os pensamentos que já há muito tempo o vinham condicionando: a diferença social abismal que os separava. Aliás, sabia que se a desflorasse seria considerado e condenado como um oportunista sem perdão. Ele estava convencido de que ela o amaria mais com estas reservas inibidoras, imbuídas do maior respeito. Assim lho deu a entender:
- Guidinha, és a única rapariga que quero. Vamos ter calma. Somos menores, temos que esperar mais algum tempo e pensar melhor no nosso futuro.
Porém, ela parecia insaciável e esperava uma satisfação maior. E respondeu:
- Se me queres, temos a oportunidade de nos amarmos totalmente. Não vou aguentar ficar à espera. Nada receies. Ninguém nos vai chatear. Eu é que sei da minha vida.

Ela agarrou-o e prendeu-o em cima de si. De pernas abertas, já sem cuequinha, soltou-lhe o pénis e puxou-o para junto da vagina, entre um basto e negro púbis. Quase instintivamente, ele moveu-se cautelosamente, de forma a não a penetrar, mas roçar, continuamente, o clítoris e os lábios vaginais. Rapidamente, ela, ofegante, exultava de satisfação e soltava gritinhos de prazer.

Apesar do seu relacionamento, desde crianças, o Diogo e a Guidinha nunca foram apontados como presumíveis namorados.
Eram vistos como vizinhos, muito amigos e de famílias bem distintas. Ninguém, ou quase, pensaria ser possível que eles viessem a assumir um namoro oficial.
Porém, ele ficou bastante preocupado com o encontro recente e, agora, não sabia o que fazer. Não tinha dúvidas quanto ao amor da Guidinha, mas sentia-se apreensivo quanto ao desfecho desta relação que lhe veio avolumar um mar de pressões.

Uns dias depois, a Guidinha, a pretexto de visitar o Feitor, entrou em casa do Senhor Augusto e procurou o Diogo. Entrou à vontade, como era seu hábito desde criança. Logo que pôde agarrou-se a ele e beijaram-se.
Sentiram aproximação de alguém e esconderam-se no quarto. Enquanto ele, atento, escutava o ruído dos movimentos que se afastavam, ela abriu a blusa e deixou cair a saia. Ele voltou-se e, meio surpreendido, não sabia que dizer nem o que fazer. Sentada na cama,puxou-o pela cintura, desapertou-lhe as calças e as cuecas e puxou-as para baixo num movimento brusco. Com o pénis na frente dos olhos, contemplou-o enquanto dizia:
- Sempre que te imaginava nu, via-te tal como eras; sem pelos e com a aquela pillinha.
Acariciouo e agarrou-o, ao mesmo tempo que murmurava:
- Jesus, como cresceu! Tens que o meter no meu pipi. Ele anda zangado, porque ainda não o fizeste.

Ele sentou-se ao seu lado e enquanto lhe acariciava os cabelos, dizia:
- Calma Guidinha, por favor, tem calma. Não podemos cair nessa tentação. Bem gostaria mas, por agora, não posso, nem quero, ser responsável por isso.
Ela agarrou-o com força e puxou-o para trás, por forma a ficarem deitados sobre a cama e murmurou-lhe:
- És um tolo. Será que tens outra e me estás a evitar?
Ele abraçou-a, acariciou-a e beijou-a. De seguida, perguntou-lhe:
- Já imaginaste o que diriam os teus pais quando soubessem deste tipo de relacionamento?
- Os meus pais gostam de ti e vais ver que não haverá problemas. O que eles querem é que eu seja feliz.

Em silêncio, aproveitaram o momento e continuaram a usufruir dos impulsos desta paixão. Valeu o autocontrolo do Diogo que conseguiu de novo evitar o desfloramento.

Aquele Verão sequeiro obrigou a um trabalho extraordinário. Todos andavam mais ocupados nas regas e nas pastagens contínuas. Apesar disso, o Diogo achou um pouco estranho deixar de ver a Guidinha. Ainda passou por perto do Casal dos Morgados, mas não se apercebeu de nada. Ainda pensou que estivesse a gozar férias mas já lá iam cerca de 2 meses sem que a tivesse visto.

Chegaram as festas da S.ª da Mó, que se realizam a 7 e 8 de Setembro. Ali se juntam as famílias e muitos emigrantes. No parque das merendas existem muitas mesas de pedra que são usadas para as abundantes comezainas. O Diogo passou o tempo a olhar para a mesa onde, normalmente, se via a família dos Morgados. Logo após a procissão, viu a criada Manuela dirigir-se para lá. Porém, as pessoas que a seguiram eram seus familiares e amigos. Quando se apercebeu de que os Morgados não viriam, foi-se aproximando. A Manuela quando o viu, convidou-o para comer alguma coisa. Ele reagiu dizendo:
- Vim à missa e à procissão e tenho que ir já para baixo, porque estamos com muito trabalho.
Ela logo respondeu:
- Eu não. Os patrões nem vieram à Sra. da Mó. Devem andar pelo estrangeiro ou estão no Porto, na casa do Padre Benjamim. Nem sei o que vai acontecer agora.
- Mas, porquê? Perguntou o Diogo.
- Não digas nada a ninguém mas, houve lá discussão, por causa da menina Guidinha. Querem que ela vá estudar para junto do Pe. Benjamim e ela não quer ir.
E continuou:
- Tenho pena dela. Andava tão contente. Lá em casa, parecia que estava tudo bem e de repente, tudo mudou. Saíram de cá ainda antes do mês de Julho começar.

Passou o Verão, passou o S. Miguel e chegou o Fiéis Defuntos sem que a Guidinha aparecesse. No Cemitério, ao passar junto do Jazigo dos Morgados, o Diogo achou estranho que os pais da Guidinha o tivessem evitado e se concentrassem tanto na foto do Comendador.
De regresso a casa, o Diogo, que já andava a matutar há tanto tempo, pareceu ter encontrado a justificação. Então imaginou que ela, na ânsia de evoluir a sua relação amorosa, inocentemente e na mais pura das intenções, terá sondado a opinião da sua mãe, sobre uma hipotética atracção por si. Sim, de certeza que foi isso. E continuou a imaginar: os pais discutiram o assunto e optaram por a afastar de imediato dali, levando-a para perto do Padre Benjamim.

Agora que tudo lhe parecia claro, uma dúvida lhe assaltava: Se ela continuasse a apostar nele, já teria deixado algum recado ou teria enviado alguma carta. Todavia, acalentava a esperança de que isso ainda iria acontecer.

Passaram as festas de Natal, sem que se tivesse visto mais a Guidinha. Sem ela, silencioso e pouco iluminado, o Casal dos Morgados parecia abandonado. Foi na noite de Reis, quando recebeu um grupo que cantava as Janeiras, que ouviu um dos elementos do grupo dizer:
- Estivemos no Casal dos Morgados, mas eles não estavam. Disseram-nos que agora estão mais tempo lá pelo Porto. Parece que a miúda foi para o convento do tio.

Entre as pessoas que costumavam trabalhar lá em casa, havia a Carolina, a mulher do Francisco Queirós, que tinha emigrado para a França. Mal casaram, ele seguiu com a ambição de obter melhores condições de trabalho e a promessa de a chamar para junto de si. Menos de um ano depois, em Agosto, o Francisco veio de férias. Queria levar a mulher mas ela disse-lhe que era melhor aguentar mais algum tempo.

A Carolina engravidou. Tudo levava a crer que tinha sido durante a vinda do marido, nas férias de Agosto. Foi trabalhando lá em casa dos Carvalhos mas, em Março, teve um robusto menino, alegadamente com cerca de sete meses de gestação. Tudo normal, tudo na paz do Senhor. Poucos tempos depois do parto, a Carolina trazia a criança lá para casa, enquanto trabalhava. A avó do Diogo, que já acusava sintomas de Alzheimer, gostava de cuidar da criança. Numa das vezes que o Diogo pegou no miúdo, mexeu-lhe no cabelo e verificou que, por coincidência, ele tinha uma pequena mancha rosada igualzinha à sua e à do seu pai. Só depois disso é que se apercebeu de alguma intimidade na relação de seu pai com a Carolina. Sempre pensou que isso não passava de um certo carinho paternal.
O Diogo enfrentou o pai, que não assumiu o caso, e confessou que não podia lá continuar. Ainda bem que em breve iria para a tropa.

******

Em 1967 embarquei como a minha Companhia para a Guiné.

Em princípios de Janeiro de 1968, quando regressei às aulas de condução, interrompidas pelo chumbo de Abril anterior, encontrei lá, na Escola de Condução, em Bissau, o Diogo, que fora buscar a carta. Tinha terminado a comissão e regressaria uns dias depois. Falou-me que tivera muita sorte durante a missão da PSICO em apoio aos nativos e que conseguira tempo e disponibilidade para estudar. Tencionava dedicar-se exclusivamente aos estudos, aproveitando as facilidades que tinham sido criadas para os ex-combatentes, proporcionando-lhes exames, sempre que os requeressem.

Durante a nossa conversa, acabamos por falar de novo na sua paixoneta. Perguntei:
- Então, já esqueceste a tua vizinha rica?
- Quase. Olha, endureci de tal maneira que agora receio não conseguir voltar a apaixonar-me. Fiquei marcado por esta não me ter comunicado qualquer justificação.
E continuou:
- Soube que ela está num convento. Imagina, aquela gaja tão quente e tão rica, feita freira!
- E o teu velhote?
- Recebi uma carta dele há pouco tempo. Diz que quer que eu vá para lá, que precisa de mim, que está muito só e, até, que a Carolina foi para França, etc., etc.
- E não vais? Perguntei.
- Devo ir, mas estou decidido a fugir de lá. Quero ver a minha avó, que já não conhece as pessoas, mas o objectivo é ir para Coimbra.

Durante vários anos, passei por Arouca, em direcção a Covelo de Paivó, onde fiz muitas pescarias à truta. A paisagem é maravilhosa e as poucas pessoas que lá vivem são adoráveis. Muitas das vezes, não chegava a pescar. Sempre que encontrava alguém disposto a conversar, perdia-me fascinado a ouvir aquela gente. Falava-se mais do antigamente, da abundância, da fuga das pessoas após o encerramento das Minas de Regoufe e da actual ausência de jovens. Havia gente que não conhecia o mar.
Mas o que mais adorava ver, além daquelas águas límpidas do Rio Paivó, afluente do Rio Paiva, serpenteando entre pedras arredondadas pela sua erosão, era a chegada dos cabritos, ao fim da tarde. Vinham da montanha em rebanho e entravam pelo lado norte, enchendo a rua principal da povoação, “alcatroada” de excrementos secos. Ao cruzarem as pequenas ruelas com os cancelos abertos, iam entrando nas casas de seus donos. Nenhum se enganava e os últimos cabritos chegavam à última casa lá ao fundo, no altinho, por um caminho empedrado há séculos, que nos leva a Regoufe.

Todos os dias, a tarefa se repete. Dois pastores acompanham o rebanho, de forma alternada e democrática. No regresso, perdíamo-nos a petiscar nas adegas abertas, na baixa de Arouca. A carne arouquesa é excelente e o presunto também. Todavia, nunca perdia o salpicão de vinhad’alho nem o bucho, acompanhados do tinto da região.

Nunca encontrei o Diogo. Mas, recentemente tive essa agradável surpresa. Um cliente meu, da Beira Alta, sportinguista ferrenho, contactou-me para lhe fazer um favor: arranjar dois bilhetes para poder assistir ao Arouca-Sporting, que se realizava no Domingo seguinte e que não conseguira através da net.

Andavam numa azáfama, lá na sede do FC Arouca, quando entrei e disse o que desejava. Senti então um toque no ombro, vindo trás:
- Por aqui, Silva?
Voltei-me, olhei: era o Diogo. Reagi logo:
- É verdade. Tanta vez passei por aqui e sempre a procurar encontrar-te e hoje, sem o contar, apareceste. Como me conheceste?
- É fácil porque tens uma voz inconfundível. Mas, pelo aspecto, estás já um bocado gasto, desculpa lá. Vamos tomar qualquer coisa.
- Por acaso era para voltar para trás. Mas, já que te encontrei, podemos ir à baixa petiscar. Conheço ali umas tasquinhas que são uma maravilha.

Armado em cicerone, encaminhei-o para a “tasca da viúva”. Mal entrámos, ouvimos:
- O Senhor Doutor Juiz está cá hoje?
O Diogo respondeu:
- Só vim tirar bilhete para ver o jogo. Não se fala noutra coisa: o nosso Arouca a jogar com o Sporting! Olhe, arranje aí qualquer coisa para petiscarmos.
- Então, Silva, que fizeste nestes anos todos?

Falei-lhe resumidamente destes 40 anos de vida, desde a presença civil em Angola, de 70 a 74, casamento, filhos, canoagem, até aos nossos dias. Seguidamente:
- Agora fala tu, até porque sinto muita curiosidade.

O Diogo explanou também a sua vida, começando pela sua licenciatura, obtida em Coimbra e a carreira na magistratura. Casou em Vila Real e vive no Porto. Tem duas filhas, ambas casadas, uma delas a viver em Matosinhos e a outra em Aveiro. Passa muito do seu tempo junto delas e dos 5 netos que já tem.
A determinada altura, sem que o tivesse perguntado, diz-me:
- Lembraste daquela história da minha paixão? A miúda sempre seguiu para freira. Chegou a directora de Colégio. Recentemente, quando faleceu o tio Padre Benjamim, houve um funeral especial, que teve muito impacto aqui na região. Por curiosidade, quis ver a Guidinha durante o velório.

Contou o que sentiu enquanto não a viu. Imaginava-a ainda uma morenaça boazona, encoberta pelas vestes sagradas. De repente, pôs-se a pensar: e se encetar conversa com ela? Que tipo de conversa teremos? E se ela confessar que não teve culpa do seu afastamento? Gostaria de lhe perguntar se ainda está virgem. Se nunca mais se agarrou a outro homem e como conseguiu resistir a isso tudo. Enfim, chegou a pensar que lhe daria imenso prazer fodê-la, mesmo com aquelas vestes.

Abeirou-se do velório, olhou o morto de longe e esperou ver a Guidinha no meio daquelas velhas feiosas, a rezarem a seu lado. Ficou decepcionado por não a ver.
Não se apercebeu que a Guidinha era uma delas.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 de agosto de 2015 Guiné 63/74 - P15023: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (20): História de paz com (muita) guerra atrás