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terça-feira, 21 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (114): No Dia Mundial da Poesia... Quem não faz 69, não chega aos 100!

1. Os portugueses (e as portuguesas) não gostam de fazer 69...Dizem: "Ah!, faço 68 + 1"... 

Confesso que não sei por que é que eles (e elas), os portugueses (e as portuguesas)  não gostam de fazer 69!... 

Não conheço ninguém que chegue aos 100, sem fazer  69!...

Hoje, 21 de março de 2017, Dia Mundial da Poesia,  lembrei-me de um soneto que fiz ainda há umas semanas atrás, em homenagem  a um amigo, camarada e parente que fazia justamente 69,.,. Não o vou identificar, por razões óbvias, não sendo ele nosso grã-tabanqueiro, nem me tendo dado autorização para isso. Mas faço questão, até como apreço e homenagem a todos os que fazem 69, este mês, de reproduzir aqui  o "manuscrito" que lhe fiz e li, em voz alta, num almoço de uma tertúlia a que ele pertence (e eu também, por afinidade...), e onde nos juntámos para comer um delicioso arroz de lampreia,

O soneto era antecedido por uma extensa dedicatória:(que o leitor do blogue pode passar por cima).


Parabéns, Rogério, quem não faz 69, não chega aos… 100!

Um soneto natalício,
uma brincadeira poética,
uma singela homenagem a ti,
que és a ave canora
da tertúlia dos caminheiros
da Quinta das Conchas…
Tu não  quiseste dizer nada a ninguém,
mas no sábado fizeste 69…

Este é o pretexto para a gente te cantar os parabéns,
com amor e humor…
Além do mais,
tu és meu primo, conterrâneo, amigo e camarada…
É também,
juntamente com outros caminheiros e amigos oeste-estremenhos,
membro da nossa tertúlia da Praia da Areia Branca.

Contigo partilha um bom pedaço do ADN dos Maçaricos,
incluindo uns comuns tetravôs,
nados e criados em Ribamar da Lourinhã,
e que conheceram o terror das invasões napoleónicas, em 1807…

Sabemos que fá foste quase tudo na vida,
filho de pescador e de poeta,
tu próprio pescador na juventude, antes da tropa,
exímio tocador e competente professor de viola,
baladeiro,
cantautor

Tens o mar no teu ADN,
és um lídimo representante da tribo dos Maçaricos
de Ribamar da Lourinhã,
gente que andou desde Quinhentos
a abrir a autoestrada da globalização
sem cobrar portagem…

Como Pedro,  foste escolhido pelo Senhor
para ser seu representante na Terra,
mas não passaste nos testes…
Em contrapartida, foste engenheiro agrónomo,
com diploma passado pelo ISA,
competências que puseste ao serviço da banca nacionalizada, nossa…
Foste banqueiro do povo
sem nunca teres posto a mão na massa (leia-se: no cofre),
razão por que,  no fim da carreira,
nunca poderias ter apanhado a comenda
da república de Belém.
Não és comendador,
com muito orgulho,
mas és casado com a Leonor.
com muitas bênçãos de amor…
Dizem que te enamoraste dela
quando ela, ainda adolelescente, ia para a fonte dos amores,
descalça, formosa,  mas pouco segura,
com o cântaro à cabeça….
Não consta que tu, nosso trovador ,
tal como o Camões,
tenhas sido acusado de pedofilia…
Para já tens a sorte,
quando chegares aos 100 anos,
de ter uma babá, só para ti,
a teu lado…

Foste soldado contra a tua própria guerra,
fizeste a guerra em Angola,
e no peito ostentas com orgulho,
não uma cruz de guerra do 10 de junho,
mas um porrada que te deu um general,
por, sendo tu oficial miliciano,
estares a acamaradar com o Zé Soldado…

Parabéns, Rogério,
por teres chegado até aqui,
ao km 69
da tua autoestrada da vida!
Obrigados, dizemos todos nós,
por seres nosso caminheiro,
por caminhares ao nosso lado,
obrigados pelo privilégio da tua companhia e amizade
e pelos momentos de canto e encanto
que já nos proporcionaste,
e vais por certo continuar a proporcionar…

E eu acrescento:
“Força, parente,
que até aos 100
é sempre em frente!”...

Ontem como hoje,
cuidado apenas com as minas e armadilhas,
não só as dos inimigos mas também as dos amigos…
Como diz o povo,
“Que Deus me proteja dos meus inimigos,
que dos amigos cuido eu”…

E agora vamos lá ao soneto,
que é uma paródia a um dos mais belos e lancinantes poemas da língua portuguesa,
escrito pelo Elmano Sadino,
mais conhecido por Bocage,
e que morreu há 211 anos…
Pelas minhas contas, ele nunca fez 69,
morreu aos 40 anos, em 1805.

Só uma nota de circunstância:
constou-nos que tinhas posto a viola no saco…
Os teus amigos ficaram, naturalmente, alarmados…
Vejo agora, com regozijo,
que a notícia foi um bocado exagerada…


Já Rogério não sou, o baladeiro…

Já Rogério não sou, o baladeiro,
Minha voz emudeceu, aos sessenta
E oito mais um, pró ano setenta,
E até me esqueci que sou… engenheiro!

Confuso, pus no saco a viola,
E, no prego, as minhas partituras;
Mas, pior que nos dedos as tremuras,
São as brancas que me lixam… a tola!

Que raio – grito ! – foi este aniversário,
Que até a vela apaguei à socapa,
Com medo de voltar ao infantário ?!

“Come a papa, Rogério, come a papa”!,
Essa… guardem-na pró meu centenário,
Se não ‘tiver' choné, tirem-me… uma chapa!

Luís Graça

Tertúlia dos caminheiros da Quinta das Conchas,
Almoço de lampreia, "Tasca do João", Lumiae, Lisboa, 21/2/2017
________________

Nota do editor:

Último poste da série >  12 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17128: Manuscrito(s) (Luís Graça) (113): Não há mortes grátis!

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17021: Inquérito 'online' (104): "Estás reformado? E sentes-te bem?"... As primeiras 54 respostas até hoje de manhã: mais de 90% do pessoal está reformado... 4 em cada 5 sente-se bem ou muito bem...


Os nossos veteranos da guerra da Guiné... estão bem e recomendam-se!



A. Inquérito 'on line' (vd. canto superior direito)::

"Estás reformado ? E sentes-te bem ?"


Respostas preliminares (até hoje de manhã) >54 (100%)



1. Estou reformado e sinto-me muito bem  > 16 (29%)

2. Estou reformado e sinto-me bem  > 27 (50%)

3. Estou reformado e sinto-me assim-assim, 
nem bem nem mal  > 3 (5%)

4. Estou reformado e sinto-me mal  3 (5%)

5. Estou reformado e sinto-me muito mal  > 1 (1%)

6. Ainda não estou reformado > 4 (7 %)



Responder ao inquérito até 5ª feira, dia 9, às 7h52



B. Comentário do editor:

54  respostas até hoje de manhã. é muito bom...  E os resultados apontam já tendências: mais de 90%  dos respondentes já está reformado... E 80% sente-se bem ou muito bem...

Eu suspeito que os antigos combatentes têm formas, mais ou menos engenhosas, de "sobreviver" à pancadona da reforma e à crise que também levou à quebra do poder de compra... Antigamente, os nossos pais, avós e bisavós (que não chegávamos a conhecer) diziam: "Teme a velhice, que ela nunca vem só"... Leia-se: com a velhice, vem a solidão, vem a doença vem o abandono, vem a demenência, vem a morte

O que faz hoje a maior parte dos antigos combatentes que andaram por bolanhas e matas da Guiné ?. Encontram-se, convivem, recordam, escrevem, animam blogues, vão ao Facebook.. O nº de "tabancas" têm proliferado por esse país fora, e organizam-se dezenas e dezenas de convívios anusus... 

O convívio, saudável, regular, é importante para todos nós... Bem como o exercício físico, todas as semanas, duas vezes por semana: não é preciso gastar muita guita, apenas "solas"... E, claro, a alimentação frugal, a dieta mediterrânica...

E depois há as viagens, cá dentro,  mais do que lá fora, que as reformas não permitem grandes luxos... Há ainda tanta coisa para ver, aprender, saborear, conhecer, fotografar, partilhar... Este país é como a sardinha, é lindo...

E há ainda os filhos e os netos e os bisnetos, o voluntariado, a solidariedade para com os outros que precisam de nós... Sem esquecer o Facebook e o Blogue... Escrever faz muito bem aos neurónios... Mas não basta  carregar na tecla "gosto/não gosto" do Facebook... De qualquer modo, é uma geração que está a ultrapassar, com sucesso,  a barreira da iliteracia informática...

Camaradas, amigos, respondam ao nosso inquérito e escrevam- nos, digam lá o é que é andar por essas picadas fora a partir dos 70, "fintando" as minas e as armadilhas da vida e do mundo... Digam lá como se sentem... E qual é vosso segredo para um envelhecimento ativo, produtivo e saudável... Vamos chegar às 100 respostas, até 5ª feira, dia 9. E não se esqueçam: até aos 100 anos é sempre em frente!
___________

Nota do editor:

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16778: Convívios (775): Almoço anual dos veteraníssimos ex-combatentes da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), em Ponte de Sôr, no passado dia 5...Este ano fomos só vinte, mas o nosso poeta Francisco Santos continua vivo e inspirado (José Colaço)



Ponte de Sôr > 5 de novembro de 2016 > Convívio anual da CCAÇ 557 ( Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > Foto de grupo: à esquerda, o José Colaço, a seguir a sua esposa, em terceiro o Francisco dos Santos e a sua Emília. O Francisco é também nosso grã-tabanqueiro. Foi 1º  cabo radiotelegrafista, E é inspiradíssimo  pota popular.

Foto (e legenda): © José Colaço (2016). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem de 7 do corrente, de José Colaço:


Foto à direita: José [Botelho] Colaço ex-soldado trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), membro da nossa Tabanca Grande desde 2 de junho de 2008: tem 70 referência no nosso blogue.
Luís, para arquivo ou publicação... 

Esta é uma das companhias que, por ser das primeiras a ir para a guerra,  também está condenada a ser das primeiras a extinguir-se,  isto tendo em conta as ausências que se notam nestes últimos convívios,  uns por doença,  outros com as dificuldades do peso dos anos... para não falar já daqueles que de ano para ano tomam a barca do barqueiro de Caronte. 

Este ano só picaram o ponto vinte ex-combatentes. O que nos dá ânimo é que o comandante ainda está activo e marca presença embora apresente as suas queixinhas,  os tais lapsos de memória mas ainda dá o seu pezinho de dança. O  único ex-alferes que sempre tem marcado presença,  este ano já apareceu com o auxílio de umas canadianas.

Segue em anexo um poema que todos os anos faz honra em escrever o nosso poeta,  dedicado ao convívio,  e uma foto em que estou à esquerda,  a seguir a minha mulher,  em terceiro o nosso poeta popular Francisco dos Santos e a sua Emília.

____________

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16588: Banco do Afecto contra a Solidão (18): Regressei de Runa.. e velhos são os trapos !... (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

1. Mensagem de Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659,Gadamael e Ganturé, 1967/68]


Data: 5 de outubro de 2016 às 23:48
Assunto: VELHOS SÃO OS TRAPOS
  
Caras Amigas, Amigos e Camaradas


Ignoro se sabem que regressei do Centro de Apoio Social de Runa – IASFA, Ministério da Defesa Nacional.

Houve informação para umas e uns e falhou para outras e outros. Inclusive fui chamado para entrar no Centro de Apoio Social do Porto. Visitei.

Escrever e passar o tempo… Mas como se o meu relógio biológico deixou de actuar. Perdi-me num vazio. Fico deveras danado por verificar que o ser humano não se prepara para atravessar o tal "corredor – o da morte", que vi bem ao vivo em Runa. Nem se fala lá em Lar. Talvez com
razão. Parece não fazer sentido discutir e falar da morte.

Ingmar Bergman, grande realizador sueco que ficará com o seu nome vincado na História, não só do Cinema como do Mundo, num dos seus filmes coloca na boca de uma sua personagem uma explicação para esse final de vida – antes e sabendo que vai morrer. Talvez depois de ver
bem nos seus olhos:
– A Morte é… – E cai em terra.

Pois ela é o fim. Antes dela? Velhice. Ser velho? Direi e convicto:
– Velhos são os trapos. Não sou velho!
– Mau agouro. Nem sequer vou pensar nisso! – Dizem por aí.

Pois esse período que a antecede. Nem sequer temos pesos e medidas – gosto muito desta afirmação: "Pesos e medidas" – nem sei o autor.

Queda!

Há, nos dias de hoje,  velhice? É uma doença! Só se for na província, lá para o interior! – Palavras ditas…

Mas é o ciclo natural da vida. Principalmente as mulheres disfarçam ao retirarem de um lado… Pondo noutro.

Bisturis retira anos. Matematicamente retiram uma, quem sabe… Duas décadas. Além de operações, tatuagens. Vestidos berrantes e largos, para esconderem a barriga e seios descaídos.

Julgo ter sido Cícero – se não foi ele fui eu ou alguém:
– Somente os idiotas se lamentam em envelhecer…

Destaco, para terminar por hoje algo escrito pelo Poeta do Mundo, é a minha enciclopédia:
– "O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela".

Um abraço

Mário Vitorino Gaspar

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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de setembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16446: Banco do Afecto contra a Solidão (17): Regressei do Lar de Runa... ap

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15682: Manuscrito(s) (Luís Graça) (75): sabedoria alentejana: viver até aos cem anos... p'ra quê ?

Ao Mário Fitas e à sabedoria alentejana... LG


Viver até ao cem anos... p'ra quê ?

por Luís Graça


Pergunta um velhote alentejano ao seu jovem médico de família, no primeiro exame de saúde que este lhe fez:

Ó sô doutouri, acha que eu inda terei a sorte de vivêri até aos cem anitos comó mê pai ?

– Bom, depende das asneiras que o mê amigo fez na vida ou tem feito... Ora, diga-me lá: vocessemê fuma ?

Ná, nunca me puxou prá aí.

– E beber, bebe o seu copo ?!...

–  Ná, na gosto d' álcool.

– Mas olha que o tinto até faz bem ao coração... E o comer ?

Só o que a terra dá, pão, azêti, migas, alho, coentros, cebola, batatas... 

– Quer dizer: carne e peixe, pouco, que a pensão do governo não dá p'ra tanto!... Então, e que mais? O senhor é casado ? Tem filhos e netos ? 

– Ná, nunca tive filhos que Deus me desse.

– Atão ?!... e não tem mais nenhum vício ? Quero eu dizer: jogo, mulheres... ?

 Ná, sô doutouri. Nada disso! Fui pastouri, ‘tou reformado, sou viúvo, vivo sozinho no monte mailo o canito...

O médico ficou uns largos segundos pensativo, e depois perguntou, em tom de brincadeira a roçar o humor negro:

– Diga-me cá uma coisa, ó senhor Joaquim, que eu não 'tou a compreender: o senhor quer viver até aos cem anos... mas para quê?!

O alentejano, muito sério, lívido, quase ofendido, deu uma resposta que fez corar o jovem clínico geral, acabado de chegar, vindo de Lisboa ainda há pouco meses,  ao centro de saúde de Odemira: 

–  Atão... porque a vida de um home é a única coisa que pertence a um home e que um home pode tirar a ele próprio...

___________

Nota do editor:

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14296: Inquérito online: quando um irmão (e camarada) não "reconhece" outro irmão (e camarada)... Será que mudámos assim tanto nestes últimos 40/50 anos, com 3 de tropa e de guerra ?


António Carvalho, o "Carvalho de Mampatá", fur mil enf, CART 6250, Mampatá, 1972/74


O António Carvalho, hoje 


O Manuel Carvalho,  fur mil armas pesadas inf,  CCAÇ 2366 / BCAÇ 2845 (Jolmete, 1968/70)


O Manuel Carvalho, hoje

Fotos (e legendas): © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015). Todos os direitos reservados 


I. Assunto: Quando um irmão (e camarada) não "reconhece" outro irmão (e camarada)... Será que mudámos assim tanto ? 

Camaradas, será que mudámos assim tanto, física e psicologicamente, ao fim destes 40/50 anos ?...  Com um ano de tropa (ou mais) e dois de guerra ? Será que mudámos, até de fisionomia, ao ponto de um irmão mais velho (Manuel Carvalho) não conseguir reconhecer outro irmão, mais novo (o Carvalho de Mampatá, o Toni), numa foto de agosto de 1974, em Nhala ?

Recorde-se que:

(i) o Manuel Carvalho foi fur mil armas pesadas inf,  CCAÇ 2366 / BCAÇ 2845, Jolmete, 1968/70):
(ii) o António Carvalho, o "Carvalho de Mampatá", foi fur mil enf, CART 6250, Mampatá, 1972/74;
(iii) quatro anos os separam...

Comentário do Manuel Carvalho ao poste P14291 (*):

"Toni, já agora podias identificar o pessoal porque, apesar de sermos irmãos, nem a ti te reconheço e aos outros muito menos. Ao olhar para aqueles rostos não consigo ver ninguém com cara de querer continuar por ali. E tão pouco saber quem ganhou ou quem perdeu a guerra"... 

Este comentário diz "muito" sobre nós, ex-combatentes que estivemos no TO da Guiné... E é o tema da sondagem desta semana... (A questão é de resposta múltipla, admite mais do que uma resposta; votar, diretamnente, na coluna do lado esquerdo, no canto superior da página de rosto do blogue).

II. SONDAGEM: "AO FIM DESTES 40/50 ANOS, MUDEI MUITO, FÍSICA E PSICOLOGICAMENTE" (RESPOSTA MÚLTIPLA)


1. Sim, mudei muito

2. Mudei muito fisicamemte

3. Mudei muito psicologicamente

4. Não, não mudei muito

5. Não mudei muito fisicamente

6. Não mudei muito psicologicamente

7. Não sei
__________________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 24 de fevereiro de  2015 > Guiné 63/74 - P14291: Fotos à procura de... uma legenda (53): Os "Unidos de Mampadá", à despedida, em Nhala, em agosto de 1974... (António Murta / António Carvalho / José Manuel Lopes)

terça-feira, 22 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13428: Manuscrito(s) (Luís Graça) (37): O outono do nosso descontentamento...

O outono do nosso descontentamento 

Ao Ernesto Duarte (*)

por Luís Graça (**)





Dizem-nos
que estamos a envelhecer, camarada.
Dizem os demógrafos,
que correm, eles próprios, o risco
de ver limitado o objeto de estudo da demografia
aos velhos.
Dizem as máscaras do Entrudo
do nosso descontentamento,
muito pouco chocalheiro.
Diz o safado do cangalheiro:
Eu cá não quero que ninguém morra,
só quero que o meu negócio corra!

Dizem os divertidos caretos de Ousilhão.
Dizem os últimos rapazes da Festa dos Rapazes.
Dizem os médicos, sisudos,
que também estão a encanecer.
Diz o senhor Ministro da Indústria da Doença
que mandou encerrar as maternidades,
por falta de fedelhos
e por falta de crença na lusitana fecundidade.
Tenham santa paciência,
minhas senhoras,
voltemos ao tempo das aparadeiras!

Dizem as abortadeiras do campo e da cidade.
Dizem os hospitéis,
a abarrotar de gente na fila p’ra morrer.
Em Portugal.
Hospitéis, que os hospitais agora
só de campanha,

em caso de catástrofe natural ou social!
Dizem os sociólogos,
em crise tamanha
de paradigma existencial.
Dizem os jornais,
de papel,
que já não vendem mais.
Diz o meu geneticista,
que anda à procura do elexir da eterna juventude.
Hoje com saúde, amanhã no ataúde!

Dizem os futurólogos
que leem nas entrelinhas das camadas de ozono.
Diz a esteticista, pessimista,
quando o verniz estala

e o batom muda de cor,
quando morde os lábios de raiva:
– Vão-se os anéis, 
ficam os dedos!
Diz a vida, malsã.
Diz a palma da mão
e a linha (torta) da vida.
Muita saúde, pouca vida,
que Deus não dá tudo!

Diz a grega pitonisa de Delfos,
a escarnecer
da cultura judaico-cristã.
Diz o safado do comissário, 

muito político e pouco polido,
de Bruxelas,
que não foi eleito,
todos eles e todas elas,
os/as eurocratas,
muito menos eleitos/as pelos eurovelhos.
Diz a medicina,
que a velhice não tem cura!
Diz o Eurostat,
que representa a sacrossanta ciência
do positivismo do século.
Diz o Golden Sachs Sachs Sachs.

Diz o ouro do bandido do banqueiro
que tem a volúpia do dinheiro.
E até a Santa Madre Igreja,
agora sem crianças para batizar
nem selvagens para evangelizar.
Não sei o que diz Ela,
a Santa,
a Madre,
a Igreja.
Não sei o que é que diz Roma
nem Pavia,
que não se fizeram num dia.

Mas dizem as estatísticas,
que, dizem-nos, não mentem,
que estamos a embranquecer,
a encanecer,
a ensurdecer,
a envelhecer,
a ensandecer.
Diz o Censo de 2011.
A morrer, meus irmãos, a morrer.
De solidão.
Estamos a morrer.
De solidão.
Estamos a morrer.
De solidão.
Estamos a morrer.
De solidão
.
Diz o espelho meu,
que o tempo faz o seu trabalho de sapa,
e que o tempo, no final, te mata, 

camarada,
como nos filmes de terror.
Diz o sino da tua aldeia,
quando dobra a finados.
Que te importa, agora,
os teus feitos heróicos de Quinhentos,
ó povo meu,

celtibero, romano, visigótico, berbere, sefardita ?
Dizem as tuas rugas,
dizem as tuas brancas,
as primeiras, não sei onde.
Dizem os teus dias cinzentos,
diz a crueldade dos tempos,
só o Governo esconde
a bomba biológica
que paira sobre a cabeça
dos que hão-de vir.
Dizem-te que o Governo tropeça, trapaça,
mas não cai,
só por mentir
com as medidas da tendências central.
Os cães ladram e a passarola passa!
diz o ministro da educação e da ciência,

trapaceiras.
A média, a moda e a mediana,
mais o desvio padrão
e o erro amostral.
Bem sabes que o Governo está sujeito à erosão
dos ventos e das marés,
mas também à irrisão,
mortal,
das sondagens.
E das pilhagens.
O Governo pode ser sacana,
mas não deve mentir
e muito menos roubar.
O Governo deve ser pessoa de bem,
deve dizer a verdade,
deve dizer a verdade, nua e crua,
com um grau de confiança de noventa e cinco por cento.
Mas nem sempre diz toda a verdade,
ou só a verdade,
pura e dura,
como a flor de sal,
por causa da coesão social,

por causa do clima económico,
por causa da confiança psicológica
do investidor estrangeiro,

por causa do índice de NASDAQ,
por causa da liberdade,
primordial,
do consumidor.

Dizem que estamos a envelhecer, camarada.
Dizem-te que há muito ultrapassaste
a barreira dos quarenta.
Até aos 40 bem eu passo,
dos 40 em diante, ai a minha perna,
ai o meu braço!

Que aos 45 já eras velho,
para além do limiar da esperança ao nascer
quando nasceste

e foste para a guerra.
Dizem-te que somos todos velhos,
o censo.
e a falta de senso.
Um em cada cinco.
Leia-se: velhos, os mais de 65.
Velhos até aos tutanos.
E que agora já começou a caça
aos talentos,
aos rebentos,
na perspetiva da rarefação dos recursos humanos.
Diz o nosso mediático guru,
diz o feio do jagudi,
diz o mau do urubu,
diz o provérbio que na era de 31,
poucos moços, velhos nenhum
.
Dizes tu, camarada,
ex-combatente da guerra colonial:
Antes a morte que tal sorte!

Mas não é envelhecimento,
é senescência,
diz o teu neurologista.
Degenerescência,
dizem os puristas da língua.
Diz a neurociência
que o mais importante
não é perderes 100 mil neurónios
por dia,
nem a paciência,
nem a compostura,
nem o controlo dos esfíncteres,
nem a decência,
nem a cabeça do fémur.
Que a saúde dos velhos é mui remendada!

Deus te livre do Alzheimer 

e do Parkinson
e das demais doenças crónicas degenerativas.
Que Deus te livre da peste, da fome e da guerra,
E do Estado Mínimo a que hás-de chegar.
Deus te livre da ancoartrose
e da esteonecrose.
Mas o que é mais grave é perderes
as redes neuronais
e as tuas redes sociais
e não sei que mais.
Blá, blá, blá.
Mas já diziam os antigos:
Não há cousa tão junta a outra
como a morte à vida.

E mais avisado é o conselho 

do velho para o novo,
à laia de impropério;
Teme a velhice porque ela nunca vem só!...
Ou mais cruel ainda:

  Cabelos brancos, flores de cemitério!

PS - Dizem que estamos a envelhecer, Papi!
Porra, meu pai, meu velho, meu camarada,
eu sei o que a vida fez de ti,
mas tive orgulho 

na maneira como viveste
e como morreste!


Lisboa, 29/1/2008. 
Revisto em 1/7/2014
(v6 1 jul 2014)
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de  1 de julho de 2014> Guiné 63/74 - P13353: Blogoterapia (253): Não é pessimismo, muito menos um lamento, quando muito um recado... (Ernesto Duarte, ex-fur mil, CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67, poeta, algarvio)

terça-feira, 1 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13353: Blogoterapia (253): Não é pessimismo, muito menos um lamento, quando muito um recado... (Ernesto Duarte, ex-fur mil, CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67, poeta, algarvio)

1. Mensagem de ontem, às 23h03, do Ernesto Pacheco Duarte [ex-fur mil. CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67], que me tocou muito... São escritas por um dos nossos poetas da Tabanca Grande, algarvio, a quem só posso desejar muita saúde e longa vida porque ele merece tudo. (LG)


Um recado


Caro Luís

Duas linhas simples para te dizer 

aquilo  que tu sabes melhor do que eu, 
que os anos não perdoam !
Não tem nada a ver com o blogue, 
perdes dois segundos e ficas a saber 
que eu, embora mais perdido, 
mais longe de tudo, 
ainda cá ando !
Os sinais de o fulano A ter mais anos do que o fulano B, 
maneira muito simpática de dizer 
que não sou velho, 
mas sou usado, usado em demasia, 
começam a aparecer aos poucos 
e das mais diversas maneiras.
Comigo começaram com mais nitidez no esquecimento, 
tendo-me esquecido onde deixei parte da alegria, 
onde deixei a força de vontade.
Esquecendo-me de cumprir aquelas palavras tão velhinhas , 
ditas por um sábio, 
só podiam ter sido ditas por um sábio !
Soldados não vão para a guerra porque morrem !
Os soldados responderam morreremos sempre ! 

Resta-nos lutar, 
lutar para que esse dia vá para muito longe, 
e que, quando o encontro se der, 
seja com o máximo de dignidade !
Mas eu optei mais por cumprir com aquele dito popular, 

mas ao contrário !
Não faças hoje o que podes fazer amanhã !
E assim fui deixando desaparecer,
desfazer-se estes últimos tempos, 
principalmente parte de Maio e Junho !
Presto muita assistência aos meus netos, 
devido aos horários que os pais começaram a ter, 
mas é pouco para mim !
Por ser algarvio 
e amar o Algarve, 
fiquei com a casa dos meus pais 
e, como os tempos eram outros,
ainda arranjei uma barraca junto a uma praia !
Quando eu tinha 60 anos 
vinha e ia a caminho de Lisboa, 
com facilidade, 
com prazer, 
com alegria, 
conhecia toda a gente.
Nos últimos anos é mais uma obrigação 
e levo muito tempo a prestar aquela assistência mínima 
às casas velhas e fechadas 
e foi perdido nisto 
que eu passei os meus últimos tempos,
fazendo visitas esporádicas ao correio, 
mas dando para saber que tenho muito correio,
a que tenho a obrigação, o dever e o gosto de responder.
E o mais engraçado é que, 

há uns anos atrás, 
eu condenava este comportamento 
e agora convivo com ele 
com uma certa naturalidade, 
sem muita energia para protestar muito comigo próprio.
Eu não apago os emails,
transfiro-os para um disco 
e depois um dia com todo o tempo do mundo 
vou os ler todos, e responder !
Claro que no meio de isto 

também começou a aparecer a solidão, 
melhor, a solidão não existe !
Sim, a solidão não existe ! 
Existe é a saudade de ontem, 
uma saudade muito grande de uma vida passada !
Não nos isolamos, 

gostamos é de estar sós, 
porque não nos apetece falar, 
apetece-nos é recordar, 
não gostamos de ir aqui, ou ali, 
gostamos de ir é a sítios que têm significado para nós, 
onde fomos felizes, 
mas sabemos que esses dias passados não voltam mais 
e arranjar substitutos,
quando as forças começam a faltar,
os movimentos limitados porque os ossos começam a doer...
É certo que também houve aqui uma ajuda 
dos donos de Portugal.
Pois é a partir de uma certa altura, 
de uma certa idade,
a vida perde muita da cor natural 
e é preciso muita ginástica para arranjar alguma cor artificial !
Não é pessimismo, 

muito menos um lamento, 
quando muito um recado, 
de quem, mesmo com menos energia, 
ainda tem a mania de tentar perceber 
o mundo que o cerca, 
que o condiciona.

Um grande abraço

Ernesto Pacheco Duarte

[Fixação de texto: LG]

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sábado, 19 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - 10962: Blogpoesia (318): Dizem-nos que estamos a envelhecer ( Luís Graça)



Texto e foto: © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados


Dedicatória

Poema para ser lido por velhos,
daqueles que já usam óculos com muitas dioptrias,
ou então essas horríveis lentes de aumentar
que se compram nas Lojas do Avô,

nos novos templos das novas religiões do consumo,
e que só servem para ler os títulos de caixa alta do jornal.

Títulos Pornográficos. Bombásticos. Terroristas.


A todos os velhos combatentes de todas as guerras 
em que a minha geração andou metida.

Ao Jorge Cabral, mestre do lirismo do absurdo 
e da 'short story'.

Ao meu pai, meu velho, meu camarada

que conseguiu chegar aos 91. 
Ao (e)terno sorriso e à sua alegria de viver,
a sua forma muito pessoal de promover 
um envelhecimento ativo.




Dizem-nos que estamos a envelhecer.


Luís Graça


Dizem-nos
que estamos a envelhecer.
Dizem os demógrafos,
que correm, eles próprios, o risco
de ver limitado o objecto de estudo da demografia
aos velhos.

Dizem as máscaras do Entrudo
do nosso descontentamento
muito pouco chocalheiro.
Diz o safado do cangalheiro:
Eu cá não quero que ninguém morra,
só quero que o meu negócio corra.
Dizem os divertidos caretos de Ousilhão.

Dizem os últimos rapazes da Festa dos Rapazes.
Dizem os médicos,sizudos,
que também estão a encanecer.
Diz o senhor Ministro da Indústria da Doença
que mandou encerrar as maternidades.
Por falta de fedelhos.

E por falta de crença.
Tenham paciência, 
minhas senhoras.
Voltemos ao tempo das aparadeiras!
Dizem as abortadeiras.
Dizem os hospiteis,
a abarrotar de gente na fila para morrer.

Em Portugal.
Hospiteis, que os hospitais agora só de campanha!
Dizem os sociólogos,
em crise tamanha

de paradigma existencial.
Dizem os jornais,

de papel,
que já não vendem mais.
Diz o meu geneticista,
que anda à procura do gene da eterna juventude.

Hoje com saúde, amanhã no ataúde.
Dizem os futurólogos
que leem nas entrelinhas das camadas de ozono.
Diz a esteticista, pessimista,

quando o verniz estala.
Vão-se os anéis, ficam os dedos!
Diz a vida, malsã.
Diz a palma da mão 

e a linha (torta) da vida.
Muita saúde, pouca vida, 
que Deus não dá tudo.
Diz a grega pitonisa de Delfos,
a escarnecer
da cultura judaico-cristã.
Diz o comissário político de Bruxelas,
que não foi eleito,

todos eles e todas elas, os eurocratas,
muito menos eleitos pelos eurovelhos.

Diz a medicina,
que a velhice não tem cura.
Diz o Eurostat,
que representa a sacrossanta ciência
do positivismo do século.

Diz o Golden Sachs Sachs Sachs.
E até a Santa Madre Igreja,
agora sem crianças para baptizar
nem selvagens para evangelizar.
Não sei o que diz Ela,
a Santa,
a Madre,
a Igreja.
Não sei o que é que diz Roma
nem Pavia,
que não se fizeram num dia.
Mas dizem as estatísticas,
que, dizem-nos, não mentem,
que estamos a embranquecer,
a encanecer,

a ensurdecer,
a envelhecer,
a ensandecer.

Diz o Censo de 2011.
A morrer, meus irmãos, a morrer.
De solidão.
Estamos a morrer.
De solidão.
Estamos a morrer.
De solidão.
Estamos a morrer.
De solidão
.
Diz o espelho meu,
que o tempo faz o seu trabalho de sapa.
Que o tempo, no final, te mata.
Como nos filmes de terror.
Diz o sino da tua aldeia,
quando dobra a finados.

Que te importa, agora, 
os teus feitos heróicos de Quinhentos,
ó povo meu ?
Dizem as tuas rugas.
Dizem as tuas brancas,
as primeiras, não sei onde.
Dizem os teus dias cinzentos.
Só o Governo esconde
a bomba biológica
que paira sobre a cabeça
dos que hão-de vir.
Dizem-me que o Governo tropeça, trapaça,
mas não cai
só por mentir,
com as medidas da tendências central.

Os cães ladram e a caravana passa.
A média, a moda e a mediana,
mais o desvio padrão
e o erro amostral.
Eu sei que o Governo está sujeito à erosão
dos ventos e das marés,
mas também à irrisão,

mortal,
das sondagens.

E das pilhagens.
O Governo pode ser sacana.

mas não deve mentir
e muito menos roubar.
O Governo deve dizer a verdade,
deve dizer a verdade, nua e crua,
com um grau de confiança de noventa e cinco por cento.
Mas nem sempre diz toda a verdade,
ou só a verdade,
por causa da coesão social,
por causa do clima económico,
por causa da confiança psicológica
do investidor estrangeiro,

por causa do índice de NASDAQ,
por causa da liberdade,
primordial,
do consumidor.


Dizem que estamos a envelhecer, camarada.
Dizem-te que há muito ultrapassaste 
a barreira dos quarenta.
Até aos 40 bem eu passo, 
dos 40 em diante, ai a minha perna, 
ai o meu braço. 
Que aos 45 já eras velho,
para além do limiar da esperança ao nascer
quando nasceste.
Dizem-te que somos todos velhos.

O censo. E a falta de senso.
Um em cada cinco.
Leia-se: velhos, os mais de 65.

Velhos até aos tutanos.
E que agora já começou a caça
aos talentos, aos rebentos,
na perspectiva da rarefacção dos recursos humanos.

Diz o nosso mediático guru.
Diz o feio do jagudi, 
diz o mau do urubu.
Diz o provérbio que na era de 31, 
poucos moços, velhos nenhum.
Dizes tu, camarada, ex-combatente da guerra colonial,
Antes a morte que tal sorte!
Mas não é envelhecimento,
é senescência,
diz o meu neurologista.
Degenerescência,
dizem os puristas da língua.
Diz a neurociência:
o mais importante
não é perderes 100 mil neurónios
por dia,
nem a paciência, 
nem a compostura, 
nem o controlo dos esfíncteres.
Nem a decência.

Nem a cabeça do fémur.
Que a saúde dos velhos é mui remendada.
Deus te livre do Alzheimer e do Parkinson
e das demais doenças crónicas degenerativas.

Que Deus te livre da peste, da fome e da guerra,
E do Estado Mínimo a que hás-de chegar.
O que é grave é perderes
as redes neuronais
e não sei que mais.

Blá, blá, blá.
Mas já diziam os antigos,
Não há cousa tão junta a outra como a morte à vida.
E mais avisado é o conselho do velho para o novo,
à laia de impropério;
Teme a velhice porque ela nunca vem só,

Cabelos brancos, flores de cemitério!


PS - Dizem que estamos a envelhecer, Papi!

Porra, meu pai, meu velho, meu camarada,
eu sei o que a vida fez de ti,

mas tive orgulho na maneira como viveste 
e como morreste!


LG - jan 2008 / jan 2013
___________

Nota do editor:


Último poste da série > 14 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10942: Blogpoesia (317): Toadas de Inverno (J.L. Mendes Gomes)

domingo, 23 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10425: Blogpoesia (301): Parassuicídio(s)... (Luís Graça)


Parassuicídio(s), em noite de São Bartolomeu 

por Luis Graça


Acho que adoraria
O silêncio mecânico das ventoinhas
Nas casas de passe,
No tempo em que havia casas de passe
E os pais levavam os rapazes às meninas
Para se fazerem homens.

Em contrapartida, sempre detestei
As flores de plástico e as cruzes de guerra de latão
Nos cemitérios, no talhão dos combatentes
De todas as guerras travadas e perdidas
Nos lugares mais quentes
Da memória.

Se me permitem,
Também não suporto as revistas cor de rosa
Nos consultórios dos psis,
Mesmo se lá colocadas com a intenção piedosa
De servirem de placebo ansíolítico
Para quem espera e desespera nas salas de espera
Sem saber que vai morrer.

Huguenote, católico, judeu,
Anabatista, luterano, ateu,
Muçulmano xiita ou sunita,
Xintoísta, hindu, budista,
Animista,
Voyeurista…
Afinal a vida é,
Irremediavelmente, dizem,
Uma merda,
Um pesadelo climatizado,
Uma encenação,
Um jogo de roleta russa,
Uma bomba de relógio ao retardador.

Sou poeta a
gnóstico, apostólico, romano, 
Mas confesso que tenho medo
Da ameaça de tempestade tropical
No final do verão da vida,
Entre dois equinócios.
Nada mais natural que o medo,
Nada mais humano que o medo do medo.
Fight or flight, luta ou foge, camarada,
Sabendo que nem sempre podes fugir,
Nem sempre podes lutar.

Setembro é um bom mês para se morrer, 

Na frente de todas as batalhas.
Poupem-me o outono,
Dispensem-me do inverno,
Não me falem do natal
Nem me desejem bom ano novo.
E a primavera, por favor,
Outra vez, não!
Quem disse que a vida renasce
Todos os anos pela primavera,
Só pode ter interesse no negócio...

Sou tolerante, ecuménico e laico, 

Sobretudo heterodoxo,
Sou capaz de ouvir e saber ouvir,

Com paciência e compaixão,
As lendas e narrativas contadas pelos mais velhos.
Haverá um dia em que matarão
Todos os mais velhos,
Como em Esparta.
Será o dia da amnésia final,
Tal como o massacre da noite de São Bartolomeu,
Em França, em 1572,
Que foi celebrada com gáudio pela corte portuguesa 
De el-rei dom Sebastião.
In nomine Dei.
Em nome de Deus. 


A velhice é uma heresia.
Todos os velhos são huguenotes.
Todos os velhos custam um pipa de massa
Ao serviço nacional de saúde
E à segurança social
E ao banco alimentar contra a fome
E ao miserável estado a que chegámos.


Por mim, não peço muito:
Uma mesa, com toalha de linha,
Num estreito promontório, sobre o mar,
Um prato de sardinhas douradas
Com pimentos vermelhos,
Um copo de tinto,
Um café e um Lourinhac.
Ah!, e o último cigarro do condenado à morte!

Seria o dia perfeito, (e)terno.
Sem o ruído dos comboios,
Nos seus carris metálicos,
Enquanto os soldados partem para a guerra,
E os navios embarcam
Velhos obuses encapuçados.
A maior noite de ternura
É quando o soldado se despede da mulher amada
E parte para ir morrer na frente da batalha.
Sou sensível aos detalhes,
Como qualquer miseur-en-scène.
Não havia mulheres nas trincheiras do meu tempo
E tinham fechado as últimas casas de passe.

Nunca saberei se o sexo é 

Uma pulsão da vida ou da morte. 
Quem disse Make love, not war
É porque nunca fez (nem poderia fazer)
Amor e guerra ao mesmo tempo. 
As duas artes são disjuntivas.

Candoz, 23/24 de agosto, noite de São Bartolomeu
_____________


Nota do editor:


Úlltimo poste da série > 23 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10424: Blogpoesia (300): Deram-me uma arma... (Ricardo Almeida, o poeta da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)

domingo, 14 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8670: Blogoterapia (185): Ageism ou a discriminação face à idade? (José Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 12 de Agosto de 2011:

Boa noite
Sexta-feira à noite com um fim de semana à porta, quem é que se lembra de "amandar" para a blogosfera trabalho para os editores? Quem?

Estive a rever o texto anexo e, como já "amadureceu" durante um mês, resolvi enviá-lo com desejos de bom fim de semana e um abraço
José Martins



Ageism ou discriminação face à idade?

Já não sei quando, o facto que aqui recordo ocorreu, mas já foi há dois ou três anos, mais provavelmente no segundo trimestre de 2008.
Inscrevi-me para uma formação da então CTOC (Câmara dos TOC’s, hoje Ordem) que deveria ter a duração de 12 horas, sendo de oito horas no primeiro dia e as restantes quatro no dia imediato.
.
As acções de formação são “como que obrigatórias” já que por cada hora de formação é atribuído “um crédito”, créditos esses que terão de somar 70 em cada biénio, necessários para a continuidade do exercício da profissão.
Passada esta nota explicativa, entremos na história, que começa na cantina da Universidade Lusíada, à Junqueira/Lisboa.

Depois da credenciação e obtenção dos cadernos de apontamentos sobre os temas versados na formação, vários impostos provavelmente, estava a “fazer horas” tomando uma bica, quando se aproximou alguém que, trazendo numa mão uma chávena de café e na outra os cadernos distribuídos, me perguntou se se podia sentar na minha mesa.
Acedi, naturalmente, à solicitação do colega, apesar da sala apresentar muitas mesas vazias, tendo-se apresentado como sendo Gabriel.

Naturalmente entabulamos conversa mas, curiosamente, não foi sobre a matéria fiscal que ali nos levava.
Na aba do meu casaco ostentava o emblema da Liga dos Combatentes e, provavelmente, foi essa a razão pela qual fui procurado por esse colega que, a páginas tantas, me disse que também éramos “colegas de guerra”, ou melhor “camaradas de armas” lembrando que “colegas” eram as “outras senhoras”.
Realmente tinha reparado que coxeava um pouco e apertado por baixo do braço trazia uma bengala para apoio.

Falámos de banalidades, como se impunha, e disse que era do Algarve e, não tendo podido inscrever-se na acção que ia decorrer em Faro ou noutro local mais próximo onde a mesma decorresse, optara por deslocar-se a Lisboa para não perder a oportunidade de assistir à apresentação do tema.

A idade que apresentava e como depois vim a saber, era mais do que aquela que eu contava. Ele já estava no limiar dos 65 anos e tinha ido para o ultramar como Alferes Miliciano Atirador, onde viria a ser promovido a Tenente a meio da comissão, por ter sido mobilizado já com algum tempo de serviço na metrópole. Lá, como oficial subalterno mais antigo, tocou-lhe comandar uma coluna de reabastecimentos que, devido a uma manobra inopinada do condutor, a viatura fez detonar uma mina não detectada que originou que ficasse algumas horas “entalado” na viatura em que seguia, o que lhe valeu, além da fractura da perna nunca recuperada, passar aos serviços auxiliares até ao final da comissão.

Com a aproximação da hora de início da formação, aproximámo-nos da sala que nos estava destinada, a acção decorreria simultaneamente em várias salas, mas nós estávamos destinados à mesma, pelo que, apesar da atenção que tínhamos de dedicar ao formador, fez com que nos “aproximássemos” mais, para além da profissão e condição de combatentes.

Acabamos por procurar, no exterior das instalações da universidade, um local para almoçar, optando por uma daquelas tascas que por ali abundam e, pela concorrência natural entre todas, acabam por fornecer refeições aceitáveis e a preços convidativos.

Aqui, e noutros momentos que a seguir descriminaremos, fiz o papel de ouvinte. Era curiosa a história da sua vida. E, se a sua experiência militar não lhe trazia recordações agradáveis, pois apesar da deficiência não era considerado DFA (deficiente das forças armadas), nem lhe tinha sido atribuído qualquer grau de desvalorização mas, o que lhe trazia maior desgosto, era a forma como se considerava descriminado pela sociedade em geral, nomeadamente mais pela idade do que pela deficiência.

No dobrar do século XX para o século XXI, aconteceu-lhe aquilo que, a maioria da nossa geração tinha como “dado adquirido”: um emprego para a vida, com dez, quinze e mais anos de antiguidade, tendo apenas conhecido alguns empregos, de alguns meses, aquando do início da carreira profissional e antes de cumprir a tropa.

Estando no Algarve, foi fácil encontrar uma colocação num agente imobiliário que, além de proceder ao estudo e organização de empreendimentos, acabava na maior parte dos casos, em prestar serviço de gestão, assistência e manutenção nos edifícios, já que muitos dos proprietários eram estrangeiros.
Mas, sem que qualquer sinal tivesse sido sentido, a empresa acabou por fechar, com um passivo enorme, devido a transacções não reflectidas na contabilidade e falta de pagamentos ao Estado, ficando a totalidade dos empregados, nos quais o Gabriel se incluía, no desemprego, sem direito a qualquer indemnização, já que a empresa tinha elevadas dívidas, e os seus activos estavam quase todos hipotecados.

Foi nesta altura que, já que uma desgraça nunca vem só, a situação familiar acentuou-se, não só porque os rendimentos diminuíram substancialmente, mas a sua presença em casa, por inactividade profissional, levava ao inverso da situação anterior ao seu desemprego: agora era a esposa que saía antes do marido e, quando chegava a casa, ele já lá se encontrava.
A situação tornou-se intolerável para o Gabriel.

As discussões tornaram-se frequentes, com acusações mútuas, com a presença dos filhos que, já espigadotes, arranjaram um óptimo leitmotif para obterem certas benesses, muitas vezes com a opinião diferente do outro cônjuge, já que utilizavam a expressão “só falta tu estares de acordo. O pai, ou a mãe, já concordaram”.

Esta situação levou a que, para resolver os problemas que se avolumavam, já que encaravam a hipótese de divórcio, ao que os filhos se opunham, não por querer ver os pais juntos, mas porque esse situação levaria à venda da vivenda, ainda que pequena, em que viviam, perto do “mundo dos filhos”, porque estava perto da praia, perto da escola, perto dos amigos, perto das diversões. Nem pensar mudar de casa e, sobretudo, de estilo de vida. Mais lenha a fogueira, em que as labaredas cresciam cada vez mais alto.

Fizeram um acordo: A casa ficaria pertença da mulher, onde viveria com os filhos e ele iria ocupar um anexo nas traseiras, ao fundo do quintal, que dava para a rua paralela. Tudo ficaria resolvido. Tudo não, já que a ocupação do anexo, não permitia a vinda de amigos de fora, para lá passarem as férias. Do mal, o menor.

Estas “recordações” foram reveladas, melhor, foram desabafos desse meu colega, durante o almoço e parte final do dia, em que lhe dispensei algum do tempo que mediou entre o final das acções de formação e o jantar com a família, como se impunha. Ele iria jantar e passar a noite no quarto que tinha alugado numa residencial.

No dia seguinte, de que a formação só ocupava a parte da manhã, prometi-lhe que almoçaríamos e que disporia, caso o quisesse, da parte da tarde para o ouvir.

Já mais descontraídos pelo final da acção de formação, optamos por ir almoçar noutro lugar, mais calmo, junto do rio, uma vez que o tempo estava agradável. Acabamos numa esplanada junto a Belém.
Então, o Gabriel, meu colega de profissão e camarada de armas, deixou correr as suas venturas e desventuras, que eram mais desventuras que venturas.

Como “passou a viver” com do subsidio de desemprego, “emagrecido” por descontos não efectuados, já que parte do vencimento eram “extras e subsídios”, não pode aproveitar nenhum biscate que surgisse na sua área de saber, uma vez que teria de assinar, apesar de electronicamente, as declarações fiscais e, para tal, teria que se inscrever nas finanças como profissional liberal, perdendo o direito ao subsidio de desemprego.

Durante algum tempo conseguiu desenrascar-se, ajudando no gabinete de um colega, mas que pagava mal para o trabalho desempenhado. O Gabriel ia aceitando a situação, já que mais valia não perder a mão e sempre se ia inteirando, in loco, das alterações que iam surgindo na lei, porque até tinha deixado de ter acesso ao computador, como anteriormente.

Mas, se não há bem que sempre dure, não há mal que não acabe.

Como tinha informado a CTOC que poderia dar o seu contacto para qualquer pedido de alguma empresa que necessitasse dos serviços de um TOC, recebeu uma carta de uma empresa, a solicitar que entrasse em contacto com eles. Era uma empresa distribuidora de produtos alimentares.
Contactou-os, trocaram as impressões julgadas convenientes e entrou ao serviço dessa empresa, levando consigo a grata impressão de que o passado não era mais que passado. Todos os problemas tinham terminado e, agora, era o começar uma vida nova, até porque se sentia na plenitude das suas faculdades, para o desempenho da função.

A empresa que o contratou e onde ainda prestava serviço, era dirigida por um casal que, não me recordo se eram marido e mulher, se irmãos ou se primos. Recordo-me, isso sim, de que um deles, o que não tinha dirigido o processo de admissão, pretendia ter ascendente sobre o outro, o que conseguia “vetando”, ou melhor, tentando vetar todas as iniciativas do outro, arrogando-se para si próprio a total “infalibilidade”.

O Gabriel, meu colega, apercebeu-se que, durante a fase de recrutamento, havia outros candidatos mais novos. Provavelmente esses candidatos até tinham habilitações académicas superiores, já que este apenas tinha o Curso da Escola Técnica que depois completara com o Instituto Comercial, mas tinha a prática que, nesta como na maioria das profissões, marca a diferença.

Ajustadas as condições, e desta vez salvaguardando que toda a remuneração seria objecto dos descontos legais, há que prevenir o futuro com os erros do passado, apresentou-se na data acordada para iniciar a sua colaboração.

Do técnico anterior não recebeu qualquer indicação. Este já não estava no mundo dos vivos há já algum tempo, pelo que o Gabriel “herdou” uma “situação anómala”: registos atrasados, declarações fiscais em falta, pagamento não efectuados, muito papel e, sobretudo, muita confusão.

Quando chegou a altura de ser apresentado ao sócio gerente, que não conhecia e de quem apenas havia ouvido falar vagamente, ficou surpreendido pela forma fria, vaga e distante com que foi recebido. Mais: quando ia a sair do gabinete desse gerente não pode deixar de ouvir, e disso fez questão “esse patrão”, ao dizer aos sócio que, “apesar de tantos candidatos, logo foste escolher o velho”, enfatizando a palavra.

Como a vida tem de “ser tocada para a frente”, o Gabriel lá se dedicou à analise da situação fiscal e financeira da empresa, que era a área que poderia deixar “mais mossa” na empresa, inteirando-se da situação real, contactando as finanças e outros departamentos estatais, apresentando requerimentos para suspender processos já em curso e solicitando a prorrogação de prazos para satisfazer os compromissos estabelecidos por lei, alegando para tal a saída, por falecimento, do anterior TOC.

E as “coisas” foram retomando o seu curso normal. A contabilidade foi recuperada, tendo apenas um atraso considerado normal; as contas dos bancos foram controladas e deixou de haver a necessidade de efectuar depósitos imediatos, para restabelecer os saldos positivos nas contas; controlaram-se os créditos sobre os clientes e os débitos aos fornecedores, e os saldos das contas passaram a estar controlados; as obrigações fiscais e parafiscais, foram actualizadas e passaram a ser cumpridas atempadamente; até que, porque quando se julga que já se domina a situação, “aparece um esqueleto do armário”.

Quando, como dizíamos, tudo parecia ter regressado à normalidade, surgem junto do Gabriel, acenando histericamente um papel, perguntando como é que é possível que tenha descorado “aquele assunto”; como é que era possível um profissional, já que como tal o tinham contratado, cometesse uma enormidade daquelas.
Estupefacto perguntou do que é que se tratava, mas como resposta obtinha aquela velha expressão, de quem quer criar um caso seja qual for o motivo, perguntando mais alto “mas como é que é possível tal desatenção?”; como é que é possível “deixar passar um pagamento sem ter avisado para esse facto?”; quem estava a “tentar prejudicar quem?”.

Não foi possível saber, sequer tentar entender o que se passava, já que o papel, melhor, uma fotocópia, lhe foi atirado para a secretária, antes de sair batendo com a porta.
A sua experiência aconselhou-o a, com calma, tentar saber o que se passava.
A falta a que se referia a notificação fiscal, que mencionava um período de há cerca de dois anos atrás, era a falta de entrega da declaração e o competente pagamento de IVA, mas cujo apuramento estava devidamente lançado na contabilidade e o pagamento titulado por um cheque pessoal de um dos sócios, e, por isso, creditado na sua conta.

Os lançamentos contabilísticos estavam correctos, mas havia a falta de prova do pagamento, passando a “pesar sobre os ombros” do novo TOC a responsabilidade daquele processo já que, no entender desse gerente, “os erros de um contabilista, têm de ser pagos pelo que vier a seguir”.

Bem. Parece que deu trabalho, mas a verdade surgiu: Como era no seu gabinete que o anterior TOC tratava de “tudo”, indicava aos seus clientes qual o valor dos impostos que era necessário pagar ao Estado, recebia esses valores, que depositava, e efectuava uma transferência bancária, a partir da sua conta, para a regularização dos pagamentos.

Depois de “desembrulhada”, a situação era simples. Como um dos sócios estava ausente da empresa, para pagar o IVA foi emitido um cheque da conta pessoal de um dos gerentes, situação regularizada no dia seguinte. O contabilista procedeu ao registo da operação, mas, não só não depositou o cheque que recebera, como também não efectuou o pagamento do imposto, já que entretanto adoecera e perdera o controle da situação. Como a conta pessoal do sócio não era analisada pelo mesmo, já que o saldo existente “lhe dava algum conforto”, nem se apercebeu que o montante do cheque nunca foi abatido no seu saldo.

Com a situação esclarecida e verificado que o cheque nunca tinha sido descontado, aliás tinha sido recebido com os “papeis que vieram do gabinete da contabilidade” e ficado retido na “gerência”, foi pago o competente imposto e as coimas e custas do processo, mas ficou sempre como “uma nódoa no curriculum do Gabriel, o velho da contabilidade”, como era conhecido em surdina.

O tempo foi correndo e, talvez um ano depois, apareceu um dos sócios acompanhado por um rapaz, a rondar os trinta anos, que apresentou como seu afilhado, solicitando-lhe que, nas semanas seguintes, arranjasse algum serviço para o rapaz “se entreter e começar a saber o que era a vida “, já que tinha frequentado um curso de gestão na universidade e agora era preciso fazer o estágio.

O Gabriel “adoptou” o seu novo estagiário transmitindo-lhe aquilo que gostaria de ter transmitido aos seus filhos, caso tivessem escolhido a mesma profissão que ele abraçou. O rapaz, que era inteligente, aprendia com facilidade o que lhe era ensinado mas, sempre que podia, arranjava desculpas para não aparecer no escritório. Como não havia a obrigatoriedade da sua presença, apesar de ter “ordenado para fazer face às despesas de rapaz” além das despesas do almoço e do combustível do carro, esses assuntos deviam ser resolvidos a outro nível.

Um dia, em qualquer caso há sempre um dia, o gerente chamou o meu colega Gabriel para tratar de assuntos relativos à contabilidade e, quando este menos esperava, a conversa “virou-se” para a idade e, inesperada e inexplicavelmente, perguntaram-lhe:
- Quando é que se reforma? Já está na idade, não é? Ou pretende antecipar a idade da reforma, como na função pública?

- Não, não estou a contar pedir a reforma antecipadamente. Para ser sincero, nem tenho pensado nesse situação. Quando chegar a altura e se as condições assim o determinarem, será altura para pensar e decidir.

- É que nós estamos a contar entregar a contabilidade ao nosso afilhado. Ele tem aprendido bastante, não tem? Já está capaz de resolver o nosso problema. Tenho que o entusiasmar para se inscrever na vossa associação.

O Gabriel achou estranha esta atitude. Todos sabiam que o “estagiário” ainda tinha uma prova a ultrapassar: a inscrição na CTOC, hoje OTOC, mas mais estranhou o tema daquela conversa que, a todos os títulos, era desprovida de oportunidade, quando toda a atenção se devia concentrar no fecho de contas e apresentação das mesmas.

O almoço, já longo, tinha de acabar, já que o Gabriel ainda ia fazer o percurso até ao Algarve e, ainda, queria passar pelo escritório.
Despedimo-nos e desejando-nos mutuamente felicidades e êxitos pessoais e profissionais, cada um rumou o seu próprio destino.

Nunca mais pensei nesta história. Melhor: pensar, pensei, mas nunca senti o impulso de pegar no telefone e saber o que se passava com esse amigo. O dia a dia, o trabalho, a família, os amigos próximos e com interesses comuns, os novos desafios, e outras coisas mais, levam a que quando nos lembramos de algo, não estejamos no local certo ou à hora adequada para tentar um contacto telefónico.

Neste ano, que se aproxima a altura de chegarem os 65 anos, já que sou da “colheita de 46” e influenciado, talvez, pela leitura do livro “Discriminação da Terceira Idade” da psicóloga Sibila Marques, numa edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos [cuja leitura recomendo, vivamente], lembrei-me deste caso singular, mas que é fruto da tentativa que existe no ser humano de descartar, sempre que é possível, os mais idosos, desprezando a maior parte da vezes o seu “saber de experiência feito”, e, no mundo do trabalho, mesmo que se tenha um resultado de menor qualidade, opta-se por pagar menos, mantendo as novas gerações em situação de precariedade, sem poderem almejar novos voos, acenando-lhes com novos modos de vida mas retirando-lhes a possibilidade de os alcançarem sem recorrerem a créditos que, mais tarde e tarde demais, vêem que não podem manter.

Foi então que procurei o telemóvel do Gabriel e lhe telefonei. Em resposta ouvi uma gravação que, na sua voz impessoal, informava que “o número do telefone para o qual ligou, não está atribuído”.

Teria ligado mal. Enganei-me no número ou não o marquei na totalidade? Bem, nova chamada para esclarecer dúvidas. Não havia qualquer dúvida. Marquei, digito a digito, e a resposta foi a mesma: “o número do telefone para o qual ligou, não está atribuído”.

Pensei e melhor o fiz – passar à fase B: ligar para a empresa directamente.

Sabia o nome da empresa, a tal de distribuição de produtos alimentares, no Algarve, procurei o número de telefone na Internet e validei-o junto da telefónica, pelo que não restava dúvidas que era o número pretendido.

Escutei do outro lado da linha uma voz feminina, que me pareceu jovem, e pedi para me ligarem à contabilidade com o Sr. Gabriel, o Sr. Gabriel Anjos.

Em resposta disseram-me que não trabalhava lá nenhum Sr. Gabriel. Não seria engano no número de telefone?
Respondi que não, que o nome que tinha era Gabriel Anjos e a firma era aquela, e que tinha estado, há já algum tempo é certo, com o Gabriel e que me tinha falado da empresa.

- Não! Sou filha dos donos da empresa, que já existe há mais de quinze anos. Nunca cá trabalhou nenhum Senhor Gabriel e, a contabilidade, sempre foi feita no gabinete de contabilidade do meu avô.

Que se passou então naqueles dois dias, há alguns anos, junto a Belém? Será que foi um sonho que tive que, de tal forma ficou marcado no meu subconsciente, que me pareceu real?

Mas a empresa de distribuição, esse, existe. Falei com a filha dos proprietários, tem nome e número de telefone.

Quem é este GABRIEL?
Algum mensageiro que me quis alertar para o futuro?

José Marcelino Martins
12 de Julho de 2011
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8627: Patronos e Padroeiros (José Martins) (21): Mártir S. Sebastião, Padroeiro dos Arqueiros, da Infantaria e dos atletas (José Martins)

Vd. último poste da série de 10 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8537: Blogoterapia (184): Documentos perdidos, de muito atrás do tempo (José Martins)