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quarta-feira, 19 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24489: Antologia (91): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte II


Guiné-Conacri  > PAIGC > Novembro de 1970 >  Coacri > Escola Piloto do PAIGC  (criada em março de 1965, para acolher os filhos dos combatentes e os órfãos de guerra), dirigida pela dra. Lilica Boal (Maria da Luz Boal), cabo-verdiana, formada em Portggal na Faculdade de Letars da Universidade Clássica de Lisboa; era ta,mbném ela  (aqui na foto), a responsável pedagógica pelos conteúdos nos manuais escolares, publicados na Suécia. 

Imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson (com a devida autorização do Nordic Africa Institute, Upsala, Suécia). A fotografia não traz legenda.  O fotógrafo fez parte de juntamente com uma delegação sueca (tendo à frente a antiga líder do parlamento sueco, Birgitta Dahl) que visitou as "regiões libertadas" da Guiné-Bissau, em novembro de 1970.

Mo interior, nas "regiões libertadas", não havia estruturas, escolas, hospitais ou outros equipamentos sociais, de pedra e cal... Pela simples razão, que eram um alvo fácil para a aviação portuguesa, e porque eram difíceis os caminhos que levavam às bases de rectaguarda, tanto no Senegal como na Guiné-Conacri. Além disso, sabemos que eram duríssimas as condições de vida tanto das populações controladas pelo PAIGC como pelos guerrilheiros... A propaganda para consumo externo, naturalmente, contava outra história...  

Fonte: Nordic Africa Institute / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)




1. Pensamos que terã ainda algum interesse. para os nossos leitores,   saber como é que um pequeno partido revolucionário (o PAIGC) de um pequeno país de África, a Guiné-Bissau, território sob administração portuguesa (e então com cerca de meio milhão de habitantes) caiu nas "boas graças dos suecos"… 

Tor Sellström, do Instituto Nórdico de Estudos Africanos, num texto de 290 páginas, publicado em português, em 2008, conta-nos essa história, uma história que interessa, pelo menos, aos suecos, aos portugueses e aos guineenses... 

Vamos continuar a segui-lo, reproduzindo, com a devida vénia,  mais um  excerto do seu livro. Aproveitamos para  chamar a atenção para alguns factos e dados que merecem a nossa contestação ou reparo crítico, nomeaadamente quando o autor fala do trrajeto do PAIGC e do seu líder histórico, não citando fontes independentes e socorrendo-se apenas das "lendas & narrativas" do PAIGC... Eis alguns exemplos:  (1) a greve dos trabalhadores portuários do Pijiguiti e o papel do PAIGC; (ii) a batalha do Como: (iii) o controlo de 2/3 do território e de 400 mil. habitantes por parte do PAIGC; (iv) as escolas, as clínicas e as lojas do povo nas "áreas libertadas"; (v) o assassassinato de Amílcar Cabral.  etc.

O texto, de 290 páginas, tem muitas, demasiadas, notas de pé de página, úteis (do ponto de vista documental) mas maçadoras, que o leitor poderá dispensar ou apenas ler na diagonal.. Em todo o caso, mantivemo-las. 

Os negritos são nossos: ajudam a destacar alguns dos pontos importantes da narrativa. O "bold" a vermelho são passagens controversas, que são uma chamada de atenção para o leitor, devem merecer um comentário crítico (ou o recurso a leituras suplementares). 

Corrigimos os excertos seguindo o Acordo Ortográfico em vigor.

Para já aqui ficam os nossos agradecimentos ao autor e ao editor, Nordiska Afrikainstitutekl (em inglês, The Nordic Africa Institute).

_______________

Ficha ténica: Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Nordiska Afrikainstitutekl, Uppsala, 2008, 290 pp. Tradução: Júlio Monteiros. Revisão: António Lourenço e Dulce Åberg. Impresso na Suécia por Bulls Graphic, Halmstad 2008ISBN 978–91–7106–612–1.

Disponível em https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:275247/FULLTEXT01.pdf

(Também disponível na biblioteca Nordiska Afrikainstitutekl (ou Instituto Nórdico de Estudos Africanos) aqui, em "open acess" .)

Resumo do excerto anterior (*):

Com base numa decisão parlamentar aprovada por uma larga maioria, a Suécia tornou-se em 1969 o primeiro país ocidental a dar ajuda oficial aos movimentos nacionalistas das colónias portugueses (MPLA, PAIGC, FRELIMO). O PAIGC vai-se tornar o principal beneficiário dessa ajuda (humanitária, não-militar). Muito também por mérito de Amílcar Cabral e da sua habilidade diplomática.  Até então, e sobretudo na primeira metade da década de sessenta,  o debate na Suécia sobre a África Austral  tinha quase exclusivamente sido centrado na situação na África do Sul, onde vigorava o apartheid.

O êxito da campanha contra a participação da empresa sueca ASEA no projecto de Cahora Bassa em Moçambique, por volta de 1968–69, na altura em que decorria a guerra do Vietname, levou a que os principais grupos de pressão (“Grupos de África”,  oriundos de cidade como Arvika, Gotemburgo, Lund, Estocolmo e Uppsala) se  ocupassem quase em exclusivo da luta armada nas colónias portuguesas, com destaque para a Guiné-Bissau.



 Excerto do índice (pág. 4)

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno

Pág.

As colónias portuguesas no centro das atenções

138

A luta de libertação na Guiné-Bissau

141

Primeiros contactos

144

Caminho para o apoio oficial ao PAIGC

147

Uma rutura decisiva

152

Necessidades civis e respostas suecas

154

Definição de ajuda humanitária

157

Amílcar Cabral e a ajuda sueca

161

A independência e para além dela

168

 

A luta de libertação na Guiné-Bissau
(Tor Sellström, op cit., pp. 141-143)




(...) Tal como os outros territórios em África submetidos ao controlo de Portugal, a então chamada ”Guiné portuguesa” e as ilhas de Cabo Verde (13) foram, em 1951, constitucionalmente incorporadas enquanto ”províncias ultramarinas” na metrópole portuguesa.

Esta démarche, que, no fundo, foi uma manobra do regime português destinada a perpetuar o domínio colonial, não se traduziu em qualquer benefício para os habitantes desses territórios, antes pelo contrário. 

Comentando o ”absurdo da nossa situação”, Amílcar Cabral declarou em 1961 que os colonialistas portugueses tentam convencer o mundo de que não têm colónias e de que os nossos países africanos são ”províncias portuguesas”. [...] Quando o país colonizador tem um governo fascista, quando o povo desse país é em grande parte analfabeto e não conhece nem usufrui de direitos humanos fundamentais [...]; e quando, para além disso, a economia da metrópole é subdesenvolvida, tal como acontece em Portugal, a violência e as mentiras atingem níveis sem paralelo e a falta de respeito pelos povos africanos não conhece limites( 14).

Tal como em Angola e Moçambique, Portugal governou com punho de ferro na Guiné-Bissau e quaisquer protestos foram esmagados sem contemplações. Em finais dos anos cinquenta, a polícia secreta do regime, a infame PIDE (15), estava já instalada em Bissau e começava a constituir a sua rede de informadores, semelhante à que já funcionava em Portugal. Daí resultou que a ”Guiné portuguesa” não tenha sido poupada à violenta repressão levada a cabo pela polícia e aos massacres que as populações da parte austral do continente conheceram em 1959–60. 

Em agosto de 1959, cerca de 50 estivadores em greve no Pijiguiti foram mortos pela polícia portuguesa. Tal como aconteceu em casos deste tipo na África Austral, o massacre teve consequências muito profundas.

Um mês a seguir aos assassinatos, os militantes do PAIGC realizaram uma reunião em Bissau, na qual se decidiu libertar a Guiné e Cabo Verde ”por todos os meios possíveis, incluindo a guerra” (16).

O PAIGC era o mais antigo de todos os movimentos de libertação nas colónias portuguesas em África. Inicialmente designado Partido Africano para a Independência (PAI), foi formado em Bissau em Setembro de 1956, por um pequeno grupo de ativistas, sobretudo de origem cabo-verdiana, em torno da figura de Amílcar Cabral, três meses antes da fundação do MPLA de Angola.

Apesar de existirem e se terem feito notar outras organizações nacionalistas, nomeadamente a FLING (Frente para a Libertação e Independência da Guiné), tinham quase todas a sua base no vizinho Senegal e não tinham atividade na própria Guiné-Bissau (17).  Tal como acontecia com a FRELIMO de Moçambique, mas em contraste com o MPLA de Angola, o PAIGC era o movimento de libertação claramente dominante. Por isso, juntamente com o facto de levarem a cabo uma estratégia baseada em preceitos político-militares claros (18), a organização de Cabral veio dar grande coesão ao movimento de libertação.

Importante neste contexto foi o facto de a causa anticolonial não ter sido nunca complicada de forma importante por questões relacionadas com colonos. O número de residentes portugueses era extremamente baixo, nunca tendo ultrapassado os 2.000 civis europeus no território, sendo a maioria eram administradores coloniais, mais do que colonialistas (19)

Sob a liderança de Amílcar Cabral (20), o PAIGC adquiriu grande visibilidade na altura da greve do Pijiguiti, na qual participou intensamente. Contudo, a repressão que o movimento viria a sofrer a seguir obrigou a liderança do movimento a sair do país. Cabral fundou o quartel do PAIGC no exílio em 1960 em Conacri, capital do país vizinho ao sul da Guiné-Bissau, a francófona República da Guiné (21).

Seguiu-se um período de intensa mobilização política junto dos camponeses no sul da Guiné-Bissau, em combinação com atos de sabotagem e de desobediência civil. Em janeiro de 1963, o PAIGC deu início à fase de luta de libertação nacional por via armada, com um ataque ao quartel do exército português em Tite.

As vitórias militares do PAIGC seguiram-se umas às outras muito rapidamente. Seis meses depois de começar a guerra, o Ministro português da Defesa, o general Gomes de Araújo, espantou o seu governo ao admitir publicamente que os nacionalistas tinham tomado o controlo de uma parte significativa da colónia (22).  

No início de 1964, o moral em Lisboa sofreu um novo revés quando o PAIGC rechaçou um contra-ataque em larga escala contra a ilha de Como, anteriormente ocupada pelos nacionalistas na sua ofensiva militar. Nessa operação tomaram parte pelo menos 3.000 efectivos do lado português (23).

A batalha pelo controlo de Como marcou um ponto de viragem. A partir dessa altura, as zonas libertadas do sul da Guiné-Bissau permaneceram firmemente nas mãos do PAIGC, enquanto os portugueses, que acabariam por atingir uma presença de cerca de 30.000 efetivos num país com um pouco mais de meio milhão de habitantes, concentraram a sua atenção na defesa da capital, num conjunto de posições fortificadas e na utilização do seu poder aéreo.

Por volta de meados dos anos sessenta, altura em que a situação militar começou a estabilizar-se, o PAIGC controlava cerca de metade do território nacional, onde tinha em funcionamento uma administração e serviços sociais próprios, incluindo cuidados de saúde e educação.

Para que fosse possível desenvolver estas atividades era essencial que o movimento obtivesse ajuda de fora (24) e foi em resposta a esse pedido que o governo sueco decidiu, em meados de 1969, aumentar o nível de ajuda humanitária ao PAIGC.

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(11) Ethel Ringborg: Memorandum (”Stöd till befrielserörelser”/”Apoio aos movimentos de libertação”), Ministério dos Negócios Estrangeiros, Estocolmo, 7 de Setembro de 1971 (MFA). A fazer fé numa nota manuscrita, fica a sensação de que foi escrito como ”informação de base” para o Ministro dos Negócios Estrangeiros, que se fez representar na reunião do Comité Consultivo da Ajuda Humanitária (CCAH), realizada duas semanas depois.

(12) A ajuda oficial, ainda que reduzida, ao ANC (iniciada em 1973), à SWAPO (1970), à ZANU (1969) e à ZAPU (1973) antecedeu o reconhecimento, dado a esses movimentos pelos AGIS entre três e seis anos depois.

(13) Situadas no Atlântico, a cerca de 600 quilómetros a nordeste da Guiné, as ilhas de Cabo Verde tinham, no início dos anos sessenta, uma população total de pouco mais de um quarto de milhão de pessoas, maioritariamente de origem mista africana e portuguesa. A partir de finais do século XV, o colonialismo português ligou estas ilhas, de uma forma íntima, à Guiné, no continente africano. Muitos cabo-verdianos participavam ativamente no PAIGC, a nível da liderança, mas não só. Apesar de ter nascido na Guiné, o próprio Amílcar Cabral era de origem cabo-verdiana.

Tal como o nome indica, o PAIGC destacava a unidade dos dois territórios mas, além da propaganda política e de algumas atividades, o movimento de libertação nunca tentou incluir as ilhas na luta aberta pela libertação. Cabo Verde continuou sob domínio português até ao golpe de estado em Lisboa, em Abril de 1974, o que contribuiu para alargar o fosso entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau após a independência, e acabaria por levar à separação formal no início de 1981.

(14) Amílcar Cabral: Revolution in Guinea: An African People’s Struggle (”Revolução na Guiné: A luta de um povo africano”), Tomo 1, Londres, 1969, p. 10.

(15) Polícia Internacional e de Defesa do Estado.

(16) Basil Davidson: The Liberation of Guiné: Aspects of an African Revolution, Penguin African Library, Harmondsworth, 1969, p. 32.

(17) A FLING concentrou uma grande parte das poucas energias que tinha na crítica da liderança ”não-africana” do PAIGC, ou seja, o facto de Cabral e outros líderes serem mestiços cabo-verdianos. Sediada em Dakar, capital do Senegal, a FLING recebia um apoio considerável do presidente Léopold Senghor que, durante toda a guerra de libertação na Guiné-Bissau, manteve as suas opções políticas abertas, distribuindo os seus favores entre a FLING e o PAIGC.

(18)  Ver Lars Rudebeck: Guiné-Bissau: A Study of Political Mobilization, Scandinavian Institute of African Studies, Uppsala, 1974.

(19) Norrie MacQueen: The Decolonization of Portuguese Africa: Metropolitan Revolution and the Dissolution of Empire, Longman, Londres e Nova Iorque, 1997, p. 37.

(20) Nascido na Guiné-Bissau em 1924, Amílcar Cabral foi para Lisboa em 1945 para estudar no Instituto Superior de Agronomia, formando-se em 1952 com notas extraordinárias. Em Portugal, Cabral participou ativamente em grupos políticos e culturais africanos clandestinos e formou em 1951, juntamente com Mário de Andrade e Agostinho Neto, de Angola, e Marcelino dos Santos, de Moçambique, o Centro dos Estudos Africanos em Lisboa. Descrito como o ”berço dos líderes africanos”, o Centro de Estudos Africanos juntou os futuros líderes do PAIGC, MPLA e FRELIMO e abriu o caminho para a constituição de outras organizações, tal como o Movimento Anti- Colonialista, formado por Andrade, dos Santos e Cabral em 1957 e, mais tarde, a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), no ano de 1961.

Depois de se formar, Cabral foi para a Guiné para chefiar uma estação de pesquisa próxima de Bissau, tendo levado a cabo um estudo agrícola da colónia em 1953–54. A missão, bem como as repetidas visitas a Angola como consultor agrícola para várias empresas entre 1955 e 1959, puseram-no em contacto direto com as realidades dos camponeses africanos, experiência da maior importância para o desenvolvimento do seu raciocínio político. Cabral, em conjunto com Aristides Pereira, o seu irmão Luís e mais algumas pessoas, fundou o PAI/PAIGC em Bissau, em setembro de 1956, acabando por ser nomeado seu secretário-geral. Nesse mesmo ano, participou também no processo que acabou por conduzir à formação do MPLA em Luanda, a capital de Angola.

Após o massacre do Pijiguiti, em agosto de 1959, os líderes do PAIGC foram forçados a exilar-se e, em maio de 1960, Cabral fixou-se em Conacri, capital da vizinha República da Guiné, de onde liderou a luta de libertação. Cabral viria a ser assassinado a 20 de Janeiro de 1973, em Conacri.

Para mais informações sobre a vida de Amílcar Cabral consulte Amílcar Cabral: Revolutionary Leadership and People’s War de Patrick Chabal, African Studies Series, Cambridge University Press, Cambridge, 1983.

(21) Para distinguir a República da Guiné, país independente, da Guiné ”portuguesa”, referimo-nos à segunda como Guiné-Bissau e à primeira apenas como Guiné. O MPLA de Angola também criou o seu quartel-general no exílio em Conacri em 1960, transferindo-o no ano seguinte para Léopoldville (Congo).

(22) MacQueen op. cit., p. 38.

(23) Chabal op. cit., p. 59.

(24) Além do mais, o PAIGC foi responsável pelo aumento constante do número de refugiados tanto na Guiné como no Senegal.

 [ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G ]

2. Em contraponto leia,-se estes excerts do 1º livro da CECA:


CECA (1988) > Campanhas de África (1961-1974)  – Breve síntese


(…) c. Guiné (pp. 116- 121)

A partir de 1958, constituíram-se, no estrangeiro, diversos Movimentos que visavam obter a independência da Guiné Portuguesa.

Alguns deles usufruíam do apoio de Dacar: União Popular da Guiné (UPG), fundada em 1958; União Democrática Cabo-verdiana (UDC), em 1959; Movimento de Libertação da Guiné (MLG), em 1961, e a União dos Naturais da Guiné Portuguesa (UNGP), em 1962. Outros apoiavam-se em Conakry: o Movimento de Libertação da Guiné e Ilhas de Cabo Verde (MLGCV), fundado em 1959 e o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), fundado em 1956 por Amílcar Cabral .

Após várias vicissitudes, que incluíram reagrupamentos de alguns destes Movimentos, a partir de 1962, ficaram atuando apenas o PAIGC e a Frente de Libertação para a Independência da Guiné (FLING). Pode dizer-se mesmo que, a partir desta data, a luta armada assou a ser conduzida exclusivamente pelo PAIGC, que acabou por ser o único a lutar em todos os campos.

Contudo, é o Movimento para a Libertação da Guiné (MLG) que efetua, em 1961, as primeiras acções terroristas em S. Domingos e, uns dias depois, em Susana e Varela. Ainda que sem outra finalidade aparente que não fosse a de roubar, estes atos provocaram a saída de muitos nativos para a República da Guiné e para o Senegal (97).

Há, porém, antecedentes. Em 3 de Agosto de 1959, ocorrera a greve de estivadores de Pijiguiti (Bissau), reprimida pelas forças da ordem. Embora se considere que este acontecimento não teve uma relação direta com os movimentos nacionalistas, tanto o MLG como o PAIGC se atribuem a responsabilidade deste incidente, que tem vindo a ser reivindicado por qualquer destes partidos. A data é celebrada pelo PAIGC como o dia nacional da revolução e os elementos grevistas, que foram mortos, são glorificados como os primeiros "mártires da Pátria".

De qualquer forma, pode dizer-se que este acontecimento ateou o rastilho que vai fazer eclodir, dois anos mais tarde, a luta contra a autoridade portuguesa (98).

Em princípios de 1963, voltaram à atividade os grupos do MLG com várias incursões na Província. Revelaram-se de novo em fevereiro e março de 1964 em ataques a tabancas, mas devido à ação enérgica dos moradores, apoiados pelas NT, estes não resultaram (99).

Em meados de 1962 e no Sul da Província, o PAIGC tinha feito a sua estreia com armas e intensificava o seu já grande esforço de propaganda e de aliciamento das populações, iniciado clandestinamente na década de cinquenta. Na noite de 30 jun / 1 jul desse ano, desencadeia as primeiras ações no Sul da Província partindo da República d Guiné (100).

Em 1963, aumenta a sua atividade no Sul e executa as primeiras ações contra as nossas tropas (ataque ao aquartelamento de Tite e emboscadas) (101). Em meados desse ano, coloca os primeiros engenhos anticarro e leva a efeito ações a N do rio Geba (Oio).

Em 1964, alarga a sua atuação para o Norte a partir do Oio, até à fronteira com o Senegal, criando assim condições para poder ser reabastecido a partir deste território. Iniciou também a sua atividade no canto NE da Província e na área do Boé, visando pressionar a etnia fula, pouco recetiva à ação subversiva do PAIGC, e surge pela primeira vez com o chamado "exército popular", numa ação sobre Guileje (102).

Nos anos que se seguiram, o PAIGC, que sempre beneficiou de um indiscriminado apoio de diversos países (principalmente os de Leste e os Africanos), intensificou a sua ação alastrando a sua influência militar a novas áreas, obrigando as nossas tropas a um constante esforço que exigiu apreciáveis reforços.

O PAIGC foi dispondo sempre de melhor armamento e de maiores efetivos em pessoal. E foi melhorando também as suas formas de atuação. Pela colocação constante de engenhos anticarro e antipessoal em todos os itinerários por onde se deslocavam as nossas forças ·e pela frequente flagelação dos meios terrestres, aéreos e navais que tinham de atuar na Província, os deslocamentos das nossas forças, quer para atividade operacional quer por simples razões administrativas e  logísticas, tornaram-se, com o correr dos anos, sucessivamente mais difíceis e dispendiosos.

Facilitaram o desencadear da insurreição e o desenvolvimento da luta alguns fatores que, num território de tão diminutas dimensões como a Guiné, assumiram especial importância. Entre eles, destacam-se:

  • grande densidade populacional (exceto no Sul) e fraca estrutura administrativa enquadrante;
  • enorme variedade de grupos étnicos, bem diferenciados e independentes e com dialetos próprios;
  • rede de vias de comunicação muito pobre e escassa;
  • arborização densa, na maior parte do território;
  • densa rede de rios e canais, dificultando extraordinariamente a movimentação por terra e tornando as deslocações por via aquática morosas e cheias de perigos;
  • amplitude diária de marés invulgarmente grande, que fazia sentir s seus efeitos não apenas no litoral mas muito para o interior, ao longo dos cursos de água, criando importantes problemas diários para deslocações, quer em terra quer nos rios;
  • recursos locais escassos, sobretudo para alimentação;
  •  clima depauperante e grande risco de doenças tropicaisterritório pequeno e extensa fronteira terrestre, permitindo rápidas incursões e a fuga para os países vizinhos apoiantes. 

Em 1969, a luta que o PAIGC nos impunha era, sem dúvida, muito dura. Todavia, as tropas portuguesas - brancas ou pretas – ocupavam todo o território e, embora com dificuldades nalgumas zonas, movimentavam-se em todo ele.

Por toda a parte continuavam a existir populações fiéis às autoridades, ou junto aos nossos aquartelamentos ou isoladas - e, conforme as zonas, constituídas ou não em autodefesa.

A partir de 1970, é incrementada a construção de aldeamentos, onde se proporcionava assistência escolar e sanitária às populações nativas. Ao mesmo tempo, são lançados os "Congressos do Povo", onde, por duas vias diferentes (a regional e a étnica) e em escalões diferentes (local e provincial) as populações expõem os seus anseios e preocupações e apresentam sugestões para a sua valorização social. Os congressos - o último dos quais se realizou entre 21 de Fevereiro e 10 de Abril de 1974 - eram autênticos elos de ligação entre o povo e o governo e, através deles, os povos participavam na vida da comunidade.

Em 1973, com o início do emprego dos mísseis terra-ar, o PAIGC atingiu o auge da sua atuação, tornando difíceis os movimentos da nossa força aérea, o que se refletiu no desenvolvimento das operações terrestres.

Ao mesmo tempo que o apoio internacional dado ao PAIGC lhe foi permitindo reforçar e alastrar a sua ação, fomos impondo e alterando o nosso dispositivo militar na Província e desencadeando medidas para acelerar o progresso da população da Guiné. Tais medidas de carácter militar, político-administrativo, social e psicológico, permitiram que a defesa fosse conduzida com a colaboração de uma boa parte da população.

O próprio inimigo o reconheceu. E, em diversas alturas, houve mesmo claras e importantes manifestações do desejo de interromper a luta por parte de elementos proeminentes das forças que se batiam contra nós, chegando a efetuar-se contactos importantes para estudo da forma de se avançar nesse campo.

Mas estas intenções não resultavam, porque outros elementos inimigos, pela força, faziam calar aquelas vozes. O próprio dirigente do PAIGC, engenheiro Amílcar Cabral, que tinha, por mais de uma vez, manifestado abertura para um determinado tipo de solução para o conflito, chegando a estabelecer alguns contactos com as nossas autoridades, acabou por ser eliminado em 1973 por elementos radicais do seu partido.

Em abril de 1974, a situação na Guiné requeria um maior reforço do nosso potencial militar e o inimigo beneficiava de uma cada vez  maior ajuda de diferentes países, nomeadamente dos que queriam afastar de vez a África da Europa Ocidental.

 Acoitava-se em certas zonas de refúgio, que considerava "áreas libertadas", e cuja superfície exagerava para efeitos de propaganda, dizendo que elas atingiam, na totalidade, dois terços da área do território.

A verdade, porém, é que, apesar de todas as dificuldades, as NT · tinham acesso a todo o território, embora com medidas de segurança variáveis conforme as regiões. Também havia outros aspetos que nos eram favoráveis, de que se salientam:

  • generalizada ausência de ódios raciais, sendo fácil a convivência do português europeu com os nativos da Guiné e apreço por parte destes pelo esforço que ia sendo feito para melhorar as suas próprias condições de vida e a humanidade e generosa igualdade com que, sobretudo no meio militar, eram tratados;
  • coesão em cada um dos diferentes grupos étnicos e validade da sua estrutura hierárquica tradicional, que tinha consciência das características positivas da atuação dos portugueses:
  • participação, na maioria dos casos voluntária, de muito importantes efetivos humanos naturais da Guiné (importantes pelo número e pela qualidade) que não atuaram apenas enquadrados nas unidades normais do Exército destacadas para a Guiné.

De facto, quanto a este último ponto, havia unidades em que, sendo os oficiais e sargentos pertencentes aos quadros normais do Exército, todas as praças eram naturais da Guiné..

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 1.º Volume;  Enquadramento Geral. Lisboa, 1988, pp. 116-121 (Com a devida vénia...).

Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G ]

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quinta-feira, 30 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24178: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte V: O "making of" do "Labanta, Negro!", um filme italiano, de Piero Nelli (1926-2014), a preto e branco, de estética tardo-neorrealiista, e que serviu que nem uma luva à propaganda do PAIGC

"Labanta, Negro!" > Fotograma, 38m 28 s > A despedida do realizador italiano Piero Nelli


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 30m 58 s > 11 de fevereiro de 1966 > 6h30 > Partida para a emboscada às obras da TECNIL na estrada Mansoa-Mansambá


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 31m 21 s >  A preparação da emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 32m 06s >  A preparação da emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 32m 58s >  A emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 30m 31s >  Panfleto, manuscrito, convidando os militares portugueses  à deserção: "Amigo desconhecido: Com este papel podes estar seguro do teu bom acolhimento em caso de deserção". Assinado: PAIGC.


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 37m  21s > "Quartel-General do Norte"> 13 de fevereiro de 1966 > As despedidas...  À  italiana?

Fotogramas do documentário de Piero Nelli (1926-2014), "Labanta, Negro! " (Itália, 1966, 38' 43''). O filme ganhou o prémio do melhor documentário do ano no Festival de Veneza. Filmado a preto e branco, nas zonas controladas pelo PAIGC  (no Oio), na então Guiné portuguesa, de 2 a 15 de fevereiro de 1966, é um documentário de estética tardo-neorrealista, que o partido do Amílcar Cabral soube explorar habilmente como "arma de propaganda".  

Segundo a CECA (2014, pág. 372) (*), "o ano de 1966 foi considerado pelo PAIGC como o ano da informação, tendo desenvolvido uma intensa e bem orientada campanha de propaganda 'visando esclarecer a opinião pública mundial com testemunhos irrefutáveis'. Para tal estiveram no Boé e em Quitafine vários jornalistas e cineastas africanos, franceses, americanos, ingleses, italianos, holandeses e soviéticos que produziram artigos e filmes - documentários sobre aspectos da luta e do nível de realizações sócio-económicas do PAIGC, que mais tarde deram origem a publicações nas editoras francesa 'Maspero'
e americana 'Africa Report«, entre outras".

Por lapso, a CECA não menciona a visita desta equipa italiana, à região do Oio, o que nos parece lamentável... No nosso blogue, já tinha havido duas anteriores referências a este filme, talvez o mais famoso dos que se fizeram durante a guerra  (**).



"Labanta,Negro!" > O filme serviu objetiva e intencionalmente a propaganda do PAIGC:  foi apresentado pelos autores como um "diário de paz e de guerra" (sic), filmado entre 2 e 15 de fevereiro de 1966, tendo por protagonistas os guerrilheiros da "província portuguesa do ultramar" da Guiné Cabo-Verde (sic, como se fora um só território)... O documentário (que não tem qualquer perspetiva crítica, é claramemnte "engagé", deliberadamente "militante" ou "não independente") foi, além disso, acolhido pelo Comité de Descolonização da ONU, reunido em Argel, de 16 a 21 de junho de 1966, "como prova testemunhal sobre a situação" da colónia da Guiné Cabo-Verde (sic).

Edição (e legendagem): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Continuação da publicação de notas avulsas de leitura do livro "Crónica de Libertação", de Luís Cabral (**):

O documentário "Labanta, Negro!", filmado na região do Oio, entre 2 e 15 de fevereiro de 1966, por dois cineastas italianos 

No início de 1966, Luís Cabral (LC) está em Dacar, é o responsável pela supervisão da Frente Norte, cabendo-lhe a missão de tentar melhorar as difíceis relações do Senegal com o PAIGC, ao tempo em que os homens de Amílcar Cabral (AC) ainda não tinham “livre trânsito” no pais de Senghor, estando acantonados apenas em Dacar e em Ziguinchor.

É então contactado pelo cineasta italiano Piero Nelli, que queria fazer um documentário sobre a “luta de libertação”. Vinha acompanhado do seu operador de câmara Eugenio Bentivoglio (pág. 259).

LC, depois de contactar o irmão, AC (não fazia nada sem o seu consentimento) e o Osvaldo Vieira, comandante militar da Frente Norte, dirigiu-se à base do Morés, acompanhado dos dois italianos. Eram três dias de viagem, com cambança (sempre perigosa) no rio Farim…

Ali, no Oio, era o chão dos oincas, “mandingas e islamizados” (sic) (pág. 260), com uma forte tradição de resistência contra o colonizador: recorde-se as “campanhas de pacificação” do capitão Teixeira Pinto, o “capitão-diabo”, em 1913-1915, por exemplo.

Em 1962, “o ano da grande repressão” (sic), as populações do Morés, cercadas pelas tropas coloniais, e sem armas para se defenderem, tiveram de se refugiar no Senegal. A “base central” do Morés era, por isso, mítica para o PAIGC (e de algum modo também para as tropas portuguesas).

A base, que o LC conhecia pela primeira vez, “estava situada num terreno irregular, onde pequenas saliências aqui e declives ali ofereciam uma certa proteção contra os bombardeamentos” (pág. 261).

O Morés estava rodeado de “oito quartéis” do inimigo, um dos quais Farim, apenas separado pelo rio do mesmo nome. Chico Mendes era o comissário político. Osvaldo Vieira o comandante militar da região (e aquele que LC conhecia melhor, dos tempos de Bissau: desde a adolescência, trabalhava na Farmácia Moderna, de que era diretora técnica a dra. Sofia Pomba Guerra, conhecida opositora do regime salazarista). O Inocêncio Cani, de etnia bijagó, o futuro “matador” de AC, era o responsável pela base. LC encontrou-se com ele pela primeira vez. Notou que, em relação a ele, LC, o Cani mostrou “um comportamento algo reservado” (pág. 261). Também conheceu nessa altura o Simão Mendes, “responsável da saúde” (pág. 262), que viria, nesse ano, a ser vítima mortal de um bombardeamento da base.

Apesar da receção calorosa que ele e os cineastas italianos tiveram no Morés, o LC não deixa de experimentar um sentimento de isolamento e desconforto: “quando eu decidia mandar chamar um ou outro camarada que conhecia bem, ficava com a sensação de que ele não estava à vontade, parecia ter medo de qualquer coisa” (pág. 262).

LC irá constatar, algum tempo depois, que a “disciplina rigorosa” que prevalecia na base, por alegadas razões de segurança, implicava também o recurso (frequente) a “castigos corporais”, a única maneira de prevenir a deserção de populações e guerrilheiros.

LC ficou impressionado com uma cena que observou, de um grupo de um dezena de homens e de uma mulher com o filho ao colo. Os homens tinham as mãos inflamadas das palmatoadas que acabavam de receber, castigo de que escapara a mulher por causa da criança (uma vez que a tinha de transportar).

LC terá ficado indignado, argumentando que o AC nunca aprovaria o uso de “castigos corporais”, prática que associava ao colonialismo. O Osvaldo Vieira “insistia que a nossa gente não compreendia outra linguagem e que o Amílcar era bom de mais” (sic)… e que não se agissem assim, com dureza, quer em relação aos combatentes, quer em relação à população, nos casos de infração às regras estabelecidas, “estavam perdidos” (sic) (pág. 265).

É uma delícia, esta explicação, a do Osvaldo Vieira, deitando por terra o “mito” das “regiões libertadas”…

Nas páginas 262-264, LC descreve, com algum detalhe e sentido de humor, as peripécias das filmagens do futuro documentário italiano “Labanta, Negro!”…

O Pierro Nelli (1926-2014) era um “antigo partisan das guerrilhas antifascistas”, na Itália de Mussolini e da ocupação nazi. Tivera conhecimento da luta do PAIGC, “ocasionalmente”, em Dacar. E estava agora entusiasmado com o que via nas florestas do Oio, e “altamente emocionado” pelo interesse e carinho com que o recebiam nesta visita. Viria a tornar-se “um admirador do nosso Partido” (pág. 262).

LC explicou-lhe que “na nossa terra não tínhamos montanhas para nelas instalar bases de guerrilha”… e que o Amílcar, seguramente (en)levado pelo “mito “ da Sierra Maestra, da ilha de Cuba, “dissera desde o início da luta que as nossas florestas seriam as nossas montanhas” (pág. 262).

De qualquer modo, ao deslocar-se na floresta o duo italiano tinha sempre alguém que ia à sua frente a assinalar ou remover os obstáculos, um tronco caído, uma cova mais funda, uma pedra, um ramo de árvore mais inclinada…

No plano de filmagens estava incluída uma sequència de guerra: “o encontro com as forças inimigas ia ser filmado, na estrada Mansoa-Mansabá, cujos trabalhos de alcatroamento avançavam com muita dificuldade, sob a protecção do exército colonial”.

Os cineastas ficaram a cem metros da estrada. Chegaram antes do romper do dia. Ficaram instalados “de maneira a ter bem claro na objectiva da câmara o ângulo onde deviam actuar os nossos camaradas já emboscados” (pág. 263).

A tropa, “apoiada com carros de assalto” (sic) (deveriam tratar-se de simples autometralhadoras Daimler, coisa que o LC não sabia distinguir), chegou primeiro que os operários, os técnicos e as suas viaturas (a empresa deveria ser a TECNIL onde, mais tarde, em 1977 irá trabalhar, como topógrafo, o nossso camarada António Rosinha).

Por inexperiência ou azar (para não dizer “nabice”), o operador de câmara ficou virado para oriente, donde vinham os primeiros raios de sol: 

(…) “Os reflexos desta perfurante luminosidade na objetiva da câmara cinematográfica fez com que ela fosse localizada pelo destacamento inimigo alguns segundos antes dos primeiros tiros da emboscada cuidadosamente preparada pelos nossos combatentes” (pág. 263).

Face ao intenso fogo que, de imediato, se desencadeou, de um lado e do outro, os cineastas tiveram que se retirar “precipitadamente” do local, “só tomando o fôlego quando se sentiram fora do alcance das armas inimigas” (pág. 264).

Na precipitação da retirada, o realizador perdeu o seu magnetofone, mas um dos guerrilheiros voltou depois ao local para o recuperar.

O aparelho registara os sons dos tiros produzidos durante a confrontação. E o operador também “registara imagens ao acaso, durante a retirada”, inadvertidamente, com a câmara ligada… É uma das sequências mais notáveis do filme de 38 minutos: “uma sequência plena de vida e de arte”, acrescenta o LC.

O operador de imagem, Eugenio Bentivoglio, não se cansava, já no regresso à base, de falar do medo, “la grande paura”, que experimentara, o maior de toda a sua vida, enquanto o realizador se mostrava mais calmo: pertencente a uma geração mais velha, conhecera a guerra e os seus horrores.

E num comentário, algo “naif” mas não menos fanfarrão, o LC (que nunca foi grande combatente, diga-se de passagem) acrescenta: a seu lado (do Piero Nelli), e ainda debaixo de fogo, “o comandante Joaquim Furtado (…) chamava a sua atenção para a beleza dos patos selvagens que esvoaçavam a alguns metros do lugar onde passavam, afastando-se do perigo iminente que vinha do lado da estrada” (pág. 264).

No dia seguinte, e para despedida do LC e dos seus amigos italianos, tudo acabou em bem, com um “grande comício” em que tomaram a palavra o Osvaldo Vieira e o Chico Mendes (tido por grande orador).

O Piero Nelli “chorou” ao deixar o Morés, garante o LC. E mais disse: que com o seu filme, o realizador italiano “ ia procurar ser o mais fiel possível, para transmitir ao espectador europeu que, como ele, nada sabia sobre a nossa luta, os sentimenmtos que vivera tão intensamente no nosso pais “ (pp. 266/267).

E arremata o LC:

 “Parece que conseguiu. O seu filme, ‘Labanta Negro’, título de um poema do cabo-verdiano Dambará (***), poeta das ilhas, recitado em Morés por um dos alunos, foi premiado com o Leão de Ouro do Festival de Veneza, como o melhor documentário do ano” (pág. 267).

Visto à distância de mais de meio século, parece ser um vulgar filme de propaganda, de estética tardo-neorrealista, que já não faz chorar ninguém…O realizador é incapaz do necessário distanciamento afetivo e do espírito crítico que deve ter o cinema documental… E a voz “off” do narrador, monocórdica, parece a de um (mau) locutor de serviço.

2. 
 O filme "Labanta Negro" (1966) (38' 44'')  em italiano, com falas em crioulo, está disponível no You Tube, na conta Archivio Audiovisivo del Movimento Operaio e Democratico, desde 21/03/2019.

Ficha técnica: Labanta Negro! 

Cópia integral: https://goo.gl/Q7PCy2 

Realização: Piero Nelli. 

Produção: Reiac Film, Itália. 

Ano: 1966. 

Duração: 38' 44''.

Aconselha-se a ver o documentário com as legendas em italiano, que são geradas automatiocamente (vd. definições). E uma vez que a narração é muita rápida, é preferível optar por uma reprodução mais lenta).

Sinopse (adapt. do italiano por LG): 

Em crioulo "Labanta, Negro!" (1966) significa "Levante-te, negro!". O filme, pensado como um diário, quer ser um testemunho da luta pela independência da colónia portuguesa da Guiné, a partir dos "territórios já libertados" (caso do Morés, por exemplo), onde a guerra e a actividade militar coexistem com a criação das primeiras estruturas de uma sociedade civil africana que se organiza na floresta, nas aldeias, nas savanas. 

O filme mostra, entre outras coisas, as "aldeias destruídas pelos bombardeamentos portugueses"  e os restos de um avião, um T6,  abatido em 1963 . 

Algumas sequências são dedicadas a uma reunião do PALGC, onde Luís Cabral intervém sobre a "luta de libertação"; também é registrado o depoimento de Osvaldo Vieira, comandante do Exército do Norte. As imagens de um confronto com uma patrulha portuguesa na estrata de Mansoa-Mansabá, em 11/2/1966, e do posterior regresso dos guerrilheiros à base do Morès (uma dramática sequência entre os minutos 30 e 34) encerram o documentário. 

Este documentário foi recebido pelo Comité de Descolonização da ONU, reunido em Argel, como prova testemunhal sobre a situação da "província ultramarina portuguesa" da "Guiné Cabo Verde" (sic).

No texto acima, seguimos as memórias do Luís Cabral para sabermos algo mais sobre o "making of" do filme, que teve na altura algum sucesso e contribuiu bastante levar a luta do partido de Amílcar Cabral (AC) ao conhecimento do público europeu, nomeadamente em Itália.  O filme teve alguma projeção, ao ganhar o prémio para o melhor documentário no Festival Internacional de Cinema de Veneza de 1966.
___________

Notas do editor:

(*) Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014), pág. 372.

(**) Vd. postes:



(***)  Kaoberdiano Dambará era o pseudónimo literário do poeta, escritor e advogado, cabo-verdiano,  lcenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, Felisberto Vieira Lopes (Santa Catarina, Santiago, 1937 – 2020), 


(...) Vieira Lopes/Kaoberdiano Dambará é uma personalidade marcante, única e incontornável da literatura e da advocacia cabo-verdiana. Escolheu-se aqui homenageá-lo apresentando as publicações onde ele assina com o pseudónimo poético revolucionário, escritas em fases marcantes da sua vida: Noti (1964), fase de euforia e de engajamento na luta pela independência; e A saída da Crise não é pelo Anteprojecto da Constituição (1980), fase de desencanto e de combate ao regime de partido único instaurado no país com a independência. (...)

(...) "Noti": Livro de poemas em crioulo, edição do Departamento da Informação e Propaganda do Comité Central do PAIGC, França 1964, com introdução de Ioti Kunta (pseudónimo de Jorge Querido), é uma das obras poéticas mais representativas da poesia engajada na luta de libertação da Guiné e Cabo Verde. (...)

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23609: (D)o outro lado do combate (68): os "Armazéns do Povo", mito ou realidade ?


Guiné ou Guiné-Conacri > Possivelmente numa base do PAIGC, no sul, na região fronteiriça ou mais provavelmente já em teritório da Guiné-Conacri > Visita de uma delegação escandinava às "áreas libertadas" > Novembro de 1970 > Transporte de sacos de arroz em viaturas soviéticas. Segundo a inteligência militar portuguesa, o PAIGC dispunha, na Guiné- Conacri, de cerca de 40 camiões russos (havia dois modelos, o Gaz e o Gil) , que faziam o transporte dos abastecimentos de Conacri até a Kandiafara e, depois de retirada de Guileje, por parte das NT, em 22 de Maio de 1973, até mesmo para lá da fronteira, utilizando o corredor de Guileje... 

O "grande celeiro do sul" abastecia de arroz as populações sob controlo do PAIGC; os excedentes eram exportados, nomeadamente para a região norte. Havia uma rede de "Armazéns do Povo" que ia de Conacri até ao interior das "áreas libertadas" (o seu número não ultrapassaria as escassas duas dezenas, desde 1964 a 1974). Essa rede, mal ou bem, funcionava e terá permitido o desenvolvimento de uma "economia de guerra"  de que muitos de nós, antigos combatentes portugueses, não fazia a mínima ideia...

Até ao fim da guerra, e pelos dados disponíveis (*), provenientes do próprio rgime, não haveria mais do que duas dezenas de "armazéns do povo" nas "áreas libertadas" (desconhece-se a sua locaização), para por volta de 1978 atingirem já um total de  de 129...


Fonte: Nordic Africa Institute (NAI)  / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI) (As fotografias, em formato jpg,  tem numeração, esta é a nº 28, mas não trazem legenda. Legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).


1. No livro de memórias do ex-cap inf Aurélio Manuel Trindade, ex-cmdt da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 (Bedanda, jul 65 / jul 67)  ("Panteras à Solta", de Manuel Andrezo, ed. autor, 2010, 339 pp), a palavra "arroz" aparece, obsessivamente, ao longo dos cerca de 70 capítulos ou histórias. 

Em Bedanda, em 1965/67, a população, maioritariamente fula, refugiada da guerra,  não cultivava arroz e passava fome, segundo o cap Cristo. O  arroz que se lá se consumia, vinha de barco,  de Bissau, ou então era o que era lavrado nas bolanhas em redor pela "população do mato" (maioritariamente balanta) controlada pelo PAIGC ou sob duplo controlo, e comprado pelos comerciantes locais às "mulheres do mato" que vinham à "povoação comercial" vender o que lhes sobrava (arroz, mandioca, mancarra, óleo)  e comprar o que lhes faltava (cana, tabaco, panos). Isto queria dizer que pelo menos no setor S3 (Bedanda), não havia "Armazéns do Povo" ou, se existiam, funcionava muito mal. Realidade ou mito,  os "armazéns do povo" foram um elemento importante da propaganda do PAIGC, nomeadamente para consumo externo. 

Em termos de segurança alimentar, e nomeadamente, no pós-guerra, no tempo do Luís Cabral, a continuação da experiência dos "armazéns do povo" terá sido mais um dos "elefantes brancos" da economia planificada. A tal ponto que acabaram por ser "privatizados" (em 1992) e hoje definitivamente extintos (segundo notícia da agência Lusa, de 1 de abfril de 2022)...

Do lado das NT ("nossas tropas"), na época, ao tempo dp governador e comandante-chefe  gen Arnaldo Schulz, a missão era (e iria continuaria  a ser no início do consulado de Spínola) "aniquilar, capturar ou, no mínimo, expulsar o IN, destruir todos os seus meios de vida e recuperar a população sob o seu controlo". O arroz, muito em especial, era destruído: era a base da alimentação da guerrilha e da população sob o seu controlo. O mesmo se passava com o gado e demais animais domésticos: às vezes salvavam-se as vacas, desde que fosse possível transportá-las para o aquartelamento mais próximo. (Spínola percebeu, tardiamente, que o terror não se combatia com o contra-terror...).

Leia-se estes excertos, retirados do livro acima citado, de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do hoje ten gen ref Aurélio Manuel Trindade):

(...) Logo os pelotões do Carvalho e do Oliveira dispersaram e se espalharam pela bolanha. Alguém tinha fósforos, fizeram-se tochas e com um rapidez incrível os homens iam de monte em monte e destruíam o arroz. A bolanha ficou em chamas. Os homens libertavam-se da tensão com que estiveram toda a noite e manhã. O arroz era a principal fonte de rendimento. Destruir o arroz era como destruir as fábricas no tempo da segunda grande guerra mundial. A companhia destruía sempre todo o arroz que encontrava na sua passagem. O capitão dizia que era mais importante destruir o arroz do que as casas. Estas podiam ser facilmente reconstruídas, mas o arroz representava o trabalho perdido de um ano e era preciso esperar pela nova colheita (...) (pág. 144) (Negritos nossos).

(...) "Muito preto e pouco branco, é tropa de Bedanda e é preciso ter cuidado. Muito branco e pouco preto é outra tropa. Outra tropa não mete tanto medo à população do mato nem aos guerrilheiros (...) (pág. 146) (Negritos nossos).

(...) O Capitão Cristo nem teve tempo de dizer mais nada. O Cordeiro e os seus homens
já iam a meio da bolanha, em direcção às LDM, com as vacas. Foi debaixo de fogo que
a tropa teve que embarcar, mas os guerrilheiros tiveram que assistir à coragem da tropa
de Bedanda que, nas suas barbas, lhes surripiou 14 vacas

A Marinha, depois de muita insistência, lá embarcou as vacas, ficando onze para a companhia de Bedanda e três para os marinheiros. Tudo negócio feito pelo Cordeiro. Iriam ter carne para alguns dias. 

A nossa vacaria ficava na área controlada pelos guerrilheiros, mas nós íamo-nos
abastecendo desta forma pouco ortodoxa, não tínhamos alternativa. Ou vacas
roubadas ou nada. Chegados à Companhia, cansados física e psicologicamente, o mais
difícil de acalmar era o capitão Cristo que dizia mal da companhia de Cufar e do
Comando do Batalhão. (...) (pág. 56).

Curiosamente, não aparece, nas 4 centenas do livro, qualquer referência aos famosos "armazéns do povo" de que o PAIGC se gabava de ter, em funcionamento,   nas "áreas libertadas",e em particular no sul do território... Se eles existiam, o cap Cristo e os seus homens da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 nunca os viram ou lhe prestaram a mais pequena atenção...

Vale a pena reproduzir aqui um excerto do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971 (**), documento classificado na época como reservado, e de que nos foi facultada uma cópia,   pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, cor inf DFA, na situação de reforma. 

O documento teve ampla divulgação no blogue, sob a série " PAIGC: Instrução, táctica e logística: Supintrep, nº 32, Junho de 1971".

Na altura, e por causa de alguns melindres de alguns dos nossos camaradas,  fizemos questão de sublinhar que a divulgação deste e doutros documentos sobre a organização e o funcionamento do PAIGC era meramente informativa, não implicando, da nossa parte, qualquer juízo de valor. 

Por outro lado, tivemos o cuidado de lembrar que  não se tratava  de um documento de PAIGC, mas sim das NT,  embora utilizasse fontes escritas e orais ligadas à guerrilha contra a qual  então combatíamos. A sua origem era o próprio Com-Chefe da então província portuguesa da Guiné. Tratava-se de um subintrep distribuído aos comandos das unidades do CTIG em junho de 1971 (Supintrep: Do inglês, Supplementary Intelligence Report, ou seja, Relatório de Informação Suplementar).

No Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares, há diversa documentação fotográfica sobre os "armazéns do povo". 


2. Subintrep nº 32, junho de 1971 > AGRICULTURA, PECUÁRIA E INSTALAÇÕES COMERCIAIS (*)

(1) Produção agrícola e pecuária nas “áreas libertadas”

Em todas as “áreas libertadas” do sul da província a produção das culturas alimentares tem registado elevado crescimento, tanto como resultado do aumento das superfícies cultiváveis com ainda em consequência de melhores cuidados atribuídos a essas culturas.

Efectivamente, apesar da redução do tempo útil de trabalho motivado pela crescente actividade das NT, muitas bolanhas têm sido aproveitadas, o que se traduz num aumento de produção de arroz em percentagens que chegam a atingir de ano para ano os 20%. 

As “áreas libertadas” do sul são mesmo já autosuficientes para satisfação das suas necessidades alimentares, sendo os excedentes da sua produção de arroz enviadas para o exterior, para distribuição a outros locais onde a produção não atinge os níveis necessários.

O mesmo não acontece no norte da província. Aqui a população, tradicionalmente mais ligada a outras culturas, não produz arroz em quantidades suficientes para se abastecer, pelo que são enviadas regularmente colunas à fronteira para transporte desse produto para o interior.

Outras culturas alimentícias, tais como mandioca, batata doce, milho e legumes, subsidiárias na ração alimentar da população, têm tido também apreciáveis aumentos de produção. O desenvolvimento da cultura de féculas e legumes abre novas perspectivas para a utilização de um sistema alimentar novo, reduzindo o uso do arroz, quer na frequência quer na proporção.

Ainda nas “áreas libertadas” do sul, nomeadamente nas regiões de Catió e Cacine, as populações têm-se dedicado ainda ao desenvolvimento das culturas frutíferas, tendo os cuidados prodigalizados no tratamento permitido a obtenção de uma abundante produção de anazes, bananas, papaias, laranjas, etc.

Igualmente se refere, dada a importância de que se reveste, a especial atenção que tem sido dada ao tratamento de gado e animais de criação.

Como factores decisivos no desenvolvimento da produção agrícola e pecuária que se verifica especialmente nas “áreas libertadas” do sul, refere-se, por um lado, a existência de agrónomos especializados na Rússia e Cuba e, por outro, o intenso trabalho político levado a efeito no seio das massas rurais, convencendo-as da importância que representa o desenvolvimento agrícola das “áreas libertadas”.

A fim de recompensar os que mais se esforçam no trabalho dos campos, o Partido institui prémios para os melhores produtores.


(2) Empresa de comércio geral (Armazéns do Povo)

Em fins de 1965 afirmava Amilcar Cabral:

“Na Guiné, em dois anos e meio de luta armada, libertámos cerca de metade do país. Nas regiões libertadas estamos a construir uma vida nova, temos várias dezenas de escolas, instalámos comércio para abastecer as populações em artigos de primeira necessidade através dos Armazéns do Povo, criámos serviços de assistência sanitária e vários outros organismos que definem o novo Estado em formação”.

O objectivo do PAIGC, ao levar a cabo estas iniciativas, foi o de criar condições que estabelecessem bases de uma sociedade nova. No que diz respeito aos Armazéns do Povo teve-se em vista a sua criação satisfazer as necessidades de abastecimento das populações, fornecendo-lhes artigos de uso corrente para seu consumo em troca de produtos agrícolas que, por sua vez, são trazidos para o exterior onde são vendidos, revertendo os lucros dessas transacções para os cofres do Partido.

Verifica-se, assim, que os Armazéns do Povo permitiram a valorização do trabalho do povo, na medida em que trouxeram uma solução ao problema da comercialização, da agricultura e artesanato, já que, como se referiu, os produtos agrícolas (arroz) e, provavelmente, os artigos de artesanato funcionam como moeda de troca.

Estes Armazéns não são contudo, em princípio, destinados a auferir lucros. Dando para já uma experiência útil na futura organização do comércio, os Armazéns do Povo têm como objectivo, na hora actual, servir como elo e ligação com as massas, representando por si só uma arma poderosa ao serviço dos interesse do povo e do Partido, não só do ponto de vista económico mas também, e especialmente, do ponto de vista político.

Através deles, na medida em que evita as transacções comerciais nos nossos estabelecimentos, o PAIGC procura o nosso "isolamento" ao mesmo tempo que garante a segurança das suas "áreas libertadas"

Dum modo sumário e face aos elementos disponíveis, é a seguinte organização e funcionamento da Empresa de Comércio Geral do PAIGC, a qual depende, para efeitos de organização do Departamento da Organização e Questões Internas e para efeitos da prestação de contas do Departamento de Economia e Finanças.

Esta tem em Conacri o órgão de abastecimento central – os Armazéns Centrais – e “antenas” em todas as “regiões libertadas” – Armazéns do Povo -, designados também por Depósitos, os quais são numerados, encontrando-se à frente deles um responsável, possuidor de conhecimentos genéricos de contabilidade.

Como se referiu, os Armazéns Centrais abastecem estes Depósitos com artigos de consumo corrente nomeadamente açúcar, sal, conservas, roupas e calçado, enviando à data da expedição dos artigos uma "factura" na qual constam discriminadas as quantidades e valor da mercadoria.

Muito embora seja utilizado o dinheiro, o mais vulgar é o sistema de permuta em que os podutos agrícolas, especialmente o arroz, ou mesmo o gado, funciona como "moeda" de troca, sendo os produtos obtidos na troca enviados aos Aramazéns Centrais com nota de remessa, local onde essa distribuição é devidamente escriturada em mapas dos quais se junta o Mapa de Distribuição de arroz.

Admite-se, para facilidade de transporte, que parte desses produtos sejam enviados directamente às bases logísticas sem passar pelos Armazéns Centrais, embora estes movimentos em mapa sejam sempre feitos nestes armazéns creditando-se às Bases que directamente receberam os produtos.

Todos estes movimentos são contabilizados, sendo feitas periodicamente inspecções tendentes a verificar a “situação” em que se encontram os depósitos.

Nestes, diariamente, é elaborado um mapa relativo às receitas diárias, no qual são escrituradas as mercadorias saídas e a entrada de produtos.

Ainda se conhece, nos movimentos dos Depósitos, um documento nota de crédito. (...)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos: LG] (***)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca > Rio Udunduma, afluente do rio Geba Estreito  > 1970 >  A  economia guineense dependia também da produção pecuária que por sua vez estava dependente da prática da transumância, prática essa que a guerra veio limitar ou inviar... 

As manadas de gado dos fulas, povo originalmente de pastores nómadas, eram um sinal exterior de riqueza e de status social do seu dono. Por essa razão, os fulas tinham tradicionalmente relutância em alienar esse património... Por morte do dono, os animais eram abatidos para alimentar o choro, uma festa que se prolongava por vários dias, dependendo da posição hierárquica do defunto na sociedade fula... 

Com a guerra, a entrada de dinheiro nas tabancas fulas fazia-se fundamentalmente por duas vias: (i) o pré dos soldados africanos e das milícias (a par do dinheiro que as lavadeiras recebiam); e (ii)  e as vendas de gado vacum aos militares portuguesas, compensando a quebra da produção da mancarra, devido à guerra... 

O porco era criado pelos povos animistas e ribeirinhos: balantas, manjacos, papéis... Havia por vezes conflitos com a população local, devido a abusos dos militares (que roubavam ou matavam vacas, porcos, cabritos ou galinhas)... Durante a Operação Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969), as populações sob controlo do PAIGC, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, sofreram grandes perdas de gado, para além da destruição de toneladas de arroz... Muitos animais foram abatidos a tiro, nalguns casos foram, inclusive, levados até ao aquartelamento do Xitole onde foram abatidos e consumidos.

Também não há referências, no relatório da Op Lança Afiada, a "armazéns do povo" no Sector L1,  nas áreas controladas pela guerrilha. A existirem, deveriam estar muito bem escondidos ou camuflados, em zonas de floresta-galeria, de difícil observação tanto aérea como terrestre.

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
__________

Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 
15 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16390: Notas de leitura (870): "Guiné-Bissau, Reconstrução Nacional", fotografias de Michel Renaudeau, Éditions Delroisse, Paris, 1978 (Mário Beja Santos)

(...) Falando do comércio interno, são referenciados os Armazéns do Povo, assim apresentados: “Nas zonas libertadas do país foram criados em 1964 os Armazéns do Povo, entidade comercial cujo objetivo era manter o abastecimento dos bens essenciais nas referidas zonas. Ao mesmo tempo, os Armazéns do Povo absorviam parte da produção gerada pelo setor agrícola. Após a libertação, os Armazéns do Povo, passaram a constituir a principal empresa do país, estendendo a sua atividade a todo o território nacional. De 20 postos comerciais em 1974, os Armazéns do Povo passaram atualmente a 129”. (...)