quinta-feira, 1 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6668: Estórias do Juvenal Amado (28): Ele voltará a crescer, ou a entrada na vida militar

1. Mensagem de Juvenal Amado* (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 19 de Junho de 2010:

Meu caros Luis, Carlos, Briote, Magalhães e restante Tabanca Grande
Foi bonita a festa pá mas há que voltar ao trabalho.

Assim uma pequena estória ligth que retrata a nossa entrada na vida militar.

O Zé Lourenço é meu amigo até hoje.
Encontro-o várias vezes quando vou buscar a minha mãe e ele está visitar um amigo comum, que inflizmente está muito doente.
Esse amigo trabalhou comigo na Crisal, mas hoje está agarrado a uma cadeira de rodas.
Práticamente só já mexe a cabeça, mas mesmo assim ditou estórias para crianças que uma funcionária do lar escreveu, e com elas, foi editado um livro muito bonito.

Vou pedir-lhe autorização para enviar à tertúlia uma das suas estórias
Também quero trazer o Zé ao nosso convívio.

Um abraço
Juvenal Amado


8.º Pelotão com o Asp. Of. Mil. Pimenta e o 1.º Cabo Miliciano Picado


ELE VOLTARÁ CRESCER

Cortei o cabelo num barbeiro perto da entrada do Convento de Sta. Clara, onde funcionava o CICA 4, onde naquele 9 de Junho de 1971 me apresentei para dar início à recruta e aos anos que se seguiram como militar.

Durante a viagem de comboio, o Zé Lourenço ria-se ao garantir aos outros recrutados, que eu entraria na porta de armas com o cabelo civil.

Foi visível o agrado com que o barbeiro já com alguma idade, meteu a máquina zero e cortou primeiro o lado esquerdo, para eu ver bem a diferença entre o antes e o depois. Sabe-se que os barbeiros nutriam alguma animosidade para com a malta que de longos cabelos lhes passava à porta e que nem para lá olhavam, por isso o natural regozijo dele.

Naquela cadeira para trás ficaram os longos cabelos, e a roupa também ao jeito do que se usava lá fora, que se vendia nos Porfírios em Lisboa. A mesma ficou no saco até que em Abrantes, o dito foi-me roubado por alguém que nessa mesma noite embarcou para Angola, no batalhão que eu ajudei a acarretar para o Rossio ao Sul do Tejo, em viagens sucessivas com uma Morris de toldo.

Voltando a Sta. Clara, foi um dia longo o da nossa chegada. Distribuição das fardas, botas, um talher, camas e caixas onde guardávamos as nossas coisas e era fechada com o famoso aloquete que se vendia na cantina e que eu até ali, sempre lhe tinha chamado cadeado. A caixa era arrumação para os nossos pertences e ficava debaixo do beliche.

Naquele dia os meus medos resumiam-se aos mais velhos, que viriam roubar-nos o que a eles já lhes faltava e ao não conseguir calçar e apertar as botas a tempo, para a formatura da manhã seguinte. Este facto para além do resto, contribuiu para que a nossa primeira noite fosse agitada, e ainda não tinha amanhecido, já eu estava à volta com os cordões das benditas botas.

Cedo aprendi que o talher para nada servia e passei a usar como os demais só a colher enfiada na bota. No bolso lateral das calças a caixa de pomada e escova, pois as botas ao fim da manhã e ao fim do dia, tinham que estar no mínimo pretas.
O resto das higienes eram mais difíceis como por exemplo tomar banho ou ao menos ter água para fazer a barba, que se queria irrepreensível. Só ao fim semana havia água com abundância e quando andávamos na instrução, para os faxineiros fazerem a limpeza da camaratas e retretes.
Rapidamente ganhamos a cor de terra e a lama depois de seca saía facilmente. Valha-nos isso.

O Zé Lourenço ficou no 6.º pelotão e eu no 8.º, éramos pois do 1.º subturno do 2.º turno de 71. O 1.º turno ficava na outra parede à esquerda de quem entrava na caserna, eram um mês mais velhos, por isso já considerados a «velhice».

Os beliches estavam encostados quatro a quatro e ainda hoje estou por saber o porquê de os percevejos atacaram violentamente o meu colega do lado, rapaz da Cálvaria, Porto de Mós, e nunca me tocaram a mim. As grandes batatas que ele apresentava, levaram-no várias vezes ao hospital militar.

Bem daí para a frente era extenuante o dia. Aulas de manhã em posição de descansar, mas nem na parede podíamos tocar. As flexões e abdominais, por castigo, sucediam-se por qualquer falha no código, ou por mudarmos o peso de uma perna para outra.
Ordem unida à tarde, mal por mal era por mim preferida. Marchas e marchas, pista de obstáculos, desarmar e armar a G3, bem como a instrução nocturna.
Saltávamos o fosso, a ponte interrompida, caminhávamos sobre o pórtico, rastejávamos debaixo do arame farpado, mas a minha maior tragédia foi a paliçada.

Saltar a paliçada tirou-me o sono durante as primeiras semanas, é verdade. Aquilo era digno de desenho animado quando eu ali chegava, todos desatavam a rir. Não era capaz, o que queriam que eu fizesse?

Um camarada ficava para trás para me ajudar a suprir este obstáculo.
Um dia saltei sozinho e que sabor a vitória, sim por eu não queria ser conhecido por pés ou cú de chumbo, que era pior.

Safei-me e passei ao anonimato depois de ter sido pelo o facto tristemente famoso.
Passei a dormir cada dez minutos, cada meia hora cada hora onde estivesse.

Já falei na estória anterior do famoso galho, mas não posso deixar de falar dele outra vez.

Depois de já termos saltado, caminhado, corrido, rastejado subido e descido cordas, saltado de carros em andamento, inexplicadamente continuávamos sem passar por ele.
Parecia uma sentinela firme e hirto.

O jornal da caserna já difundia que o referido obstáculo tinha sido proibido por ter caído lá um instruendo que partiu a coluna e mais não sei o quê. Ninguém sabia donde vinha semelhante noticia, mas à boa maneira da tropa, um dizia que tinha ouvido da boca de gajo a quem tinham contado, mas já não se lembrava quem.

Resultado, uma bela manhã, depois de já bem tratados de exercícios, pista de obstáculos, o nosso cabo miliciano Picado mandou ensarilhar as armas. Em bicha de pirilau, mandou-nos subir ao escadote de madeira tipo cadafalso, que já tinha tido melhores dias e por isso abanava por todos lados. Uma vez lá cima, à voz de comando do cabo Picado, - diga o seu nome e salte - lá saltei o galho. Bem só voltei a saltar quando me mandaram, outros houve, que o já desciam de cabeça para baixo, como o meu amigo Turquel, que dormia na cama por cima de mim.

No dia do juramento de Bandeira, eu e Zé Lourenço abraçamos as famílias, arrumamos as nossas coisas e rumamos ao RI6, na Estrada da Circunvalação, Porto.

Três anos mais tarde o cabelo voltou a crescer, só não voltaram os anos de alguma forma mal aproveitados, ainda que com muitas passagens saborosas.

Juvenal Amado

No dia do Juramento de Bandeira, e Juvenal Amado com o José Lourenço
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6606: Parabéns a você (121): Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CCS/BCAÇ 3872 (Editores)

Vd. último poste da série de 15 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6595: Estórias do Juvenal Amado (27): Os lugares e os amenos fins de tarde da nossa terra

Guiné 63/74 - P6666: (Ex)citações (83): Dois povos pacíficos, o da Guiné e o de Portugal (Amadu Djaló, nascido em Bafatá, em 10 de Novembro de 1940)


Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > Em primeiro plano, o Virgínio Briote e o Amadu Djaló, um e outro muito acarinhados por todos. Não sei o que é o que Virgínio, um homem sábio, europeu,  estava a pensar, mas possivelmente estava a organizar a sua resposta à questão, pertinente,  levantada pelo Amadau, outro homem sábio, africano: "Os portugueses, a alguns povos, deram-lhes novos nomes e apelidos, livros para estudar e consideraram-nos civilizados. Desta civilização não precisávamos, mas faltava-nos a cultura, porque a cultura, de onde sai não acaba e de onde entra não enche. E no nosso Alcorão está tudo, moral, comportamento cívico e civilização e nós não precisávamos de ser civilizados, o que nos faltava era escola para aumentar os nossos conhecimentos"...


Foto: © Luis Graça (2010). Direitos reservados


1. O Amadu Djaló, nosso camarada, falhou o encontro em Monte Real.  Ou melhor, foi a saúde dele que não o permitiu. O seu irmão Virgínio Briote inscreveu-o no encontro, e estava preparado para o trazer e levar, de carro. Como no ano passado.

Tínhamos pedido ao Joaquim Mexia Alves para reservar uma salinha, para a cerimónia de apresentação do livro dele aos amigos e camaradas da Guiné, reunidos sob o poilão da Tabanca Grande (Um poilão frondoso, generoso, e cada vez mais majestoso,  aonde se acolhe também o Amadu, futa-fula, velho combatente, nascido  em Bafatá, na freguesia de N. Sra da Graça, no dia 10 de Novembro de 1940, incorporado no exército português em 1962 e passado à disponibilidade em 1974)...

Mas, aos 70 anos, a saúde prega partidas, aos velhos combatentes. Só Deus sabe, dirá o Amadu, mas a verdade é que a vida lhe está a fugir. E o seu sonho ainda é ir morrer à sua terra. Os amigos (e muito em particular o nosso camarada Virgínio Briote) tudo têm feito para o ajudar a viver, com  dignidade, esperança e acesso a cuidados de saúde. Um momento alto, este ano,  em 15 de Abril último, foi o lançamento do seu livro de memórias, "Guineense, Comando, Português" (1ª edição, Lisboa,  Março de 2010).

O Virgínio Briote deu conhecimento, pessoalmente, ao Amadu, das inúmeras manifestações de carinho  e de apreço que lhe fizeram em Monte Real. O Amadu ficou comovido até às lágrimas e agradece a todos os amigos e camaradas da Tabanca Grande.
Entretanto, no próximo dia 10 de Novembro, queremos celebrar juntos o 70º aniversário do Amadu (se for essa a sua vontade e se a saúde lho permitir). Era bonito fazermos-lhe uma festinha, e transmitir-lhe o nosso carinho, amizade e camaradagem.  E, quem sabe, festejar com ele a 2ª edição do seu livro (**).

Espero que haja voluntários, na nossa Tabanca Grande,  para uma comissão ad-hoc, a constituir rapidamente, para esse efeito ... Pode ser um jantar de homenagem, aqui na área da Grande Lisboa, sem pompa nem circunstância, mas com muitos amigos e camaradas da Guiné, generosos e afectuosos. Nessa altura espero bem que a 1ª edição do livro esteja mais que esgotada (já se terão vendido mais de 700 exemplares).

Até lá, o Amadu promete que o coraçãozinho dele se vai portar bem. Para aqueles que ainda não compraram nem leram o seu livro (**), nem conhecem pessoalmente o Amadu, aqui fica mais um pequeno excerto, revelador da sabedoria deste homem dividido entre duas pátrias (ou melhor, que é capaz de dividir, pela Guiné e por Portugal, o seu sangue, a sua vida, a sua identidade, a sua história de vida)... Sei que o título do livro é comercial (uma concessão ao marketing do editor), mas também sei que o Amadu, sendo genuinamente um africano e muçulmano, também nos toca pela sua surpreendente portugalidade, que nada tem  de demagogia, assimilação forçada ou circunstancialismo.

2. Excerto de Amadu Bailo Djaló: Guineense, Comando, Português: 1º Volume: Comandos Africanos 1964-1974. Lisboa: Associação de Comandos, 2010. pp. 15-16 (Com a devida vénia ao autor e ao editor): (*)

(...) Nós, Povo da Guiné, antes da guerra, mal conhecíamos o Povo Português. Nunca nos juntávamos nas festas com os europeus, durante a presença portuguesa. Só quando se iniciou o conflito, começámos a ver os militares das companhias e dos batalhões, que nos acompanhavam como irmãos e como amigos. Festejávamos juntos, repartíamos o pão na mesma mesa, juntávamo-nos, em todas as ocasiões, boas e más.

Este povo pacífico, que agora vinha de Portugal e convivia connosco nos momentos de guerra, ficou a conhecer-nos melhor, trocávamos conhecimentos de vida diferentes, tratávamo-nos como irmãos.

Antes só os comerciantes e os funcionários do Estado vinham com as famílias para a Guiné. Nós éramos servidores, eles patrões e chefes. E a convivência entre nós, nesses anos, não era muita!

Os jovens da minha etnia [, futa-fula,], na então Guiné Francesa [, República da Guiné-Conacri, desde 2 de Outubro de 1958,] andavam todos em escolas europeias. Na Guiné Portuguesa, as portas das escolas só se abriram para nós, muçulmanos, com a vinda dos padres italianos.

Os portugueses, a alguns povos, deram-lhes novos nomes e apelidos, livros para estudar e consideraram-nos civilizados. Desta civilização não precisávamos, mas faltava-nos a cultura, porque a cultura, de onde sai não acaba e de onde entra não enche. E no nosso Alcorão está tudo, moral, comportamento cívico e civilização e nós não precisávamos de ser civilizados, o que nos faltava era escola para aumentar os nossos conhecimentos.

Depois que a guerra teve início começaram a desembarcar companhias e batalhões de militares vindos de Lisboa. Passámos a ter amigos europeus, quase todos militares simpáticos, tanto oficiais como sargentos e praças. Poucos eram os que não tinham amigos. Antes de ser incorporado, o meu único amigo branco era um oficial do Exércirto, o tenente Carrasquinha, em finais de 1961 [,que pertencia ao BCAÇ 238]. Ia a minha casa, foi o meu primeiro amigo. Depois a tropa continuou a desembarcar e fui tendo mais amigos. Convivíamos em festas, comíamos e bebíamos, cantávamos juntos e ficavam também a conhecer o Povo pacífico da Guiné.

Todos os europeus que regressaram deixaram lá pelo menos um amigo que pensa neles., E todos os que regressaram trouxeram consigo um amigo ou mais amigos, no fundo do coração, que ainda hoje pensa neles.

O Povo da Guiné também é diferente dos outros povos da África. Desde o início da guerra foram muito raros os casos em que o PAIGC matou civis brancos.

A guerra destrói um lado e constrói outro. Mas a destruição é sempre maior. Por isso é melhor evitá-la, o máximo que pudermos. Mas, se não fosse a guerra, nós também nunca viríamos a conhecer este Povo Pacífico, que é o português, e que nunca deixámos de recordar.

Vivemos com estas recordações e vamos morrer com elas.

Até agora, se Portugal for invadido, nós vamos defendê-lo com tudo o que estiver ao nosso alcance. Se a Guiné for invadida, faremos o mesmo. Eu acho que devemos estar cada vez mais unidos e mais fortes, Guiné e Portugal. (...)

_____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 3 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6634: (Ex)citações (65): Meu pai, meu herói (Sofia Carvalho, filha do nosso camarada J. Casimiro Carvalho, Ex-Fur Mil Op Esp., CCAV 8350, Piratas de Guileje, 1972/74)

(**) A 1ª edição (750 exemplares) está praticamente esgostada. No nosso V Encontro Nacional, venderam-se cerca de 35.   Os últimos exemplares pdoem ser procurados na Associação de Comandos (que foi o editor) ou nas Livrarias Bulhos (Preço: 25 € ).

Seria, entretanto, ter-se no dia em que o Amadu fizer 70 anos (em 14/11/2010) um 2ª edição, corrigida, melhorada e até aumentada (Sei que o Virgínio Briote tem uma surpresa...).

Associação de Comandos 
Secretaria: Avenida Duque de Ávila, 124, 4º Esquerdo

1050-084 LISBOA
assoc.cmds@mail.telepac.pt

Telef. (+ 351) 213 538 373

E ainda nas livrarias Bulhosa (Pode ser comprado pela Internet, envio até 48h)

Guiné 63/74 - P6665: Parabéns a você (128): Mensagens para a Tertúlia (José Firmino / Manuel Maia)

1. Mensagem de José Firmino (ex-Soldado Atirador da CCAÇ 2585/BCAÇ 2884, Jolmete, 1969/71) com data de 30 de Junho de 2010:
Caro Camarada Carlos Vinhal, para conhecimento da Tertúlia

Caros amigos camaradas,
Uma das melhores prendas da vida são a família, os amigos e tudo de bom que nos rodeia.

Ao festejar mais um aniversário, de muitos que ainda espero ter pela frente, me senti como nunca pois tive de facto tantos votos de parabéns: Por me sentir com tanta vontade de viver quero partilhar com todos vós a minha grande satisfação e deixar a toda Tertúlia o meu reconhecimento por toda amizade manisfestada.

São para mim estes pequenos grandes gestos que fazem de todos nós Homens que pensam e com um coração bondoso.

Reconhecidamente grato.
Firmino.

**********


2. Mensagem de Manuel Maia (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74), com data de 30 de Junho de 2010:
Camaradas,
Foi com o coração apertado que decidi escrever esta meia dúzia de palavras de agradecimento, que não conseguiria pronunciar, embargada que tenho a voz pela carga emocional que a vossa amizade evidenciada através dos telefonemas, mails e comentários ao trabalho do Carlos e a suprema arte do casal Pessoa, me causou...

É gratificante saber que temos amigos que nos momentos importantes das nossas vidas dizem presente, e nos fazem acreditar que o mundo é afinal uma coisa extraordinariamente bela e importante, e que a vida é bem mais interessante quando sentimos o calor dessa amizade, como hoje experimentei.

Cruzei o limiar da porta dos sexagenários, e ainda me revejo de calções, pião e faniqueira no bolso, à pasta às costas, a caminho da escola primária que o "bolorento regime" erigira e que este efabulado sistema do "ensino para todos" vai encerrar...
Parece que foi ontem.

Das duas primeiras décadas passei uma boa parte na escola, depois no início da terceira, virei aprendiz de guerrilheiro, nas restantes tenho vivido a luta pela vida, nesta guerra constante duma sociedade altamente competitiva onde os atropelos aos valores são uma constante na procura incessante que o homem faz para a acumulação de bens...
Uma sociedade onde o dinheiro é a mola propulsora e unico objectivo de vida que me não é particularmente interessante.

É portanto, para mim, altamente gratificante aperceber-me de que pelo menos entre nós, guinéus, há valores que se não perderam, e estão aí perpetuados no tempo, "vivinhos da silva", como todos vocês nas mais díspares formas que a tecnologia hoje propicia, fizeram questão de evidenciar.

Bem hajam todos pelo prazer que me fizeram sentir enquanto ser humano que descobriu que afinal nem tudo está perdido nesta selva para onde os (ir)responsáveis políticos nos atiraram sem sequer nos facultarem mapas ou quaisquer azimutes para nos desembaraçarmos do pântano...

Mas os guinéus estão habituados às bolanhas e ao tarrafo, e saberão, com maior ou menor dificuldade, vencer as dificuldades que se nos deparam.

Obrigado
Um abraço do tamanho do Cumbidjã (do nosso cumbidjã Mário Fitas...) para todos.
Manuel Maia
__________

Notas de CV:

Vd. postes de:

29 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6651: Parabéns a você (125): José Rodrigues Firmino, ex-Soldado da CCAÇ 2585/BCAÇ 2884 (Os Editores)
e
30 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6660: Parabéns a você (127): Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (Os Editores)

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6664: Em busca de... (137): Procuro informações sobre Fernando Labaredas Torrão, Alf Mil da CCAÇ 461


CCAÇ 461
À procura de Camaradas e amigos do Fernando Labaredas Torrão (Alferes Miliciano da CCAÇ 461)

A pedido do nosso Camarada Álvaro Basto (ex-Fur Mil Enf da CART 3492/BART 3873), passamos a publicar uma mensagem de Teresa Torrão, filha de um Camarada-de-armas nosso, entretanto falecido, cujo teor se reproduz:

Boa tarde, o meu nome é Teresa Torrão e sou filha de Fernando Labaredas Torrão (ele era de uma aldeia de Montalegre chamada Serraquinhos e antes de ir para a Guiné foi aluno no Seminário de Vila Real).
Foi incorporado no E.P.I. em 5 de Agosto de 1962 (dia de aniversário dele), no quartel de vila Real (Trás-os-Montes), como Alferes Miliciano na unidade CCAÇ 461, que foi para a Guiné em Julho de 1963, tendo regressado em Agosto de 1965.
O nº de Identificação Militar dele era: M-6271360 - tropas licenciadas em 31 de Dezembro de 1974, D.R.M. n.º 13.
O meu pai infelizmente já faleceu há 5 anos, mas quanto mais o tempo passa mais a minha saudade aumenta, pelo que gostaria muito de conhecer Camaradas e amigos que estiveram com ele na Guiné, para saber o que ele por lá viveu, embora ele me tenha contado algumas coisas.
Penso que me disse que o seu quartel era no mato e que esteve lá 3 anos... mas como eu era pequena e não tinha bem a noção do que era a guerra…
Tenho algumas fotos dele ao pé de 1 árvore enorme, que penso ser 1 Secóia e, nessa altura, o meu pai usava barba.
Como pai, marido e amigo era e sempre foi exemplar.
Se me puderem dar informações agradecia do fundo do coração.

2. Ora aqui fica o desafio.
Quem esteve entre 1963 e 1965 na Guiné e conheceu o alferes Fernando Torrão da CCAC 461?

3. Sobre a CCAÇ 461 sabe-se o que está publicado no poste P2416, de 7 de Janeiro de 2008, com o seguinte título: Guiné 63/74 - P2416: Unidades que passaram por Barro, na região do Cacheu (A. Marques Lopes)

Companhia de Caçadores n.° 461
Partida: Embarque em 14 de Julho de 1963; desembarque em 20 de Julho de 1963
Regresso: Embarque em 7 de Agosto de 1965
Síntese da Actividade Operacional
Em 28 de Julho de 1963, seguiu para Mansabá e assumiu a responsabilidade do respectivo subsector, então criado, com pelotões destacados em Olossato, até 26Dez63 e Cuntima, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 507 e após reformulação dos sectores, do BCAÇ 512.
Em 23 de Dezembro de 1963, substituída no subsector de Mansabá pela CCAÇ 594 e foi transferida para Bigene onde assumiu a responsabilidade do subsector, com um pelotão destacado em Barro, desde 21 de Dezembro de 1963 e mantendo o outro pelotão destacado em Cuntima, onde permaneceu até 23 de Julho de 1964, depois deslocado para Guidage, de 8 de Agosto de 1964 a 13 de Maio de 1965.
A subunidade manteve-se na zona de acção do BCAÇ 512 e depois do BCAV 490.
Inicialmente, desenvolveu intensa actividade de reconhecimento, de patrulhamento e de contacto com as populações da área e executou algumas acções ofensivas contra elementos inimigos infiltrados na região de Mores.
A partir de 2 de Março de 1964, mantendo a anterior actividade de patrulhamento e de contacto com as populações, passou também a realizar acções ofensivas e emboscadas na região de Bigene e Barro, com especial incidência na região de Sambuiá.
Em 28 de Maio de 1965, foi rendida no subsector de Bigene pela CCAÇ 762 e foi tranferida para Bissau, onde foi integrada no dispositivo de segurança e protecção das instalações e das populações da área, em substituição da CCAÇ 787, tendo ficado integrado nos efectivos do BCAÇ 600 e depois do BCAÇ 513, até ao seu embarque de regresso.
Entretanto, ainda, dois pelotões estiveram temporariamente deslocados em Bula, a partir de 13 de Junho de 1965, em períodos de 10 a 15 dias, em reforço do BCAV 790, com vista à realização de patrulhamentos e contactos com a população, na região de S. Vicente.
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Nota de M.R.:

Guiné 63/74 - P6663: V Convívio da Tabanca Grande (12): Hoje estou triste e amargurado (Amílcar Ventura)


1. O nosso Camarada Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74, enviou-nos, em 27 de Junho de 2010, a seguinte mensagem a propósito do nosso convívio em Monte Real no passado dia 26:

Hoje estou triste e amargurado

Amigos e Camaradas de Guiné, hoje estou triste e amargurado por ontem não ter podido estar com vocês.
A tristeza é tanta que hoje enviei uma mensagem, para o amigo Magalhães vos ler, pensando que era hoje o convívio.
Gostaria de vos dizer que não fui só por uma simples razão, a minha situação financeira não está boa a vida de há dois anos para cá tem sido muito madrasta e aquilo a que chamam crise afectou-me imenso no negócio que tinha, e tive que fechar as duas lojas de fotografia que eram o sustento da minha família.
Primeiro foi uma e agora foi a outra, e para isto se recompor vai levar o seu tempo.
Tive a sorte de entrar para este blogue maravilhoso, onde criei grandes amizades e têm sido estes amigos que, sem os conhecer a não ser por fotos, me têm dado o ânimo suficiente para ultrapassar este obstáculo que a vida me tem criado.
É com os vossos e-mails, que recebo todos os dias, que vou vivendo o dia-a-dia e com a leitura do blogue, que também me vai dando alma para ultrapassar tudo isto.
Muito obrigado a vocês todos, pois eu sei que posso contar com vocês.
Um abraço do tamanho da Guiné para toda a Tabanca Grande e Amigos.
Amílcar Ventura,
Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

30 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6662: V Convívio da Tabanca Grande (10): Caras novas (Parte I) (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P6662: V Convívio da Tabanca Grande (11): Caras novas (Parte I) (Luís Graça)


Monte Real > Palace Hotel > V Encontro Nacional da Tabanca Grande Grande > 26 de Junho de 2010 > A ex-enfermeira pára-quedista Rosa Serra, novo membro da nosso blogue... Tive uma conversa interessante sobre o tema que me intriga: como é que os militares (nomeadamente os do mato) viam (ou idealizavam) as enfermeiras pára-quedistas ? como enfermeiras ?  como militares ? como anjos que vinham do céu ? como simples camaradas ? como mulheres de carne e osso ?... Conversa interessante mas inconclusiva: não é pergunta que se faça a um ex-enfermeira pára-quedista, jovem, bonita, corajosa,  e muito menos num 'ajuntamento' como este, com mais de centena e meia de convivas (de resto, com uma presença forte de mulheres: mais de um terço...).




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Monte Real > Palace Hotel > V Encontro Nacional da Tabanca Grande Grande > 26 de Junho de 2010  > O Pirata de Guileje J. Casimiro Carvalho, felicíssimo, junto da sua Ana, a mãe da Sofia e da Kika... Vivem na Maia, mas o Pirata  nunca a traz para estas coisas (Eu pessoalmente não a conhecia, a não ser talvez - e se não me engano - das cartas do corredor da morte...)




Monte Real > Palace Hotel > V Encontro Nacional da Tabanca Grande Grande > 26 de Junho de 2010 > Da esquerda para a direita: o Hugo Guerra, Cor Inf DFA Ref, o nosso camarada que foi evacuado duas vezes e meia; a Ema, sua companheira, antiga hospedeira de terra da TAP e agora aluna do curso de licenciatura em serviço social; e a Elisabete, esposa do Francisco Silva (que hoje é ortopedista no Hospital Amadora-Sintra)... Qualquer deles não esteve no encontro do ano passado, na Ortigosa. Pela foto, percebe-se que a Ema estava cansada, mas feliz... que a jornada foi longa e cheia de emoções.




Monte Real > Palace Hotel > V Encontro Nacional da Tabanca Grande Grande > 26 de Junho de 20 >  A Maria João, esposa do camarada Jorge Araújo, que pertenceu à CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74); é doutorada em Psicologia Clínica, trabalha no Instituto Piaget e, imaginem, vir a descobrir que eu e ela pertencemos ao CIESP - Centro de Investigação e Estudos em Saúde Pública... O casal vive em Almada... Na foto, está a ler o livro do Amadu Djaló (que infelizmente, por razões de saúde, não pôde apareecer desta vez; mesmo assim, o Virgínio Briote e o Eduardo Magalhães Ribeiro conseguiram vender quase meia centena de exemplares).

O Jorge vai seguramente "tratar dos papéis" para formalizar a sua entrada na Tabanca Grande... Quem andava radiante era o Sousa de Castro, o nosso tabanqueiro nº 2, de Viana do Castelo, que conseguiu reunir,  com ele, cinco elementos da sua companhia, incluindo um dos capitães que por lá passaram, o nosso António Costa...





Monte Real > Palace Hotel > V Encontro Nacional da Tabanca Grande Grande > 26 de Junho de 20 > Malta da FAP, em peso: em primeiro plano, à esquerda, o Melec Jorge Narciso (Cadaval) que é uma cara nova, o Victor Tavares (Águeda,  o homem da MG 42, ex-pára, ou Pára para Sempre, que acaba de ser operado à coluna, com todo o sucesso; pertenceu à CCP 121/BCP 12, 1972/74); em segundo o plano, outro Melec, o Vitor Barata (fundador e animador do blogue Especialistas da BA 12, Guiné, 65/74),  e outro ex-pára Manuel Rebocho, este último, também um estreante nestas andanças, e meu confrade da sociologia, área disciplina onde se doutorou, em 2005, pela Universidade de Évora, com uma tese sobre a formação das elites militares em Portugal, no Séc. XX). Há um 5º camarada, ao lado do Victor, que eu não consigo de momento identificar.





Monte Real > Palace Hotel > V Encontro Nacional da Tabanca Grande Grande > 26 de Junho  de 2010 > O ex-Cap Mil Carlos Nery Gomes Araújo, autor da nova série Histórias de Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCQAÇ 2382 (Buba, 1968/70). Meu vizinho de Alfragide (bem como do Humberto Reis e do Manuel Amaro), só no sábado de manhã é que o conheci. Dei-lhe uma boleia até Monte Real.  Conversámos longamente. Disse-me que está a recolher informação sobre o famoso ataque a Buba, em 16 de Outubro de 1969, por uma força IN estimada em 5 bigrupos...




Monte Real > Palace Hotel > V Encontro Nacional da Tabanca Grande Grande > 26 de Junho de 2010 > O Jaime Brandão ficou na mesa da FAP, presidida por dois pesos pesados, da guerra aérea na Guiné, a parelha Miguel Pessoa (Cor Pilav Ref) e António Martins de Matos (Ten Gen Pil Res)... O Jaime também foi piloto, esteve na Guiné, e é amigo do nosso anfitrião Joaquim Mexia Alves. Fiz-lhe expressamente o convite parta ingressar na Tabanca Grande...





Monte Real > Palace Hotel > V Encontro Nacional da Tabanca Grande Grande > 26 de Junho de 2010 > O António Estácio, o único membro do blogue nado e criado na Guiné, que esteve presente nesta nossa bela jornada... O autor de Nha Carlota (2010) fez o serviço militar em Angola, como alferes miliciano, e  esteve depois em Macau com o nosso saudoso Zé Neto, cuja viúva, Júlia, e neta, Leonor, também participaram neste encontro da Tabanca Grande... A Júlia disse-me estar encantada. A Leonor, coitada, fez o sacrifício em homenagem ao seu querido avô. Uma menina de ouro (de quem não tenho uma foto!!!). (*)

(Continua)

Fotos e legendas: © Luís Graça (2010). Direitos reservados

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Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã




Guoleghal, a ave peralta do conto de Canhánima ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina), dizem os nossos especialistas José Corceiro, Mário Dias, Nelson Herbert... Conhecida na Guiné, coloquialmente,  como ganga...

Foto: Armando Pires (2010)



Guiné-Bissau > Bissau > 2004 > Cherno Baldé e família, no Tabaski  ou festa do carneiro (i)


Guiné-Bissau > Bissau > 2006 > Família Baldé > Construir hoje e amanhã...


Fotos: © Cherno Baldé (2010). Direitos reservados


1. Mensagem do Cherno Baldé (ii)

Data: 16 de Junho de 2010 17:20

Assunto: Envio de mais uma crónica

Caro amigo e irmão Luís Graça,

Envio mais uma das minhas crónicas habituais, cabendo a vocês, da incansável equipa do blogue, a decisão de publicar ou não.

Juntamente envio, também, a imagem de uma ave pernalta, que encontrei no poste (P6536) do Sr. Armando Pires, onde ele pede ajuda para a identificação da ave. Esta ave pernalta corresponde exactamente à descrição da 'gueloghal' do conto que acabo de vos enviar.

Com um grande abraço

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)



2. Memórias do Chico, menino e moço (16): Canhámina, o  fim do triângulo da vida e do poder de Sancorlã 

por Cherno Baldé (ii)

Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. Só agora começamos a compreender todo o tamanho do trama em que estamos metidos. Pessoalmente, estou na fase da readaptação de uma nova vida.

Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança não há lugar para a saudade.

Não é fácil para os outros também. Os antigos serviçais do quartel (ii) estão a morrer lentamente, inexoravelmente. O Primeiro foi o Sadjo, coitado, com a sua enorme barriga e a gordura acumulada ao longo da sua vida de cozinheiro, debaixo do sol, não conseguia obter o mínimo para sustentar os filhos e as suas três mulheres. Resultado, morreu. Sem jeito para mendigar, sem forças para trabalhar a terra, passava dias a fio metido no mato, escondido, a cogitar milagres. Além do mais, sofria de diarreia constante devido a fome e a mudança do regime alimentar.

Depois, foi a vez do Mamadu, profissão, ex-cozinheiro. Depois foi o Samba, profissão, ex-padeiro. O Maudhô Uri, esse, conseguiu safar-se trabalhando como mecânico de velocípedes. Por pouco tempo.
- Tcherno!...Tcherno Adulai!... Adulai shall!...

Ė a minha avó que me vem acordar. Todos os dias é a mesma coisa. Ela insiste de que a porta do meu quarto deve estar aberta de manhã cedo, antes da primeira oração do dia, altura em que a sorte nos bate à porta. Apesar de tudo, ela sabe que não pode entrar no meu quarto, pois o estatuto de circunciso me protege. Fica-se à porta a cacarejar. A contra-gosto levanto-me para ir lavar o rosto. Não é por causa dela, é que hoje temos um desafio de futebol contra a equipa de Canhámina. Tento encontrar, na confusão do quarto, a minha escova de dentes.
- Menino, levante-se! Olha que os teus colegas já passaram na estrada e chamam por ti dizendo: Tchernó!...Tchernó…

Era inventiva a minha avó, os alunos em marcha para Canhámina, na verdade, clamavam: 
- Um, dois, três!... Um, dois, Três!...A esquerda!...A esquerda!...Quem somos nós?! Somos pioneiros!...Quem somos nós?! Somos pioneiros!...

Rapidamente, meto os calções, meto as sapatilhas e agarro a camisa indo ao encalço dos colegas. Já estão longe e tenho que correr sem parar. Felizmente é um percurso já habitual e a minha vida é feita de corrida. Entro no pelotão pouco antes da última subida para a aldeia.

Em Canhámina, esperava-nos um espectáculo desolador. Em pleno centro da aldeia e debaixo de um poilão gigante, estavam agrupadas algumas pessoas formando um círculo, ao meio se encontrava um homem relativamente jovem, amarrado por trás, com as cordas de nylon penetrando na carne dos braços inchados, o peito todo bombeado para a frente.

Era o chamado “peito de pomba”, método preferido dos Comissários do PAIGC. Tinha sido preso no posto de controlo da fronteira com o Senegal. Via-se pelo aspecto do corpo e pelo sangue seco nas têmporas e no rosto que estava assim havia muito tempo e tinha levado porrada a valer. Da multidão, alguém lhe sussurrou na língua local:
- Diga que tu és! Diga que tu és! Senão ainda te matam, palerma!

Como não reagia, o homem levou ainda com uma coronhada na cara ensanguentada que o derrubou ao chão. Levantou-se com dificuldade mas levantou-se pois, ele era um homem e devia continuar a sê-lo enquanto tivesse o mais leve sopro de vida no seu corpo, é o que lhe ensinaram desde a mais tenra idade. Olhando, desta vez, para os seus torcionários, falou com a boca a escorrer sangue, em língua Fula:
- Eu sou!..
O Comissário perguntou-lhe:
- Tu és o quê?
- Eu sou! - respondeu.
-Tu és da FLING, não é? - sugeriu o Comissário.
-Eu sou, sim!.. sou isso mesmo. Isso que você disse.

Finalmente, ele tinha confessado o seu crime. Todos acabam por confessar. O Comissário, cuspiu para o chão o resto do tabaco que tinha na boca e, com desdém, ordenou que o levassem dali. Levaram-no para o acampamento dos guerrilheiros, ali, um pouco metido na mata que circundava a aldeia. Mesmo regressados a casa, estes, por força do hábito, ainda se sentiam melhor e mais seguros entre as árvores como os animais selvagens, com as suas inseparáveis Akas (iii)  na mão.

Um grupo de curiosos, na maioria crianças, acompanhou o cortejo. Nós seguimos para o campo de futebol, situado ao lado do acampamento militar.

No terreno, frente a Canhámina, ganhamos o jogo sem grandes problemas mas, em vez da satisfação habitual estava invadido por uma tristeza vinda de não sei onde. O meu espírito ainda não se tinha libertado do choque do que tinha presenciado. Assaltavam-me a memória muitas coisas que não me permitiam acompanhar a alegria dos colegas. Estes, na corrida de regresso a casa, gritavam, transformando as palavras do prisioneiro em slogan de vitória:
- Eu sou!... Eu sou aquilo!... Eu sou isso mesmo!... Eu sou o que você disse!... - E riam, desgraçadamente.

Ao chegar perto do cruzamento, procurei a sombra de um poilão e, com o rosto virado para a entrada principal de Canhámina, fiquei durante alguns minutos a olhar para a aldeia que alguns anos antes, fora o símbolo da coragem e do poder de Sancorlã. Esta era a terra do meu pai, também, onde recebeu o baptismo e foi circuncidado. Alguma coisa me roía por dentro. A sabedoria popular nos ensinou que: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado.

No contexto da vida de Fuladu, a história de Canhámina é invulgar e toca a todos os habitantes do antigo regulado, pequenos e grandes. Uma História breve, colorida de enigmas e que teve um fim trágico.

***
Ainda hoje, a primeira coisa que nos chama a atenção quando visitamos a localidade de Canhámina é a sua mata de poilões bem no centro da aldeia. Ė impressionante.

Contam que, em tempos idos, quando a relação dos homens com a natureza ainda era muito próxima e viva, aqui habitava uma miríade de aves de diferentes espécies e a sua vozearia era audível a quilómetros de distância. A mais importante, dentro do imaginário colectivo era, sem dúvida, a Gueloghal ou ave real, cuja presença testemunhava a sacralidade e proeminência do lugar no contexto do mundo espiritual dos homens da época, onde tudo era importante e tudo fazia sentido.
-
Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti ! Maudhô yannô to dourôh, banenguél wilti ! Si bhô uri men ganda, banenguél wilti ! Si bo may men ganda, banenguél wilti … (1)

A
Gueloghal, para além de se distinguir pela sua beleza e graciosidade que lhe valeram o epíteto de ave real, também, era conhecida como ave mensageira, dotada de capacidades de transportar mensagens de partes incertas e/ou de revelar aos homens, acontecimentos vindouros. A sua presença nesse lugar misterioso se revestia de uma auréola simbólica e ancestral de confiança na probabilidade de uma vida de paz e tranquilidade. Não se deve admirar muito pois, todos os povos que chegaram até aqui, vindos do interior do continente, sem excepção, vieram na vã esperança de encontrar a paz e a tranquilidade a que ansiavam.

Quem terá sido o primeiro habitante de Canhámina? Uma pergunta difícil de responder porquanto, os actuais habitantes de Sancorlã seriam capazes de jurar, a pés juntos, que foram os seus antepassados e com provas provadas dentro do esquema mitológico habitual do tipo: “Era uma vez, a família de caçadores do grupo dos nossos antepassados que, após um longo percurso, em perseguição de um animal de caça, acabaram por desembocar neste local milagroso…”

O que, porém, não deverá suscitar muita controvérsia, é o facto de que estas paragens já eram habitadas quando os Fulbhé (fulas) chegaram com as suas manadas de gado, vindos de Macina (Mali), de Tekrur (Senegal) ou Futa-Djalon (Guiné-Conacri).

Conta-se que, no seu périplo pela região na primeira metade do século XIX, El-Adj Omar, imperador do Sudão, teria passado por aqui a caminho de Futa-Djalon acompanhado do seu
djatigui (2) e futuro rei de Firdu, Alfa Moló a quem ele teria dado todas as terras situadas entre as bacias dos rios Gâmbia e Geba, mais concretamente até ao local designado Dandum (Dandum Cossará?), à condição que as pudesse retirar aos “infiéis” reis Soninquês, claro. Despediram-se após ter recebido das mãos do grande homem de letras a promessa de que a sua aventura seria coroada de êxito.

De regresso a casa, Alfa Moló convocou os grandes de entre os Fulbhé [, fulas,] e disse-lhes:
- Como todos sabem, desde que vivemos entre os Soninquês [, ou Saracolés, gravura à direita, 1890, co
rtesia de Wikipédia], não somos mais os donos das nossas vacas, das nossas ovelhas nem das nossas próprias mulheres, por isso, vamos combatê-los e acabar com os seus abusos de poder.

Os grandes de entre os Fulbhé após terem escutado e, cheios de medo, responderam:
- Nós não vamos combater os Soninquês e tão pouco iremos ajudar aquele que o irá fazer. 

Então o Alfa Moló levantou-se em toda a sua altura e, sacudindo o fundilho das calças, disse a frase que ficaria para sempre gravada nos anais da história épica do reino de Firdu:
- Se não me ajudarem a combatê-los, então ajudar-me-ão a fugir.

E foi assim que tudo começou, Alfa Moló e os seus apoiantes atacaram os Soninquês e, com o apoio decisivo dos
Almamis de Futa-Djalon, acabariam por conquistar a região e instalar o reino de Firdu (Fuladu), repartido em pequenos regulados entre os quais o de Sancorlã que ele confiou aos seus aliados locais (Samba Shábu?) e que escolheram para capital a localidade de Canhámina. (3).

Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana, nada acontece por acaso, tudo se justifica e se fundamenta em fórmulas simples e ao mesmo tempo complexas, e neste caso concreto de Canhámina/Sancorlã, conta-se que a origem da força e do poder local se devia à conjunção de determinados factores de ordem mística e que, por conseguinte, a perda daquela força e do poder, verificada mais tarde (1974),  se deveu a violação do princípio regulador do equilíbrio ou pacto inicial estabelecido, que começou com a penetração de elementos estranhos ao meio, entrando nesse leque tudo o que veio a ligar-se com o processo da dominação colonial, da submissão e da penetração do sistema mercantilista da produção e comercialização (borracha, coconote, amendoim etc.); de elementos novos de sujeição, de opressão e alienação cultural e espiritual que se lhe seguiram os passos, onde os impostos de capitação e a balança dos comerciantes eram os elementos mais nocivos dentro do sistema de exploração e empobrecimento das populações, terminando com a entrada silenciosa e criminosa dos guerrilheiros do PAIGC que transformaram o recinto dos poilões num campo de tortura e de exterminação dos próprios filhos de Sancorlã.

***

Conta-se que, antigamente, da mata de poilões situada no centro de Canhámina, descia uma linha de força para sul até a floresta de palmeiras (
surumael), situada nos limites do regulado e no meio da qual se encontrava uma nascente cujas águas abasteciam a população da aldeia, estando ligada, por sua vez, à bolanha, (prolongamento da bacia hidrográfica do rio Farim-Canjambari).

Surumael (matagal) representava o ângulo feminino do triângulo de Canhámina onde se praticavam não só a produção do arroz nas terras baixas mas também todos os rituais femininos ligados a educação e/ou reprodução social (cerimónias de casamento, fanados etc.).

De
Surumael, seguindo sempre o percurso da bolanha para poente até à distância de três  km, estava situado o terceiro ângulo ou o complexo masculino, Djunkoré, formado, por uma extensa área alagada durante a estação das chuvas e no meio da qual se encontrava um grande lago bem no centro da bolanha.

As populações das aldeias mais próximas e as aves pescadoras vinham aqui encontrar os peixes que subiam com as águas do rio Farim. Também aqui davam de beber as grandes manadas de gado (vacas, ovelhas, cavalos) que faziam a fama da região, acompanhadas de crianças nuas e barulhentas, com a flauta numa mão e a varra noutra.

Na margem esquerda do lago
Djunkoré encontrava-se um poilão bem alto e que, durante o período nocturno, irradiava uma luz florescente provocando o efeito bômina (claridade), que era visível a uma grande distância. Djunkoré funcionava como o refúgio dos homens e das aves, onde se praticavam as cerimónias e rituais masculinos. Todas as gerações passadas fizeram-se homens neste espaço mítico e verdejante.

Deste ângulo subia outra linha de retorno à aldeia, formando assim uma espécie de triângulo, o triângulo de vida de Canhámina. O conjunto formava um ambiente natural propício para a vida animal, em particular das aves selvagens. Mas, também constituía o centro da vida económica, social e cultural da aldeia e seus arredores.

E, numa escala maior, reproduzindo fielmente o triângulo de Canhámina, a organização social e política do regulado, também, se apoiava em três pilares ou áreas geográficas (
diwal): A área de Canhámina (ângulo sudoeste), a área de Lenkebembe/Cambaju (ângulo noroeste) e a área de Panambo/Kerwane (ângulo nordeste) e, cada uma das quais gozando de uma certa autonomia.

Esta divisão administrativa fomentava muitas rivalidades, algumas das quais ainda hoje subsistentes, mas também era factor de concorrência e de dinâmica criativa que permitia manter a necessária coesão social e política assim como a chama guerreira do regulado.


***

Todavia, a sucessão de Alfa Moló na segunda metade do Séc. XIX, não viria a ser nem bem sucedida e muito menos pacífica, obrigando ao seu sucessor, o intrépido Mussá Moló, a disputar não somente o trono com outros pretendentes dentro da família, como fazer face a pretensões autonomistas dos pequenos regulados em que estava dividido o reino de Fuladu, (com particular incidência naqueles cuja liderança era chefiada por Fulas-Forros, antigos suseranos e pouco inclinados a aceitar a vassalagem
vis-a-vis dos Fulas-pretos cujo poder representava Mussá Molo), sob o olhar atento dos Almamis de Futa e ainda a presença cautelosa mas insidiosa das potências europeias (os Portugueses a partir de Farim e Geba, e os Franceses a partir do Senegal) que cobiçavam a região meridional do Firdu. (4).

Nestas circunstâncias, os pequenos regulados Fulbhé do nordeste e leste Guineense tinham que escolher entre submeter-se à tirania de Mussá Molo, apoiado subrepticiamente pelos Franceses,  ou aliar-se aos Portugueses. Assim nasceu a aliança de interesses entre os Fulas e Portugueses que, tudo somado, pareciam distantes e sem quaisquer interesses em comum.

Porém, esta aliança fortuita não estava isenta de algumas contradições. Os Fulas, de um lado, precisavam dos Portugueses para se proteger das ameaças e razias constantes dos homens de Mussá Molo mas, sendo muçulmanos,  eram portadores de um inevitável “proselitismo religioso” que estava na base da sua libertação e do seu poder conquistado perante os Soninquês. 

Os portugueses, por seu turno, precisavam de aliados no interior onde não conseguiam chegar para fazer valer as suas pretensões para lá do Geba mas, também, tinham na bagagem a Bíblia e o compromisso da salvação de almas perdidas para justificar as suas conquistas de além-mar.

Mas tarde e, sempre que se sentiriam aflitos, os portugueses não hesitariam em recorrer aos seus aliados muçulmanos do interior (Fulas e Mandingas) para reprimir os povos guerreiros “animistas” do litoral Guineense mas, logo que se sentiam minimamente aliviados da pressão, se apressavam a afastá-los destas zonas para não espalhar a sua indesejada influência religiosa.

Com Teixeira Pinto e seus auxiliares muçulmanos, os portugueses fecharam o capítulo da conquista e pacificação (?) do território da Guiné no início do século XX, impondo de seguida,  a todos os habitantes da Guiné, a obrigação do pagamento de impostos. Com estes, veio a necessidade de produzir excedentes comerciais abrindo, desta forma, uma porta de entrada a produção do amendoim que,  juntando-se a colecta da borracha,  se transformariam, durante muito tempo, nas actividades obrigatórias de toda a região do interior.


***

Com o florescimento do comércio nos anos 40 e 50, houve a necessidade de abrir vias de acesso e de ligação com as zonas portuárias de Farim e Bafatá. As medições feitas determinaram que a estrada tinha que passar no meio da mata de poilões de Canhámina, que seria o ponto de convergência das três estradas (Cambaju ao norte, Bafata ao sul e Farim a Oeste,). Esta foi a primeira abertura (ferida) no triângulo de Canhámina, o primeiro sinal inquietante da mudança dos tempos, que abriu as portas para a penetração de elementos estranhos no círculo de vida de Sancorlã.

Com o intuito de preservar Canhámina da invasão do novo mundo e das suas consequências inevitáveis, Fajonquito serviu de escoadouro e aldeia satélite para canalizar todos os elementos que não se enquadravam no pacto de equilíbrio do mundo antigo. Foi assim que as casas comerciais que queriam instalar-se em Canhámina, foram empurradas para lá, a três quilómetros a oeste a fim de preservar o triângulo.

Foi assim que, pelas mesmas razões, tanto a escola portuguesa (1964) assim como a primeira companhia de tropas metropolitanas (1965) enviada para reforçar o regulado com o início da luta para a independência, ficaram pouco tempo na aldeia, tendo sido, de seguida, transferidas para Fajonquito. Era preciso manter o equilíbrio do pacto, tanto assim que, pese a vontade de o fazer, os guerrilheiros do PAIGC nunca conseguiriam penetrar no triângulo e atacar Canhámina, o coração de Sancorlã, mesmo desguarnecida de tropas. Eram desviados para longe por uma força misteriosa.



***

Mas, nem tudo correu tão bem como se pensava, e o mal já estava feito e pouco a pouco assistir-se-ia ao desmoronar da vitalidade do sistema que vigorara até ali. O primeiro sinal de alarme foi a diminuição drástica do barulho das aves e das chuvas, também. As espécies mais inteligentes simplesmente tinham desaparecido dos poilões de Canhámina, entre as quais a famosa Gueloghal. Em seguida, veio um outro alarme do sudoeste com a extinção da luz de Djunkoré e do seu lago que parecia inesgotável. O velho poilão florescente, completado o seu ciclo de vida, tinha cessado as suas actividades de faroleiro para as aves viajantes.

Por fim, as mulheres, alarmadas, vieram informar que os olhos da fonte de Surumael tinham secado e já não corria água da nascente. Também, os macacos (babuínos, pára-quedistas,  etc.) que espantavam as crianças no seu interior, já não viviam no matagal. Era o fim do pacto de equilíbrio? Parecia incrível, e os olhos virados para Canhámina não encontravam nenhuma resposta. Decididamente, os ventos da história tinham mudado de direcção e com esta viragem, acontecia o fim de um ciclo histórico e, por coincidência, também climático.

Tudo parecia combinar para acelerar as mudanças. Em 1974, aconteceria o improvável. Os portugueses, cansados de ver seus filhos morrer longe da sua terra natal, por uma causa cada vez mais difícil de defender, tinham descoberto uma nova pátria, mais pequena desta vez mas, assim mesmo, a pátria mãe, abandonando a guerra nos territórios do ultramar com o seu calor infernal e seus insuportáveis mosquitos. E numa coluna como nunca dantes visto, levaram consigo todo o equipamento de guerra. Canquelifá… Gabu…Canjufa…Pirada…Canjadude… Piche…Bafatá…Bambadinca…Farim…Guidaje, tudo.

As milícias, eternas sacrificadas, voluntárias da sua própria desgraça, num repente incompreensível, se pasmaram na vã gesticulação de mãos vazias. Adeus, camaradas, nada se pode fazer, é o virar de uma época. Os tempos mudam e os homens também.

Com a conquista da independência, os guerrilheiros do PAIGC, qual exército de Gengis Cã, silenciosa e furtivamente instalaram-se nos portões de Canhámina bem no centro dos poilões, tecendo paciente e meticulosamente a sua teia de morte, desafiando insolentemente os deuses de Sancorlã, completando a missão histórica que Amílcar Cabral lhes tinha legado: “A sociedade fula é do tipo vertical, em cima estão os régulos, no meio os Djilas ambulantes e, em baixo, os camponeses. Entre os vários segmentos sociais, uma coisa os une fortemente, são contra a luta armada…”

Enfraquecida pela guerra que quase esvaziou as suas aldeias, ferida mortal e traiçoeiramente pela abdicação dos seus aliados, Sancorlã não conseguiu reagir atempadamente ao infortúnio que se abateu sobre ela e, em menos de dois anos completou-se a destruição (decapitação) das suas forças vivas e da sua elite dirigente, encurralada, fragilizada e justamente vitimada. O mundo aplaudia a Guiné-Bissau independente, pais onde não havia lugar para aqueles que tinham fraquejado. O acordo de Argel, uma quimera e, não se esqueçam: ”Nem toda a gente é do povo”.

Todos os valorosos que não quiseram pactuar com o novo regime e eram demasiado orgulhosos para fugir dos seus ex-inimigos, entregaram seus peitos às cordas de nylon dos comissários políticos de PAIGC e mais tarde as suas vidas, fazendo a viagem sem regresso para os cárceres de Bafatá e Bambadinca. As justificações teóricas e práticas não faltaram. As festas também. “Páa-nô-uni! Páa nô mamáa… Páa-nô-uni, Pa-nô-mamáá, Panó terráá…”.

Em Fajonquito, ainda continuamos durante muito tempo, a pescar e a nadar no lodo do que restava do rio Farim/Canjambari e, sem pudor, ao sabor da brisa, mudamos também de camisola e hino. Continuamos a pedir as armas mas já não eram contra os canhões mas contra os colonos e seus aliados. Os heróis de mar não tinham aguentado tão bem em terra firme. Os peixes também, assim como os ex-soldados, para se adaptarem ao novo clima, se metamorfosearam em coisas pequenas e escuras escondidas na imundície da lama das bolanhas, escorregadios como o sabão chinês que invadiu os nossos mercados.

Alguns realizaram a proeza de, em tempo recorde, arrastando seus bubus brancos, transformar-se em Marabus de esquinas e mesquitas com salmos e cuspo na testa, pedindo a perdão dos nossos pecados colectivos. Outros passaram as fronteiras. Mas, muitos foram os que morreram sufocados nas prisões de Farim, brigando por escassos graus de cereais crus. Os deuses estavam a ouvir? Aláau…akbaar!

Os tempos, verdadeiramente, tinham mudado e nós vivíamos ou melhor sobrevivíamos sem dar por isso. Aconteceu exactamente como no poema ecológico de Júlio Roberto (5):
 - Onde se encontra o matagal?... Destruído!
- Onde está a água, o lago e o poilão?... Desapareceram!
- Onde estão os valorosos de Sancorlã?... Morreram!

 Bissau, Junho de 2010.

[ Revisão / fixação de texto / bold a cores: L.G.]
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Notas de Cherno Baldé:


 (1) Canto das aves mensageiras “Guelodhé” em língua fula: A árvore da vida floriu! Ao velho que tinha visitado as terras altas, informamos: A árvore de vida floriu! Se estiver em vida que nos informem! Se não estiver em vida, que nos elucidem! A árvore da vida floriu de novo! 

 (2) Djatigui – Anfitrião, palavra de origem incerta utilizada em quase todas as línguas de África do oeste.

(3) Crónicas guerreiras dos reis de Firdu (Fuladu)

 (4) Ver René Pélissier: Historia da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegambia. (1841-1936), vol. I e II, Imprensa Universitaria, Editorial estampa, Lisboa, 1989.

(5) Carta do chefe Seattle (Índio) em 1884 ao grande chefe branco de Washington, inserido no poema ecológico de Júlio Roberto
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 Notas de L.G.:

 (i) Tabaski ou festa do carneiro: comemoração da vontade de Abraão de sacrificar o seu filho por vontade de Alá... Uma das mais importantes festas do calendário religioso muçulmano.

 (ii) Vd. último poste da série > 18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!

Vd. os postes anteriores, e em especial o de 13 de Julho de 2009 >  Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

 (...) A minha família, descendente de Fulas originários de Macina, no espaço territorial do antigo Sudão Ocidental (actual Mali), e que se consideram a si mesmos de Fulbhê Arábbhê, cujo significado se deve ter perdido na noite dos tempos e que, no entanto, tem uma similitude muito próxima da palavra Árabe, vivia em Kerewane (uma deformação de Kairuan?), localidade situada entre Kumakara (Senegal) e Saré Bacar (Guiné-Bissau), mesmo na linha da fronteira entre os dois países.

Dessa época não sei quase nada que possa transmitir. Mais tarde, a familia mudou-se para Canhámina, capital do regulado de Sancorlã, [a nordeste de Fajonquito, carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line' ,] o que aconteceu após a morte do nosso avô paterno, Morô Baldé (Morseide), ocorrida, provavelmente, entre os anos de 1922/23.

Os seus descendentes eram sobrinhos directos da casa reinante de Sancorlã (Soncoia?), através da mãe, nossa avó paterna, Eguê Mariama Baldé, facto que certamente terá pesado na decisão de se mudar para esta localidade. Em Canhámina, durante muito tempo, a nossa família viveu sob protecção da casa do régulo, tendo beneficiado de algumas regalias daí inerentes, encabeçada pelo mais velho dos irmãos, Naor, que foi pajem de seu tio Braima Djame Baldé, mais conhecido por Burandjame (ou Brandjame?), o régulo de Sancorlã, e era colega e amigo íntimo de Abdu Buram, o príncipe herdeiro do trono, que encontrou a morte na última guerra de Canhabaque entre 1935/36 [, nas Ilhas Bijagós, referência à repressão de uma das últimas revoltas dos habitantes locais] . (...)


(iii) AKA - Kalash, Espingarda Automática Kalashnikov (AK),  Calibre 7,62 mm

 (iv) Soninquês (também chamados Saracolês): grupo etnolinguístico mandinga maioritarimente islamizado. Habitam a África ocidental. Em francês, Soninkés.

Guiné 63/74 - P6660: Parabéns a você (127): Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (Os Editores)


1. Hoje, dia 30 de Junho de 2010, o nosso camarada Manuel Maia (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74) entra para o grupo mais numeroso e mais famoso da Tabanca Grande, o dos SEXAS. O tempo, na sua caminhada lenta, mas constante, vai-se encarregando de engrossar as nossas fileiras.

Neste dia de aniversário do nosso poeta Manuel Maia, toda a tertúlia se associa à sua alegria, e lhe deseja uma longa e boa vida junto de sua esposa, filhos e demais família, não esquecendo aqueles que complementam a sua existência, os amigos, entre os quais os atabancados deste Blogue.


Monte Real > V Encontro Nacional da Tabanca Grande > 26 de Junho de 2010 > O nosso bardo do Cantanhez, no lado esquerdo, falando com o Idálio Reis (Cantanhede) e com o Delfim Rodrigues (Coimbra).
Foto:
© Luís Graça (2010). Direitos reservados
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3886: Tabanca Grande (118): Manuel Maia, ex-Fur Mil, o poeta épico da 2ª Companhia do BCAÇ 4610/72 , o Camões do Cantanhez

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4607: Parabéns a você (11): Dia 30 de Junho de 2009 - Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (Os Editores)

Vd. último poste da série de 29 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 – P6652: Parabéns a você (126): Santos Oliveira, nasceu a 29 de Junho de 1942 (Os Editores)