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terça-feira, 12 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4326: Estórias cabralianas (49): Cariño mio... Muy cerca de ti, el ultimo subteniente romántico (Jorge Cabral)

1. Mensagem do Jorge Cabral, ex- Alf Mil Art, Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71)

Amigos!
A propósito do Mato Cão (*) aí vai estória.
Luís, prepara o prefácio.

Abração,
Jorge Cabral



2. Estórias cabralianas > Da Enfermeira Cubana aos Tubarões no Geba

Dois dias depois de chegado a Bambadinca em meados de Junho de 69, fui mandado montar segurança no Mato Cão. Periquitíssimo, cumpri todas as regras, vigiando a mata de costas para o rio, sem sequer reparar na beleza da paisagem.

Mal sabia então, que ali havia de voltar dezenas de vezes, durante o ano que passei em Missirá. Pelo menos uma ida por semana para ver passar o Barco, no que se transformou numa quase agradável rotina.

Se a hora era propícia até lá batíamos uma boa sesta e certamente algum turra passeante se surpreendeu com os meus estridentes roncos, os quais numa estória que conto aos miúdos, assustavam os tubarões do Geba.

Tubarões no Geba? Claro que sim!

Pois não relatou o meu avô, militar em Moçambique na Guerra do Mouzinho, que marchou um dia inteiro por cima de uma jibóia?

Aí por Março de 71, chegou-me uma informação mais que duvidosa, mas que eu quis acreditar – em Madina existia uma enfermeira cubana. Ora na altura tinham-me mandado afixar nas árvores do Mato Cão, uns panfletos, convidando os turras à deserção.

Quais turras, quais quê? Eu só pensava na Cubana, que a minha imaginação transformara numa bela andaluza cheia de salero. Ela sim, seria bem-vinda a Missirá.

Assim em vez dos panfletos deixei uma mensagem:

“Se habla español. Mui cerca de ti, Cabral, el último alférez romántico”...

Que terão pensado os guerrilheiros?

Não sei. Mas hoje acredito que foi por esta e por outras que o Missirá do Cabral nunca foi atacado.


Jorge Cabral

3. Comentário de L.G.:

Não resisto, embora quebrando o meu dever de isenção, a fazer um comentário a mais esta estória cabraliana. O Jorge, que na vida real é professor universitário, na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, onde coordena a pós-graduação de Criminologia e onde lecciona matérias como Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito de Menores, não é dos tabanqueiros mais assíduos. Sei que nos lê religiosamente todos os dias, mas é mais parco na colaboração escrita. Não sendo prolixo, é contudo um dos autores mais queridos do nosso blogue, tendo inclusive um clube de fãs...

Fico feliz por ele, expressamente, me convidar para prefaciar o seu futuro livro, que ainda não tem título nem editor. Claro que aceito, logo de caras. E vamos fazer tudo para que se tranforme no sucesso editorial do ano. Ele, Cabral, bem o merece. E, com ele, o nosso blogue, a nossa Tabanca Grande, os seus leitores, os/as seus/suas admiradores/as, incluindo muitos dos seus alunos/as da pátria de Cabral (do outro, o Amílcar).

Quanto à história de hoje, não podia ser mais apropriada. 12 de Maio é o Dia Internacional do/a Enfermeiro/a. Faz anos que nasceu a mulher que fundou a moderna profissão de enfermagem, a inglesa Florence Nightingale (1820-1910).

Por outro lado, a enfermeira internacionalista cubana fazia parte do imaginário (ou das miragens) do Zé tuga, na Guiné ... Por todo lado, víamos hospitais no mato e, à nossa espera, uma enfermeira cubana, imaculada, vestida de bata branca (***)...

Que dizer destas pequenas jóias literárias do nosso Cabral (o único, o autêntico, o nosso) ? Falo com ele ao telefone, de vez em quando, e ele deixa-me sempre bem disposto, mesmo quando não me trás boas notícias da nossa Guiné (que lhe chegam em primeira mão, através dos seus alunos, incluindo os filhos da nomenclatura)... Ontem, dizia-me que continua a querer voltar a Fá Mandinga para ir buscar uns papéis, seguramente imnoportantes, que deixou escondidos, em 1971, no alto do depósito de água, num buraco bem calefatado... Ele diz-me isto sem se desconcertar, com a maior naturalidade do mundo... É por isso que o seu humor é tão sui generis... Talento que lhe vêm no ADN, ou não tivera ele um avô, militar, que lhe contava histórias do realismo fantástico, como essa de andar a marchar toda a noite, em Moçambique, por cima de uma jibóia tão comprimida como a picada...

Jorge, mãos à obra, vamos ultimar livrinho!

PS - Jorge, no exército cubano, não me parece que eles tenham esse tal posto de alferes... Pelo sim, pelo não, promovo-te, no título, a subteniente
, não acontecer que a carta não chegue a Garcia, por erro no remetente.
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. o postes de 11 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4317: Os Bu... rakos em que vivemos (8): Estância de férias Mato de Cão, junto ao Rio Geba (J. Mexia Alves)


(**) Vd. os últimos postes desta série:

8 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4155: Estórias cabralianas (48): A Bandolândia ou uma aula de história em... 2092 (Jorge Cabral)

(...) O Cidadão – Aluno XI7 frequenta a décima semana do Curso Unificado – Primário, Secundário, Universitário, o qual segundo as normas da Declaração de Cacilhas, lher irá conferir o Diploma da Sabedoria.

Claro que, quando entrou na escola, já dominava muitas das matérias que antigamente demoravam anos a aprender, pois logo em criança lhe implantaram um chip com todos os conhecimentos básicos. Porém XI7, hoje chegou à aula cheio de dúvidas. É que encontrou uma fotografia do seu trisavô, vestido com uma farda e empunhando um instrumento, talvez uma arma.(...)



2 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4129: Estórias cabralianas (47): A minha mobilização: o galo dos Cabrais... (Jorge Cabral)

(...) Calma, simpática, acolhedora, a Vila de Vendas Novas. Bom vinho, petiscos, raparigas bonitas. Que mais podia aspirar o Aspirante? No Quartel fazia tudo, isto é, nada. Acumulara cargos, Justiça, Acção Psicológica, Revista, Cinema e ainda os discursos da Peluda.

Cumpria gostosamente um peculiar horário. Após o toque de alvorada, às vezes de ressaca, de cara por lavar e barba por fazer, corria para a Formatura Geral, onde... passava revista ao Pelotão. Meia hora depois, abancava no Bar e tomava um lauto pequeno almoço, antes de regressar à cama. (...)


31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4114: Estórias cabralianas (46): Inspecção Militar: E todos os tinham no sítio... (Jorge Cabral)

(...) Pois, também eu naquela manhã de Junho me dirigi à Avenida de Berna, ao Quartel do Trem Auto, onde hoje funciona a [Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da] Universidade Nova [de Lisboa].Éramos mais de cem, altos e baixos, loiros e morenos, alguns mancos, pitosgas muitos, um quase corcunda, três gagos e dois tontos. Mandaram-nos despir e pôr em fila, numa literal e verdadeira bicha de pirilau. (...)

2 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3963: Estórias cabralianas (45): Massacres e violações (Jorge Cabral)

(...) Corria o ano de 1968, quando prestes a concluir o Curso, não resisti ao convite do Estado – Férias pagas em África, com grande animação e desportos radicais. Primeiro o estágio-praia para os lados da Ericeira, findo o qual, tive um grande desgosto. Tinham-me destinado ao turismo intelectual – secretariado. Felizmente as cunhas funcionaram e consegui ser reclassificado em atirador, tendo passado a frequentar no Alentejo, o estágio-campo. Terminado este, ainda vivi muitos meses de tristeza e inveja ao ver os meus camaradas integrarem satisfeitos numerosas excursões, as quais iam embarcando (...).

27 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3808: Estórias cabralianas (44): O amoroso bando das quatro não deixou só saudades... (Jorge Cabral)

(...) O Amoroso Bando das Quatro deixou-nos muitas saudades. Mas que noite agradável ... até sonhámos com elas. Só que ainda nem três dias haviam passado, já recebíamos tratamento à fortíssima infecção que nos atingira o dito e adjacências. Graças à Penicilina, o caso seria em breve esquecido, pois afinal tinham sido apenas ossos do ofício, os quais segundo alguns até mereceram a pena... Porém, e estranhamente, os sintomas começaram a surgir nos africanos, soldados e milícias, os quais não tinham usufruído da benesse (...).

6 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3572: Estórias cabralianas (43): O super-periquito e as vacas sagradas (Jorge Cabral)

(...) Cumbá, a terceira mulher do Maunde, ainda uma menina, sentiu as dores de parto, ao princípio da noite. Às duas da manhã sou lá chamado. Está muito mal e as velhas não sabem o que fazer. Eu também não. Vamos para Bambadinca. Chegamos, mas Cumbá morre e com ela a criança não nascida. Amparo o Maunde, que chora e grita:-Duas vacas, Alfero, duas vacas! (...)

26 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3519: Estórias cabralianas (42): As noites do Alfero em Missirá e uma estranhíssima ementa (Jorge Cabral)

(...) Eram calmas as noites do Alfero? Deviam ser, pois assim que pôs os pés em Missirá, cessou imediatamente a actividade operacional dos seus vizinhos de Madina. Chegou-se a pensar que o Comandante Corca Só entrara em greve, mas no Batalhão acreditava-se num oculto mérito do Cabral. Aliás, estando ainda em Fá e esperando-se um ataque a Finete, o Magalhães Filipe para aí o mandou, sozinho, reforçar o Pelotão de Milícias. Lá passou oito dias, dormindo na varanda do Bacari Soncó, que o alimentou a ovos cozidos (...).


13 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3446: Estórias cabralianas (41): O palácio do prazer, no Pilão (Jorge Cabral)

(...) De Bissau conheci muito pouco. Apenas o Pilão, e neste Os Dez Quartos, um palácio do Prazer. Era o local ideal para um sexólogo, pois tendo todos os quartos o mesmo tecto e paredes incompletas, ouviam-se os murmúrios, os gritos, os ais e os uis, deles e delas, em plena actividade. Sempre que lá fui, abstraí-me um pouco da minha função e dediquei-me à escuta, tentando até catalogar os clientes por posto, ramo, forma, jeito, velocidade e desempenho (...).

4 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3399: Estórias cabralianas (40): O meu sonho de empresário (falhado): a construção de uma tabanca-bordel (Jorge Cabral)

(...) Claro que lembro do Tosco! Havia pretas, mulatas e até uma chinesa. Todas, mais os copos, trataram-me da saúde. Entrava sempre a coxear, por via dos descontos… Mas o meu preferido era o Bolero, onde jantava no primeiro andar, antes do Tango em baixo, tocado a rigor por uma orquestra de cegos. Ainda lá fui após o 25 de Abril. A mesma orquestra, as mesmas putas, mas a música mudara – Todos em coro cantávamos a Internacional (...).

(***) Sobre os serviços de saúde do PAIGC e a ajuda cubana, vd. por exemplo:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli (Luís Graça)

11 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingos Diaz, 1966/67)

12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P956: Antologia (48): Félix Laporta, o primeiro cubano a morrer, num ataque a Beli, em Julho de 1967

14 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P960: Antologia (49): Oficialmente morreram 17 cubanos durante a guerra

18 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P967: Antologia (51): Os combatentes cubanos ou a mística da guerrilha (Victor Dreke)

15 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2762: PAIGC: Instrução, táctica e logística (11): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (XI Parte): A máquina logística (A. Marques Lopes)

17 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2955: PAIGC: Instrução, táctica e logística (12): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (XII Parte): Saúde (A. Marques Lopes)

24 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3090: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação do cubano Ulises Estrada

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16613: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XI: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [II]: Estava a 3 km de Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966, quando o cmdt Domingos Ramos foi morto por um estilhaço de morteiro da CCAÇ 1416 (Jorge Araújo)


Foto nº 1 > Guiné > Região do Boé > Madina do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68) > Canhão s/r,  vendo-se ao fundo uma das célebres colinas do Boé que rodeavam o aquartelamento.



Foto nº 2 > Guiné > Região do Boé > Madina do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68) > Abrigo

[Duas das 38 fotos de Madina do Boé com que o Manuel Coelho nos  brindou  em 2011 e que já publicámos no nosso blogue, sendo até agora o melhor registo fotográfico que conhecemos deste mítico aquartelamento. Justifica-se a republicação, um dia destes,  do conjunto, por temas. (LG)]

Fotos: © Manuel Caldeira Coelho (2011). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas]


 
Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes),
Portimão, Grupo Lusófona.


1. INTRODUÇÃO

Dando continuidade ao projecto de investigação que tem por título «d(o) outro lado do combate», seguimos com mais algumas das memórias transmitidas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, nos anos de 1966 a 1969.

No poste anterior, iniciámos a entrevista ao médico militar Virgílio Camacho Duverger [1934-2003], a terceira no alinhamento do livro escrito em castelhano pelo jornalista e investigador  Hedelberto López Blanch, uma coletânea de memórias e experiências divulgadas pelos seus diferentes entrevistados, a que deu o título de «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.] ou “on line” em formato pdf, em versão de pré-publicação [Consulta em 30 de maio de 2016]. Disponível em: 

Uma vez que se trata de uma tradução e adaptação do castelhano, onde procurei respeitar as ideias expressas nas respostas dadas a cada questão, entendi não fazer juízos de valor sobre o seu conteúdo, colocando entre parênteses rectos, quando possível, algumas notas avulsas de reforço histórico ao que foi transmitido, com recurso ao vasto espólio disponível no nosso blogue e a outras referências retiradas da Net.

Por outro lado, este segundo poste,  referente ao médico Virgílio Camacho Duverger,  irá ter, certamente, comentários de grande valor histórico por parte dos bravos camaradas, ex-combatentes, onde os factos relatados estão prestes a completar cinquenta anos. É muito tempo… mas acredito que os episódios marcantes para aqueles que os viveram em Madina do Boé (ou na região do Boé), e foram muitos e dramáticos, nem todos são conhecidos. Eis uma oportunidade…

2. O CASO DO MÉDICO VIRGÍLIO CAMACHO DUVERGER [II]

Virgílio Camacho Duverger, cujo nome de guerra era "Vítor Córdoba Duque”, nasceu a 29 de novembro de 1934, em Guantánamo, chegando à Guiné-Conacri nos primeiros dias de junho de 1966, a seis meses de completar trinta e dois anos de vida e sete anos após ter ingressado no Exército Rebelde como técnico de saúde.

Concluiu o curso de medicina em Havana em dezembro de 1960, incorporando-se como médico militar. No dia seguinte a obter o seu diploma foi mobilizado para Mariel, seguindo-se, depois, a transferência para La Limpia del Escambray como médico militar.

Poucos meses depois é designado para fazer a pós-graduação no Serviço Médico Rural. Seguiu-se Minas de Frio, uma localidade existente na Serra Maestra, aonde funcionava a escola de recrutas [cadetes] que Ernesto Che Guevara [1928-1967] havia fundado em 1958.

Como era militar, enviaram-no para o acampamento Pino del Agua, na província de Oriente, para depois rumar ao Batalhão fronteiriço, em Guantánamo, que acabara de fundar-se. Foi o primeiro médico desse Batalhão aonde termina a pós-graduação, passando, em maio de 1962, para o Instituto Nacional de Cirurgia e Anestesiologia [INCA]. Conclui a cirurgia geral em 1964 (como militar) e transita para o Hospital Militar Central Dr. Carlos J. Finlay como especialista.

Em janeiro de 1966, durante a 1.ª Conferência Tricontinental, é lhe colocada a possibilidade de ir cumprir uma missão ao estrangeiro e que no seu caso seria a Guiné-Bissau, que aceita. Faz, então, parte do primeiro contingente de trinta elementos, entre médicos, artilheiros e motoristas-mecânicos, a chegar em missão de ajuda ao PAIGC.

Seguem-se mais alguns desenvolvimentos dessa missão,  revelados durante a entrevista dada pelo cirurgião cubano Virgílio Camacho Duverger ao jornalista e investigador  Hedelberto López Blanch, 10 meses antes de morrer.


Entrevista com 22 questões [Parte 2 > da 8.ª à 12.ª]

“Testemunhos antes da morte” [Cap. XII, pp. 154-165]



[A nota introdutória é da responsabilidade do jornalista Hedelberto López Blanch, justificando, pelo desenlace à posteriori, o titulo dado à entrevista: «testemunhos antes da morte». As perguntas vão numeradas, em romano, opção nossa. Optámos também pelo itálico na transcrição da respostas do entrevistado. Os parêntes retos são nossos].

A entrevista ao médico Virgílio Camacho Duverger [1934-2003] foi realizada pelo jornalista e historiador cubano Hedelberto Blanch numa tarde de janeiro de 2003, num pequeno gabinete do Hospital  Hermanos Ameijeiras, aonde mantinha uma consulta voluntária todas as terças-feiras. Viria a falecer dez meses depois,  vítima de enfarte do miocárdio.


(viii) Após a chegada  para onde o destinaram?

Em Conacri estivemos pouco tempo. Uma vez reunimo-nos com Amílcar Cabral [1924-1973]. Do grupo de nove médicos, o dr [Pedro] Labarrere e eu [Virgílio Duverger] éramos os únicos especialistas, alguns eram internos e outros com muito pouco tempo de graduados.

[Guiné > c. 1966//67 > s/l > Provavelmente base de Sambuia, em 1967... Da direita para a esquerda, os médicos Pedro Labarrere (falecido), Domingo Díaz Delgado e Teudy Ojeda... O primeiro da direita era o chefe do grupo cubano da Frente Norte, o tenente Alfonso Pérez Morales (Pina). Foto anexa ao livro de H.L. Blanch (2005). Reproduzida com a devida vénia.]


Na capital da Guiné-Conacri já estavam os que tinham viajado de avião [em março de 1966]. Eu fui para Boké, uma localidade situada perto da fronteira com a Guiné-Bissau, aonde havia um hospital de rectaguarda do PAIGC para a Frente Sul. Naquele tempo, na Guiné-Bissau existiam três frentes de guerra: Leste, Sul e Norte.

Para a Frente Norte, que teriam que passar pelo território do Senegal, vão três médicos: Pedro Labarrere, especialista em medicina interna; Domingo Diaz [Delgado], que tinha pouco tempo de graduado, com alguma experiência em cirurgia [o primeiro entrevistado deste projecto – P16224] e Teudi Ojeda [Suárez], com conhecimentos em ortopedia [Vd. foto acima].

Para a Frente Sul vão três cirurgiões: Rómulo Soler Vaillant, Luís Peraza [Cabrera] e o Bebo [Julio García Olivera], que era cirurgião em Santiago de Cuba.

Em Boké, ficou o Raúl Currás [Regalado], especialista em medicina interna, Jesús Pérez, que fazia ortopedia, e eu [Virgílio Duverger], que era especialista em cirurgia geral [, mais tarde irá especilizar-se em cirurgia cardiovascular]. 


Ali já se encontrava um médico [italo-]panamiano, de nome Hugo Spadafora [Franco] [1940-1985], que esteve connosco cerca de dois meses e depois não sei para onde foi.


[Segundo José Macedo (DFE21), Hugo Spadafora chegou a Conacri em 10 de fevereiro de 1966, seguindo para Boké, onde recentemente o PAIGC tinha aberto um hospital. (…) Spadafora saiu de Boké para as matas da Guiné-Bissau em julho de 1966, aí permanecendo durante nove meses. Regressou ao Panamá em maio de 1967 (comentário ao P9070)].


(ix) Passou todo o tempo em Boké?


Com cerca de três meses de estadia em Boké, o dr. Jesús Pérez teve uma icterícia violenta e regressou a Cuba. Ficámos ali só os dois: o Raúl Currás e eu [Virgílio Duverger].

Mais tarde [agosto de 1966?] mudaram-me para a Frente Leste, cujo objectivo principal, do ponto de vista militar, era o quartel de Madina do Boé [onde esteve instalada, entre maio de 1966 e abril de 1967, a CCAÇ 1416, comandada pelo Cap Mil Jorge Monteiro].

Fizemos um "hospitalito" [enfermaria de campanha] no interior da República da Guiné, perto da fronteira com a Guiné-Bissau, para apoiar os combatentes da Frente Leste, cujo chefe era o cmdt Domingos Ramos [nome de guerra “João Có”] do PAIGC .



(x) Em que consistia  esse hospital de campanha? 



Era muito rudimentar: umas palhotas de colmo com três ou quatro camitas. O médico tinha uma cubata independente, perto da enfermaria, com um rio [Corubal] a cem metros que era necessário para a higiene da instalação.

Depois vieram outros dois médicos cubanos de cirurgia, o dr.  [Santiago] Milton Echevarria [Ferrerá] (faleceu em Cuba em 2003) e o dr. Ibrahim [Fernández] Rodriguez, que actualmente é [tenente-coronel, ] professor consultor de cirurgia do Hospital Militar Central Dr. Carlos J. Finlay [com vários artigos publicados na Revista Cubana de Medicina Militar]. 



Milton Echevarria chega ao nosso hospital de forma indirecta, porque saiude Cuba para cumprir a sua missão em Moçambique, mas por não existir um  coordenador naquele país, não pôde ficar, seguindo para integrar esta nossa missão [na Guiné-Bissau].

[O dr. Ibrahim Fernández Rodriguez fez parte da equipa de sete especialistas cubanos que trataram o presidente da Venezuela Hugo Chávez (1954-2013) durante a sua estadia em Cuba. Por esse motivo foram condecorados pelo Governo Venezuelano com a «Ordem dos Libertadores e Libertadoras da Venezuela de 1.ª Classe e Espada», conforme consta no Decreto 9419, publicado no Diário Oficial n.º 40130, a segunda mais importante do país. A primeira é a “lança” e a terceira é a ”flecha”].


(xi) Participou em acções de guerra? 


A missão militar mais importante em que participei foi num reconhecimento ao quartel de Madina [do Boé]. Em novembro de 1966, na companhia dos exploradores, o dr. [Santiago] Milton Echevarria [Ferrerá] e eu [Virgílio Duverger] fizemos uma caminhada que durou perto de cinco horas até que chegámos ao local previsto. 

Regressámos, e em poucos dias preparou-se o ataque ao quartel, não para o conquistarmos, mas tão só para causar baixas e para dar conta que a guerrilha estava activa.


Guiné > Região de Boé > Madina do Boé > 1966 > Vista aérea do aquartelamento. Foto atribuída a Manuel Domingues, s/d, inserirda no poste P238 (**)



Antes do ataque, fizemos um posto avançado. Comigo ia um enfermeiro anestesista do Hospital Dr. Carlos J. Finlay [Havana] que se havia incorporado. Este enfermeiro estivera inicialmente em Boké [hospital de rectaguarda] na companhia do dr. Noronha, de um clínico de radiologia e de um clínico de laboratório.

Entrámos em território da Guiné-Bissau para estar mais perto do combate,  de modo a facilitar a assistência médica aos combatentes que ficassem feridos. Essa foi uma experiência repetida nas Frentes Norte e Sul do país, aonde as distâncias eram grandes e às vezes os feridos demoravam vários dias para chegar ao hospital.


A primeira morteirada lançada pelos portugueses [da guarnição de Madina do Boé, a CCAÇ 1416] cai, por casualidade, no local aonde estava o posto de observação no qual se encontrava o comandante da Frente, o guineense Domingos Ramos [foto ao lado com Amílcar Cabral – P16246]. Os estilhaços atingem-lhe o abdómen causando-lhe uma ruptura hepática violenta,  não lhe tendo dado tempo para o levar até ao hospital, situado na fronteira, e para o poder operar. O posto sanitário avançado era só para prestar os primeiros socorros. Durante a evacuação a caminho do hospital, Domingos Ramos faleceu [em 10 de novembro de 1966].

Embora médico, eu ia armado pois em algum momento poderia ter de combater. Do lugar aonde estávamos ouvia-se perfeitamente o ruído das viaturas dos portugueses, assim como dos disparos de artilharia: obuses [, granadas de canhão s/r, não havia obuses] e morteiros. O posto médico estava a cerca de três quilómetros do combate.


[Este episódio é descrito pelo “internacionalista” cubano Ulises Estrada Lescaille,  Ulises, só com um "s", nome de guerra de Dâmaso José Lescaille Tabares (1934-2014), chegado à Guiné-Bissau na sequência do contacto que estabelecera com Amílcar Cabral durante a Primeira Conferência Tricontinental, realizada em Havana em janeiro de 1966, nos seguintes termos:

“Eu encontrava-me ao lado de Domingos [Ramos], em que metade do seu corpo cobria o meu para proteger-me, coisa que não pude evitar, e abrimos fogo com um canhão B-10 colocado numa pequena elevação situada a cerca de seiscentos metros do quartel. Os portugueses [CCAÇ 1416] tinham montado postos de vigia na zona e responderam com disparos certeiros de morteiro, embora nós continuássemos a disparar com o canhão sem recuo, metralhadoras e espingardas.

Pouco tempo depois de iniciado o combate, senti que corria pelo lado direito das minhas costas um líquido quente e pensei que estava ferido por uma das morteiradas que caíam ao nosso redor. Era Domingos [Ramos], sangrava abundantemente. Peguei no seu corpo com a ajuda de outro companheiro e o conduzimos ao posto médico, situado a cem metros da zona do combate. O médico cubano [?, pois havia mais do que um] informou-me que havia falecido.

Não podíamos deixar o cadáver do dirigente guineense nas mãos dos portugueses. Pegámos no seu corpo e num camião nos deslocámos pelos campos de arroz até à fronteira com Conacri. Chegámos a Boké, aonde se encontrava o posto de comando fronteiriço e entregámos o seu cadáver ao companheiro Aristides [Maria] Pereira [1923-2011], para que pudesse fazer o funeral e render-lhe as honras que merecia este combatente, que foi um dos primeiros grandes chefes do PAIGC a morrer em combate”].

[tradução de JA, do castelhano: «Recordando Amílcar Cabral, líder anticolonialista da Guiné-Bissau», em: http;//45-rpm.net/sitio-antiguo/palante/cabral.htm].


(xii) Esteve até ao fim da missão no Leste da Guiné ?


Não. Como aí estava já há um ano, em junho de 1967, o dr. Rómulo Soler Vaillant, que estava na Frente Sul com Bebo [Julio García Olivera] e Luís Peraza [Cabrera], adoeceu e enviam.-no para Madina do Boé, aonde o trabalho era menos intenso, e a mim transferem-me dali com destino ao Sul [Frente].

Nessa altura já aí se encontrava o comandante Victor Dreke [Moya] como chefe da Missão Militar Cubana, e também começámos a receber aprovisionamento logístico (viveres) de Cuba, que anteriormente não tínhamos. No hospital do Sul tínhamos um caçador nativo, que era combatente, e que assegurava a proteína dos feridos e do pessoal do hospital.

Quando substitui o dr. Rómulo [Soler Vaillant], sou nomeado chefe do Hospital Militar de Boké que, como disse, estava em território da Guiné-Conacri.
   
(Continua) (***)

 ____________

Notas do editor:

(*)  Último poste da série > 12 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16592: Notas de leitura (888): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte X: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger´[I]: viajando até Conacri com nomes falsos... (Jorge Araújo)

(**) Vd. poste de 25 de outubro de 2005 > Guiné 63/74 - P238: Antologia (22): Madina do Boé, por Jorge Monteiro (CCAÇ 1416, 1965/67) (Luís Graça)

(***) Último poste da série > 17 de outubro de  2016 > Guiné 63/74 - P16608: Notas de leitura (891): “História da História em Portugal, Séculos XIX-XX”, organização de Luís Reis Torgal, José Amado Mendes, Fernando Catroga; Temas e Debates; 1998, volume II (2) (Mário Beja Santos)