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segunda-feira, 19 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24413: (De) caras (198): "Da minha varanda também vejo o mundo... Ou de como mudou a minha rua, os meus vizinhos, os meus fregueses"... (Valdemar Queiroz e os seus comentadores)

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > CIM de Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) >  O Valdemar Queiroz, nado em Afife, criado em Lisboa, foi instrutor desta rapaziada toda: aqui, com os recrutas Cherno Baldé, Sori (Jau ou Baldé) e Umaru Baldé (que, feita a recruta, irão depois para a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, a partir de 18 de junho de 1970). Estes mancebos aparentavam ter 16 ou menos anos de idade (!). Eram do recrutamento local e, originalmente, não falavam português.

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Sintra > Agualva-Cacém > Rua de Colarider > Maio de 2023> "Da minha varanda também vejo o mundo... Ou uma nesga, o da da minha rua"

Fotos (e legenda): © Valdemar Queiroz (2023). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Quando o Valdemar Queiroz casou e se mudou para Agualva-Cacém, há 50 anos, a Rua Colaride não era tão bonita e sobretudo era muito menos "colorida"...   

No país não havia mais do 28 mil estrangeiros com estatuto legal de residentes (20 mil, em 1960)... Os dados são da Pordata (ver aqui). Hoje são mais de 750 mil, segundo dados revelados recentemente pelo SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras). 

Na Rua de Colaride, há mais gente oriunda, por exemplo,  de Cabo Verde, Guiné, Angola, três antigas colónias portuguesas, que se tornaram independentes em 1974 e 1975... Muitos já terão a nacionalidade portuguesa...  

As fotos que o Valdemar vai tirando à varanda, com um "telemóvel fatela", não nos dizem tudo, mas dizem algumas coisas,dele, dos vizinhos e dos fregueses... E sobretudo deram origem a um curiosa e sobretudo rica e estimulante troca de comentários entre o Valdemar e os seus leitores...  Foram um "momento bonito" das nossas blogarias... Afinalo, blogar até faz bem à saúde...

Fica aqui um apanhado (*)... E, como diz o Valdemar, saúde da boa para todos/as, nomeadamente nesta semana de festas juninas e sardinha assada por todo o lado, da Lourinhã ao Porto... (Em Sintra, o concelho onde mora o Valdemar, o feriado municipal é no São Pedro. o santo que encerra o solstício do verão, e o ciclo festivo dos santos populares: "primeiro vem o santo António / depois o são João / e, por fim, o são Pedro / para a nossa reinação"  (diziam os putos no meu tempo, a saltar a fogueira...).


(i) Tabanca Grande Luís Graça:

(...) Uma rua, a rua de Colaride, Agualva-Cacém, que se tornou agora famosa: está no mapa e na blogosfera, por nela viver (e só poder assomar à janela...) um dos nossos amigos e camaradas, o Valdemar Queiroz... 

Vive sozinho em casa, e é portador de um doença crónica incapacitantte (o raio de DPOC - Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica), mas não perdeu o gosto de viver e conviver, e muito menos o "humor de caserna"... 

Da sua janela vê o mundo... da sua rua. É um dos mais antigos moradores da rua Colaride, que está agora mais bonita do que em 1972/73, quando um andar custava 200 contos (52 m8il / 46 mil euros, a preços de hoje...). 

Minhoto de nascimento, alfacinha por criação, avô de netos holandeses, aliás. neerlandeses.. Uma história de grande humanidade, um exemplo (tocante) para todos nós antigos combatentes, que somos representantes de uma "espécie" em vias de extinção... sem apelo nem agravo. (...)

16 de junho de 2023 às 11:17 

(...) A verdade é que os prédios da rua de Colaride, em Agualva-Cacém (...) não mostram sinais de terem grades e arame farpado, como infelizmente se vê nas cidades africanas que a gente conhece, como Bissau ou Luanda (onde a "nomenclatura" vive em condomínios de luxo)...

O prédio do nosso querido Valdemar "Embaló" pelo menos não tem, o que é bom sinal... E espero bem que nunca venha a ter...


(ii) Hélder Sousa:

Isto que o Valdemar nos presenteou pode ser observado sob vários aspetos.

O primeiro, imediato, é que me parece ser um "estudo fotográfico" da evolução do bairro onde mora, das ruas, dos habitantes, considerando que os originais se foram para outras paragens, que os habitantes agora são originários de Cabo Verde, Guiné e Angola, que já são habitantes de prédios e não de barracas ou moradias improvisadas, que são pessoas com empregos "normais", não maioritariamente na construção civil.

Considero que as povoações, os bairros, as ruas, são também, ou podem ser, "entidades vivas" com o seu quê de nascimento, crescimento, declínio e/ou substituição e que, por esse prisma, as fotos que fez (e faz) podem ser encaradas como um testemunho etnográfico.

Quanto às fotos em si mesmas, claro que o que imediatamente nos dá curiosidade é o nome estampado na T-shirt que encabeça a série, mas tudo então nos transporta para "outras paragens".

Outro aspeto que podemos considerar é mesmo o facto do Valdemar ser um "resistente", logo à cabeça como habitante do bairro (ainda e sempre, como os irredutíveis gauleses), e depois à situação de inferioridade induzida pela malvada DPOC que apesar de tudo não lhe tira a alegria de viver, o sentido crítico e até a ironia.(...)


(iii) Valdemar Queiroz:

As fotografias são tiradas por um telemovel fatela. Tivesse uma máquina como deve ser, dava para mostrar a envolvência dos fotografados.

Os arruamentos, zonas verdes e prédios têm um bom aspecto devido tratar-se de propriedade horizontal a grande maioria e como tal havido uma boa conservação.

Os prédios nasceram em 1972-1973, no caminho de uma vacaria e moinhos de vento, ainda quase todos para alugar, a receber casados de fresco vindos de Lisboa com a estação dos comboios a 10 minutos, e a meia hora do Rossio.

Levou alguns anos a ficar tudo arranjadinho como agora se vê, e os novos habitantes, principalmente a mulheres, fazem grande motivo de vaidade por viver no 2º. andar, que até dá para estender a roupa a secar. E até me dizem 'ó vizinho,  está melhor?' (...)



(iv) Eduardo Estrela:

Valdemar!!... Ver o mundo que os teus olhos abraçam desde a varanda da tua casa é muito melhor do que ir parar ao Hospital Amadora/Sintra.

Os teus exemplos de coragem e obstinação e a forma como verbalizas os momentos menos bons que a p... da DPOC te provoca, também nos transmite a nós força para encarar o futuro.(...)


Meu caro Valdemar: (...) Contudo, pelas fotos, bem nos enganas, pois julgo tiradas na varanda (espero que tenha varandas!) do Hotel Royal em Bissau! Conseguir tal proeza não é para quem quer, é para quem pode (onde é que eu ouvi isto?!). Gostei de te ver, a cores!

Não me digas que não me compr'endes
quando os dias se tornam azedos
não me digas que nunca sentiste
uma força a crescer-te nos dedos
e uma raiva a nascer-te nos dentes
Não me digas que não me compr'endes
(Que força é essa? Amigo) (...)

 14 de junho de 2023 às 18:30 


(vi) Fernando de Sousa Ribeiro:

Pronto, acho que já descobri onde mora o Valdemar Queiroz, com a ajuda das fotografias e do Street View da Google. É claro que não sei qual é o andar, nem sequer tenho a certeza sobre a porta do prédio dele, mas suponho que ele mora muito aproximadamente aqui:

 https://goo.gl/maps/ugtWqrMAFdbpf1oK7

O Valdemar não tem uma janela virada para o mar, mas merecia, porque parece ter os horizontes muito limitados. Mesmo nas traseiras, deve ter uma vista para o casario da Agualva-Cacém e pouco mais. Além disso, o ar lavado do mar far-lhe-ia bem, com toda a certeza.

A resiliência (como agora está na moda dizer) do Valdemar Queiroz é um exemplo de vida para todos nós. Aprendamos com ele. (...)

14 de junho de 2023 às 18:50 

(...) Não deve ter sido fácil convencer os donos dos automóveis que estacionavam aí à frente a deixá-los noutro lado, mas o ajardinamento desse espaço resultou em pleno. Ficou um recanto aparentemente muito aprazível, acrescido pela beleza dos jacarandás, sobretudo quando estão em flor. Só foi pena terem posto a nespereira tão afastada da varanda...

O J. Pimenta, o António Xavier de Lima e os outros construtores dos dormitórios da Grande Lisboa, como é a Agualva-Cacém, não se preocupavam com semelhantes "pormenores" tais como fazer espaços verdes e garagens para os moradores. Mesmo a urbanização de S. Marcos, do outro lado do IC 19, é uma selva de betão (pelo menos era no meu tempo), apesar de ser muito mais recente. Nada lhes escapa.

Um abraço e... saúde da boa (também posso dizer, não posso?)



(vii) Juvenal Amado:

As fotos da tua bem podem ser as da minha rua na Reboleira. Embora eu só more aqui de forma permanente há sete anos vi muitas transformações desta zona nos 20 anos que a frequento.
Africanos de varias procedências tanto dos PALOPES como francófonos e Há sete anos existiam Romanescos às cárradas que entretanto foram para outras paragens,

Olha camarada estimo a tua saúde e não sei o mar seria uma bênção pois também há mais humidade. (...)

14 de junho de 2023 às 22:26


(viii) Valdemar Queiroz:

Obrigado,  Juvenal. 
Eu nasci à beira mar, a cerca de um quilómetro, mas sem hábitos de gentes da borda d'água. Afife tinha/tem uma grande praia, mas nunca teve pescadores e gente do mar só as mulheres quando iam ao sargaço.

A rapaziada só ia à praia quando ajudava os banhistas no Verão, o mar era muito perigoso. Mesmo assim, não fora as proximidades do mar teria dificuldades em crescer dado o meu estado de raquitismo.

Em Lisboa, puxava-me ver os golfinhos no Tejo e ir para a praia da Linha de Cascais. Desde os 16/17 anos que fazia campismo selvagem na praia de Troia, e assim cresci mais um bocado mas não chegando ao 1,70 e ao desenvolvimento ósseo.

E até poder, cerca de 2008, sempre tive hábitos de "banhista" nas praias do sudoeste alentejano por mais de vinte anos. Que bom que era poder dar um mergulho numa onda e descansar na areia a fumar um cigarro (fdap de vício).

Abraço e saúde da boa

16 de junho de 2023 às 13:07 


(ix) Cherno Baldé:

Caro amigo Valdemar Embaló, conheci o teu Bairro da Agualva/Cacém onde viviam alguns conterrâneos em meados de 2001/02.

Nos subúrbios de Lisboa, por norma, quando a "africanização" dos Bairros começa a ganhar proporções, os "indígenas" tendem a fugir, é por isso que a integração é tão difícil na Europa e, concretamente, em Portugal que conheci melhor. Não pode haver integração sem convivência.

Ao Valdemar, sobrevivente de Canquelifa, Paunca e Guiro-Iero-Bocari (que poucos guineenses saberão localizar num mapa), eu sei que não faz muita diferença, pois a África e os africanos fazem parte das suas lembranças, boas e más. (...)


(x) Valdemar Queiroz:

Caro amigo Cherno Baldé: Tenho muitas fotografias destas, agora os meus vizinhos são cabo-verdianos, guineenses, angolanos. Os alentejanos, beirões e lisboetas que inauguraram esta zona do Colaride (Agualva) já partiram, os filhos e os da minha idade. Como subiu bastante o preço dos andares venderam por bom dinheiro o que lhes tinha custado 200 contos. Nos primeiros tempos pouca gente comprava os andares, eram quase todos alugados.

Então o Cherno Baldé cá pela minha rua? Lembro-me haver um fula a habitar num prédio próximo, que eu encontrava num café e havia sempre aquela do 'ta la finani?'. Coitado andava sempre a pedir para lhe pagar um café.

Mas em 2001-2002 ainda eu fumava, bebia do tintol e alinhava em boas almoçaradas.

A grande alteração do modo de habitação dos africanos foi devido aos seus filhos terem estudado e arranjarem empregos sem ser nas obras. A D. Alice, cabo-verdiana, que me trata da casa é dona do um andar no prédio em que mora a filha, e ela mora noutro andar próximo. Há tempos, quando eu lhe disse que agora há muitos africanos morar para cá, ela respondeu-me 'pois, agora a gente já não mora nas barracas'. (,,,)

15 de junho de 2023 às 01:37


(xi) Eduardo Estrela:

Bom dia,  Valdemar e malta da nossa colheita!!

A envolvência dos fotografados é feita através das imagens que recolheste. As pessoas interagem com as máquinas. Reparem nos cidadãos que aguardam o autocarro e o que está sentado nas escadas. Como diz o Cherno e bem, não pode haver integração sem convivência. Perdeu-se o bom hábito de falar com as pessoas olhos nos olhos.

Europeus, africanos, asiáticos, americanos e demais, praticam cada vez menos essa ancestral forma de comunicar. (...)

15 de junho de 2023 às 08:42

(xii) Valdemar Queiroz:

(...) Estrela, obrigado pelo comentário que como outros sempre com grande poder critico. Tenho muitas fotos tiradas com a ideia de 'sempre ao telemóvel'.

A mulher que está nas escadas à entrada do meu prédio mora na cave vem apanhar sol e falar ao telemóvel. As raparigas da paragem do autocarro são empregadas de supermercado e também apanharam o vício do 'vou já a caminho' sem necessidade dessa informação.

A necessidade dos africanos comunicar entre eles já não se pratica, vivem todos muito próximos e, tal como nós em vez de alentejanos ou beirões, são de várias ilhas ou regiões de África, talvez sem se conhecerem não ter hábito de conversa.

Noto em toda esta gente que agora vive por aqui um grande sentido de 'boa educação', com uma segunda geração a falar português em vez de crioulo e uma certa vaidade de morar ao nosso lado.

Há dias estava sentado próximo da porta de entrada e ouvi um estrondo na varanda, de seguida tocaram à campainha. Ouvi bola bola e abri a porta da escada com um 'venham cá acima'. Aparecerem dois miúdos 10-11 anos cabo-verdianos muito assustados, vão à varanda buscar a bola e tenham mais cuidado podiam ter partido um vidro, disse-lhes. Silenciosamente atravessaram um quarto regressando com a bola e voltaram-se para mim com um 'o senhor está doente, precisa de alguma coisa?'. Não os conhecia de lado nenhum, vinham da escola a caminho de casa.

Estrela, como deve estar a Carrapateira, Bordeira e a praia do Amado que durante vários anos visitava de férias no mês de Agosto e nunca mais lá irei.


(xiii) Eduardo Estrela

Vais!!!... Vais pelas tuas memórias e recordações. Viajamos quando queremos porque a mente nos permite que o façamos mesmo sem nos deslocarmos fisicamente.

Recorda a beleza que conhecesse, é muito mais enternecedor a do que a que resulta de aplicações financeiras e fraudulentas do denominado mercado.

Fiquei extremamente sensibilizado com a história dos putos de 10/11 anos.

Ainda há gente boa no mundo, com sensatez suficiente para serem solidários.
Temos obrigação de continuar a luta e participar de todas as maneiras possíveis na construção duma sociedade cada vez mais harmoniosa e racional.
Abraço fraterno e... "Saúde da Boa"


(xiv) Francisco Baptista:

Valdemar, amigo e camarada, vives na tua ilha e com as limitações que isso te traz, procuras superar as tuas limitações, fraternalmente com os vizinhos da tua rua e com os vizinhos que vais encontrando neste Blogue, és um resistente, um lutador, admiro-te muito.

Da tua varanda ou da tua janela podes contruir outras histórias. Vai dando notícias.
As tuas melhoras. (---=



(xv) Valdemar Queiroz:

(...) Que chatice, agora, e eu sem poder dar vencimento a tanto quererem saber de mim.

Já enviei a todas as TVs, outros orgãos de informação e revistas da especialidade, e até a gouchadas e cristinices, um comunicado de não querer ser conhecido mais do que já sou.

Já não tenho idade e saúde, para altos voos de mirone da varanda e guarda-nêsperas, e ganhar bom dinheiro. Chega-me o que faço, confessei, enquanto mirava um casal de pombinhos na intimidade, no beiral de um telhado.

Cá estou eu como habitualmente, a levar as coisas com boa disposição e não, por enquanto, a pensar na chatice que me havia de aparecer na parte final da corria da maratona da vida. E tenho estado bastante aflito, mas farto-me de rir com aquela do Paco Bandeira ser da família dos Bandeira e não da dos Niña ou dos Nassa.

Fernando Ribeiro, a seguir ao parque automóvel em frente dos prédios apareceu outra "praga" da época, o cultivo de couves e batatas em hortinhas por "agricultores" de outros prédios. (...)

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17735: Os nossos seres, saberes e lazeres (228): De Valeta para Bruxelas: Para participar na Primavera, visitar uma cidade muito amada (8) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 11 de Maio de 2017:

Queridos amigos,
Tudo se conjugou para que depois de uma férias em Malta houvesse um retorno a Bruxelas, três dias apressados, que se saldaram em encontros amigos e programas admiráveis.
Primeiro, o enamoramento por uma arquitetura invejável de Arte Nova, Arte Deco e período seguinte, a economia belga estava pujante e as casas e monumentos refletiam tal prosperidade.
De Namur seguiu-se para Mariemont, tarde mais aprazível não podia ter acontecido, com a visita a um museu de um colecionador que podia ter sido um rival de Gulbenkian. E à despedida mostram-se cerejeiras ornamentais, nunca o viandante entendeu porque é que estas árvores não abundam nas nossas cidades, já que temos os faiscantes jacarandás, de grande porte, podíamos espalhar pelas ruas estas cores tão risonhas.

Um abraço do
Mário


De Valeta para Bruxelas: 
Para participar na Primavera, visitar uma cidade muito amada (8)

Beja Santos

Qualquer turista que arribe a Bruxelas e que circule pelos bairros mais centrais não pode deixar de ficar surpreendido com a quantidade e qualidade de edifícios Arte Nova e Arte Deco. Há mesmo programas específicos para visitar algum do património mais valioso, caso do museu Horta, que foi residência e ateliê do arquiteto Victor Horta, um os expoentes máximos da Arte Nova, somos surpreendidos por mosaico, vitrais, pinturas murais, artes decorativas, mobiliário da época, há outros museus como Alice e David Van Buuren e há visitas guiadas pelas ruas. Surpreende depois a majestade de certa arquitetura do início dos anos 1950, a Bélgica ainda é então uma importantíssima potência económica, dispõe do Congo, a cidade enxameia-se de galerias, vistosas como templos. Veja-se esta entrada da Galeria Ravenstein, que já conheceu melhores dias, é uma peça de grande beleza, cercada de escritórios em série.


Sempre que o viandante percorre o centro histórico dá uma saltada à Catedral de Santa Gudula, um colosso de pedra de gótico triunfal, que foi alvo de muitas intervenções, é impressionante pela sua harmonia, por uma construção que lhe facilita a luminosidade, e toca ainda mais pela cuidada sobriedade dos seus eixos, mostra-se o seu órgão, aqui mesmo, não há muito tempo, o viandante viu e ouviu o mágico Trevor Pinnock, cravista sem rival, a executar obras-primas de Bach.


O viandante detém-se junto da imagem ícone da catedral, há muito que promete a si mesmo procurar saber algo sobre Santa Gudula, o que não o faz, neste caso não importa, a imagem é muito bela e dá mesmo para interrogar como é que transcende tão forte espiritualidade sendo tão ofuscante a folha de ouro, que devia constituir um sério obstáculo, já que este espaço é comedido no luxo e na ostentação. Prossigamos.


Foi-se primeiro a Namur, o viandante tem ali uma amiga há muito mais de 30 anos, depois de ter servido um rico almoço avisou que íamos até Mariemont, o viandante andou perto, já esteve em La Louvière, no tempo da Europália Rússia, foi ali que se deslumbrou com os cartazes da propaganda soviética no tempo do culto de Estaline, vai feliz e contente, sabe que a sua amiga é useira e vezeira em bons programas. O parque circundante do museu real de Mariemont é espaçoso, por ali anda gente de todas as idades, há sombras acolhedoras, o elemento floral está sempre presente, como se ilustra.




Mas que museu é este? Um rico industrial de nome Raoul Warocqué deu em colecionador apaixonado, um tanto eclético: arte egípcia, Grécia e Roma antigas, uma manifesta devoção pela história e arqueologia da região, muito fascínio pelo Extremo Oriente, pela porcelana de Tournai, um grande bibliófilo. Quando aqui se entra logo nos alertam que este domínio de Mariemont tem história ilustre, foi fundado no século XVI por Maria da Hungria, servia de residência a governadores, aqui se deu acolhimento a Carlos V ou Luís XIV. E apontam para as ruínas do castelo, que era ponto alto destes 45 hectares de domínio. O museu foi inaugurado em 1975, desenhado cuidadosamente para nos encaminhar para a contemplação de todas estas jóias de arte, ver-se à légua que o senhor Warocqué se sentia deslumbrado pela arte egípcia, pelo classicismo, pelos primores da arte oriental.



O viandante tem de vez em quando que recordar que usa uma câmara modesta, o seu flash é proibido em telas e peças sensíveis, daí, na hora da despedida deste tão belo museu se ter registado um busto que qualquer museu não se importaria de acolher.


E assim acabou o penúltimo dia em Bruxelas. Não há melhor despedida do que mostrar as cerejeiras ornamentais que pululam em Watermael-Boisfort, onde o viandante tem um ponto de partida e de chegada, é de uma enorme impressão este colorido de feição orientalizante, pois são cerejeiras japónicas, cercadas de construções com quase um século de existência. Amanhã, último dia, haverá ainda uma deambulação pedestre dentro de bosques e a visita à exposição de Pierre e Gilles, no Museu de Ixelles, e depois ala morena que se faz tarde, pega-se na bagagem e vai-se até Zaventem. Até á próxima.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17713: Os nossos seres, saberes e lazeres (227): De Valeta para Bruxelas: Para participar na Primavera, visitar uma cidade muito amada (7) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17394: Agenda Cultural (562): Juvenal Amado ("A tropa vai fazer de ti um homem") na Feira do Livro de Lisboa, no Espaço Chiado, 5 de junho, pelas 18h00,,,E os jacarandás vão estar em flor!



A Feira do Livro de Lisboa 2017 está aí!... E os jacarandás vão estsr em flor!... Aliás, já estão!

E com ela, a Feira, vão estar no Parque Eduardo VII no os escritores da Tabanca Grande!...

Vamos  apoiar o nosso Juvenal  [Sacadura] Amado, que vai estar no Espaço Chiado (pavilhões D25, D27, D29, D38, D40, D42), no próximo dia 5 de junho, 2ª feira, às 18h00, no Parque Eduardo VII, em Lisboa.



Lisboa > Parque Eduardo VII, junto à praça Marquês de Pombal e à av Joaquim António de Aguiar > 7 de junho de 2014 > Os jacarandás em flor

Foto:  © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.

Sinopse sobre o livro e o autor, Juvenal Sacadura Amado:

"Nascido em 1950 na localidade de Fervença, Maiorga, concelho de Alcobaça, findo a escola primária, o seu destino imediato foi ir trabalhar - como acontecia com a maioria das famílias de operários.

Passou por diversos empregos e aprendizagens até que se fixou na Crisal Cristais de Alcobaça onde aprendeu pintura e desenho.

À semelhança do que aconteceu a milhares de jovens em 1961, também Juvenal Sacadura Amado, prestes a fazer os seus 22 anos, deu entrada na vida militar contribuindo assim para encher os comboios especiais e porões dos navios, que o levou para combater além-mar. Estas gerações já nasceram soldados.

A expressão 'Atropa vai fazer de ti um homem' era uma premonição de que só seriam verdadeiros homens quem passasse pelas vicissitudes que a vida militar e a guerra impunha, como se fosse impossível alcançar esse estádio sem esses sacrifícios.

É com ironia que hoje recorda estas palavras. O título deste livro é, de certa forma, uma pequena provocação."


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Nota do editor:

Últiomo poste da série >  18 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17374: Agenda cultural (561): Os nossos amigos da banda musical "Melech Mechaya" vão tocar, ao vivo, no 8º Festival de Telheiras, na praça do metro de Telheiras, Lumiar, Lisboa, sábado, dia 20, às 22h00. Entrada gratuita.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16055: As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte I: de Cascais até à Portugália / Dundo...

1. Desafiámos o José Manuel Matos Dinis (ex-fur mil at inf,  CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), nosso grã-tabanqueiro e adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha, Jorge Rosales (que está de pedra e cal ), a falar da sua experiência de vida em Angola, mais exatamente na Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, na Lunda, onde viveu e trabalhou durante dois anos e meio e onde nasceu o seu primeiro filho... Depois do regresso a casa, a Cascais, em janeiro de 1972, vindo a Guiné, rumou até Angola, em maio de 1972.  E foi feliz no Dundo. 

Carlos, Luís


A ver se é isto que se pretende. Seguir-se-ão episódios mais descritivos daquela sociedade. Como de costume,  fiz isto de embute e pode carecer de revisão.


Luís e Carlos, bom dia!

Respondo a um repto do Comandante-Mor para dar conta de algumas das minhas memórias angolanas, que ele acha que podem ter interesse para publicação, enquanto testemunho sobre a colónia que era o motor da economia portuguesa. 

O interesse é muito relativo e meramente histórico. Para quem se interessar pelas ligações portuguesas no mundo, pela forma como o "jardim" [, à beira-mar plantado,] dependia e controlava os imensos territórios e as gentes, e ainda tiver gosto em fazer avaliações sobre a relatividade da Nação no contexto das nações, pode ser que consiga espevitar a curiosidade, no sentido de, ainda mais do que eu, aprofundar esse conhecimento, pois não só há literatura, como muita informação na Net. 

Advirto, porém, de que são algumas das minhas memórias de há 40 anos, e a Angola de hoje nada tem a ver com a daquele tempo. Agora, regista-se um concentracionismo em más condições da população em redor da capital, das actividades sociais e económicas, enquanto o resto do país, de maneira muito abrangente, definha com as antigas e prósperas cidades abandonadas em estado de ruína, conforme legado da guerra que devastou aquela terra.

As minhas memórias, no entanto, são apenas de uma região situada nos confins do nordeste, fronteira com o Katanga, onde a Companhia de Diamantes de Angola [, Diamang,] (*) tinha as suas principais actividades, e era conhecida como um estado dentro do Estado, enquanto de Luanda apenas retenho escassas memórias de duas vezes em que lá passei e permaneci por 8 dias de cada vez.

Abraços fraternos
JD


2. As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte I

Em Janeiro de 1972 tinha saído da tropa, dava passeios e namorava pelo litoral de Cascais, onde outros casais nos faziam concorrência. Os meus amigos estavam na vida militar, acabavam os cursos, ou já tinham iniciado actividades profissionais. Já não era como antes, quando a malta se reunia como seita para a paródia, ou para entusiásticas futeboladas. Namorava com envolvimentos familiares, e tinha a obrigação de procurar definição de vida. Não queria trabalhar debaixo de um tecto, e por isso, ficava excluída uma preparação profissional que tinha iniciado antes da tropa. 

Afigurava-se-me interessante o garantido ingresso como comissário de bordo na TAP (nem tentaria piloto, pois tinha extraído dois dentes no regresso da Guiné e era impeditivo para a categoria), porque o salário era suficiente e os voos alternavam com dias de descanso em Portugal como nos diferentes destinos. Seria uma abertura para novos horizontes.

Porém, mordia-me um bichinho africano, e a minha namorada dava-me carta branca para decidir o futuro. Para não andar totalmente às escuras, informei-me sobre os trabalhos das minas de diamantes, e logo me entusiasmou essa ideia. 

Na minha candidatura em Lisboa aconteceu uma peripécia, porque o chefe de pessoal não me atendeu na manhã e na tarde de um dia, e preparava-se para não me atender no seguinte, sempre "ocupado" com tarefas superiores. Dei uma informação ao contínuo que me olhava com pena, e logo fui muito bem recebido pelos chefe e director do departamento de recursos humanos. Às informações que iam prestar-me durante uma conversa agora agradável, contrapus não ser necessário porque já tinha o conhecimento suficiente sobre a actividade que queria abraçar: mineiro. Assinei o contrato, dois dias antes de a TAP me chamar para as formalidades do curso.

Em Luanda procurei um amigo que trabalhava na Casa Pia. Com ele, ou com a família, passei os
dias em petisqueiras, e por isso, quase não conheci a cidade que, no entanto, afigurou-se-me cheia de contrastes entre o bom e o mau. 

De petiscos é que fiquei bastante satisfeito. Durante esse período nem me dirigi à delegação da Companhia, onde, por vezes, emprestavam um carro ao pessoal em trânsito ou davam informações e facilidades. No dia 21 de maio de 1972 apresentei-me no aeroporto. Ali travei conhecimento com um empregado que fora a Luanda tratar de alguma coisa. Estivemos à conversa informalmente, e em intercaladas apreciações sobre uma jovem, de barrete na cabeça, que se deslocava para o Lobito, onde, infelizmente, amarou o "Frienship" daquela linha (*). 

A seguir partimos para a Portugália (**) com escala em Malange. Ao sobrevoar as Pedras Negras tive a sorte de ver uma manada de palancas em corrida, assustadas pelos motores do avião. O Fortes deu-me algumas indicações pelo caminho e na chegada. Mais tarde, quando me deslocava ao Dundo, costumava procurá-lo para cumprimentos, e acabou por ser o meu padrinho de casamento, contra propostas de pessoas mais importantes, resultado da minha aversão às cunhas e situações de favorecimento.

Essa noite, depois de jantar, dormi na Casa do Pessoal, o que também aconteceu na noite seguinte. Dei uma volta pela localidade do Dundo, a sede administrativa da Companhia, com um urbanismo muito organizado que me sensibilizou favoravelmente. As casas,  de bonitos recortes e amplas varandas, sem muros ou vedações, mantinham boas distâncias até aos limites das ruas, que abrigavam espaços relvados, muito bem cuidados, e com fartura de árvores, arbustos e canteiros de flores, que transmitiam uma grande riqueza pictórica, frescura, e deleite para os olhos. Tudo alinhado e muito limpo. Parecia (e era) um paraíso na terra.

Entretanto fora informado de que ia trabalhar com o mais conceituado dos chefes de grupos mineiros, o engenheiro Marvanejo, um tipo simpático, mas duro, que reflectia os bons resultados pela exigência no desempenho das tarefas. Era coisa que não me assustava, só queria ter oportunidade para fazer a minha aprendizagem em boas condições de diversidade das circunstâncias. 

No Dundo ainda me propuseram trocar o mato pela permanência naquela localidade, a melhor, e a vida de mineiro pela de meteorologista. Delicadamente recusei, eu tinha mesmo uma grande atracção pelo mato. Ofereceram-me como prenda um chapéu colonial, mas era tão incómodo, e eu estava tão familiarizado com o sol africano, que também recusei. Assim, ao terceiro dia de manhã cedo, fiz as despedidas, e embarquei numa viatura Volkswagen de caixa-aberta com as "imbambas" que me tinham calhado em sorte, e incluíam panos para cortinados, lençóis, cobertores, e outras utilidades. 

trajecto para Cassanguidi era de cerca de hora e meia, em estrada alcatroada com passagem pela savana verde de vastos horizontes, por várias aldeias, e uma pequena localidade mineira, Fucaúma, que pertencia ao grupo para onde me deslocava. Cheguei durante a hora de almoço, e fui directo à Casa do Pessoal. "Bom dia meus senhores, chamo-me José Dinis, e sou um empregado novo". Levantaram-se os olhares e cumprimentaram-me de cada mesa com os talheres na mão. 

Depois de almoço, os visitantes que se ocupavam da construção de estradas e de uma ponte, abalaram às suas vidas, e eu apresentei-me no grupo. O Chefe já estava de saída, mas mandou-me ali voltar pelas 17h00, para conhecer o colega com quem faria estágio, e o sub-chefe Pereira da Silva, porque o "Benfica dele" era noutros azimutes onde pontificavam "cortes ricos", os que garantiam mais negócio.

Novas apresentações, a do subchefe e a do colega que passaria a acompanhar até me considerarem apto e autónomo. No dia seguinte, pelas 6h00 já estava pronto à porta da Casa do Pessoal, a minha nova morada, enquanto não tivesse residência própria. A bordo de Volkswagen percorremos as picadas, ornadas de belas árvores - com destaque para os jacarandás vermelhos ou roxos, alternando com nichos de plantas locais e capim, onde esvoaçavam aves de diferentes portes e coloridos. 

Acompanhámos um rio largo, de bom caudal e margens baixas à esquerda, sob um fundo verde, até flectirmos à direita com direcção à mina. Depois de passarmos uma galeria de grandes árvores, deparei-me com o refeitório à direita, bem pintado de branco, e com alinhamentos alternados de bananeiras-macaco e "mamões" (família da papaia), num espaço bem arranjado. No fim da rua despontava uma casa branca com um jardim de ananases plantados em semicírculo. Contornando o escritório, deparava-se a lavaria a uns vinte ou trinta metros. Um telhado alto para protecção das chuvas - ali chovia 9 a 10 meses por ano, onde se despejavam para as tremonhas as vagonetas que transportavam o cascalho. A linha entrava e saía pelo mesmo lado, em via dupla até à exploração depois de atravessar uma ponte sobre um canal a meio da colina, onde os ramais drenantes eram dispostos conforme os "cortes" em exploração, ou em limpeza da rocha base. 

A lavaria situava-se à direita de quem saía do escritório, e era alimentada por uma correia transportadora que, da tremonha,  levava o cascalho para as "pans" de centrifugação, de onde os materiais densos desciam para os depósitos de "concentrado" ou "gigas", enquanto o material rejeitado seguia por outra correia para uma acumulação de inertes. Do local desta acumulação, como da saída das linhas, tinha-se uma vista larga sobre a exploração rodeada por uma envolvência em anfiteatro de árvores imponentes, que acompanhavam a colina até ao nível do rio, onde desaguava o canal para onde se dirigiam os diferentes drenos de protecção. 

Os cortes, consistiam em espaços definidos pelo programa de exploração, de onde se removiam as terras para os cortes já explorados, cujas espessuras variavam conforme o nível da superfície natural, até se atingirem as camadas de cascalho, e seriam cobertos com a terra removida de novos cortes anexos. Definiam-se as linhas de drenagem, as mesas de assentamento de carris para o acesso das vagonetas, a localização das rodas de canto para as conduzir em diferentes direcções conforme a evolução dos trabalhos e o percurso até à lavaria. Havia uma ou duas bombas hidráulicas para secagem das partes inundadas aquando das mais intensas chuvadas que a drenagem não satisfizesse. 

No fim do dia de trabalho chegava a viatura do concentrado, que transportava as bilhas para uma estação de escolha, onde eram seleccionados e classificados os diamantes, depois de passarem por novos processos de centrifugação e escolha. O horário de trabalho de um único turno começava um pouco antes das 7h00 e terminava às 16h00, com uma hora para almoço, mas havia padejadores que saíam mais cedo conforme acabassem as tarefas. As folgas eram em regime de "semana inglesa".

Ao terceiro dia o Carlos partiu uma perna a jogar à bola, e fiquei sem instrutor. Tinha tido dois dias apenas de estágio, e faltava-me toda a experiência para a condução dos trabalhos em boa ordem. O engenheiro subchefe visitava-me por vezes, mas, apesar de ser um tipo porreiro, era espalha-brasas e não tinha cuidado no linguajar com os trabalhadores. Mal virava costas, eles desprezavam-no. De modo que fiz o estágio com os capatazes, com quem trocava impressões sobre o que era bem ou mal feito. Foi a escola possível, e o Muriandambo foi o capataz-geral que mais me ensinou. Essa aprendizagem, na teoria,  era complementada com conversas que mantinha com os colegas mais experientes. Entretanto, tinha agendado o casamento para o final do ano. Eu andava feliz, apesar das preocupações.

O ambiente, o pessoal e as famílias, era acolhedor. Passei a ocupar o tempo livre com convívios. A Casa do Pessoal era gerida pelo Tomás e a mulher, sendo ela uma boa cozinheira, e ele um apreciador da sua produção com bastante mais de cem quilos. Eu e o Maia éramos os únicos residentes, ambos solteiros. Quando estacionava o carro que herdara pelas 16h30, já havia malta a chamar-me para o petisco, pelo que me habituei a tomar banho pouco antes do jantar durante a digestão. Outras vezes, acabávamos de jantar e ficávamos à conversa, aparecia o Tomás com uma travessa de qualquer coisa para entretermos os discursos. Se não fosse a entrega à actividade física durante o horário laboral, teria ficado inchadíssimo, mas consegui permanecer nos 75 kg. 

Um dia desses falei em irmos ao Luchilo tomar café, que lá a Casa do Pessoal funcionava até mais tarde. Não podíamos. Na Companhia exigia-se autorização para tudo, principalmente as deslocações. No fim-de-semana propuseram-me deslocar-me ao Dundo, e não me dera conta desse constrangimento. No dia seguinte, à tarde, fui bater à porta do Chefe, que me recebeu com alegria descontraída. Disse-lhe ao que ia, e pedi licença definitiva para me ausentar para outro grupo, dado que não queria causar-lhe incómodos. Boa ideia, respondeu, e acrescentou que a partir daquele dia acabava as autorizações para deslocação, pelo que ficavam todos autorizados a fazer qualquer deslocação. Logo a notícia correu outros espaços, e a breve trecho essa diligência acabava. 

(continua)
_______________

Notas do editor:

(*) A produção de diamantes em Angola data  de 1917, ano em que se constitui a Diamang - Companhia de Diamantes de Angola  , uma empresa de capitais mistos de vários grupos financeiros (Portugal, Bélgica, Estados Unidos, Inglaterra e África do Sul). Em 1981, o Estado angolano passa a ter o controlo total da produção diamantífera  no país, criando a Endiama -  Empresa Nacional de Diamantes.

Há um portal, na Net, fabuloso, dedicado à Diamang e à Lunda, com centenas de fotografias da época, permitindo "reconstituir" a vida, nomeadamente dos brancos, que trabalhavam na Diamong. São sobretudo memórias dos antigos trabalhadores da Diamang. Também há uma página (aberta) no Facebook, com mais de 750 membros, dedicada à Diamang Angola. Também a Universidade de Coimbra gere o sítio Diamang Digital, "um projeto de digitalização e disponibilização em linha de materiais documentais, fotográficos e fonográficos da ex-Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, em arquivo na Universidade de Coimbra",

(**) Referência ao trágico acidente de aviação com um Fokker F-27 Friendship 200, no Lobito, em 21 de maio de 1972, e que fez 22 vítimas mortais. Era da DTA (criada em 1938), antecessoora dos TAAG - Transportes Aéreos de Angola (, partir de 1973).

(***) Hoje Dundo, capital da Lunda Norte. Diana Andringa, nossa amiga, grã-tabanqueira, nasceu no Dundo, em 1947, e fez um belíssimo documentário, em 2009, de 60', justamente sobre o "Dundo, memória colonial".

(...) Em 1947, ano em que nasci, trabalhavam na Diamang, na Lunda, cerca de quinze mil trabalhadores angolanos e umas duas centenas de imigrantes, entre europeus – portugueses, belgas, ingleses, suíços, luxemburgueses e russos – e africanos – cabo- verdianos, são tomenses, sul-africanos. O meu pai era um desses imigrantes. Nascido em Lisboa, filho de holandês e espanhola, fora para a Lunda como engenheiro de minas. Viúvo, casara em segundas núpcias com a minha mãe, nascida em Angola de imigrantes portugueses – e, logo, portuguesa de segunda.

O Dundo, na margem esquerda do Rio Luachimo, a 18 quilómetros da fronteira com o então Congo Belga, era o principal centro administrativo da Diamang na Lunda, onde detinha o exclusivo da exploração e pesquisa de diamantes numa área de cerca de 1.025.000 Km2.

Para se ter a ideia do que era o poder da Diamang bastará dizer que, no contrato de concessão celebrado em 1920 – três anos depois da sua criação – ficara acordado que oferecia a Angola 5% do seu capital social, já realizado ou que viesse a ser realizado; comprometia-se a pagar anualmente a Angola 40% dos lucros líquidos; emprestava a Angola 400.000 libras; podia efectuar a exploração dos jazigos descobertos, mediante simples comunicação à autoridade local; mantinha por um período de 30 anos – a prorrogar – a exclusividade da pesquisa de diamantes, em cerca de 90% do território de Angola.

Era bom ser criança no Dundo, quando se era branca e filha de engenheiro. Havia espaço para brincar, ruas para andar de bicicleta, animais, liberdade. E criados para nos acompanhar e satisfazer os nossos caprichos. Era bom ser criança e não notar como era artificial e injusto o mundo que nos cercava. Mas à medida que cresci, fui-me apercebendo de que não era igual para todos… (...)

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P16012: Manuscrito(s) (Luís Graça (82): Uma estranha maneira de dizer adeus… (ou quando os soldados partiam para a guerra)

v13  25abr2016

 Uma estranha maneira de dizer adeus… (ou quando os soldados partiam para a guerra)

por Luís Graça



Um estranha maneira de dizer adeus, um estranho povo este
que vem ajoelhar-se, no cais de partida,
não em oração, para aplacar a ira dos deuses, mas vergado,
vergado à toda poderosa razão de Estado.

A tentacular força centrífuga que, de há séculos,
te leva os filhos teus, 
ó Pátria, para fora,
paridos e expulsos do ventre da Mátria, para longe,
bem para longe, muito para lá do mar.

Ordeiros os soldados, como os cordeiros da matança da Páscoa,
anhos, dizem no norte,
alinhados no Cais da Rocha Conde de Óbidos,
como os elétricos amarelos que vão para a Cruz Quebrada,
empilhados, aboletados, requisitados às mães 
para servir a Pátria, o pai-patrão
que lhes cobra o dízimo em sangue, suor e lágrimas.

A mesma atitude, admirável, de patética resignação
perante o arbítrio dos deuses
que tudo pedem e podem, diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que este é um povo religioso
porque tem o sentido do pathos, leia-se:
da tragédia inelutável.

Coitadas das mães que tais filhos pariram,
dizes tu, entre dentes,
para o teu camarada que vai subindo à tua frente o portaló,
o cadafalso, com um nó na garganta, mal disfarçado,
no meio dos lenços brancos ao vento,
em fundo preto, 
como em Fátima no 13 de maio.

Uma despedida breve com lágrimas salgadas no rosto,
com o Niassa
a última nau das Índias,  
a apitar três vezes,
sob a ponte de Salazar, ainda reluzente,
o velho abutre que alisa as suas penas,
dirás tu, Sophia, pitonisa de Delphos,
quase morto mas não enterrado.
Os últimos golfinhos do Tejo,
a última fragata de vela erguida,
a última caravela,
a última nau do cais da Ribeira,
o último império que ficou por haver,
o último marinheiro em terra,
sinal de tempestade,
o último uísque marado que ficou por beber no Cais do Sodré,
o Cristo Rei em terra que outrora foi de infiéis,
o Terreiro que continua do Paço, não do povo…
Ah! Lisboa, Lisboa, 
e o teu casario, branco, sujo,
um filme a preto e branco, riscado,
um gato preto à janela, sinal de mau agoiro.
Lisboa,  Lisboa, e lá longe a Guiné,
Lisboa, enfim,  as tuas ruínas,
pré-pombalinas,
o poço dos mouros, o poço dos negros,
o lundum, a umbigada
a procissão da Nossa Senhora da Saúde.
mais a Santa Inquisição,
zelando pela pureza da raça e do sangue,
zurzindo corpos e almas,
o Cemitério dos Prazeres, 
numa das tuas colinas,
com os seus altos ciprestes negros,
os mastros dos navios da carreira colonial,
o império por um fio dental,
a vida, curta, que se recapitula, de fio a pavio,
no último comboio que veio do campo militar de Santa Margarida,
pela calada da noite.

Lisboa revista, revisitada, revistada,
devassada, despojada,
em filme de oito milímetros, a preto e branco
ou a preto e negro, 
dizes tu, corrosivo.
Uma só nação, valente mas mortal,
ironiza alguém.
O Niassa colonial na azáfama do seu vai-e-vem,
antes de ir parar à sucata,
inglória a sucata da história que tu perdeste
aos dezoitos anos,
quando deste o nome para as sortes.
Estranha palavra esta, das sortes,
que rima com desnortes e com mortes,
e com os fracos de que não reza a história.

 Ah!, e os jacarandás que choram,
de lágrimas lilases, em pleno mês de maio,
e as santas das nossas mães que ficaram em casa,
a acender a vela à santa das santas,
a tecer o lenço de enxugar lágrimas,
um fado que tu ouviste no Bairro Alto,
e que já não era batido nem dançado nem cantado,
um fado apenas gemido, 
sussurrado.

 Passado o Bugio,
deixado para trás o velho do Restelo,
choradas as mães de xaile preto,
há um briefing às cinco da tarde, anunciam a bordo,
já em velocidade de cruzeiro,
no mar alto que outrora foi português,


Não, não uso a cruz, o crucifixo,
como colete de salvação, senhor capelão,
não vou para a guerra santa combater os infiéis,
alguém há de rezar por mim
para que eu volte são e salvo.
Do regulamento é apenas a chapa de zinco
com o número mecanográfico 13151468
e o picotado ao meio,
para mais facilmente ser cortada em duas partes
que seguirão caminhos distintos,
tudo isto face ao risco, bem real e concreto,
de eu morrer longe, bem longe da minha pátria,
para lá do mar, em terra que não me viu nascer.


E tu, camarada, descansa, que ninguém fica para trás,
se tu  morreres na batalha, alguém tratará da tua mortalha,
cerrará os teus dentes, puxará as persianas das meninas dos teus olhos,
porá um moeda na tua boca para pagares a viagem 
ao barqueiro de Caronte,
e fará o teu espólio e engraxará as tuas botas.

Sim, levarei comigo a pedra-chave que me liga ao além.
uma chapa de zinco, picotada ao meio,
outrora era de xisto ou de grés,
entre o meu antepassado calcolítico, castrejo, romanizado.

Pois, então, camaradas
se eu morrer, 
que me enterrem, de vez,
numa anta do meu país megalítico.



A bordo do T/T – Transporte de Tropas, Niassa,
a caminho da Guiné,
24-29 de maio de 1969.

Luís Graça

Revisto em 24nov2023.
 
__________

sábado, 23 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14651: Manuscrito(s) (Luís Graça) (57): Quando o Niassa apitou três vezes... Foi há 46 anos, a 24/5/1969, ias tu a caminho de Bissau, com mais 1734 camaradas, incluindo o soldado condutor auto da PM Jerónimo de Sousa...


T/T Niassa > 24 de maio de 1969 > Uma imagem repetida até à exaustão ao longo da guerra colonial; o transporte de tropas era feito em cargueiros, mistos, adaptados... As condições a bordo eram inumanas ... Neste caso foram transportadas 13 companhias independentes. num total de 1735 homens. As praças eram acomodadas em beliche, nos porões, como animais. Com capacidade para 3 centenas de passageiros, além de cerca de 130 tripulantes, o T/T Niassa. a caminho do TO da Guiné aumentava a "carga humana" cinco ou seis vezes mais...

Foto do livro "Histórias da CCAÇ 2533" [Edição e legendagem: LG]



N/M Niassa > Ficha técnica:

(i) navio misto (carga e passageiros), de 1 hélice; (ii) construído em 1955, na Bélgica; (iii) registado no porto de Lisboa (e abatido em 1979); (iv) com mais de 151 metros de comprimento; (v) arqueação bruta de c. 10.700 toneladas; (vi) uma potência de 6800 cavalos e uma velocidade normal de 16,2 nós; (vii) alojamentos: 22 em primeira classe, e 300 em classe turística, num total de 322 passageiros; (viii) número de tripulantes; 132; (ix) armador: Companhia Nacional de Navegação, Lisboa.

Foi neste navio, adaptado a transporte de tropas (T/T), que viajaram (!), de Lisboa para Bissau, diversas companhias independentes, com partida a 24 de maio de 1969, incluindo a CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), a CCAÇ 2591 (futura CCAÇ 13), a CCAÇ 2592 (futura CCAÇ 14), bem como a CCAÇ 2533 (dos nossos camaradas Luís Nascimento e Joaquim Lessa) ou ainda a CPM 2537 (a que pertenceu o atual secretário geral do PCP - Partido Comunista Português, Jerónimo de Sousa). Um "fait divers" para a história...

Crédito fotográfico: Navios Mercantes Portugueses (2004) (Foto aqui reproduzida com a devida vénia...)


apitou três vezes


por Luís Graça (**)



Uma estranha maneira de dizer adeus,
um estranho povo este
que vem ajoelhar-se,
no cais de partida,
não em oração para aplacar a ira dos deuses,
mas vergado,
vergado à toda poderosa razão de Estado.

A tentacular força centrífuga
que, de há séculos,
te leva os filhos teus, para fora,
paridos e expulsos do ventre da mátria,
para longe, bem para longe,
muito para lá do mar.

Uma despedida breve,
com lágrimas salgadas no rosto
e lenços brancos em fundo preto.
Todas as despedidas são breves e tristes:
o momento em que o Niassa apita três vezes
e levanta a âncora,
nunca se poderia eternizar,
diz o capitão de terra, ar, mar e guerra,
lencinho ao pescoço,
cheirando a Vat(e) 69, ontogenético, fotogénico,
cinéfilo, garboso, charmoso, glamoroso
pronto para a ação
... na mesa do king, do bridge ou da lerpa.

Passado o Bugio,
deixado para trás o velho do Restelo,
desvanecido o azul da serra de Sintra,
há um briefing às cinco da tarde,
já em velocidade de cruzeiro,
no mar alto que outrora foi português,
anuncia o capitão,
muito pouco ou nada miliciano,
que serve de mordomo, pequeno e burguês.
Vai na segunda comissão, o oficial provinciano,
que nunca ouviu falar da batalha de Dien Bien Phu
nem sabe onde fica a ilha do Como.

E o filme da noite é  uma comédia, 
do cinema mudo,
acrescenta o nosso primeiro,
que no T/T Niassa faz de porteiro
ao bar Meu Amor, Guiné.
Um gajo bacano, num país de bacanos,
fulanos e sicranos,
de soldados rasos, primeiros cabos, furriéis forcados
e segundos sargentos, mangas de alpaca.


Uma tragicomédia, escreverás tu no teu diário
a que mais tarde chamarás Diário de um Tuga.
Cadé os oficiais ?
Cadé a elite da nação ?
Onde estão os filhos-família,
a ínclita geração, 
os primeiros, a fina flor, os morgados,
os cavaleiros andantes, os primogénitos, os palmeirins,
os fidalgos, a casta, a raça apurada,
o sangue azul, pedigreeos Gamas e os Camões,
os melhores de todos nós ?
... Morreram todos
em Alcácer Quibir.

Lisboa revista,  revisitada,  revistada,
em filme de oito milímetros,
a preto e branco ou a preto e negro,
dizes tu, corrosivo,
uma só nação,
valente mas ferida mortalmente,
ironiza alguém.
O Niassa colonial
na azáfama do seu vai-e-vem
antes de ir parar à sucata,
inglória a sucata da história que tu perdeste
aos dezoitos anos,
quando deste o teu nome para as sortes.
Estranha palavra essa, das sortes, 
que rima com desnortes
e com mortes e com fortes, 
que dos fracos não reza a história.

despedida breve e triste do Niassa,
o teu primeiro e único cruzeiro da vida,
e ainda mais triste é o filme, sem som,
sem palavras desnecessárias, a preto e branco
que alguém terá feito
no cais das sete partidas,
talvez a noiva que ia vestida de branco
com xaile preto, a louca,
por cima dos ombros.

A ponte, ainda reluzente,
de Salazar, o velho,
o velho abutre que alisa as suas penas,
dirás tu, Sophia,  pitonisa de Delphos,
quase morto mas não enterrado.
Os últimos golfinhos do Tejo,
a última fragata de vela erguida,
a última caravela,
a última nau do cais da Ribeira,
o último império que ficou por haver,
o último marinheiro em terra,
sinal de tempestade,
o último uísque marado 
que ficou por beber de um trago
no Cais do Sodré, amargo,
o mudo do Cristo Rei em terra 
que outrora foi de infiéis,
o Terreiro que continua do Paço,  não do povo…
Lisboa e o seu casario, branco, sujo,
o filme a preto e branco, riscado,
um gato preto à janela,
sinal de mau agoiro.

Lisboa...  e lá longe a Guiné,
Lisboa, enfim,  com as suas ruínas,
pré-pombalinas,
o poço dos mouros, o poço dos negros,
o lundum, a umbigada
a procissão da Nossa Senhora da Saúde,
mais a Santa Inquisição,
zelando pela pureza da raça e do sangue,
zurzindo corpos e almas,
o Cemitério dos Prazeres ao alto,
com os seus altos ciprestes negros,
os mastros dos navios da carreira colonial,
o império por um fio, dental,
a vida, ainda curta, que se recapitula,
de fio a pavio,
no último comboio da noite
que veio do campo militar
de Santa Margarida.

Ah!, e os jacarandás  que, em maio, já choram,
de lágrimas lilases,
e as santas das nossas mães que ficaram em casa,
a acender a vela à santa das santas,
a tecer o lenço de enxugar lágrimas,
um fado que tu ouviste numa tasca do Bairro Alto
e que já não era batido nem dançado nem cantado,
um fado apenas gemido, sussurrado.

Ordeiros os soldados
como os cordeiros da matança da Páscoa.
anhos, dizem no norte, alinhados
no Cais da Rocha Conde de Óbidos,
como os elétricos amarelos
que vão para a Cruz Quebrada,
empilhados, aboletados, requisitados
às mães para servir a Pátria,
o pai-patrão que lhes cobra o dízimo
em sangue, suor e lágrimas.

Mudos, agrilhoados, os básicos,
uns refratários, outros desertores,
cozinheiros, magarefes, corneteiros,
apontadores de dilagrama,
municiadores de metralhadora,
desenfiados, traidores, atiradores,
sacristães, sapadores, pulhas,
coveiros, escriturários,  bazuqueiros,
safados, bufarinheiros, cavaleiros,
trolhas, cavadores de enxada,
infantes, artilheiros, maqueiros,
herois de torre e espada…

Coitadas das mães que tais filhos pariram,
diz a letra do ceguinho.
subindo o portaló, o cadafalso,
com um nó na garganta mal disfarçado,
os lenços brancos como em Fátima no 13 de maio.
Algumas bandeiras verdes-rubras,
poucas e loucas,
que os tempos não são
de exaltação patriótica.
O hino canta-se em voz de cana rachada,
em disco riscado
por senhoras, poucas e roucas,
do Movimento Nacional Feminino.

A mesma atitude, admirável,
de patética resignação
perante o arbítrio dos deuses
que tudo pedem e podem.
diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que este é um povo religioso
porque tem o sentido do pathos,
leia-se: da tragédia inelutável,
acrescenta o bispo de Merda…suma.

Senhora Nossa, rogai por nós, pecadores,
protege-nos, das minas e armadilhas,
dos fornilhos e das bailarinas,
das canhoadas e roquetadas,
das morteiradas, dos estilhaços
e dos tiros de costureirinha,
protege-nos do IN, leia-se inimigo,
dos esquentamentos e das sezões,
dos ataques de abelhas e das formigas carnívoras.
mas também do cone de fogo
das nossas bazucas  e canhões sem recuo.
das piçadas  e dos louvores dos nossos comandantes.
e sobretudo de nós mesmos,
soldados malgré noussoldado à força,
arrebanhados,  arregimentados, requisitados, 
condenados, ameaçados,  camuflados. 
acondicionados como bestas
que vão para o matadouro.
Livra-nos, Senhora Nossa,
da fome, da peste e da guerra,
e do marechal da nossa terra
que nos manda para tão longe.

Lisboa e as suas sete colinas
perdem-se na linha de água.
Puseste o combate do possível
na tua agenda de expedicionário da Guiné.
Puseste o fio com a medalha de ouro
ao peito, que te deu a tua namorada, coitada.
Não, não usas a cruz, o crucifixo,
não vais para a guerra santa,
não, senhor capelão,
alguém há de rezar por ti, camarada,
para que  voltes são e salvo.
Do regulamento é apenas
a chapa de zinco
com o número mecanográfico 13151468
e o picotado ao meio.
para mais facilmente ser cortada
em duas partes
que seguirão caminhos distintos,
tudo isto face ao risco, bem real e concreto,
de tu morreres longe, bem longe
da tua casa, da tua pátria,
para lá do mar,
em terra que nunca te viu nascer.

Descansa, camarada,
alguém fará o teu espólio,
cerrará os teus dentes,
fechará os teus olhos,
engraxará as tuas botas.
e porá um moeda na boca
para pagares a viagem ao barqueiro de Caronte,
no caso de morreres pela Pátria,
ainda jovem e imberbe,
nas bolanhas, rias ou matos da Guiné

Levarás contigo a pedra-chave
que te liga ao além,
uma chapa de zinco, picotada ao meio,
que outrora era de xisto ou de grés,
entre o teu antepassado
calcolítico, castrejo, romanizado.


Respeitaremos a tua última vontade,
lavrada no cimento fresco do teu abrigo:
Camaradas
(que colegas é só nas putas!):
se eu aqui morrer, 
que me enterrem,
 
numa anta do meu país megalítico!


A bordo do T/T Niassa, 
a caminho da Guiné,
24-29 de maio de 1969. 
Visto e revisto.
v10 22mai2015