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terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12736: Memórias de um Lacrau (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70) (Parte I): Faz hoje 45 anos que partimos no T/T Timor... Numa manhã fria de terça feira de Carnaval. Partida inesquecível, dramática... Gritos de despedida e lenços a acenar...



CART 2479 (futura CART 11)  (1969/70) > > Jantar-convívio dos furrieis milicianos e sargentos em Espinho, dias antes do embarque , que será em 18 de fevereiro de 1969, no T/T Timor. O Valdemar Queiroz está ao centro, todo aperaltado, de gravata e casaco de xadrez...



Ordem de serviço 274/RPA 3/ 22Nov68  (Excerto) Nomeação do fur mil 02086066 José V[aldemar] R Q[ueiroz] Silva para o CTIG, integrado na CART 2479 / BART 2866...



T/T Timor... Navio, misto (carga e passageiros), de 2 hélices,  construído em 1950, em Inglaterra (e abatido em 1974), com o comprimento de 131, 48 m; arqueação bruta de 7,656 mil toneladas;: velocidade normal de 14,5 nós; tripulação: 120 elementos; lojamentos para 4 em classe de luxo, 60 em primeira classe, 25 em terceira e 298 em terceira suplementar, num total de 387 passageiros... Armador: Companhia Nacional de Navegação, Lisboa (Fonte: Navios Mercantes Portugueses > Timor)




A bordo do T/T Timor > Fevereiro de 1969 >CART 2479 (1969/70) >  Da esquerda para a direita, os fur mil Pechinca, Valdemar Queiroz   e Abílio Duarte



T/T Timor > Viagem Lisboa-Bissau > De 19 a 26 de fevereiro de 1969 > Rádio, leitor e gravador, de marca Bigston ("Bigston FM/AM Radio Cassette Tape Recorder"), comprado a bordo... Um pequeno luxo, para a época...



Guiné > Bissau > Estádio Sarmento Rodrigues > 26 de fevereiro de 1969 > CART 2479  (1969/70) > Desfile dos futuros Lacraus... O Valdemara Queiroz está assinalado com uma seta...



Guiné > Bissau > Finais de fevereiro ou princípios de março de 1969 > CART 2479  (1969/70) > O Queiroz na avenida principal, tendo ao fundo a catedral de Bissau.



Guiné > Bissau > Finais de fevereiro ou princípios de março de 1969 > CART 2479 (1969/70) > O Queiroz na Solmar


Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemenetar: L.G.]



1. Texto e fotos enviadas, em 9 do corrente, pelo Valdemar Queiroz, nosso novo tabanqueiro, nº  648  [, foto atual à esquerda]



Partida, chegada e os primeiros meses na Guiné (Parte I)


Inesquecível. Dramático. Gritos, principalmente das mulheres, no Cais de Alcântara, antes e depois de ouvido o Hino Nacional, com o afastamento do ‘Timor’. Gritos de despedida e lenços a acenar aos que partiam e nós a acenar aos que ficavam, no cais, aos gritos, e o Renato Monteiro sempre a acenar com um lenço vermelho à namorada, até à barra do Tejo, com Lisboa ao longe, numa manhã fria de terça-feira de Carnaval (18 de fevereiro de 1969).

Inesquecível. Indesejável situação tão dramática, para os que ficavam e para aqueles jovens que partiam para a guerra na Guiné. (Infelizmente continuou o mesmo espectáculo por mais uns anos).

E lá fomos, com paragem, por umas horas, na barra (já não vamos?), devido a avaria, seguindo para a Madeira, já com grandes enjoos e desejosos de lá chegar.

Chegamos à Madeira, de madrugada, ainda com as ruas iluminadas, que vista do mar poucos conhecem, ficando ao largo a ver o ‘presépio’ e a curar os enjôos da viagem, sem desembarcar.

Continuamos viagem, agora com todo o ‘comércio’ em exposição, até então escondido, que deu para comprar telefonias, gravadores, máquinas fotográficas, etc., a jogar à lerpa, a fazer exercícios e simulacros, a ver peixes-voadores e, à noite, deitados no tombadilho, de barriga para o ar, a ver o céu estrelado, passando os dias de enjôos até aparecerem os pilotos de barra, muito pretos e a falar (crioulo?) sem se perceber o que diziam, e o Alferes Pina Cabral a dizer-me 'Queiroz, agora é que chegamos à Guiné'.

Chegamos à Guiné. Terra vermelha. Bissau, sem colinas, céu cinzento, calor pesado, mosquitos e crianças a pedir ‘parte um peso’, (crianças que nós passamos a chamar jubis, mas jubi em crioulo quer dizer ‘olha’, ‘estás a ver’, ‘repara’, - bu ka na jubi riba / sem olhar para cima -, do verbo djubi = ver), tropa por tudo o que é sítio, com as camisas suadas, a dizerem-nos ‘salta, periquito’, ‘periquito, vai pró mato’, mas também muita gente à civil,  europeus e naturais, muito pretos,  e nós desejosos de uma cerveja fresca, fomos encaminhados para umas tendas em Brá, em que alguns tiveram os primeiros encontros com lacraus e todos com um discurso empolgante de Spínola que nos visitou.

Passamos uns dias em Bissau com muito calor, do que não estávamos habituados. Desfile no Estádio Sarmento Rodrigues, com mais um discurso empolgante do Spínola. Passeios pela cidade. Tardes na esplanada da Solmar a beber umas cervejolas 2M (MacMahon) ou uns whiskies com água Perrier, que era mais cara que o whisky, acompanhado com mancarra vendida, pelas bajudas, a meio peso, a observarmos os abutres em cima do telhado do mercado e a ‘deitar abaixo’ umas travessas de ostras, na esplanada do Nacional. 

Ouvimos falar de ataques, emboscadas, minas, na '5ª. REP’ (Esplanada do Bento,  da Amura) e também ouvimos rebentamentos, à noite, num ataque a Tite, no outro lado do estuário do Geba, mesmo em frente a Bissau. Ouvimos a guerra.

Depois, fomos para o mato. Subimos de LDG o rio Geba, com armamento, viaturas e outro material da nossa CART 2479. Rio acima,  sempre a mesma paisagem, sem se avistar povoações, desembarcando no Xime. 

O Xime, zona de guerra, que parecia uma terra de cowboys, só visto no cinema, com uns casebres velhos e esburacados (de ataques?), ruas de terra poeirenta e cães escanzelados cheios de moscas, com os tropas em cabelo, comprido e grandes patilhas, alguns sem camisa, só em calções e chinelos, com uma cor bronze-amarelada, agarrados às pretas, alguns com os camuflados cortados às tirinhas estilo Bufallo Bill, e sem se notar ninguém a comandar. Grande choque para todos nós. [A unidade de quadrícula do Xime era então a CART 1746,  Bissorã, Ponta do Inglês e Xime, 1967/69, comandada pelo nosso querido cap mil e grã-tabanqueiro António Vaz] [LG].

Seguimos em coluna na estrada, de terra batida, vermelha, que tinha ‘embrulhado’ há dias, aparecendo-nos a milícia, com lenços vermelhos atados ao ombro, a fazerem a nossa segurança e que já tinham feito a picagem da estrada (mais tarde seriam os nossos soldados da CART 11 e da CCAÇ 12).

Árvores esburacadas por bazucadas, cápsulas de balas pelo chão, deram uma amostra de guerra. Com muito calor e a água a esgotar no cantil atravessamos a bolanha passando, ao longe, por Amedalai, tabanca em autodefesa, cercada de arame farpado e, depois, atravessamos por uma ponte cheia de ninhos de andorinhas, chegando a Bambadinca [, sede do BCAÇ 2852, 1968/70; a ponte só poderia ser a do Rio Udunduma] [LG].

Por Bambadinca, localidade também à beira do rio e de terra vermelha, com tropa e população e bem arrumada, passamos quase sem parar, entrando na estrada alcatroada, com descidas e subidas para o planalto de Bafatá, agora todos nas viaturas e sem segurança.

Vimos Bafatá lá em baixo (…que bonita é Bafatá!!!) e continuamos, na estrada alcatroada, todos nas viaturas seguindo para Contuboel, com os abutres a vigiarem-nos do alto do céu. 

Saímos do alcatrão e viramos para uma estrada de terra batida, atravessando uma ponte sobre o rio Geba. Entramos na estrada para Contuboel, com grandes árvores floridas, de cor azul-grená e bem cheirosas (jacarandás?) e vimos grandes construções de terra seca, ninhos de formigas baga-baga, e alguns macacos-cães a darem-nos as boas vindas.

Chegamos a Contuboel, situada no interior, leste da Guiné. Ruas de terra batida, umas casas de rés de chão e uma grande tabanca com muitas árvores estavam à nossa espera. Na rua principal, um cartaz pregado a uma árvore, a anunciar um filme a exibir nessa semana descontraí-nos à chegada e uma placa colocada num cruzamento indicava QUARTEL. É neste local, com clima mais ameno, que vamos ficar uns meses.

 (Continua)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 1998 > Rua principal de Contuboel...

Foto: © Francisco Allen & Zélia Neno (2006). Todos os direitos reservados
_______________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 16 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12726: Tabanca Grande (428): Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Os Lacraus (Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70), grã-tabanqueiro nº 648

domingo, 1 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10099: Blogpoesia (191): De Lisboa a Luanda, ou o puro azul do desejo (Luís Graça)

De Lisboa a Luanda: o puro azul do desejo  



Estavam lindos os jacarandás
quando deixei Lisboa
e o Tejo,
ao fundo.
Eram o puro azul do desejo,
o azul mais inebriante do mundo.
Para trás,
ficava o sulco de uma canoa
e o cheiro a alfazema de Alfama.
No teu quarto, de hotel barato, 

o sofá-cama desfeito
era um certo jeito de dizer adeus.
Um jeito tão português,
tão nosso,
o nosso fado, 
dirás.
Não posso falar da saudade 

de quem fica,
nem devo dizer do desejo de quem parte,
que o amor, na cidade,  

é ciência e é arte.
Subo aos céus,
em avião a jacto
que corta o planeta
em duas metades laranja
ao pôr do sol.
Nem sei se é amor,
de jure e de facto,
ou apenas sorte
o arco-iris da tua paleta
com que pinto Lisboa de jacarandás.
Mas que pode a imaginação do poeta,
quando o coração, mais forte,
pensa que manda ?
Eram os teus lábios
que em vão eu procurava
nas folhas das acácias vermelhas
com que imaginava,
coberta,
a ilha de Luanda…

Luís Graça

Junho de 2012: Portugal, Lisboa, Parque Eduardo VII:

Angola, Luanda, Ilha de Luanda, Clínica da Sagrada Esperança.
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Nota do editor:

terça-feira, 26 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10074: Em bom português nos entendemos (8): O angolês, termos angolanos que podem dar jeito integrar no nosso léxico (Luís Graça, com bué de jindandu para o Raul Feio e os demais kambas kalus)



Página da AAAPFFEUL - Associação dos Antigos Alunos, Professores e Funcionários da Faculdade de Economia da Universidade de Luanda, alojada no Sapo, donde constava um pequeno Dicionário de Dialectos Angolanos [.infelizmente desaparecido porque entretanto o Serviço de Alojamento Gratuito de Páginas Pessoais do SAPO foi descontinuado, em dezembro de 2015] (LG).


Nessa página podia ler-se:


"Esta é uma página para todos recordarmos, partilharmos e aprendermos. Aqui divulgaremos os termos dos linguajares da terra angolana, apelando à participação de todos os associados e amigos, residentes em Portugal, em Angola ou em qualquer outro lugar do planeta Terra. Enviem as 'mukandas' com os vossos contributos para aaapffeul@gmail.com ".



A página tinha, em rodapé, o seguinte convite:


"Colabora connosco na recolha, registo, partilha e ensino de termos dos vários dialectos falados em Angola. Manda-nos a tua mukanda e diz-nos como se falava com os nossos cambas e com os nossos candengues, sem armar maka!"...







Angola > Luanda > 20 de junho de 2012 > A cidade, vista da Ilha de Luanda... cada vez mais cosmopolita, internacional, igual a tantas outras grandes cidades, cosmopolitas, internacionais, da nossa aldeia global... Foto de L.G.



1. Infelizmente desta vez fiz poucas fotos no exterior. Tirei mais fotos em sala de aula, na Clínica da Sagrada Esperança. Também não tive oportunidade de passear. Trabalhou-se de sol a sol... A única excepção foi uma visita, muita rápida (de 2 horas), à baixa de Luanda, de jipe e a pé... A partir das 16h, o trânsito complica-se.

Os kaluandas (ou "caluandas", ,julgo que o termo, da época colonial, está em desuso,) gastam muito tempo e energia em transportes... Por outro lado, em véspera de eleições gerais, legislativas (a 31 de agosto), Luanda e as capitais provinciais são um imenso estaleiro... Pela televisão e os jornais, percebe-se que o governo e a oposição já estão em pré-campanha eleitoral.


Do lado do regime, dá-se início a um vasto programa de inaugurações: hospitais, escolas, estradas... Aqui não é diferente dos outros Estados. Todo o poder gosta de mostrar obra feita, ao "povão"... 

Por outro lado, em 2004, ainda apanhei um pouco, por tabela, a paranóia securitária da polícia local... e andei fugido de jipe, com um polícia atrás de nós, armado de kalash... Só porque eu estava com um máquina fotográfica digital (ingenuidade a minha!), na mão, no "lugar do morto", ao lado do condutor, num jipe do ministério da saúde, na confusão do trânsito, a caminho do Futungo de Belas... Desobedecemos à ordem de parar, o jipe não levou nenhuma rajada, mas apanhámos um susto... Claro que o diligente "pobre polícia" queria apenmas ganhar uns trocos para o "mata-bicho"...

Julgo que as coisas melhoraram, pelo menos a esse nível... Mas não andei mais, confesso, armado em turista, tanto em Luanda com na ilha de Luanda... Pelo menos nessa sermana... Fintei os tiros de kalash na Guiné, em 1969/71, não tinha piada nenhuma ir apanhá-los em Luanda, em 2012, para mais em missão de paz e cooperação...



2. Para os muitos portugueses (tugas, pulas, em angolês) que hoje vivem e trabalham em Angola (ninguém sabe ao certo quantos, 100 mil ?, 200 mil ?, os aviões da TAP e da TAAG andam sempre cheios, para cá e para lá...), mas também para aqueles como eu que lá têm amigos (kambas) entre os kaluandas, e que lá vão de tempos a tempos em missões públicas ou de interesse público (cooperação, formação, investigação, etc.), é útil a consulta desta página, inserida no sítio da AAAPFFEUL.


A língua portuguesa não é mais do que o fruto (delicioso, gostoso, viçoso, saboroso, multicolorido, riquíssimo...) do linguajar das mais desvairadas mas boas gentes que a têm como língua materna ou língua oficial...  

A(s) influência(s) é (são) mútua(s), desde há muitos anos, o tempo em que convivemos. Falamos aqui de saudáveis interdependências, simbólicas, linguísticas, culturais, afetivas: o português de Portugal é também ele devedor do angolês, o português de Angola... (Claro que os mais "radicais", os indefectíveis antitudo... anticolonialistas, anti-imperiaçlistas, anticapitalistas, antissumpramacistas..., o portuguès é a língua do !"poder",l do "colon", do "tuga"...).

Estive recentemente na Ilha de Luanda, com uma curta passagem por Luanda (uma tarde). É a minha terceira ida a Angola, desde 2003. Sempre breve (uma semana, quinze dias). E todas as vezes que lá vou fico fascinado pelo português, doce, musical, pausado, bem soletrado, que se fala naquela terra. Para mim, são eles, os angolanos, que falam o melhor português da "lusofonia"... Não consigo entender como é que Angola esteve envolvida em 40 anos (!) de guerra, desde 1961 a 2002. Por que é um povo pacífico e intrinsecamente bom, hospitaleiro, amante da paz, que gosta de música, poesia, boa vida...


Em Angola não há o crioulo. A língua oficial é o português. O quimbundu (eles gistam de escrever kimbundo, com o tal K que aidna não faz parte do alfabeto português, não sei porquê...) é o maior grupo etnolinguístico de Angola (c. 25% da população na costa oeste e no norte), a seguir ao ovimbundu (c. 37%, a sul), mas à frente do bacongo (13%). Estes são os três principais grupos etnolinguísticos de Angola, todas eles pertencentes ao povo bantu.


quatro línguas nacionais: o côkwe (leia-se, tchocué), o kikongo (ou quicongo), o kimbundu (ou quimbundu) e o umbundu, a língua do grupo ovimbundu, a mais falada a seguir ao português (sem esquecer outras línguas africanas e inúmeros "dialetos")... O terreno é minado e as questões etnolinguísticas desencadeiam paixões...


À lista de vocábulos do angolês que encontrei neste sítio, da AAAPFFEUL - Associação dos Antigos Alunos, Professores e Funcionários da Faculdade de Economia da Universidade de Luanda, acrescentei uma série de outros vocábulos (e expressões) que aparecem no livro do meu colega sociólogo angolano, Paulo de Carvalho (n. Luanda, 1960), doutorado pelo ISCTE - Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, a minha escola-mãe, bem como no livro do Ondjaki, Os da minha rua: estórias.




Angola > Luanda < Ilha de Luanda > 20 de junho de 2012 > Luís Graça e Raul Feio (à direita), juntos numa acção de formação para pessoal de gestão de uma clínica local, a Clínica da Sagrada Esperança, do Grupo Endiama. uma unidade de saúde de referência não só em Angola como em África... Foto de L.G.


3. Esta pequena recolha, feita em cima do joelho, dedico-a ao mô kamba Raul Feio, Raul Jorge Lopes Feio, de seu nome completo, angolano do Huambo, filho de pais angolanos (com ADN português do lado do pai ou avô...), médico desde janeiro de 1974, (inscrito na Ordem dos Médicos com o nº 19,) e que pagou, com a liberdade, o amor que tem à sua terra. 

Enquanto estudante de medicina da Faculdade de Medicina de Lisboa, foi preso e condenado, em tribunal plenário, por motivos políticos, tendo passado 18 meses em Caxias (1971/72). Diplomou-se, também em Portugal, em saúde pública e medicina tropical, antes de regressar ao seu país natal na véspera da independência.  Como todos os médicos angolanos dessa época, foi militar e conheceu os horrores da guerra ("a guerra da segunda independência" ou "dipanda").

Foi ele, o Raul Feio, quem me levou pelo circuito, pedestre, das livarias da baixa luandense (Chá de Caxinde, Lello, ABC) no passado dia 21 do corrente. Comparativamente a setembro/outubro de 2004 (data da minha última visita), há hoje mais produção literária angolana, nos escaparates das livrarias angolanas, incluindo não apenas ficção mas também livros científicos e técnicos nas mais diversas áreas (da saúde à antropologia, do direito à gestão, da história à política, da arquitectura à literatura de viagens). 

Obrigado, Raul, pelo passeio e pelos livros. Para o melhor e para o pior, Luanda está irreconhecível.

Um afetuoso kandandu, daqui de Lisboa, ainda cheia do azul dos jacarandás e do cheiro dos manjericos dos santos populares... Até ao próximo outubro ou novembro. LG.



Termos do angolês: dialetos, gíria e calão


[Foto à esquerda: N'bondo ou imbondeiro, trabalho artístico em arame, s/d, s/n,  Angola, Ilha de Luanda, Condomínio da Clínica da Sagrada Esperança, 22 de junho de 2012. Foto de L.G.]

A / B


Abuamada. Espantada, atordoada pelo pasmo.


Aká (**). AK47, a espingarda automática russa.


Alembamento. Quimbundo. Pagamento feito aos pais da noiva.


Ambi (*). Diminuitivo de ambicioso. Pessoa gananciosa ou que só se preocupa consigo própria.

Antílope. Animal africano, espécie de veado.

Arimo. Umbundo. Lavra, terra de lavoura.

Avilo, avila (*). Amigo, amiga.


Bagre (*). Peixe de água doce.


Banga (**). Estilo, vaidade.


Bassula. Rasteira, derrubar outro usando sobretudo as pernas.

Batuque. Quimbundo. Tambor.

Bazar (*). Fugir, ir embora.

Bigue (**). Grande. Corruptela do inglês big.


Bina (*). Bicicleta.

Bitacaia. Também chamada bicho-do-pé ou pulga penetrante; pequeno insecto que se fixava na zona das unhas dos pés, por baixo da pele; era removido, por norma, com um alfinete, abrindo a pele e retirando-o sem rebentar o seu minúsculo saco de pus.

Boelo. Ridículo, fora de moda, ultrapassado.

Bôer, bure ou africânder. Comunidade de origem holandesa que ocupou vastas regiões da África do Sul, donde foi expulsa pelos ingleses, acabando por se fixar e definir novos territórios, como os estados do Orange e do Transval, bem como no sul de Angola.

Bombo. Mandioca.

Bondar (**). Matar, atingir (alguém).

Bué (*). Muito, em grande quantidade.

Braga. Homem branco (pejorativo); o mesmo que pula.

Bumbar. Trabalhar.


C (e/ou K)


Ca-barriga (*). Barriga pequena. 

Ca-dinheiro (*). Dinheirinho.


Ca-sorte (*). Um pouco de sorte. (O prefixo ka-, diminuitivo em quimbundu, agrega-se à palavra portuguesa para dar o sentido de "pequena sorte").


Cabra do mato. Espécie de bambi africano.

Cabiri. Rafeiro.

Cachico (*). Criado (Pejorativo).

Cacimba. Ifiote, Quimbundo. Poço de água, pequena lagoa.

Cacimbo. Ifiote, Quimbundo. Época das chuvas, nevoeiro.

Caíngas. Polícias de turno.

Caluanda ou kaluanda. Quimbundo. Habitante de Luanda. Vulgarmente, usa-se o termo kalú, diminuitivo.

Calulú. Prato típico da costa, com peixe seco, íresco, quiabos, folhas de batata doce ou outras ramas e cozinhado com óleo de palma. Acompanha o funje ou pirão.

Camanga ou kamanga. Tráfico ilícito de diamantes.

Camanguista ou kamanguista. Indivíduo que se dedica à camanga.

Camba ou kamba (**). Quimbundo. Amigo, camarada.


Cambaia (**). De pernas arqueadas.

Cambulador(es), Calão luandense. Vem de cambular, enganar. ludibriar, aldrabar

Candengue ou kandengue (**). Quimbundu. Criança, miúdo.

Cangulo. Carro de mão para transportar mercadorias.

Cangando. Homem branco (pejorativo).

Canhangulo. Espingarda.

Capim. Erva alta, colmo.

Capota. Nhaneca. Espécie de galinha selvagem.

Cassule, cassula (*). Mais novo, mais nova.

Cassumbular. Quimbundu. Tirar violentamente o que outrem leva nas mãos.

Cará. Nhaneca. Espécie de babata-doce da região sul.

Catanhó. Homem cabo-verdiano (pejorativo).

Catinga (**). Mau cheiro do suor.


Catorzinha (*). Adolescente luandense (em geral, tem sentido pejorativo:  prostituta muito jovem).

Caxexe. Às escondidas, disfarçadamente.

Caxico. Lacaio (depreciativo).

Caxinde. Folhas de que se faz uma infusão muito aromática. (Chá de Caxinde é o nome de uma conhecida associação e livraria de Luanda; foi fundada em 1989).

Cazucuta. Uma dança, originalmente; acabou por ganhar o sentido de contusão, ban­dalheira.

Cazumbi. Espírito, fantasma.

Chana. Planície típica do Leste de Angola, de capim pouco alto.

Chefe (*). Tratamento dado a pessoa de status social mais elevado.

Chimba. Tribo do sul de angola.

Chuinga (**). Pastilha elástica; corruptela do inglês chewing gum.

Cochito. Um pouco, um pedacito.

Comba ou Komba. Velório na casa do morto, em que se come, bebe e dança.

Cota ou Kota (**). Pessoa mais velha.

Cotótó. Pessoa avarenta.

Cuamato. Tribo do sul de angola.

Cuancala. Tribo do sul de angola.

Cuanhama. Tribo do sul de angola.

Cubar. Dormir.

Cubico (*). Quarto de dormir, casa, cubículo.

Cuduro (ou Kuduro). Dança popular dos bairros pobres de Luanda, surgida após a independência.

Cumbú (ou Kumbú) (*). Dinheiro.

Curibota (ou Kuribota/Kuributice). Mexericos (calão urbano).


D/ E / F / G


Dibinga (**). Fezes.


Ditumbate (*). Erva usada para prevenir e curar o paludismo (ou malária).


Esculú (**). Muito bom.


Esquebra (**). Excedente.


Esquindivar. Evitar, esquivar.


Esquindiva (**). Fuga.


Estigar (**). Ridicularizar o outro através de jocoso jogo de palavras.


Fantasma (*). Falso, que não existe (Falsos nomes que figuram em listas administrativas - combatentes, professores...).


Fezada (*). Sorte.

Fuba ou fubá. Farinha de milho.

Fugar (**). Faltar às aulas.

Funje ou funji (*). Quimbundo. Massa de fuba de mandioca, de batata ou de milho, dissolvida em água a ferver; o mesmo que pirão no sul.

Ganguela. Quimbundo. Tribo que habita a região do Bié.

Ganza. Estado em que se fica quando se usa drogas.

Garina. Moça ou mulher.

Gasosa. Dinheiro dado para corromper uma autoridade; hoje pode significar também gorjeta.

Gindungo (ou Jindungo) (**). Fruto picante, usado em tempêros, na alimentação.

Ginguba. Amendoím, mancarra (na Guiné-Bissau).

Goiaba. Fruta tropical.

Gombelador. Violador, tradicionalmente; hoje significa homem exageradamente assediador.

Grogue. Aguardente de Cabo Verde.




Angola >  Luanda > Ilha de Luanda > Condomínio da Clínica da Sagrada Esperança > 22 de junho de 2012 > A baía de Luanda > Luís Graça e Raul Feio (à direita),  em contraluz...  Foto de L.G. 


H / I / J / K / L


Haka. Umbundo. Reclamação de admiração.

Humbe. Tribo do sul de angola.

Ilha das Cabras. Antiga designação da ilha de Luanda.

Imbambas. Haveres pessoais.

Imbumbável. Pessoa que se recusa terminantemente a trabalhar.

Jiboiar (**). Estar ocioso, sonolento.

Jindungo. Quimbundo jin+dungo. [Dungo significa baga; jin é prefixo do plural]

Kabuenbas (*). Peixe pequeno; em sentido figurado, coisa pouca, negócio pequeno.

Kaluanda. Quimbundu. Antigo habitante de Luanda; diminuitivo: Kalu.

Kandandu. Quimbundu. Abraço (Plural: Jindandu).

Kandonga (*). Negócio, comércio informal.

Kandongueiro (*). Motorista de táxi ou de carrinha de transporte de passageiros.

Kafeluka (*). Copos ('Vou beber os meus kafeluka').

Kapurroto (diminuitivo Kapuka) (*). Aguardente caseira, feita a partir de cana de açucar, açúcar ou milho.

Kimbombo (*). Bebida fermentada, feita a partir de cereais.

Kissangua (*). Refresco feito a partir de cereais ou frutas.

Kitaba (**). Espécie de pasta feita com amendoim torrado.

Liamba (*). Cannabis.

M

Maboque. Fruta tropical.

Maca (ou maka). Quimbundo. Conversa, conflito, discussão, problema, cena.

Machimbombo. Quimbundo. Autocarro urbano.

Macuta. Antiga moeda colonial feita de cobre.

Maianga. Bairro de Luanda onde se situa o Hospital Josina Machel / Maria Pia

Malaico (ou malaiko) (**). Ordinário, grosseiro, que não é bom

Malaiko (*). À toa, abandalhado

Malembe. Ifiote. Devagar, calma.

Mamão. Fruta tropical, semelhante à papaia.

Mambos (*). Assuntos, casos, problemas, cenas.

Manauto. Amante.

Manga. Fruta tropical.

Maqueiro. Quimbundo. Indivíduo conflituoso, que arma macas.

Maruvu (ou maluvu) (*). Bebida fermentada, feita a partir da seiva da palmeira

Massambala. Sorgo; cereal de grão redondo e redondo, que também servia para fazer uma cerveja local. 

Matabicho (*). Pequeno almoço.

Mato (*). Interior, meio rural.

Matumbo. Pessoa do mato, considerada pelos citadinos como ignorante.

Micate. Doce frito, espécie de sonho.

Milongo ou bilombo. Remédio; substância, normalmente de origem vegetal, a que se atribui poder curativo.

Mirangolo. Fruta tropical, do tamanho duma cereja.

Missanga. Contas coloridas, em plástico, usadas para fabrico de adornos (colares, pulseiras).

Mô (**). Meu

Mona. Filho; usa-se carinhosamente para rapaz.

Monangamba. Termo depreciativo para trabalhadores forçados no tempo colonial. 

Muadiê (**). Senhor ou patrão, na terminologia colonial; pessoa, tipo/a.

Muata. Chefe tradicional, hoje usa-se para qualquer responsável.

Mucanda ou mukanda. Quimbundo. Carta, bilhete. Fig. Recado.

Múcua. Quimbundo. Fruto do Imbondeiro.

Mucubal. Tribo que habita a parte sul da região entre Moçâmedes e a serra da Chela.

Muíla. Membro da tribo nhaneca.

Mujimbeiro (**). Fofoqueiro.

Mujimbo (**). Tchokue. Notícia; ultimamente ganhou a conotação de boato, fofoca.

Mulemba. Quimbundo. Figueira africana.

Mundombe. Tribo que habita a parte norte da região entre Moçâmedes e a serra da Chela.

Mungué. Quimbundo. Até à amanhã.

Musseque. Quimbundo. Originalmente a areia vermelha; mais tarde, os bairros periféricos (e pobres) de Luanda, com construções precárias feitas de chapa, adobe e colmo.

Mutamba (*). Parte central da baixa de Luanda.


Mutiati. Nhaneka. Espécie de árvore muito comum no sul de Angola.

Muxima. Quimbundo. Coração. Plural, Mixima.


N


N´bondo. Imbondeiro.

Naite (*). Cigarro.


Naka. Umbundo. Horta à beira de um rio.


Ndengue. Quimbundu. Miúdo.


Ngonguenha (**). Mistura de água com farinha de pau (farinha fina feita a partir da mandioca) + açúcar.

Nhaneca. Tribo que habita a região da Huíla, no sul de Angola.

Njango. Umbundu. Construção circular, aberta, onde se realizam reuniões.

Nocha. Fruta tropical.

Nona. Fruta tropical.

Nunca ningi (*). Nunca mais.


Nunce. Umbundu. Espécie de antílope com 50 kg e 75 cm de altura em média; também chamado sembo no sul.





Angola >  Luanda > Ilha de Luanda > Condomínio da Clínica da Sagrada Esperança (CSE) > 19 de junho de 2012 > A hora da bica... numa dos sítios mais bonitos e tranquilos da ilha, com vista para o porto de Luanda > Da esquerda para a direita: José Vasconcelos (ENSP/UNL), Jorge Lima (CSE e FMUAN - Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto), Conceição Araújo (a nossa anfitriã, CSE) e Luís Graça (ENSP/UNL)...  Foto de L.G. 


O / P / Q


Ocipama. Umbundu. Aula, lição.

Onkhako. Nhaneca. Sandálias

Olongo (**). Umbundu. Espécie de antílope com 300 kg e 1,5m de altura em média. Também chamado ungiri no sul.

Pacaça. Animal africano; espécie de búfalo vermelho africano.

Pai (*). Tratamento de deferência ou de respeito, dado a pessoa mais velha ou de status social mais elevado.

Palanca. Animal africano; espécie de veado.

Papaia. Fruta tropical, semelhante ao mamão, mas mais doce.

Paracuca (**). Amendoím torrado, envolto em açúcar,  vendido na rua em canudos de papel.


Parar (*). Morrer.

Pato. Gíria. Pessoa que entra numa festa sem ser convidada.

Pirão. Umbundo. Farinha de mandioca ou de milho cozida; o mesmo que funje (ou funji) no norte.

Pitanga. Fruta tropical.

Pitar (*). Comer.

Pito. Pessoa bonita, desejável.

Porrinho. Moca.

Poster (**). Estilo.


Pré-cabunga (**). Última classe do ensino pré-escolar.


Primo como irmão (*). Filho da tia (nos sistemas de parentesco matrilineares), ou filho do tio (nos sistemas patrilineares).


Protecção (*). Protecção física, guarda, segurança.

Pula. Pessoa branca (pejorativo). O mesmo que braga, cangando, tuga.

Quedes (**). Sapato desportivo, em lona e borracha


Quijila ou kijila. Interdito, proibição de usar ou comer alguma coisa por razões religiosas.

Quilapi ou kilapi. Dívida, calote.

Quimbanda ou kimbanda. Quimbundo. Curandeiro, adivinho.

Quimbo ou kimbo. Quimbundo. Aldeia, pequeno povoado.

Quimbundo ou kimbundu. Língua das tribos do centro-norte de Angola, nomeadamente da região de Luanda.

Quinguila ou kinguila. Mulher que troca divisas (dólares por kwanzas) na rua.

Quinhunga ou kinhunga. Pénis.

Quionga ou quionga. Cadeia, prisão.

Quisaka ou kisaka. Esparregado de folhas de mandioca cozidas em óleo de palma.

Quissama. Nome do parque nacional situado a 75 km de Luanda, e delimitada pelo Oceano Atlântico e os rios Cuanza e Longa, uma da área de grande variedade de fauna e flora protegida desde 1957.

Quissange. Instrumento musical.

Quitata ou kitata. Prostituta.

Quiteta (**). Espécie de molusco, comestível.

Quitute. Doce, presumidamente de origem brasileira.


R / S / T / U / V / X / Z


Roboteiro. Pessoa que faz transporte de cargas, ou com cangulo ou às costas.

Ruça. Carro.

Rusga (*). Alistamento compulsivo de jovens em idade militar; por extensão, recolha de pessoas, em casa, na rua, na escola, no local de trabalho,  que tenham cometido uma infracção ás leis do país.

Saio. Trabalho.

Salalé. Formiga branca e carnívora, da família das térmitas.

Sembo. O mesmo que Nunce.

Soba. Chefe tradicional, autoridade máxima numa tribo ou aldeia.

Sobeta. Chefe tradicional, adjunto de um soba.

Sukuama. Exclamação de admiração ou raiva.

Tciriquata. Umbundo. Pequeno pássaro comum no planalto central.

Tipóia ou machila. Umbundo. Rede usada no transporte de pessoas ou bens.

Tissagem. Acréscimos de cabelo, muitas vezes de cores diferentes do próprio.

Tremunos. Jogos de futebol, na rua ou em terrenos vagos.

Tuga (*). Português do tempo colonial.


Tunda, tunda! (*). Desaparece, vai-te embora.

Umbundo. Língua falada no centro-sul de Angola.

Ungiri. O mesmo que Olongo.

Xambeta. Coxo.

Ximbeco. Habitação mal feita, de materiais precários.

Zongola. Bisbilhoteiro.

Zunga (*). Venda de comida ou bebida nas ruas.


Zungueira (*). Mulher que pratica a zunga.

Fonte: Adapt. de AAAPFFEUL. "Muitos dos termos e definições deste dicionário foram recolhidas em obras do escritor Pepetela [ n. Benguela, 1941], cujo contributo aqui agradecemos e rendemos a nossa homenagem". 


Vd. também vocábulos e expressões recolhidos por nós, em 2004, em Luanda (re)visitada



(*) Referido ou também referido por Paulo de Carvalho [, foto à esquerda, cortesia da Wikipédia]- 'Até você já não és nada!...' Luanda: Kilombelombe. 2007.342 pp. (Colecção Ciências Humanas e Sociais, Série Sociologia e Antropologia, 4).

(**) Referido ou também referido por Ondjaki [, pseudónimo do escritor angolano Ndalu de Almeida, n. Luanda, 1977 ] - Os da minha rua: estórias. Lisboa: Caminho. 2007, 125 pp.  (Colecção Outras Margens, autores estrangeiros de língua portuguesa,63).

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P6015: Em bom português nos entendemos (7): O kapuxinho vermelho, contado aos nosso netos, de Lisboa a Dili, de Bissau a S. Paulo (Nelson Herbert / Luís Graça)

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9756: História da CCAÇ 2679 (49): A maneira mais prática de fazer prova de aptidão para conduzir viaturas auto (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 2 de Abril de 2012:

Boa tarde Carlos,
O Tito Martins é meu amigo desde antes da vida militar. Por mero acaso, fizemos a tropa sempre juntos. Sei que ele nutre por mim uma boa amizade. Dele, tenho a certeza, que é um grande camarada. O texto não o vai surpreender, porque já o conhece, mas acho interessante para publicação.
Se não houver oposição, agradeço.

Um grande abraço, extensivo ao tabancal.
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (49)

 O Zé Tito Martins tinha andado em lições de condução com o Pedro, que exasperava perante a patente falta de jeito do aprendiz. Ao fim de algum tempo, atinando com as mudanças do Unimog, mais ou menos familiarizado com o funcionamento do acelerador e as funções dos travões, experimentado o ponto de embraiagem com sucesso (apesar da planura do terreno), dadas as necessárias explicações sobre as luzes de sinalização, o Zé estava considerado apto para se submeter a exame. Com sorte, passaria. Marcada a data, faltava aprazar o transporte. Por coisa do destino aterrou em Bajocunda um DO com um piloto que o candidato conhecia, e prontificou-se a levá-lo para Bissau. Autorizado, o Zé correu a buscar a mala quase enorme com as necessárias coisinhas para os dias da deslocação.

Mas a avioneta ainda se deslocou a Copá, conforme o plano de voo. E aí começou a malfadada aventura da deslocação a Bissau. No banco de trás, juntamente com alguma carga, o Zé depositou a mala, acomodou-se ao lado do piloto, e à medida que subia no ar, já se sentia no céu durante os dias de estadia em Bissau, afiambrado em mariscos convenientemente refrescados com muita cervejinha, sob os jacarandás que davam sombra e cores às esplanadas.

Em Copá, porém, apresentou-se uma evacuação urgente de uma senhora que tinha dado à luz um nado-morto e ainda tinha a placenta. Na circunstância, tinha direito a acompanhante, e à luz da política por uma Guiné Melhor, a evacuação afigurava-se prioritária. As duas pessoas ocupavam o exíguo espaço livre, pelo que o Zé Tito teve que ficar em Copá, mais longe do que Bajocunda relativamente ao objectivo de chegar à capital da província. Na urgência inesperada, foi enviado um rádio a Bajocunda a solicitar uma coluna para transporte do infeliz militar, que já tinha uma perspectiva de não chegar a tempo para o exame de condução. Em Bajocunda, o capitão Trapinhos mandou-o levar onde levam as galinhas, com a justificação de que a actividade operacional da Companhia não podia sacrificar-se às necessidades de um furriel em desvio de rota.

Com a tomada de conhecimento da resposta, o Zé vagueava pela aldeia com a esperança de dissipar pensamentos penosos. Inopinadamente, encontrou o Zé Grande, um elemento do Pel Caç Nat 65 (mais tarde cooptado pelo Marcelino da Mata), a quem indagou o que estava ali a fazer. Tinha lá catota, porque tinha esposas em dois ou três lugares. Perguntou-lhe quando regressava a Bajocunda, ao que o Grande respondeu, que no dia seguinte. Como? Viajava de bicicleta. Então, muito ajuizadamente, o Tito pediu ao Grande para lhe arranjar uma bicicleta. E arranjou.

Ao dia seguinte, o Tito, o Grande e outro elemento daquele Pelotão de Caçadores Nativos, fizeram-se ao caminho pela picada arenosa e algo esburacada que ligava as duas localidades. Eram mais de vinte quilómetros. O Tito, bom avaliador do risco vestia uma túnica fula, e com a mala atada ao selim, fazia manobras infrutíferas para se manter sobra a bicicleta, pois à dificuldade da veste, também a mala escorregava para o lado da roda neutralizando o esforço das tentativas de equilíbrio. Resultado: fez a viagem a pé, mas chegou a Bajocunda, e surpreendeu toda a gente. À chegada, dirigiu-se à cantina onde virou umas basucas para dessedentar-se. Depois foi falar com o solícito capitão, que ao pedido para o levar a Pirada, deu logo o nega. Mas o Tito não desarmava à primeira, com insistência tentava fazer ver ao capitão que tinha pressa para chegar a Bissau. O outro, mula, não parecia partilhar das mesmas preocupações. Mas o Tito, com todo o jeito do mundo, não lhe dava espaço de manobra e, delicadamente, insistia que tinha que chegar a Pirada, de onde seria mais fácil arranjar transporte. Finalmente, condescendeu o temorato capitão, talvez para evitar sugestões da atitude persistente do miliciano.

Chegado a Pirada clandestinamente começou a colher informações sobre a possibilidade de atingir Nova Lamego, na medida em que se afigurava não haver DO's a passar por ali. Mas um comerciante local deslocava-se essa noite para o Gabú, e prontificou-se a levar o candidato até àquela localidade. Sentado ao lado do camionista pensou nas virtudes de conhecer os meandros em confronto, que dispensavam picagem e escolta. Chegou a tempo para na manhã seguinte apanhar o avião para a cidade prometida. Uffa! A tropa entrou no Nord Atlas e sentou-se nas magnificas cadeiras ao longo do avião. Depois entraram os civis, homens e mulheres da população local. Sentavam-se no chão, ou ao colo dos militares. Sortudo, o Zé Tito viu uma alegre gorducha dirigir-se para ele e sentar-se sobre as pernas, provocando-lhe dores, quando frequentemente remexia o abundante corpinho, e deixando-o narcotizado sempre que lhe encostava o sovaco na cara. Chegaram bem, felizmente, e o Tito cumpriu um desígnio da psico.

Em presença do alferes examinador, companheiro de turma no Nun'Alvares, por onde os manos Tito Martins tinham feito passagem, este indagou-lhe porque não tinha requerido exames de motociclos, de pesados, de helicópteros e aviões, ao que o Zé respondeu não ter especial interesse. "Burro! Sempre foste burro, o pior da turma, que eu aqui passava-te isso tudo, e nunca se sabe!..." replicou o examinador. "Bom, vamos lá fazer o exame. Toma aí o volante". O Zé, desconhecedor das artérias viárias daquela capital, respondeu-lhe para ser o amigo a conduzir, já que mal identificava a cidade. Compreensivelmente, o alferes conduziu o Tito até à baixa. Quando passavam por uma esplanada, lembraram-se de comemorar o encontro, para mais com mariscos tão famosos como os de Bissau. Comeram e beberam com a facilidade de dois jovens de sucesso, e o grande apetite que o clima inóspito sempre provoca. Conforme o relato pagou a mais alta patente.

Depois da confraternização, e de terem pago a devastação, o examinador disse ao Tito para (finalmente) conduzir a viatura. Novamente o Tito revelou grande sensatez e sugeriu: "já agora conduzes tu".

Regressou a Bajocunda com a barriguinha cheia e a carta de condução passada pela autoridade militar e competente. Já na vida civil comprou um Honda 360 que não arriscava conduzir, até que o bondoso sogro, que não conduzia, se propôs andar com ele pelos espaços mais largos da vila, na prática das manobras automobilistas, enquanto o desmobilizado não revelasse competência para se aventurar a solo naquele género de actividade.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9723: História da CCAÇ 2679 (48): Entre as NT não havia apenas gente movida pelo espírito cristão (José Manuel Matos Dinis)