Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça, com o objetivo de ajudar os antigos combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961/74). Iniciado em 23 Abr 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência desta guerra. Como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, e gostamos de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 16 de abril de 2012
Guiné 63/74 - P9756: História da CCAÇ 2679 (49): A maneira mais prática de fazer prova de aptidão para conduzir viaturas auto (José Manuel M. Dinis)
Boa tarde Carlos,
O Tito Martins é meu amigo desde antes da vida militar. Por mero acaso, fizemos a tropa sempre juntos. Sei que ele nutre por mim uma boa amizade. Dele, tenho a certeza, que é um grande camarada. O texto não o vai surpreender, porque já o conhece, mas acho interessante para publicação.
Se não houver oposição, agradeço.
Um grande abraço, extensivo ao tabancal.
JD
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (49)
O Zé Tito Martins tinha andado em lições de condução com o Pedro, que exasperava perante a patente falta de jeito do aprendiz. Ao fim de algum tempo, atinando com as mudanças do Unimog, mais ou menos familiarizado com o funcionamento do acelerador e as funções dos travões, experimentado o ponto de embraiagem com sucesso (apesar da planura do terreno), dadas as necessárias explicações sobre as luzes de sinalização, o Zé estava considerado apto para se submeter a exame. Com sorte, passaria. Marcada a data, faltava aprazar o transporte. Por coisa do destino aterrou em Bajocunda um DO com um piloto que o candidato conhecia, e prontificou-se a levá-lo para Bissau. Autorizado, o Zé correu a buscar a mala quase enorme com as necessárias coisinhas para os dias da deslocação.
Mas a avioneta ainda se deslocou a Copá, conforme o plano de voo. E aí começou a malfadada aventura da deslocação a Bissau. No banco de trás, juntamente com alguma carga, o Zé depositou a mala, acomodou-se ao lado do piloto, e à medida que subia no ar, já se sentia no céu durante os dias de estadia em Bissau, afiambrado em mariscos convenientemente refrescados com muita cervejinha, sob os jacarandás que davam sombra e cores às esplanadas.
Em Copá, porém, apresentou-se uma evacuação urgente de uma senhora que tinha dado à luz um nado-morto e ainda tinha a placenta. Na circunstância, tinha direito a acompanhante, e à luz da política por uma Guiné Melhor, a evacuação afigurava-se prioritária. As duas pessoas ocupavam o exíguo espaço livre, pelo que o Zé Tito teve que ficar em Copá, mais longe do que Bajocunda relativamente ao objectivo de chegar à capital da província. Na urgência inesperada, foi enviado um rádio a Bajocunda a solicitar uma coluna para transporte do infeliz militar, que já tinha uma perspectiva de não chegar a tempo para o exame de condução. Em Bajocunda, o capitão Trapinhos mandou-o levar onde levam as galinhas, com a justificação de que a actividade operacional da Companhia não podia sacrificar-se às necessidades de um furriel em desvio de rota.
Com a tomada de conhecimento da resposta, o Zé vagueava pela aldeia com a esperança de dissipar pensamentos penosos. Inopinadamente, encontrou o Zé Grande, um elemento do Pel Caç Nat 65 (mais tarde cooptado pelo Marcelino da Mata), a quem indagou o que estava ali a fazer. Tinha lá catota, porque tinha esposas em dois ou três lugares. Perguntou-lhe quando regressava a Bajocunda, ao que o Grande respondeu, que no dia seguinte. Como? Viajava de bicicleta. Então, muito ajuizadamente, o Tito pediu ao Grande para lhe arranjar uma bicicleta. E arranjou.
Ao dia seguinte, o Tito, o Grande e outro elemento daquele Pelotão de Caçadores Nativos, fizeram-se ao caminho pela picada arenosa e algo esburacada que ligava as duas localidades. Eram mais de vinte quilómetros. O Tito, bom avaliador do risco vestia uma túnica fula, e com a mala atada ao selim, fazia manobras infrutíferas para se manter sobra a bicicleta, pois à dificuldade da veste, também a mala escorregava para o lado da roda neutralizando o esforço das tentativas de equilíbrio. Resultado: fez a viagem a pé, mas chegou a Bajocunda, e surpreendeu toda a gente. À chegada, dirigiu-se à cantina onde virou umas basucas para dessedentar-se. Depois foi falar com o solícito capitão, que ao pedido para o levar a Pirada, deu logo o nega. Mas o Tito não desarmava à primeira, com insistência tentava fazer ver ao capitão que tinha pressa para chegar a Bissau. O outro, mula, não parecia partilhar das mesmas preocupações. Mas o Tito, com todo o jeito do mundo, não lhe dava espaço de manobra e, delicadamente, insistia que tinha que chegar a Pirada, de onde seria mais fácil arranjar transporte. Finalmente, condescendeu o temorato capitão, talvez para evitar sugestões da atitude persistente do miliciano.
Chegado a Pirada clandestinamente começou a colher informações sobre a possibilidade de atingir Nova Lamego, na medida em que se afigurava não haver DO's a passar por ali. Mas um comerciante local deslocava-se essa noite para o Gabú, e prontificou-se a levar o candidato até àquela localidade. Sentado ao lado do camionista pensou nas virtudes de conhecer os meandros em confronto, que dispensavam picagem e escolta. Chegou a tempo para na manhã seguinte apanhar o avião para a cidade prometida. Uffa! A tropa entrou no Nord Atlas e sentou-se nas magnificas cadeiras ao longo do avião. Depois entraram os civis, homens e mulheres da população local. Sentavam-se no chão, ou ao colo dos militares. Sortudo, o Zé Tito viu uma alegre gorducha dirigir-se para ele e sentar-se sobre as pernas, provocando-lhe dores, quando frequentemente remexia o abundante corpinho, e deixando-o narcotizado sempre que lhe encostava o sovaco na cara. Chegaram bem, felizmente, e o Tito cumpriu um desígnio da psico.
Em presença do alferes examinador, companheiro de turma no Nun'Alvares, por onde os manos Tito Martins tinham feito passagem, este indagou-lhe porque não tinha requerido exames de motociclos, de pesados, de helicópteros e aviões, ao que o Zé respondeu não ter especial interesse. "Burro! Sempre foste burro, o pior da turma, que eu aqui passava-te isso tudo, e nunca se sabe!..." replicou o examinador. "Bom, vamos lá fazer o exame. Toma aí o volante". O Zé, desconhecedor das artérias viárias daquela capital, respondeu-lhe para ser o amigo a conduzir, já que mal identificava a cidade. Compreensivelmente, o alferes conduziu o Tito até à baixa. Quando passavam por uma esplanada, lembraram-se de comemorar o encontro, para mais com mariscos tão famosos como os de Bissau. Comeram e beberam com a facilidade de dois jovens de sucesso, e o grande apetite que o clima inóspito sempre provoca. Conforme o relato pagou a mais alta patente.
Depois da confraternização, e de terem pago a devastação, o examinador disse ao Tito para (finalmente) conduzir a viatura. Novamente o Tito revelou grande sensatez e sugeriu: "já agora conduzes tu".
Regressou a Bajocunda com a barriguinha cheia e a carta de condução passada pela autoridade militar e competente. Já na vida civil comprou um Honda 360 que não arriscava conduzir, até que o bondoso sogro, que não conduzia, se propôs andar com ele pelos espaços mais largos da vila, na prática das manobras automobilistas, enquanto o desmobilizado não revelasse competência para se aventurar a solo naquele género de actividade.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 9 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9723: História da CCAÇ 2679 (48): Entre as NT não havia apenas gente movida pelo espírito cristão (José Manuel Matos Dinis)
sexta-feira, 6 de maio de 2016
Guiné 63/74 - P16055: As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte I: de Cascais até à Portugália / Dundo...
A ver se é isto que se pretende. Seguir-se-ão episódios mais descritivos daquela sociedade. Como de costume, fiz isto de embute e pode carecer de revisão.
Luís e Carlos, bom dia!
Respondo a um repto do Comandante-Mor para dar conta de algumas das minhas memórias angolanas, que ele acha que podem ter interesse para publicação, enquanto testemunho sobre a colónia que era o motor da economia portuguesa.
As minhas memórias, no entanto, são apenas de uma região situada nos confins do nordeste, fronteira com o Katanga, onde a Companhia de Diamantes de Angola [, Diamang,] (*) tinha as suas principais actividades, e era conhecida como um estado dentro do Estado, enquanto de Luanda apenas retenho escassas memórias de duas vezes em que lá passei e permaneci por 8 dias de cada vez.
Abraços fraternos
JD
2. As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte I
Porém, mordia-me um bichinho africano, e a minha namorada dava-me carta branca para decidir o futuro. Para não andar totalmente às escuras, informei-me sobre os trabalhos das minas de diamantes, e logo me entusiasmou essa ideia.
Na minha candidatura em Lisboa aconteceu uma peripécia, porque o chefe de pessoal não me atendeu na manhã e na tarde de um dia, e preparava-se para não me atender no seguinte, sempre "ocupado" com tarefas superiores. Dei uma informação ao contínuo que me olhava com pena, e logo fui muito bem recebido pelos chefe e director do departamento de recursos humanos. Às informações que iam prestar-me durante uma conversa agora agradável, contrapus não ser necessário porque já tinha o conhecimento suficiente sobre a actividade que queria abraçar: mineiro. Assinei o contrato, dois dias antes de a TAP me chamar para as formalidades do curso.
Em Luanda procurei um amigo que trabalhava na Casa Pia. Com ele, ou com a família, passei os
dias em petisqueiras, e por isso, quase não conheci a cidade que, no entanto, afigurou-se-me cheia de contrastes entre o bom e o mau.
Essa noite, depois de jantar, dormi na Casa do Pessoal, o que também aconteceu na noite seguinte. Dei uma volta pela localidade do Dundo, a sede administrativa da Companhia, com um urbanismo muito organizado que me sensibilizou favoravelmente. As casas, de bonitos recortes e amplas varandas, sem muros ou vedações, mantinham boas distâncias até aos limites das ruas, que abrigavam espaços relvados, muito bem cuidados, e com fartura de árvores, arbustos e canteiros de flores, que transmitiam uma grande riqueza pictórica, frescura, e deleite para os olhos. Tudo alinhado e muito limpo. Parecia (e era) um paraíso na terra.
Entretanto fora informado de que ia trabalhar com o mais conceituado dos chefes de grupos mineiros, o engenheiro Marvanejo, um tipo simpático, mas duro, que reflectia os bons resultados pela exigência no desempenho das tarefas. Era coisa que não me assustava, só queria ter oportunidade para fazer a minha aprendizagem em boas condições de diversidade das circunstâncias.
Novas apresentações, a do subchefe e a do colega que passaria a acompanhar até me considerarem apto e autónomo. No dia seguinte, pelas 6h00 já estava pronto à porta da Casa do Pessoal, a minha nova morada, enquanto não tivesse residência própria. A bordo de Volkswagen percorremos as picadas, ornadas de belas árvores - com destaque para os jacarandás vermelhos ou roxos, alternando com nichos de plantas locais e capim, onde esvoaçavam aves de diferentes portes e coloridos.
Ao terceiro dia o Carlos partiu uma perna a jogar à bola, e fiquei sem instrutor. Tinha tido dois dias apenas de estágio, e faltava-me toda a experiência para a condução dos trabalhos em boa ordem. O engenheiro subchefe visitava-me por vezes, mas, apesar de ser um tipo porreiro, era espalha-brasas e não tinha cuidado no linguajar com os trabalhadores. Mal virava costas, eles desprezavam-no. De modo que fiz o estágio com os capatazes, com quem trocava impressões sobre o que era bem ou mal feito. Foi a escola possível, e o Muriandambo foi o capataz-geral que mais me ensinou. Essa aprendizagem, na teoria, era complementada com conversas que mantinha com os colegas mais experientes. Entretanto, tinha agendado o casamento para o final do ano. Eu andava feliz, apesar das preocupações.
O ambiente, o pessoal e as famílias, era acolhedor. Passei a ocupar o tempo livre com convívios. A Casa do Pessoal era gerida pelo Tomás e a mulher, sendo ela uma boa cozinheira, e ele um apreciador da sua produção com bastante mais de cem quilos. Eu e o Maia éramos os únicos residentes, ambos solteiros. Quando estacionava o carro que herdara pelas 16h30, já havia malta a chamar-me para o petisco, pelo que me habituei a tomar banho pouco antes do jantar durante a digestão. Outras vezes, acabávamos de jantar e ficávamos à conversa, aparecia o Tomás com uma travessa de qualquer coisa para entretermos os discursos. Se não fosse a entrega à actividade física durante o horário laboral, teria ficado inchadíssimo, mas consegui permanecer nos 75 kg.
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Notas do editor:
(*) A produção de diamantes em Angola data de 1917, ano em que se constitui a Diamang - Companhia de Diamantes de Angola , uma empresa de capitais mistos de vários grupos financeiros (Portugal, Bélgica, Estados Unidos, Inglaterra e África do Sul). Em 1981, o Estado angolano passa a ter o controlo total da produção diamantífera no país, criando a Endiama - Empresa Nacional de Diamantes.
Há um portal, na Net, fabuloso, dedicado à Diamang e à Lunda, com centenas de fotografias da época, permitindo "reconstituir" a vida, nomeadamente dos brancos, que trabalhavam na Diamong. São sobretudo memórias dos antigos trabalhadores da Diamang. Também há uma página (aberta) no Facebook, com mais de 750 membros, dedicada à Diamang Angola. Também a Universidade de Coimbra gere o sítio Diamang Digital, "um projeto de digitalização e disponibilização em linha de materiais documentais, fotográficos e fonográficos da ex-Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, em arquivo na Universidade de Coimbra",
(**) Referência ao trágico acidente de aviação com um Fokker F-27 Friendship 200, no Lobito, em 21 de maio de 1972, e que fez 22 vítimas mortais. Era da DTA (criada em 1938), antecessoora dos TAAG - Transportes Aéreos de Angola (, partir de 1973).
(...) Em 1947, ano em que nasci, trabalhavam na Diamang, na Lunda, cerca de quinze mil trabalhadores angolanos e umas duas centenas de imigrantes, entre europeus – portugueses, belgas, ingleses, suíços, luxemburgueses e russos – e africanos – cabo- verdianos, são tomenses, sul-africanos. O meu pai era um desses imigrantes. Nascido em Lisboa, filho de holandês e espanhola, fora para a Lunda como engenheiro de minas. Viúvo, casara em segundas núpcias com a minha mãe, nascida em Angola de imigrantes portugueses – e, logo, portuguesa de segunda.
O Dundo, na margem esquerda do Rio Luachimo, a 18 quilómetros da fronteira com o então Congo Belga, era o principal centro administrativo da Diamang na Lunda, onde detinha o exclusivo da exploração e pesquisa de diamantes numa área de cerca de 1.025.000 Km2.
Para se ter a ideia do que era o poder da Diamang bastará dizer que, no contrato de concessão celebrado em 1920 – três anos depois da sua criação – ficara acordado que oferecia a Angola 5% do seu capital social, já realizado ou que viesse a ser realizado; comprometia-se a pagar anualmente a Angola 40% dos lucros líquidos; emprestava a Angola 400.000 libras; podia efectuar a exploração dos jazigos descobertos, mediante simples comunicação à autoridade local; mantinha por um período de 30 anos – a prorrogar – a exclusividade da pesquisa de diamantes, em cerca de 90% do território de Angola.
Era bom ser criança no Dundo, quando se era branca e filha de engenheiro. Havia espaço para brincar, ruas para andar de bicicleta, animais, liberdade. E criados para nos acompanhar e satisfazer os nossos caprichos. Era bom ser criança e não notar como era artificial e injusto o mundo que nos cercava. Mas à medida que cresci, fui-me apercebendo de que não era igual para todos… (...)
quarta-feira, 6 de setembro de 2017
Guiné 61/74 - P17735: Os nossos seres, saberes e lazeres (228): De Valeta para Bruxelas: Para participar na Primavera, visitar uma cidade muito amada (8) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 11 de Maio de 2017:
Queridos amigos,
Tudo se conjugou para que depois de uma férias em Malta houvesse um retorno a Bruxelas, três dias apressados, que se saldaram em encontros amigos e programas admiráveis.
Primeiro, o enamoramento por uma arquitetura invejável de Arte Nova, Arte Deco e período seguinte, a economia belga estava pujante e as casas e monumentos refletiam tal prosperidade.
De Namur seguiu-se para Mariemont, tarde mais aprazível não podia ter acontecido, com a visita a um museu de um colecionador que podia ter sido um rival de Gulbenkian. E à despedida mostram-se cerejeiras ornamentais, nunca o viandante entendeu porque é que estas árvores não abundam nas nossas cidades, já que temos os faiscantes jacarandás, de grande porte, podíamos espalhar pelas ruas estas cores tão risonhas.
Um abraço do
Mário
De Valeta para Bruxelas:
Para participar na Primavera, visitar uma cidade muito amada (8)
Beja Santos
Qualquer turista que arribe a Bruxelas e que circule pelos bairros mais centrais não pode deixar de ficar surpreendido com a quantidade e qualidade de edifícios Arte Nova e Arte Deco. Há mesmo programas específicos para visitar algum do património mais valioso, caso do museu Horta, que foi residência e ateliê do arquiteto Victor Horta, um os expoentes máximos da Arte Nova, somos surpreendidos por mosaico, vitrais, pinturas murais, artes decorativas, mobiliário da época, há outros museus como Alice e David Van Buuren e há visitas guiadas pelas ruas. Surpreende depois a majestade de certa arquitetura do início dos anos 1950, a Bélgica ainda é então uma importantíssima potência económica, dispõe do Congo, a cidade enxameia-se de galerias, vistosas como templos. Veja-se esta entrada da Galeria Ravenstein, que já conheceu melhores dias, é uma peça de grande beleza, cercada de escritórios em série.
Sempre que o viandante percorre o centro histórico dá uma saltada à Catedral de Santa Gudula, um colosso de pedra de gótico triunfal, que foi alvo de muitas intervenções, é impressionante pela sua harmonia, por uma construção que lhe facilita a luminosidade, e toca ainda mais pela cuidada sobriedade dos seus eixos, mostra-se o seu órgão, aqui mesmo, não há muito tempo, o viandante viu e ouviu o mágico Trevor Pinnock, cravista sem rival, a executar obras-primas de Bach.
O viandante detém-se junto da imagem ícone da catedral, há muito que promete a si mesmo procurar saber algo sobre Santa Gudula, o que não o faz, neste caso não importa, a imagem é muito bela e dá mesmo para interrogar como é que transcende tão forte espiritualidade sendo tão ofuscante a folha de ouro, que devia constituir um sério obstáculo, já que este espaço é comedido no luxo e na ostentação. Prossigamos.
Foi-se primeiro a Namur, o viandante tem ali uma amiga há muito mais de 30 anos, depois de ter servido um rico almoço avisou que íamos até Mariemont, o viandante andou perto, já esteve em La Louvière, no tempo da Europália Rússia, foi ali que se deslumbrou com os cartazes da propaganda soviética no tempo do culto de Estaline, vai feliz e contente, sabe que a sua amiga é useira e vezeira em bons programas. O parque circundante do museu real de Mariemont é espaçoso, por ali anda gente de todas as idades, há sombras acolhedoras, o elemento floral está sempre presente, como se ilustra.
Mas que museu é este? Um rico industrial de nome Raoul Warocqué deu em colecionador apaixonado, um tanto eclético: arte egípcia, Grécia e Roma antigas, uma manifesta devoção pela história e arqueologia da região, muito fascínio pelo Extremo Oriente, pela porcelana de Tournai, um grande bibliófilo. Quando aqui se entra logo nos alertam que este domínio de Mariemont tem história ilustre, foi fundado no século XVI por Maria da Hungria, servia de residência a governadores, aqui se deu acolhimento a Carlos V ou Luís XIV. E apontam para as ruínas do castelo, que era ponto alto destes 45 hectares de domínio. O museu foi inaugurado em 1975, desenhado cuidadosamente para nos encaminhar para a contemplação de todas estas jóias de arte, ver-se à légua que o senhor Warocqué se sentia deslumbrado pela arte egípcia, pelo classicismo, pelos primores da arte oriental.
O viandante tem de vez em quando que recordar que usa uma câmara modesta, o seu flash é proibido em telas e peças sensíveis, daí, na hora da despedida deste tão belo museu se ter registado um busto que qualquer museu não se importaria de acolher.
E assim acabou o penúltimo dia em Bruxelas. Não há melhor despedida do que mostrar as cerejeiras ornamentais que pululam em Watermael-Boisfort, onde o viandante tem um ponto de partida e de chegada, é de uma enorme impressão este colorido de feição orientalizante, pois são cerejeiras japónicas, cercadas de construções com quase um século de existência. Amanhã, último dia, haverá ainda uma deambulação pedestre dentro de bosques e a visita à exposição de Pierre e Gilles, no Museu de Ixelles, e depois ala morena que se faz tarde, pega-se na bagagem e vai-se até Zaventem. Até á próxima.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 30 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17713: Os nossos seres, saberes e lazeres (227): De Valeta para Bruxelas: Para participar na Primavera, visitar uma cidade muito amada (7) (Mário Beja Santos)
segunda-feira, 19 de junho de 2023
Guiné 61/74 - P24413: (De) caras (198): "Da minha varanda também vejo o mundo... Ou de como mudou a minha rua, os meus vizinhos, os meus fregueses"... (Valdemar Queiroz e os seus comentadores)
Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > CIM de Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > O Valdemar Queiroz, nado em Afife, criado em Lisboa, foi instrutor desta rapaziada toda: aqui, com os recrutas Cherno Baldé, Sori (Jau ou Baldé) e Umaru Baldé (que, feita a recruta, irão depois para a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, a partir de 18 de junho de 1970). Estes mancebos aparentavam ter 16 ou menos anos de idade (!). Eram do recrutamento local e, originalmente, não falavam português.
Fotos (e legenda): © Valdemar Queiroz (2023). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Quando o Valdemar Queiroz casou e se mudou para Agualva-Cacém, há 50 anos, a Rua Colaride não era tão bonita e sobretudo era muito menos "colorida"...
No país não havia mais do 28 mil estrangeiros com estatuto legal de residentes (20 mil, em 1960)... Os dados são da Pordata (ver aqui). Hoje são mais de 750 mil, segundo dados revelados recentemente pelo SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras).
Na Rua de Colaride, há mais gente oriunda, por exemplo, de Cabo Verde, Guiné, Angola, três antigas colónias portuguesas, que se tornaram independentes em 1974 e 1975... Muitos já terão a nacionalidade portuguesa...
As fotos que o Valdemar vai tirando à varanda, com um "telemóvel fatela", não nos dizem tudo, mas dizem algumas coisas,dele, dos vizinhos e dos fregueses... E sobretudo deram origem a um curiosa e sobretudo rica e estimulante troca de comentários entre o Valdemar e os seus leitores... Foram um "momento bonito" das nossas blogarias... Afinalo, blogar até faz bem à saúde...
Fica aqui um apanhado (*)... E, como diz o Valdemar, saúde da boa para todos/as, nomeadamente nesta semana de festas juninas e sardinha assada por todo o lado, da Lourinhã ao Porto... (Em Sintra, o concelho onde mora o Valdemar, o feriado municipal é no São Pedro. o santo que encerra o solstício do verão, e o ciclo festivo dos santos populares: "primeiro vem o santo António / depois o são João / e, por fim, o são Pedro / para a nossa reinação" (diziam os putos no meu tempo, a saltar a fogueira...).
(i) Tabanca Grande Luís Graça:
O prédio do nosso querido Valdemar "Embaló" pelo menos não tem, o que é bom sinal... E espero bem que nunca venha a ter...
O primeiro, imediato, é que me parece ser um "estudo fotográfico" da evolução do bairro onde mora, das ruas, dos habitantes, considerando que os originais se foram para outras paragens, que os habitantes agora são originários de Cabo Verde, Guiné e Angola, que já são habitantes de prédios e não de barracas ou moradias improvisadas, que são pessoas com empregos "normais", não maioritariamente na construção civil.
Considero que as povoações, os bairros, as ruas, são também, ou podem ser, "entidades vivas" com o seu quê de nascimento, crescimento, declínio e/ou substituição e que, por esse prisma, as fotos que fez (e faz) podem ser encaradas como um testemunho etnográfico.
Quanto às fotos em si mesmas, claro que o que imediatamente nos dá curiosidade é o nome estampado na T-shirt que encabeça a série, mas tudo então nos transporta para "outras paragens".
Outro aspeto que podemos considerar é mesmo o facto do Valdemar ser um "resistente", logo à cabeça como habitante do bairro (ainda e sempre, como os irredutíveis gauleses), e depois à situação de inferioridade induzida pela malvada DPOC que apesar de tudo não lhe tira a alegria de viver, o sentido crítico e até a ironia.(...)
As fotografias são tiradas por um telemovel fatela. Tivesse uma máquina como deve ser, dava para mostrar a envolvência dos fotografados.
Os prédios nasceram em 1972-1973, no caminho de uma vacaria e moinhos de vento, ainda quase todos para alugar, a receber casados de fresco vindos de Lisboa com a estação dos comboios a 10 minutos, e a meia hora do Rossio.
Levou alguns anos a ficar tudo arranjadinho como agora se vê, e os novos habitantes, principalmente a mulheres, fazem grande motivo de vaidade por viver no 2º. andar, que até dá para estender a roupa a secar. E até me dizem 'ó vizinho, está melhor?' (...)
(iv) Eduardo Estrela:
Valdemar!!... Ver o mundo que os teus olhos abraçam desde a varanda da tua casa é muito melhor do que ir parar ao Hospital Amadora/Sintra.
Não me digas que não me compr'endes
quando os dias se tornam azedos
não me digas que nunca sentiste
uma força a crescer-te nos dedos
e uma raiva a nascer-te nos dentes
Não me digas que não me compr'endes
(Que força é essa? Amigo) (...)
14 de junho de 2023 às 18:30
Pronto, acho que já descobri onde mora o Valdemar Queiroz, com a ajuda das fotografias e do Street View da Google. É claro que não sei qual é o andar, nem sequer tenho a certeza sobre a porta do prédio dele, mas suponho que ele mora muito aproximadamente aqui:
O Valdemar não tem uma janela virada para o mar, mas merecia, porque parece ter os horizontes muito limitados. Mesmo nas traseiras, deve ter uma vista para o casario da Agualva-Cacém e pouco mais. Além disso, o ar lavado do mar far-lhe-ia bem, com toda a certeza.
A resiliência (como agora está na moda dizer) do Valdemar Queiroz é um exemplo de vida para todos nós. Aprendamos com ele. (...)
14 de junho de 2023 às 18:50
O J. Pimenta, o António Xavier de Lima e os outros construtores dos dormitórios da Grande Lisboa, como é a Agualva-Cacém, não se preocupavam com semelhantes "pormenores" tais como fazer espaços verdes e garagens para os moradores. Mesmo a urbanização de S. Marcos, do outro lado do IC 19, é uma selva de betão (pelo menos era no meu tempo), apesar de ser muito mais recente. Nada lhes escapa.
Um abraço e... saúde da boa (também posso dizer, não posso?)
As fotos da tua bem podem ser as da minha rua na Reboleira. Embora eu só more aqui de forma permanente há sete anos vi muitas transformações desta zona nos 20 anos que a frequento.
Africanos de varias procedências tanto dos PALOPES como francófonos e Há sete anos existiam Romanescos às cárradas que entretanto foram para outras paragens,
Olha camarada estimo a tua saúde e não sei o mar seria uma bênção pois também há mais humidade. (...)
14 de junho de 2023 às 22:26
(viii) Valdemar Queiroz:
Obrigado, Juvenal. Eu nasci à beira mar, a cerca de um quilómetro, mas sem hábitos de gentes da borda d'água. Afife tinha/tem uma grande praia, mas nunca teve pescadores e gente do mar só as mulheres quando iam ao sargaço.
A rapaziada só ia à praia quando ajudava os banhistas no Verão, o mar era muito perigoso. Mesmo assim, não fora as proximidades do mar teria dificuldades em crescer dado o meu estado de raquitismo.
E até poder, cerca de 2008, sempre tive hábitos de "banhista" nas praias do sudoeste alentejano por mais de vinte anos. Que bom que era poder dar um mergulho numa onda e descansar na areia a fumar um cigarro (fdap de vício).
Abraço e saúde da boa
Caro amigo Valdemar Embaló, conheci o teu Bairro da Agualva/Cacém onde viviam alguns conterrâneos em meados de 2001/02.
Nos subúrbios de Lisboa, por norma, quando a "africanização" dos Bairros começa a ganhar proporções, os "indígenas" tendem a fugir, é por isso que a integração é tão difícil na Europa e, concretamente, em Portugal que conheci melhor. Não pode haver integração sem convivência.
Ao Valdemar, sobrevivente de Canquelifa, Paunca e Guiro-Iero-Bocari (que poucos guineenses saberão localizar num mapa), eu sei que não faz muita diferença, pois a África e os africanos fazem parte das suas lembranças, boas e más. (...)
Europeus, africanos, asiáticos, americanos e demais, praticam cada vez menos essa ancestral forma de comunicar. (...)
A necessidade dos africanos comunicar entre eles já não se pratica, vivem todos muito próximos e, tal como nós em vez de alentejanos ou beirões, são de várias ilhas ou regiões de África, talvez sem se conhecerem não ter hábito de conversa.
Noto em toda esta gente que agora vive por aqui um grande sentido de 'boa educação', com uma segunda geração a falar português em vez de crioulo e uma certa vaidade de morar ao nosso lado.
Há dias estava sentado próximo da porta de entrada e ouvi um estrondo na varanda, de seguida tocaram à campainha. Ouvi bola bola e abri a porta da escada com um 'venham cá acima'. Aparecerem dois miúdos 10-11 anos cabo-verdianos muito assustados, vão à varanda buscar a bola e tenham mais cuidado podiam ter partido um vidro, disse-lhes. Silenciosamente atravessaram um quarto regressando com a bola e voltaram-se para mim com um 'o senhor está doente, precisa de alguma coisa?'. Não os conhecia de lado nenhum, vinham da escola a caminho de casa.
Estrela, como deve estar a Carrapateira, Bordeira e a praia do Amado que durante vários anos visitava de férias no mês de Agosto e nunca mais lá irei.
(xiii) Eduardo Estrela
Vais!!!... Vais pelas tuas memórias e recordações. Viajamos quando queremos porque a mente nos permite que o façamos mesmo sem nos deslocarmos fisicamente.
Recorda a beleza que conhecesse, é muito mais enternecedor a do que a que resulta de aplicações financeiras e fraudulentas do denominado mercado.
Fiquei extremamente sensibilizado com a história dos putos de 10/11 anos.
Temos obrigação de continuar a luta e participar de todas as maneiras possíveis na construção duma sociedade cada vez mais harmoniosa e racional.
Abraço fraterno e... "Saúde da Boa"
Valdemar, amigo e camarada, vives na tua ilha e com as limitações que isso te traz, procuras superar as tuas limitações, fraternalmente com os vizinhos da tua rua e com os vizinhos que vais encontrando neste Blogue, és um resistente, um lutador, admiro-te muito.
Da tua varanda ou da tua janela podes contruir outras histórias. Vai dando notícias.
As tuas melhoras. (---=
(...) Que chatice, agora, e eu sem poder dar vencimento a tanto quererem saber de mim.
Já não tenho idade e saúde, para altos voos de mirone da varanda e guarda-nêsperas, e ganhar bom dinheiro. Chega-me o que faço, confessei, enquanto mirava um casal de pombinhos na intimidade, no beiral de um telhado.
Cá estou eu como habitualmente, a levar as coisas com boa disposição e não, por enquanto, a pensar na chatice que me havia de aparecer na parte final da corria da maratona da vida. E tenho estado bastante aflito, mas farto-me de rir com aquela do Paco Bandeira ser da família dos Bandeira e não da dos Niña ou dos Nassa.
Fernando Ribeiro, a seguir ao parque automóvel em frente dos prédios apareceu outra "praga" da época, o cultivo de couves e batatas em hortinhas por "agricultores" de outros prédios. (...)
15 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24400: (De) Caras (198): "Da minha varanda também vejo o mundo... Ou uma nesga, o da da minha rua" (Valdemar Queiroz, DPOC, Rua de Colaride, Agualva-Cacém, Sintra) - II (e última) Parte