domingo, 1 de maio de 2005

Guiné 61/74 - P10: Memórias de Fá, Xime, Enxalé, Porto Gole, Bissá, Mansoa (Abel Rei)

Abel Rei (n. 1945), ex-combatente da Guiné (1967/68), natural da Maceira, Leiria, e actualmente residente em Embra, Marinha Grande.

Fonte: © Carlos Barros (2005) Portal da Marinha Grande

Amigos & camaradas:

Se não conhecem, tomem nota de um sítio que descobri na Net. É de um camarada que vive na Marinha Grande e que andou pelos nossos lados, entre Fevereiro de 1967 e Novembro de 1968. O nome dele é Abel de Jesus Carreira Rei. Conta a sua história de ex-combatente num portal da Marinha Grande, dirigido por Carlos Barros: Marinha Grande > Palavras & Imagens > Personalidades Marinhenses > Biografias > A > Abel de Jesus Carreira Rei.

Com a devida vénia e os nossos agradecimentos (pela foto e pelos excertos de texto), aqui vai o endereço: Entre o Paraíso e o Inferno: de Fá a Bissá. Memórias da Guiné - 1967/1968). 

Diz o autor: "Esta é a história verdadeira que eu escrevi: não a história que eu gostaria de escrever". 

Trata-se de um diário que vai do dia 1 de Fevereiro de 1967 a 19 de Novembro de 1968.

E aqui ficam alguns apontamentos (corrigi, aqui e ali, a pontuação e a gramática, sem atraçoiar o pensamento do autor).



"Levantámo-nos eram três da manhã e saímos finalmente de Bissau, sem irmos lá, subindo o rio Geba acima, pelas seis horas, numa LDG (Lancha de Desembarque Grande), sendo patrulhados por marinheiros. O pormenor mais importante desta viagem foi na altura em que os homens da tripulação destruíram uma canoa dos turras, com seis tiros, obrigando toda a malta a deitar-se instintivamente.

"Desembarcámos em Bambadinca pelas treze horas, e daí seguimos para Fá [Mandinga], onde iria ser o nosso primeiro aquartelamento na Guiné. Depois dum refrescante banho, já depois de o sol se pôr, numa fonte de água fresca próxima do quartel - e, segundo dizem, a melhor da província - comemos a primeira refeição cerca das dez horas da noite. Apesar da fome que passámos, o nosso maior inimigo, neste início, é o calor, pois vínhamos do frio e qu1ase todos o sentimos".



2. Em 21 de Fevereiro de 1967, o nosso homem está destacado no Xime, aquartelamento da CCAÇ 1550:

"Neste quartel de Xime, onde temos permanecido desde a saída de Fá, está-se em contacto permanente com os indígenas, que vivem à entrada numa tabanca, com enorme população, sendo alguns deles soldados dum pelotão de nativos. Já percorri a mesma, e tive o primeiro contacto com as bajudas(raparigas adolescentes nativas), em companhia de camaradas mais velhos, que pertencem à Companhia de Caçadores nº 1550, cá destacada, e comecei a [papaguear] o crioulo. Como curiosidade tive nos braços um garoto mulato, talvez fruto da passagem dos primeiros militares brancos, por cá, no início da guerra."


3. Em 25 de Fevereiro o autor vai em patrulha estacionada no Enxalé, a CART 1439… O Enxalé ficava a norte do Rio Geba, em frente ao Xime. Também passei/passámos, a malta da CCAÇ 12, pela grande privação de água nesta região. Escreve o nosso cabo, quando regressa de Porto Gole ao Enxalé:

"Hoje pude avaliar quão grandes teriam sido as dificuldades que os nossos antecessores sofreram, e eu ainda terei de sofrer (?). A água, que costuma ser bebida com comprimidos e filtrada, bebeu-se por todos, sofregamente, sem olhar a limpeza e origem. Bebia-se todo o líquido que nos aparecia, quer nas poças do terreno, ou nos poucos cursos de água, fosse ele da cor que fosse!"…


4. Em 12 de Março, o baptismo de fogo na região do Xime. O autor não nos dá indicações precisas onde se desenrolou a operação, diz apena foi a "este do Xime"...

"Seriam talvez sete da manhã quando a linha da frente, donde eu fazia parte, detectou duas minas escondidas na picada, logo de imediato assinaladas e desactivadas. Entretanto, mais à frente o inimigo que, supomos, sabia das nossas manobras, vinha ao nosso encontro para nos montar emboscadas. Nós demos de caras com eles abrindo o nosso primeiro homem, à frente, fogo de rajada com a G3.

"Eles responderam de imediato com rajadas de metralhadoras e bazucadas, que caíam já bastante perto de nós. O local não nos ajudou, por só haver uma picada estreita, na qual seguíamos em linha, e que era ladeada por espesso capim alto. Do inesperado embate houve escasso recuo, para logo de seguida nós lhes fazermos frente, com morteiradas e rajadas que fizeram o inimigo bater em retirada.

"Foi histórico, para mim, este dia em que as ouvi cantar por cima da minha cabeça".



5. De 19 a 23 de Março, participa numa dramática operação ao Burontoni, na região do Xitole (Op Guindaste). As NT fazem 8 mortos, “confirmados no terreno”, e capturam material de guerra. Mas o ronco tem sempre custos para os tugas: mais uma vez o sofrimento devido ao cansaço e a falta de água…

"Retirámos, deixando tudo em chamas, em passo acelerado, tendo alguns desmaiado, em parte devido ao calor, mas também por falta de água, contando-se entre eles o nosso capitão e um sargento. Quando tornámos a passar pelo riacho, que sabíamos existir, parecíamos que estávamos loucos, procurando a água com ânsia, mesmo com ela quase preta, do calcar dos nossos pés. Lá estivemos mais de uma hora, para abalarmos depois, bastante mais frescos, a caminho de Dembataco, onde chegámos às sete e tal da noite. Pelo caminho, encontrámos mais uma nascente, com um curso de água, onde parámos e nos abastecemos de novo. Mais uma vez, corridas loucas ao encontro de água, e como sempre a ser preciso penetrar nela para a possuir: e eram sempre duas rações que tinha de arranjar; a minha e a do meu colega Saraiva, dos Moínhos de Carvide, que vinha completamente abatido, e o qual ajudei nas últimas horas de marcha, amparando-o e trazendo-lhe o seu equipamento (...).

"Parti de Dembataco, tremendamente abatido e exausto, em direcção à estrada do Xitole-Bambadinca, depois de passarmos uma ponte de paus ligados uns aos outros. Aí deveriam estar umas viaturas que nos levariam a Fá. Não estavam. Partimos aos tombos até Bambadinca, onde chegámos à meia-noite e foram só os teimosos do meu grupo de combate; os outros lá ficaram a aguardar as viaturas. Mas nós, uma vez chegados, tornámos atrás a fazer segurança às viaturas, que iam buscar os nossos colegas que, entretanto, se tinham posto a caminho por ser perigosa a sua permanência no local onde ficaram.

"Chegámos ao quartel à uma da manhã, e assim terminou a Operação Guindaste na zona Burontoni".


6. Em 15 de Abril de 1967, as NT sofrem um duro revés em Porto Gale… 7 mortos:

"Dia trágico, este, para quantos se encontravam no 'Inferno' de Bissá!

"Em Porto Gole, estando de serviço à meia-noite, ouvi fortes rebentamentos, e enormes clarões, lá para as bandas de Bissá. Contudo não pude averiguar ao certo o local, onde durante mais de uma hora [houve] constante tiroteio (...). Procurámos entrar em contacto pela via rádio, mas eles não deram sinal, pelo que deduzimos ser alguma operação apoiada com os obuses de Mansoa, como muitas vezes estamos habituados (...).

"De manhã, e como estava previsto, saíram os homens, que na véspera tinham chegado, mais alguns deste destacamento, cuja missão era levar para Bissá um abastecimento de alimentos e munições (...).

"Partiram às seis e às sete chegaram cá civis para nos informarem de que Bissá tinha sido atacado e havia feridos a necessitarem de ser evacuados de helicóptero, pois o rádio deles estava avariado desde o princípio e não podia dar comunicação para nós, e o nosso, naquele momento para cúmulo do azar, também não obteve ligação com o Comando em Enxalé, tendo de ir pessoal em duas viaturas até lá levar a mensagem, demorando portanto, o socorro.

"Por volta do meio-dia e picos, chegou o primeiro helicóptero, e para espanto nosso, com mortos e não feridos, como supúnhamos! Depois mais três aterragens: foram sete mortos no total, todos africanos.

"Houve mais cinco feridos, sendo quatro nativos do Pelotão da Polícia Administrativa, e um branco da nossa companhia, que foi evacuado para Bissau.

"Mas aconteceu o que não esperávamos, e eu confesso: apesar de estar cá há pouco tempo, vieram-me as lágrimas aos olhos. Houve choro de todos, com gritos e desmaios das mulheres que, como que adivinhando o que aconteceu, entraram de rompante dentro do destacamento, numa altura em que procedíamos à pesagem de peixe fresco chegado do rio... Tinha morrido um capitão de 2ª linha, mais seis homens nativos, todos pertencentes à Polícia Administrativa e todos eles com as famílias cá na Tabanca em Porto Gole. Morria o homem, em quem se tinham fortes esperanças, para acabar com a guerrilha inimiga na zona, o capitão Abna Na Onça, por ser corajoso e respeitado por negros e brancos. Um homem que desde o início da guerra vinha enfrentando, com máxima inteligência, aqueles que o fizeram sofrer, matando-lhe toda a família (...).



7. Em 14 de Maio de 1967, estamos em Bissá, um aquartelamento com oito abrigos, arame farpado e iluminação a… petromax!... E onde há alferes milicianos chicos (como também havia no nosso tempo!)…

Por outro lado, vejam, no registo do dia 12 de Junho de 1967, como era perigoso brincar com armadilhas!


8. Em 16 de Setembro, quatro mortos numa mina anticarro:

Em Outubro de 1967 a série negra continua, com mais mortos…


9. Em 29 de Novembro de 1967, há o relato de uam dramática operação à região de Madina [Madina / Belel, no regulado do Cuor].

" (...) Partimos à meia-noite do dia 27, com uma ração de combate por cada dois homens, e a caminho dum acampamento de turras, situado em Madina, onde eles tinham bastantes armas pesadas, entre elas, um ou dois morteiros 82 e canhão sem recuo (?). 

"Chegámos por volta das dez e meia da manhã. Por essa altura, começou a sobrevoar a zona uma avioneta com um major de operações. Depois de mais de uma hora parados, e a suportar toda a intensidade do sol escaldante, fomos obrigados a avançar para o objectivo. Nessa ocasião fazia-se a entrada numa bolanha cheia de água.

"Mas os nossos corpos caíram!... Fomos quatro evacuados. Cerca de vinte homens ficaram a fazer a segurança ao helicóptero. Todos os outros iam a caminhar para o objectivo. Levantámos, no meio do capim com mais de três metros de altura, e assim que partimos, toda a zona era alvo de fortes rebentamentos, lançados pelo inimigo, para liquidar os homens que eles sabiam estar nesse local em que o helicóptero subiu.

"O tiroteio sucedia-se cobrindo aqueles matos! Tínhamos chegado ao fim do percurso, e decerto a sermos sempre observados pelo inimigo. Agora era o mais difícil: atacar e fazer a retirada; que é onde se juntam todos os sacrifícios, que são cada vez maiores, na medida em que reduzem as nossas capacidades.

"Os homens que ficaram atrás comigo, contaram que foram obrigados a retirar para fugir ao fogo dos turras, que batiam a zona. Perderam-se... Os outros, que o capitão (de nome, Figueiredo) obrigou a irem contra as trincheiras do inimigo - apontando-lhes a sua arma, com ameaça de disparo, se não avançassem - sofriam dois mortos e três feridos. Não lhes foi possível trazer os mortos (um soldado nativo das milícias e o próprio guia), pois o fogo era intenso.

"Chegaram já de noite, divididos em dois grupos, aqui ao quartel, tendo andado perdidos uns dos outros. Vinham estafados".



10. No final de Dezembro de 1967, o nosso cabo Rei está destacado no Enxalé e a 23 relata a sua viagem a Bafatá, para fazer compras d Natal!

"Fui até Bafatá no dia 23, para comprar bebidas, doces e frutas, para festejarmos o dia de Natal e a passagem de ano. Foi a primeira vez que visitei uma cidade da Guiné!

"Fomos uns quantos de Enxalé, até às margens do rio Geba, percorrendo o rio, de canoa cerca de três quilómetros, até ao quartel do Xime, onde com mais alguns elementos, em viatura auto, nos fizemos à estrada, percorrendo cerca de sessenta quilómetros, passando por Bambadinca, depois a zona de Fá e finalmente Bafatá. Regressámos a Enxalé já de noite, atravessando uma bolanha com dois quilómetros e meio de extensão, e com água a cobrir-nos a cintura.

"Não vou deixar aqui as minhas impressões, sobre aquela cidade, pois que lá não achei nada de especial: somente pequenina! Uma cidade, onde a sua base é o comércio, desfrutando do progresso da guerra, e onde a mesma não faz sentir os seus efeitos destruidores.

"A seguir veio o Natal, vivido no meio de boa disposição, com bastante camaradagem e optimismo entre o grupo. Houve uma ligeira ceia - pois era preciso estarmos atentos ao inimigo - onde não faltou o velho amigo [o bacalhau ? o vinho ?], o vinho do Porto, e demais bebidas, juntamente com bolos, nozes, pinhões, passas de uvas, etc. E até umas filhoses feitas por mim.

"No dia 28, os turras vieram cá visitar-nos, durante alguns minutos, durante os quais nos defendemos, não ocorrendo desse ataque nada de grave a assinalar".


11. Em Fevereiro de 1968, o nosso cabo goza as suas merecidas férias em Bissau, hospedado na pensão Chantre... Nesse mês, a base aérea de Bissalanca tinha sido atacado pelo PAIGC... E em frente a Bissau, Tite é atacada:

"Quando me encontrava numa noite destas, pelas onze horas, a passear junto à área do Porto Marítimo de Bissau, começou-se inesperadamente, como sempre, a ouvir o rebentar de granadas potentes, e a vê-las lançar ao ar as suas mortíferas estilhaçadas incandescentes... Era mais um ataque terrorista a um destacamento na área de Tite".


12. Em 1968, a escrita do diário torna-se mais rara. Em 1 de Junho de 1968 há outra dramática descrição de um contacto com o IN, de que resultou entre outras baixas a captura de um elemento das NT:

"O meu sono e o dos meus camaradas foi perturbado à uma da madrugada! E, passadas duas horas, saímos juntamente com a companhia presentemente cá destacada, para fins operacionais.

"O nosso destino era uma ligeira patrulha nas matas de Seé, a pouco mais de 10 Kms de percurso [do Enxalé]. O andamento foi decorrendo normal e sem incidentes até cerca das seis da manhã, altura em que detectámos algumas folhas junto a uma árvore -a sentinela avançada do inimigo, que tinha ido dar o alarme.

"A seguir era a entrada numa bolanha rodeada de espessa mata, feita em corrida: tínhamos detectado tropas inimigas - que no momento em que eu chegava à zona de morte (vista depois) - faziam a entrada numa mata do nosso lado esquerdo. Esses mesmos acabavam de fazer uma patrulha, ou então deveriam vir dum suspeito acampamento, perto da nossa viatura, imobilizada na emboscada de 10 de Abril (?). Fiz logo fogo, assim como toda a frente do meu grupo, sendo nessa ocasião feridos alguns inimigos (...).

"Entretanto, nós avançávamos pela mata dentro, mas a escassos metros o inimigo esperava-nos! Então o tiroteio foi intenso, com o inimigo a cercar-nos. Tivemos de retroceder. Mas, uma vez fora da mata, os tiros e rebentamentos sucediam-se de todos os lados; eram feridos cinco elementos nossos, entre eles o capitão da outra companhia.

"Depois avançámos ao longo da mata, com as forças inimigas bem instaladas, e a fazer fogo constante sobre nós. Num momento de maior aflição era deixado o capitão e alguns homens nessa dita zona de morte. Eu, nesse momento, estava no meio da bolanha oferecendo um alvo fácil, ouvindo assobiar rajadas e roquetadas, e via os meus companheiros a passarem por mim; pois tinha sido dos primeiros, e só fiquei para trás, na altura em que reparei que todos fugiam em direcção a Bissá, sem se importarem com a rectaguarda. Gritei, pedi que recuassem!... E vi os turras correrem para os que estavam em perigo. (Mais tarde, disse um soldado de nome Pombinho, de quem eu trazia a arma - "os turras avançaram, mandando-lhe levantar as mãos e ordenando que se rendesse". A resposta dele foi uma rajada com uma arma de um ferido, obrigando-os a fugir para o mato).

"O tiroteio continuava com as nossas forças dispersas pelo mato, havendo dois grupos de combate que tinham ido dar uma volta ainda maior, e reagrupando aqueles que ainda estavam na zona de fogo.

"À frente tudo corria, para Bissá. Atrás ficavam duas armas: uma pesada, MG e uma ligeira, G3. E, o pior de tudo, um homem da outra companhia era apanhado à mão pelo inimigo! (Mais tarde falou-nos de Conakry, via rádio, a informar-nos que se encontrava bem)(1).

"Enquanto a maior parte chegava a Bissá, com dois feridos graves a perderem sangue, entre outros, apareciam no local de combate dois bombardeiros, dando em seguida algumas rajadas para a mata, onde nessa altura se encontravam já os grupos de combate, que tinham vindo em socorro, orientando-se pelo tiroteio. Seguidamente aterrava um helicóptero, protegido pelos bombardeiros, para evacuar o capitão e mais dois homens também feridos por uma roquetada, enquanto lhe faziam segurança.

"Partimos de Bissá às duas da tarde, mas só os que podiam andar - lá seriam evacuados quatro homens feridos e dois exaustos - pois ainda lá ficaram três ou quatro que não podiam caminhar. Eu, apesar de ter poucas esperanças em aguentar essas três horas de andamento, abalei disposto a cobri-las, pois trazia no pensamento unicamente o nome de Porto Gole! Fomos encontrar os bombardeiros, a meio do percurso, não tendo [tido] mais chatices com o inimigo. Cansado e sem forças, fui o primeiro a chegar a Porto Gole".


13. O último registo do diário são os preparativos para o regresso a casa, depois de 22 meses de comissão. E as últimas confidências, já escritas no N/M Uíge, em 19 e 20 de Novembro de 1968:

"No mato, enquanto fazia emboscadas ou patrulhas, os apontamentos do meu livrinho, que trazia sempre comigo no dolmã, saíram algumas vezes incompletos e com falta de acção e estilo. A minha escassa formação primária não me proporcionou melhores ideias. Tudo o que ficou escrito, não se tratou senão de simples partes vividas, onde a realidade dava lugar a maiores esclarecimentos. 

"E acabei por impor a mim próprio a chamada memória selectiva, e omitir factos tão ruins que eu nem os conseguia descrever, e com a sua omissão convencer-me de que nunca aconteceram.

"A minha missão não foi das mais árduas, outros houve que sofreram muito mais. Para esses, irá decerto o carinho de todos quantos nos rodearam através das escassas notícias referidas além-mar.

"Nada paga tão imensa alegria, a de podermos regressar ao lar e esquecermos tantas e tantas horas que passámos sem dormir, atentos ao inimigo, e depois de o termos aguentado, acarinharmos os nossos camaradas feridos, ou chorarmos os mortos. 

"A estes últimos, os heróis desconhecidos desta guerra, aqueles que mais ninguém recordará, a não ser os pais, irmãos, esposas e filhos... a estes, a minha modesta homenagem que se resume em desejar-lhes Eterno Descanso. Irmãos de meses difíceis desta tropa, a minha lembrança por vocês perdurará (...) eternamente, pois eu podia ter sido um de vós!"
_____

Nota de L.G.

(1) Presumo que tenha sido libertado, juntamente com os outros prisioneiros portugueses, na sequência da invasão, em 25 de Novembro de 1969, de Conakry, pelas forças comandadas por Alpoim Galvão (Op Mar Verde).

sexta-feira, 29 de abril de 2005

Guiné 63/74 - P9: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1) (Luís Graça)

1. Nos úlimos dias descobri alguns camaradas de armas:

(i) que estiveram comigo na Guíné, na mesma altura, entre 1969 e 1970; foi o caso ex-furriel miliciano David J. Guimarães, do Porto, que esteve no Xitole e que voltou à Guiné em 2001, como turista, com um grupo de ex-combatentes, incluindo, o médico psiquiatra, ex-alferes miliciano, Dr. Vilar, ambos do BART 2917;

(ii) ou que passaram pelos mesmos sítios que eu pisei, embora mais tarde (caso do Sousa de Castro, de Viana do Castelo, o ex-1º cabo radiotelegrafista da CART 3494, que esteve aquartelada no Xime e depois em Mansambo, entre Janeiro de 1972 e Abril de 1974).

Eles têm-me fornecido fotos, testemunhos e outra documentação que vou utilizar, com a sua devida autorização, para recordar esses tempos. Este blogue também é deles e para eles, para todos os meus ex-camaradas de armas da Guiné, e em especial os que estiveram no Sector L1, Zona Leste: Xime, Enxalé, Missirá, Fá, Bambadinca, Nhabijões, Mansambo, Xitole, Ponte dos Fulas... Mas que também passaram por outros sítios a onde guerra ainda não chegava: Contuboel, Bafatá...

O limite temporal é arbitrário: coincide com a minha comissão, a primeira comissão da CCAÇ 2590 (depois CCAÇ 12). Mas há outros camaradas que vieram antes e outros que chegaram depois. Sejam bem vindos. Podem mandar os vossos comenários para o responsável do blogue-fora-nada. Prometo divulgá-los aqui ou na minha página pessoal na Net.

2. Aqui ficam alguns excertos das mensagens que temos, eu, o Castro e o Guimarães, trocado:

29 de Abril de 2005:

"Autorização dada para usares todo e qualquer documento que te envie. Aliás, muito gostaria que as pessoas que viveram por lá conseguissem ver o que é hoje a Guiné. Ninguém entenderá como uma pedra, somente uma pedra fotografada ou um sulco, é tão importante para um combatente: no Xitole vêem-se restos de abrigos e sulcos na terra; ora só nós, os combatentes, conseguimos saber o que é isso, pois sabemos bem o que é uma vala e a utilidade dela quando éramos bombardeados (e eu fui-o várias vezes) (...).

"Em breve te enviarei fotos de Bafatá e Bissau. Enfim ficarás, por exempo, a saber que o célebre café Bento, a 5ª Rep[artição], é hoje uma bomba de gasolina da Galp...

"Abraço, David Guimarães".


29 de Abril de 2005:

" (...) Não foi a minha companhia (CART 3494) que se deslocou para o Cantanhês mas sim, a CART 3493. Nós (CART 3494) saímos do Xime mais ou menos em Abril de 1973 para Mansambo e a CART 3493 de Mansambo para o Cantanhês. Está percebido?

"Aproveito para informar a sequência dos DVD, para o caso de quererem fazer uma capa (...). Embora não os conheça pessoalmente, não me incomoda nada de partilhar algo, que de uma forma ou de outra nos tocou profundamente. Devo dizer também que a pessoa que me forneceu este magnífico trabalho certamente irá ficar satisfeito por o dar a conhecer. Então é assim:

"1º DVD: Introdução, Viagem para a Guiné, Cidade de Bissau, Hospital militar e arredores; Interior da Guiné: Cumuré, Jugudul, Xime.


"2º DVD: Xime, Mansambo, Quebo (antiga Aldeia Formosa), Fonte Balana, Chamarra, Buba (Aldeia Turística), Destacamento de Buba, De norte para sul.


"3º DVD: Guidage, Binta, Farim, Jumbembem, Canjambri, Fajonquito; Zona leste: Bafatá, Bambadinca, Xitole; a sul da Guiné: Empada, Chugué, a caminho de Bedanda;


4º DVD: A caminho de Bedanda, Cacine, Gadamael Porto, Cobumba, Catió, Saltinho (A tabanca), Bissau.

"Abraço. Castro".



29 de Abril de 2005:

"Amigo Castro: Obrigado pelos DVD, pelas fotos e sobretudo por estas tuas preciosas informações que me ajudam a reconstituir, na minha memória, o puzzle da Guiné. Sempre defendi que a forma de gerirmos o stresse pós-traumático de guerra, como diz o psiquiatra Afonso Albuquerque, é falarmos e escrevermos sobre esta nossa experiência de juventude, que nos marcou a todos, a uns mais e a outros menos...

"Não sabia que a CCAÇ 12 vos tinha rendido, no Xime, e que vocês foram para o Cantanhês (fiz uma grande operação nessa zona, na mata do Morès, onde já não se ia há vários anos, depois conto-te: uma operação dramática, como o Beja Santos, de Missirá) (...).

"Continua a dar notícias. Agradeço também os teus links e outros documentos sobre a guerra colonial. Sempre que puder, vou pondo coisas na Net... Pode ser que apareça mais maralha a querer abrir o baú das memórias, como aconteceu com O Jornal na década de 1980...... Bom fim de semana. Um grande abraço (Kandandu, em angolês). Luís"


29 de Abril de 2005:

"Guimarães: (...) Vou seleccionar algumas das tuas fotos, que são excelentes documentos porque nos falam dos sítios onde estivemos, por onde passámos... Nestes últimos dias , em que temos trocado mensagens e documentação (contigo e com o Castro), avivei muito mais a memória... Fui ao meu sótão e abri as pastas onde tenho os meus escritos... Houve uma altura em que escrevi muitas coisas, como eu te disse, para o semanário "O Jornal"... Isto foi no iníco dos anos 80...

"Na Guiné também tinha uma diário onde escrevia, irregularmente. Fiz a história da unidade (que é também em grande parte a do Sector L1/Zona Leste). Ontem descobri que estive na operação que abriu a estrada de Bambadinca - Mansambo (interdita desde meados de 1968). E julgo que foi a seguir que depois visitei, pela primeira vez, o Xitole. Vou-te mandar uns escritos sobre o inferno das colunas logísticas para Mansambo, Xitole e Saltinho. Curiosamente nunca cheguei a ir ao Saltinho!...

"Como já te disse, eu era de armas pesadas. Como a CCAÇ 12 não tinha armas pesadas, acabei em atirador, tendo passado por todos os grupos de combate e por todas as secções e... por quase todas as operações que a CCAÇ 12 fez no meu tempo!

"Vou pôr algumas das tuas fotos na minha página, na secção Subsídios para a história da guerra colonial. Claro que mencionarei o teu nome e espero que me ajudes a criar as legendas. As coisas têm que ser explicadas e contextualizadas. Um abração, L.G.".


28 de Abril de 2005:

"Vou enviar amanhã, sexta feira, os DVD. A foto do quartel em Mansambo, publicada na tua página, para além de ter sido sede da CART 3493 também foi sede da CART 3494 a partir de Abril de 1973 até final de comissão. Digamos que foi o nosso descanso. Fomos rendidos no Xime pela vossa companhia, a CCAÇ 12, tendo a CART 3493 sido deslocada para a zona do Cantanhês.

"Foi a vossa companhia que nos rendeu e, pelo que sei, embrulharam muitas vezes. De Janeiro de 1972 a Abril de 1973, a CART 3494 sofreu no Xime 17 ataques alguns deles de foguetões, não falando dos vários contactos com o IN que a companhia sofreu no terreno (...). Creio que a CCAÇ 12 ficou no Xime até ao final da guerra. Em Mansambo sofremos unicamente um ataque ao quartel e levantámos algumas minas. Cumprimentos. Castro".



27 de Abril de 2007:


"Castro: Fico muito sensibilizado pela tua gentileza. Pus as tuas fotografias na minha página na Net. Em princípio, tenho a tua autorização. Se alguma coisa estiver errada, diz-me, que eu corrijo ou retiro. Vou pedir também ao Guimarães para me autorizar a divulgar as suas fotos (desde que não sejam muito pessoais ou que não envolvam terceiros facilmente identificáveis)...

"Acho que temos a obrigação, moral e até histórica, de dar a conhecer tudo isto à geração dos nossos filhos e dos filhos dos nossos amigos (...). No princípio da década de 1980, ajudei o jornalista Afonso Praça (que tinha estado em Angola) a lançar uma campanha no semanário O Jornal (que já não existe, uma parte dos jornalistas deram depois origem à actual Visão)... Durante semanas e semanas a malta da guerra colonial foi aos baús e desenterrou as suas memórias. Eu próprio publiquei uma data de artigos e caiu no goto a minha frase Exorcizar os fantasmas da guerra colonial... Mais tarde os gajos do Conselho do Revolução começaram a fazer pressões para acabar com a brincadeira... Na época, o Costa Gomes não gostou nada. O Afonso Praça, infelizmente, já morreu e ficou na redacção do Jornal uma série de materiais (fotos, mapas, documentos...) que eu lhe emprestei para uma grande exposição que nunca se chegou a realizar... Houve camaradas que me emprestaram fotos e que ficaram sem elas! Mas um dia ainda vou tirar isto a limpo (...)".


27 de Abril de 2005:

"O convívio da nossa CART é no último sábado de Maio e é sempre assim que se combinou. Por norma os convívios são aqui no Norte, dado o grosso do pessoal ser desta região. O máximo a sul que fizemos foi na em Vieira de Leiria... Paços de Ferreira, Espinho, Matosinhos, Viseu, Gaia (dentro do quartel), Lourosa, Viana do Castelo e agora em Muro (Vila do Conde), têm sido os locais escolhidos para os almoços de convívio...

"Só os quadros é que são do sul: os Furriéis Rei e Augusto, de Azeitão; o Ferreira, de Leiria; o Marques, vagomestre, do Montijo; o Cabete, da Figueira; eu e o Ribeiro e Silva daqui [Porto]... Os 1ºs Sargentos Santos e Pires, o primeiro de Leiria e o segundo daqui. O Alferes Correia é daqui bem como o Coutinho. O Soares, de Algueirão, nunca veio... O Sampaio faleceu. O Capitão Espinha de Almeida também é daqui. No ano passado esteve connosco o Major (Coronel Aposentado) Anjos de Carvalho... Vamos ver se este ano vem também o [major de operações] Barros e Bastos... O Polidoro Monteiro e o Magalhães Filipe já faleceram. O Polidoro Monteiro, sim, operacional, como tu dizes e bem, sempre o foi...

"Quanto ao Vilar fácil será encontrá-lo, Psiquiatra Marques Vilar, vais dar a ele [em Aveiro]...Poderei arranjar a direcção dele, fica descansado.

"Quanto ao Rebelo e ao Rocha, eram Furriéis da nossa CCS, é a esses que me refiro. O Vinagre também era o Furriel Mecânico da CCS.... Quanto ao Padre Poim, sim, era açoriano, foi expulso da Guiné pela Pide. Ele parece que vive lá para os Açores mas saiu de clérigo... Contudo já há muito tempo que não ouço falar dele... Este Furriel Rocha, das Operações Especiais, foi o encarregue dos reordenamentos em Nhabijões.

"Quanto ao [primeiro sargento] Brito era um gajo porreiro, sim. Sei que depois voltou noutra Comissão à Guiné, disse-me um nativo quando lá fui [em 2001], foi mais para o lado de Bafatá (...). Pessoalmente eu dava-me bem com o Brito".


26 de Abril de 2005:

Este mapa [do Sector L1]é muito bom: hoje pude melhor recordar nomes que dia a dia passavam nas nossas cabeças.

"No fim, no Xitole tínhamos, como sabes, acampamentos deles muito próximos. Se Seco Braima era muito ligado à agricultura, já Satecuta parecia uma cidade militar. É verdade! A minha companhia conseguiu lá entrar - eu não fui nessa operação, estava para vir de férias e esparava a avioneta. Bem, mais tarde, nova operação e lá fui eu. Que raio, nunca apanhei tanto fogo num dia! E não conseguimos entrar (...). Obrigado pelo mapa (...).

"A Ponte dos Fulas era um acampamento do Xitole precisamente para guardar aquela ponte. Breve te enviarei os documentos fotográficos actuais: verás o fortim, na Ponte dos Fulas, intacto. Sei que foste ao Xitole, então reconhecerás algo, tenho a certeza. Até mais, abraço, Guimarães".


23 de Abril de 2005:

"Bom, cá com as minhas pesquisas, já consegui alguma coisa, pelo menos o Guimarães encontrou alguém do tempo dele. Como é bom descobrir camaradas de guerra e divulgar, a todos, os contactos que tenho relacionados com essa mesma guerra. Quero dizer também ao Guimarães que, com as fotos que enviei para o Luís Graça, mencionei sempre o nome de quem as cedeu. O seu a seu dono (...).

"Possuo um excelente filme em DVD gravado em Novembro de 2000 por um grupo de dez ex-combatentes que se deslocaram em visita à Guiné. Se estiverem interessados cá o ex- 1º cabo radiotelegrafista Castro não se importa de fazer mais uma cópia (...). Havemos de promover um encontro entre cibernautas que tenham a ver com a Guiné. Um grande abraço para todos. Castro".


22 de Abril de 2005:

"Obrigado, David. Vejo que somos do mesmo ano (nasci em 1947). Regressei da Guiné em Março de 1971. E fui, de facto, algumas vezes ao Xitole. Ou pelo menos fiz muitas operações para te podermos levar o pão e a cerveja de cada dia… Comi muito pó a caminho de Mansambo e do Xitole, tal como tu quando vinhas a Bambadinca… Ainda gostaria de fazer esse percurso a pé… Dizes-me que agora está alcatroada… Nunca mais lá voltei [à Guiné]. Tenho ido a Angola, em trabalho.

"É muito possível que tenhamos confraternizado. Vou revisitar os meus escritos, para ver se fizemos alguma operação em conjunto. Era mais frequente trabalharmos, nós, o da CCAÇ 12, com a malta do Xime e de Mansambo. Vou-te mandar uma fotografia minha desse tempo. E tu podes fazer o mesmo. Vou ter que a digitalizar. Eu na altura não ligava muito às fotografias. Mas escrevi um diário, além da história da CCAÇ 12.

"Sou eu mesmo, o Furriel Henriques (também me chamavam o Soviético ou o Camarada Sov…), que resgatei o corpo do Cunha (que era de Viana do Castelo, se bem me lembro). Gostava muito dele, éramos amigos. Passei a noite na conversa com ele entre dois copos, no Xime, nessa trágica operação em que o (...) [vosso segundo comandante] nos obrigou a seguir o mesmo trilho da véspera (não foi no Mato Cão, mas a caminho da Ponta do Inglês, do lado de cá do rio): escassas horas depois, eu iria resgatar o seu corpo (...).

"(...) Estive debaixo de fogo bastantes vezes. Apanhei de tudo: assalto a aquartelamentos do IN, flagelações a tabancas, explosão de mina anticarro (salvou-me a minha velha GM, mas duas secções inteiras ficaram neutralizadas e o outro furriel, o Marques, fez mais dois anos de tropa, no hospital militar…). Foi no regresso ao aquartelamento que eu perdi as estribeiras. E a seguir a mim foi o capitão do Xime, um jovem capitão do quadro, de 24 anos… Um dia destes mando-te o relatório dessa operação, já na parte final da nossa comissão: foi uns dias depois da invasão de Conacri, em Novembro de 1970… (A propósito, convivi muito com os gajos dos comandos e vi alguns morrerem)…

"Olha, gostei muito das tuas fotografias. O Castro já me tinha mandado umas tantas (Bissau, Bafatá, Xime). Se quiseres arranjo-te um sítio na Net para as divulgar (http://www.care2.com). Há muita malta do nosso tempo que irá sentir-se feliz por rever os sítios mágicos e ao mesmo trágicos onde vivemos (quase dois anos das nossas vidas!).Um abraço. Luís".

quinta-feira, 28 de abril de 2005

Guiné 63/74 - P8: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1)

Extractos de História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II, pp. 1-3.


Capítulo II - Actividade da CCAÇ 12 no TO da Guiné

1.Intervenção ao Agr 2957 (Zona Leste)

Atendendo à origem étnico-geográfica das suas praças africanas, e por sugestão do Comando-Chefe, a CCAÇ 2590 ficou radicada em "chão fula", em Bambadinca, constituindo uma unidade de intervenção ao agrupamento 2957 (hoje COP 2) e ficando pronta a actuar à ordem de qualquer dos sectores da Zona Leste (em especial nos Ll, L3 e L5).

A partir de Janeiro de 1970, a CCAÇ 2590 passaria a designar-se por CCAÇ 12 por ter sido considerada uma unidade da guarnição normal.

Durante a actual comissão [ Maio de 1969 / Março de 1971 ], a CCAÇ 12 actuou no Sector L1 às ordens do BCAÇ 2852 (até Maio de 1970) e do BART 2917 (até Fevereiro de 1971), tendo estado uma única vez em reforço temporário a outros tectores (l Cr Comb no L2 durante a 1ª quinzena de Agosto de 1969).

2. Sector Ll

2.1. Referências - Cartas 1/50.000


NAMBOCÓ / BAMBADINCA / BAFATÁ
FULACUNDA / XIME / DUAS FONTES
XITOLE / CONTABANE

2.2. Generalidades

Podemos caracterizar o Sector Ll [ vd o respectivo mapa ] pela importância estratégica que representa tanto para o IN como para as NT a charneira RCeba/Corubal. Constitui a "chave" das comunicações terrestres e fluviais da Zona Leste.

Para uma avaliação geral da situação militar, dividimos o actual sector em 3 partes: uma, a (i) norte do RGeba, compreendendo os regulados do Cuor e parte do Enxalé; outra formando (ii) o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole;
e uma outra, (iii) a leste da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole, que engloba os regulados de Badora e parte do Corubal. As duas primeiras correspondem a áreas afectadas, actuando o IN só esporadicamente na última.

0 Sector LI foi redefinido em Agosto e Outubro de 1969, ficando a ZA a este e sudeste de Badora sob a responsabilidade do COP 7 e passando a englobar, a Norte do RGeba, a área do Enxalé que fazia parte até então de Mansoa.

2.3. Terreno

2.3.1. Relevo e hidrografia

0 terreno caracteriza-se genericamente pela ausência de relevo e por uma grande rede hidrográfica, orientada para os Rios Colufe, Geba e Corubal, o que origina uma predominância de bolanhas e lalas no N e NW do sector e um nivelamento das águas dos rios e bolanhas, durante o tempo das chuvas, tornando a maior parte das vias de comunicação intransitáveis.

2.3.2. Vegetação

Podemos distinguir dois tipos de vegetação no sector:

(i) uma floresta tropical,com palmares cerrados sobretudo nas nascentes dos cursos de água, coincidindo com a área definida pelos RGeba/Corubal onde o IN se encontra instalado;

e (ii) outra de savana arbustiva, mais para o interior, com núcleos de floresta muito espelhados.

Nas bacias hidrográficas do Geba e Corubal, a população sob controle IN cultiva as bolanhas e lalas mais propícias à rizicultura, como a bolanha do Poindon que é considerada um dos "celeiros" do IN no sector.

2.4. Inimigo

2.4.1. Sector 2

O Sector LI corresponde na divisão territorial do IN ao Sector 2, também conhecido por região de Xitole (hoje incluída na Frente Xitole/Bafatá) e cujo Comando está localizado em Mina.

Nesta região o IN mantém uma estrutura politico-administrativa organizada, numa vasta área correspondente aos regulados de Xime e Bissari donde irradia a sua actividade de guerrilha que se caracteriza por (i) ataques e flagelações aos aquartelamentos e destacamentos das NT e às tabancas em autodefesa, (ii) acções de barragam à navegação, (iii) emboscadas e (iv) minagem dos itinerários.

2.4.2. Zonas de instalação

No Sector L1 consideram-se como zonas de instalação permanente do IN a área compreendida entre a margem direita do RCorubal e a linha geral Xime-Xitole (regulados de Xime e Bissari) e a região a norte do RGeba (Cuor).

0 IN tem-se instalado temporariamente no regulado do Corubal a fim de desencadear acções contra as tabanacas em autodefesa de Corubal, Cossé e Badora.

2.4.3. Linhas de infiltração e irradiação

Podemos considerar as seguintes linhas de infiltração e zonas de actividade do IN:

(i) a norte da estrada Bambadinca-Bafatá, da área de Madina / Belel sobre Enxalé, Missirá, Finete e baixo curso do RGeba Estreito;

(ii) A sul da estrada de Bambadinda-Bafatá, dos regulados do Xime e Bissari sobre os regulados de Corubal, Badora e Cossé, e ainda sobre os RGeba e Corubal.

2.4.4. Efectivos referenciados

(i) Nos regulados de Xime e Bissari:

5 bigrupos distribuídos pelas áreas de Poindon/Burontoni (1), Culobo/Galo Corubal (1), Mina (2), Ponta Luís Dias/Tubacuta (1), além de 1 grupo de artilharia (Mort 82, Canhão s/r 75 e 82) e 1 grupo especial de bazuqueiros em Mamgai. Os efectivos deste sector poderão ser reforçados por unidades da Frente Sul, e em especial da Região de Quinara.

(ii) No regulado do Cuor, a norte do R Geba:

1 bigrupo em Madina/Belel. Esse bigrupo pode ser reforçados por Sara-Sarauol, região a que Madina/Balel se encontra intimamente ligada para efeitos operacionais e logísticas.

2.4.5. Possibilidades do IN

(i) No plano militar:

(i) Manter as acções de fogo sobre os aquartelanentos das NT;

(ii) Intensificar as acções de guerrilha preferencialnente sobre as tabancas em autodefesa, pelotões de milícia e seus itinerários de socorro;

(iii) Realizar acções de reconhecimento nos regulados de Badora e Cossé, a partir dos regulados de Xime, Bissari e Corubal;

(iv) Utilizar as linhas de infiltração que do Boé conduzem aos regulados de Xime e Bissari através da faixa norte do regulado do Corubal, e que da área Xime-Mansambo conduzem à estrada Bambadinca-Mansambo;

(v) Efectuar acções de barragem á navegação no RGeba, em especial nas áreas de Ponta Varela e Mato Cão;

(vi) Reagir à acção de contrapenetração das NT.

(ii) No plano político e psicológico:

(i) Intensificar o esforço de propaganda junto das populações fiéis às NT ou sob duplo controlo, explorando as “contradições objectivas” da nossa acção psicossocial.

(continua)


Abreviaturas

CCAÇ = Companhia de Caçadores
COP = Comando Operacional
IN = Inimigo
NT = Nossas Tropas
RCorubal = Rio Corubal
RGeba = Rio Geba
TO = Teatro de Operações
s/r = Sem recuo (canhão)
ZA = Zona de Acção

segunda-feira, 25 de abril de 2005

Guiné 63/74 - P7: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)

1. Extractos da História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II, pp. 41 a 43 (Vd. abreviaturas em anexo).

Trata-se de um documento que eu escrevi, no final da minha comissão, ainda em Bambadinca, tendo acesso a todos os arquivos classificados da companhia, o que só foi possível com a cumplicidade de vários camaradas meus, de um dos sargentos e até do meu capitão que, embora assustado com o resultado final do trabalho que me encomendara, fechou os olhos à minha ousadia e até me deu um louvor... Eu compreendo a sua delicada posição: devia estar já com os seus 37 ou 38 anos, com 4 comissões no ultramar (se não me engano) e à beira de ser promovido a major.

Trinta anos depois fui encontrá-lo no posto de coronel e confessei-lhe, candidamente, que tinha tomado a liberdade de distribuir, na época, uns tantos exemplares, clandestinos, aos tugas da companhia... De facto, ainda em Bambadinca, foram tiradas a stencil umas escassas dezenas de exemplares da história não autorizada da CCAÇ 12, antes de embarcarmos para a metrópole, em rendição individual (os nossos soldados africanos, esses, continuaram a servir a CCAÇ 12, muitos deles até ao final da guerra, aquartelados no Xime, desde 1973). Tenho para com estes últimos um sentimento de gratidão e de reconhecimento, mesmo sabendo que estavam do lado errado da guerra e da história.

2. Em homenagem ao furriel miliciano Cunha, ao soldado Soares e aos outros camaradas da CART 2715 (aquartelada no Xime) que morreram na Operação Abencerragem Candente, na madrugada de 26 de Novembro de 1970 (dias depois da invasão de Conacri, a 22, por uma força comandada por Alpoim Galvão e na qual participaram os meus vizinhos da 1ª Companhia de Comandos Africanos, estacionados em Fá Mandinga).

Tenho mais dificuldade em me curvar perante a memória do Seco Camará, mandinga do Xime, embora reconheça que ele foi um valoroso e competente guia e picador das nossas tropas, durante anos. Mas também foi um homem para os "trabalhos sujos da guerra": ele próprio me confessou um dia, com aquela autoridade e candura africanas de homem grande, que nos anos da "política de terra queimada", da repressão brutal às populações do Xime que simpatizavam com (ou apoiavam) a guerrilha, ao tempo do Governador e Comandante-Chefe, General Arnaldo Schultz, entre 1964 e 1967, ele próprio era encarregue pelo "capitão tuga do Xime" para matar, à paulada, em pleno mato, os elementos suspeitos, capturados... No regresso ao quartel, o capitão, "manga de bom pessoal", pagava-lhe um sumol (sic)...

O coitado do Seco Camarà, peça insignificante da máquina de guerra colonial, foi ao mesmo tempo um tenebroso carrasco e uma pobre vítima, como muitos outros guinéus, e nomeadamente dos pertencentes aos grupos étnicos islamizados... Morreu ingloriamente em Novembro de 1970, nesta operação que eu aqui evoco e em que participei. Recordo-o, ainda hoje, com o seu inseparável cachimbo e o seu ar de cão rafeiro... Nunca saberei se algum se sentiu português. Sei apenas que foi um bravo soldado, e eu não posso julgá-lo com bases nos meus valores ou princípios éticos. Alguém, da população do Xime, nos traiu nessa noite fatídica. A nós e ao Seco Camarà. Onde quer que ele esteja, no céu ou no inferno dos mandingas, paz à sua alma!

3. Pertencente na altura ao 4º Grupo de Combate da CCAÇ 12, fui um dos que resgatei o corpo do furriel miliciano Cunha (que era de Braga). Gostava muito dele, éramos amigos. Tinha passado a noite de 25 para 26 na conversa com ele entre dois copos, no Xime, a fazer horas para a trágica saída na madrugada seguinte.

O segundo comandante do BART 2917 (não vale a pena citar o seu nome, já que ainda pertence ao número dos vivos) obrigara-nos a seguir o mesmo trilho da véspera: escassas horas depois, o Cunha estava morto mais quatro tugas e o guia e picador Seco Camará.

O Cunha, o pequeno e valoroso Cunha, ainda com o seu ar de criança tímida, era o único dos seis que não estava desfeito pelos rockets. Tinha apenas um fiozinho de sangue na testa: o primeiro tiro fora, seguramente, para ele que ia à frente da secção, juntamente com o Seco Camarà. A imagem que tenho dele, era que estava a dormir, exausto, no capim, quando cheguei à sua beira. Ainda lhe dei uma bofetada: “Acorda, meu sacana!”…

Como garante o Guimarães (da CART 2716, do Xitole), o Cunha que fez a recruta com ele e foi mobilizado para a Guiné no mesmo Batalhão (BART 2917), "deve estar no céu porque era um homem bom".

4. Nunca mais consegui esquecer essa maldita operação, em que até mesmo os meus soldados fulas, que eram bravos soldados, tiveram medo… Foi a maior emboscada que eu sofri, e também a mais mortífera que apanhámos na região do Xime. Mas não dei um tiro. Nunca dei um tiro, na Guiné, a não ser a um desgraçado de um jagudi (abutre) a quem nem sequer felizmente acertei…

Recordo esta estória, em homenagem também aos que morreram e aos que sobreviveram, em Portugal, na Guiné e noutros teatros de guerra, aos homens e mulheres que contribuiram, de mil e uma maneiras, para que hoje, 25 de Abril de 2005, nós possamos estar aqui a falar de liberdade, a recordar a guerra e a fazera paz connosco próprios, a praticar a liberdade com a mesma naturalidade com que respiramos...

5. Na elaboração da história da minha companhia (ex-CCAÇ 2590 e, depois, CCAÇ 12) que é também a história militar do Sector L1 / Zona Leste da Guiné entre meados de 1969 e o 1º trimestre de 1971, segui, em muitos casos, o teor dos relatórios de operações que eram feitos pelos alferes milicianos ou pelo capitão, passado pelo crivo da minha própria experiência como operacional ou do relato dos meus camaradas, furriéis milicianos... Dentro dos condicionalismos da época, procurei ser objectivo, procurando obretudo não fazer a hagiografia que era corrente na história de outras companhias independentes ou de companhais integradas em batalhões: "Fomos os melhores, chegámos, vimos e vencemos!"...

Nesta como noutras operações, há passagens muito discutíveis como aquela em que se sugere que o IN sofrera baixas prováveis... Há aqui um branqueamento da situação, o que era frequente entre nós: depois da violentíssima emboscada de que fomos vítimas, ninguém estava em condições, físicas e psicológicas, de fazer o reconhecimento do local e, muito menos, de ir em perseguição dos guerrilheiros... Seis mortos e nove feridos exigem, no mínimo, a afectação de dois grupos e combate (60 homens) para o eu transporte...

Esta falsificação da realidade ou, no mínimo, o seu branqueamento era frequente entre oficiais milicianos e do quadro: enganavam-se uns aos outros, enganavam Bafatá (onde estava o comando da zona leste, o COP 7, se não me engano), enganavam Bissau (o quartel-general) e enganavam Lisboa (sede do Governo, não democrático, do país, que por sua vez enganava o Zé Portuga!)... Tudo isso acabava por ter consequências pesadas, para o pessoal no terreno, que era obrigado a executar operações mal planeadas... De facto, não se pode ganhar uma guerra, escamoteando ou ignorando informação! Pessoalmente, eu já sabia isso, desde os meus quinze ou dezasseis anos...

A verdade, trágica, terrível e humilhante, é que o IN destroçou ou neutralizou seis grupos de combate (2 agrupamentos), matou seis elementos das NT, feriu outros nove e ainda por cima levou-lhes as armas!... E só não levou os corpos porque houve ainda um resto de coragem física, de solidariedade e de determinação (outros chamam-lhe heroísmo!). No relatório da operação ninguém quis dizer o que era óbvio: os erros de planeamento da operação, as imprevidências, a imprepração da nossa tropa fandanga, a total incompetência e a arrogância militarista do major (periquito) que comandou a operação (de avioneta!)...
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(17) Novembro/70: Violenta reacção do IN à penetração das NT em Ponta do Inglês durante a Op Abencerragem Candente

Embora se admitisse que o seu dispositivo no Sector L1 [correspondente ao triângulo Xime-Bambadinca-Xitole] tivesse sofrido importantes alterações, uma vez que se havia manifestado fracamente nos últimos meses, em especial no sub-sector do Xime, o IN não deixaria, no entanto, de reagir violentamente à penetração das NT em Ponta do Inglês no decurso da Op Abencerragem Candente, causando 6 mortos e 9 feridos [Se a memória me não falha, o aquartelemento da Ponta do Inglês, controlando a entrada no Rio Corubal, tinha sido abandonada por decisão do brigadeiro Spínola, logo no início do seu consulado, ainda em 1968].

Participaram nesta operação as seguintes forças, constituindo 3 Agrupamentos [num total estimado em cerca de 250 homens]:

(i) a CCAÇ 12 (sedeada em Bambadinca, ao serviço do BART 2917), a 3 Gr Comb (2° e 4º);
(ii) a CART 2715 (aquartelada no Xime), também a 3 Gr Comb;

e (iii) a CART 2714 (aquartelada em Mansambo), a 2 Gr Comb.

A missão era patrulhar a área definida pelo RGeba-Corubal-Buruntoni-Canhala a fim de:

(i) explorar eventuais vestígios IN;
(ii) deixar vestígios da passagem das NT e panfletos de acção psicológica;
e ainda (iii) contactar com a população desarmada, convidando-a a apresentar-se.

Os 3 Agrupamentos actuariam independentemente e por itinerários diferentes mas de modo a apoiar-se em caso de necessidade: Agr A (CART 2714), Agr B (CCAÇ 12) e Agr C (CART 2715).

No planeamento da operação, o Agr B faria a nomadização da região compreendida entre o RGundagué e a estrada (interdita) Xime-Ponta do Inglês, montando emboscadas durante a noite na área de Darsalame Baio e reunindo-se ao Agr C no nosso antigo aquartelamento da Ponta do Inglês, enquanto este bateria a região compreendida entre a referida estrada e o RCorubal, emboscando-se na área do Poindon.

Notícias de elevada classificação admitiam que o IN tivesse retirado do Sector 2 [também conhecido por região do Xitole e já na altura integrado na Frente Xitole / Bafatá ] dois bigrupos (Poindon e Baio) e um grupo de artilharia (Mangai).

De qualquer modo, depois da Op Boinas Destemidas [levada a efeito em Outubro de 1970 pela CCAÇPARAS 123 na região de Ponta Varela, e da qual resultara a morte de sete guerrilheiros e a captura do respectivo armamento], O IN revelara-se apenas uma única vez (um grupo de 5 elementos tinha flagelado o Xime com armas ligeiras no mês anterior).

Desenrolar da acção:

A 25 [de Novembro de 1970], pelas 7h, os Agr B e C saíram do Xime, no momento em que Mansambo era atacado com mort 82, LRockets e armas ligeiras por um grupo IN não estimado, atrasando a saída do Agr A. Em Madina Colhido experimentaram-se os rádios, verificando-se que o do Agr B só ligava com Bambadinca e o do Agr C com o Xime, não havendo ligação entre eles.

Por outro lado, tentando-se também entrar em ligação com o PCV [posto de comando volante], esta não foi conseguida, uma vez que a frequência terra-ar que fora atribuída à operação não estava dentro das gamas de frequência da FA.

Em virtude disso, os 2 Agr foram obrigados a seguir juntos [grave erro!, direi hoje, pensando no comprimento de centenas de metros da coluna, em marcha, qual cobra sulcando o alto capim da savana arbustiva da região]. Depois de atingirem a Ponta Varela, contornaram a bolanha em direcção da antiga tabanca de Poindon, não tendo detectado entretanto vestígios recentes de presença IN nem de população.

Ao escurecer, e quando as NT se preparavam para montar emboscadas, verificar-se-iam porém dois casos de intoxicação devido às conservas da ração de combate, pelo que tiveram de regressar ao Xime, aonde chegaram pelas 21h.

Entrando-se em contacto rádio com o comando de Bambadinca, a comunicar-se o sucedido e a pedir-se instruções, foram dadas ordens para os Agr B e C seguirem para a Ponta do Inglês pela respectiva estrada, ao raiar da madrugada do doutro dia [26 de Novembro], e aonde deveriam aguardar novas instruções [segundo erro, e este o mais grave!].

A 26, pelas 5.45 h da madrugada, iniciou-se de novo a marcha, tendo a progressão decorrido normalmente, e sem se notarem sinais de recente passagem nos trilhos do Baio e nas imediações do acampamento destruído durante a Op Boinas Destemidas em Xime 3C1-29.

Três horas depois, pelas 8.50h, já perto da Ponta do Inglês, o IN desencadearia uma violenta emboscada em L sobre a direita, precedida por um tiro isolado que foi confundido com um sinal de aviso duma eventual sentinela avançada, e que apanhou na zona de morte os 3 Gr Comb do Agr C [ CART 2715] e 1 Gr Comb (4º) do Agr B [CCAÇ 12].

Os primeiros tiros do IN, especialmente de LRockets, atingiram mortalmente o picador e guia do Agr B, Seco Camará, que ia na frente, e os quatro homens que o seguiam, incluindo um graduado [furriel miliciano Cunha], tendo ferido gravemente outro. Com rajadas sucessivas de LRockets e armas automáticas o IN, fixando as NT, lançou-se ao assalto sobre os primeiros homens, mortos ou gravemente feridos, conseguindo apanhar-lhes as armas, e só não os levando devido a pronta reacção das NT.

É de destacar aqui a acção heróica dos soldados Soares (CART 2715), que veio a ser mortalmente ferido, Sajuma (apontador de bazooka do 4º GR Comb/CCAÇ 12) que ficou ferido numa perna, e Ansumane (apontador de dilagrama, também do 4º Gr Comb/CCAÇ 12, ferido ligeiramente nas costas), que se lançaram ao contra-ataque, juntamente com outros camaradas e alguns graduados, a fim de quebrar o ímpeto do IN e de recolher os mortos e feridos.

0 ataque durou cerca de 20 minutos, sendo a retirada do IN apoiada com tiros de mort 82 e canhão s/r que incidiram sobre a estrada, e especialmente sobre os 2 últimos Gr Comb (l° e 2º) da CCAÇ 12, assim como rajadas enervantes de pistola metralhadora, de posições que ainda não se haviam revelado, nomeadamente de cima das árvores.

Pelos elementos da frente foram ouvidos gritos de dor entre as fileiras do IN, tendo o rápido reconhecimento da zona confirmado que este deveria ter tido vários feridos e mortos prováveis [Esta parte do relatório era música, para não desmoralizar ainda mais as NT e sobretudo enganar o comando].

Em consequência da emboscada IN, uma das mais violentas de que há memória na região do Xime, pelo seu impacto sobre as NT, a CART 2715 [Xime] sofreu 5 mortos (l Furriel Mil) e 7 feridos, e a CCAÇ 12 teve 2 feridos (dos quais 1 grave, o Sold Sajuma Jaló), e 1 morto (o picador e guia permanente das NT Seco Camará, na altura ao serviço da CCS do BART 2917, e que do antecedente já tinha dado provas excepcionais de coragem e competência, tendo participado com a CCAC 12 em quase todas as operações a nível de Batalhão no Sector Ll).

Sob a protecçãodo helicanhão (que seguia para Mansambá no momento em que foi pedido o apoio aéreo), os 2 Agr regressaram ao Xime, com 2 Gr Comb do Agr B [1º e 2º da CCAÇ 12] a abrir caminho por entre a mata densa, 1 Gr Comb do Agr C [ 2715] a manter segurança à rectaguarda e os restantes empenhados no transporte dos feridos e mortos, tendo as heli-evacuações sido feitas numa clareira já perto de Madina Colhido e depois de percorridos mais de 5 Km, em condições extremamente penosas [No helicóptero vinha uma ou mais enfermeiras-paraquedistas].

Notícias posteriores admitiam que nesta emboscada o IN tivesse sofrido 6 mortos. Entretanto, desta reacção do IN contra a penetração das NT num dos seus redutos, concluiu-se que aquele foi excepcionalmente bem comandado porque:

(i) escolheu um local que por ser muito fechado dificultava a manobra;

(ii) utilizou pessoal em cima de árvores para ter uma melhor visão e comandamento sobre as NT;

(iii) tinha a retirada preparada com armas colectivas (morteiro, canhão s/r) que só se revelaram na quebra de contacto;

(iv) fez fogo de barragem, especialmente de LRockets, sobre o Gr Comb que seguia na vanguarda, permitindo lançar-se ao assalto.

Durante este mês [de Novembro de 1970] a CCAÇ 12 continuou empenhada na segurança aos trabalhos de construção da estrada Bambadinca-Xime [a cargo da empresa TECNIL].

De 1 a 10 [de Novembro de 1970], o 2º Gr Comb esteve de reforço a Missirá juntamente com o Pel Caç 54, patrulhando e montando emboscadas na região de Sancorlã/Salà e margem do RCuio/RGambiel, com a missão de interceptar uma coluna de reabastecimento IN que, segundo notícias que não se vieram a confirmar, seguiria de Madina/Belel para a área de Bafatá.

Realizou-se ainda uma coluna logística até ao Saltinho.

Vd. Mapa do Sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole) / Zona Leste / Guiné (1969/71)
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Abreviaturas:

Agr = Agrupamento
BART = Batalhão de Artilharia
CART = Companhia de Artilharia
CCAÇ = Companhia de Caçadores
CCS = Companhia de Comando e Serviços
FA = Força Aérea
Gr Comb = Grupo de Combate
IN = Inimigo
LRockets = RPG, lança-granadas
Mil = Miliciano
mort = Morteiro
NT = Nossas Tropas
Op = Operação
Pel CCAÇ = Pelotão de Caçadores (nativos)
PCV = Posto de comando volante (em geral, de avioneta Dornier)
R = Rio
s/r = (canhão) sem recuo
Sold = Soldado

sexta-feira, 22 de abril de 2005

Guiné 63/74 - P6: Memórias do Xime, do Rio Geba e do Mato Cão (Sousa de Castro, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)

1. Diz-me o Sousa de Castro que foi o BART. 3873 (a que ele pertenceu) que rendeu o BART. 2917 em Janeiro de 1972. E acrescenta:

"O BART. [Batalão de Artilharia] 3873 embarcou no N/M Niassa em meados do mês de Dezembro de 1971, passando o Natal desse ano no mar. Eu embarquei em Janeiro de 1972 nos TAM. Fui 1º cabo radiotelegrafista. Vivo em Vila Fria, concelho de Viana do Castelo e trabalho nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC). Vou anexar um documento que me deixou algum tempo transtornado e algumas fotos do Xime, tiradas em 2001 por um camarada que pertenceu ao BART. 2917. É apenas uma pequena história que protagonizei. Curiosamente também temos o nosso convívio em 11 de Junho mas em Pataias, é o vigésimo".

2. Aqui fica, para divulgação, o texto que o Sousa de Castro me enviou e me autorizou a divulgar neste blogue:

"Fico até agradecido pela publicação dos meus escritos, não á problema nenhum. Tenho reencaminhado o seu Blog para colegas que estiveram na Guiné e com quem tenho contacto (...). Penso ser uma forma de incentivar as pessoas a fazerem buscas e interessarem-se sobre a nossa história. História que ninguém ousa contar. É extraordinário, quando encontramos algum ex-combatente e começamos a recordar, não só os momentos maus mas também os momentos bons. Aproveito para dizer que possuo um filme feito por um grupo de 10 ex-combatentes que visitaram a Guiné em Novembro de 2000, filme para mim espectacular, e caso curioso, no Xime, passados 28 ou 29 anos uma das lavadeiras da época reconheceu um ex-combatente, dizendo: 'Lúcio! Eu é que te lavava a roupa, não estás lembrado, não?'. Junto em anexo fotos de Bafatá, tiradas em 2001 e cedidas pelo David Guimarães, da CART. [Companhia de Artilharia] 2715, do Xitole".

Um grande abraço ao Sousa de Castro que já teve a gentileza de me contactar telefonicamente e me mandou fotos do Xime, de Bafatá e de Bissau (estas últimas também da autoria do David Guimarães). Ainda sobre a CART. 3494, do Xime, ficou a saber mais o seguinte:

"Não referi no e-mail anterior os mortos em combate da minha companhia. Aproveito agora para o fazer. Considerado mortos em combate, tivemos um: chamava-se Manuel da Rocha Bento, era Furriel Miliciano, natural de Ponte de Sôr. Feridos, tivemos vários, alguns deles com bastante gravidade, tendo sido evacuados para Bissau e posteriormente para o continente (terminando a comissão nesse momento).

"Já estive junto ao memorial [junto à Torre de Belém, em Lisboa] mas não tirei fotos no dia 20 de Outubro 2004, integrando a manifestação levada a efeito pela APVG (Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra, sedeada em Braga. Anexo fotos de Bissau cedidas pelo David Guimarães CART 2715 Xitole".

3. Memórias da Guiné. Xime (1972-1974), por Sousa de Castro

"Xime. CART. 3494. 10 de Agosto de 1972.

"A companhia nesse dia recebeu instruções para fazer um patrulhamento através do rio Geba em lanchas e depois entrar no mato e seguir para Mato Cão. Tínhamos lembrado ao Major de Operações que a hora que ele, major, determinara para sair, não seria ideal, já que dentro de pouco tempo passaria o Macaréu(1).

"Mesmo assim ele entendeu que haveria tempo de sair antes de passar o Macaréu. Os pelotões envolvidos nesse patrulhamento não tiveram outra alternativa senão obedecer. Os soldados, pela experiência adquirida, sabiam que uma desgraça iria acontecer. Dá-se então aquilo que todos esperavam, e que não se podia evitar: são apanhados pelo Macaréu.

"A embarcação virou e então cada qual tentou desenrascar-se como pôde do perigo de morrer afogado. Muitos não sabiam nadar. Depois com todo peso de armamento que transportavam, para além da farda que envergavam, viram-se e desejaram-se para se safarem, mas nem todos o conseguiram. Assim morreram afogados três camaradas, sendo um da Póvoa de Varzim, casado, com uma filha, outro de Famalicão, este solteiro, e um terceiro que já não me recordo de onde era.

"Nesse mesmo dia todo pessoal da companhia desdobrou-se em esforços tentando encontrar os que desapareceram. Só apareceu o de Famalicão, no dia seguinte, já em estado de começo de decomposição.

"Normalmente a companhia fazia diariamente segurança à estrada que ligava o Xime a Bambadinca. Era necessário ir buscar o pelotão que fazia essa mesma segurança. Eu era radiotelegrafista, não podia sair do quartel, mas vendo o estado muito abatido devido ao cansaço em que os transmissões de infantaria se encontravam, peguei no transmissor AVP-1 e na G-3 (2), ofereci-me como voluntário e fui juntamente com o pelotão buscar o pessoal que fazia a segurança à dita estrada.

"Era de noite, então dá-se aquilo que eu não previa. Uma vez no local para agrupar o pessoal que fazia segurança da estrada, vi-me envolvido numa situação para mim única. Começa um forte tiroteio. Supondo ter sentido algo a mexer, eu, ao saltar da viatura, sem querer fiz um disparo, com pessoal na linha da frente. Fiquei preocupadíssimo, poderia ter atingido algum camarada meu, o que não aconteceu felizmente.

"Ao vir para o quartel, antes de entrar, o Furriel Carda, que era de Ponte de Sor (era quem comandava o pelotão que foi buscar a segurança no qual eu estava integrado) mandou parar as viaturas e disse: 'Alguém que está na minha viatura disparou um tiro. Quero saber quem foi. Ninguém quer dizer? É fácil. Cheira-se a arma de cada um e descobre-se já'.

"Como havia um alferes periquito (3, e a maior parte da malta pensando ter sido ele quem deu o tiro, acharam por bem que o melhor seria esquecer e ir embora para o quartel. Será que esse alferes também fez algum disparo? Ainda hoje estou na dúvida.

"Domingo 27 de Setembro 1998. Sousa de Castro".

Notas (S.C.):

(1) Sublevação brusca das águas, que se produz em certos estuários no momento da cheia e que progride rapidamente para as nascentes sob forma violenta, capaz de fazer estragos em pequenas embarcações.

(2) Espingarda automática usada pelas nossas tropas.

(3) Militar acabado de chegar à Guiné.

quarta-feira, 20 de abril de 2005

Guiné 63/74 - P5: Convívio de antigos camaradas de armas de Bambadinca (1968/71): Faro, 11 de junho (José Manuel Amaral Soares)

1. O pessoal que esteve em Bambadinca, no leste da Guiné, entre 1968 e 1971, vai encontrar-se mais uma vez, para o seu convívio anual. Este ano será em Faro, no próximo dia 11 de Junho e a festa está a ser organizada pelo José Manuel Amaral Soares (Largo Vieira Caldas, 6A, 3º Dtº, 1685-585 Caneças).

Há uma lista de endereços que vai sendo actualizada todos os anos. Eu próprio (Luís Graça ou, como era conhecido, Henriques) e o Humberto Reis (ambos furriéis milicianos da CCAÇ. 12) podemos tomar nota de novos contactos. Aqui fica o meu endereço de e-mail: luis.graca@ensp.unl.pt

É partir desta lista que têm sido convocados os antigos camaradas de armas que estiveram, connosco, naquela região da Guiné, na época da guerra colonial, a saber todo o pessoal (oficiais e sargentos do quadro, oficiais e furriéis milicianos, cabos e soldados) das seguintes unidades, estacionadas no Sector L1 da Zona Leste (que correspondia grosso modo ao estratégico triângulo Bambadinca-Xime-Xitole):

(i) Comando e Companhia de Comando e Serviços do BCAÇ. 2852 (que esteve sedeado em Bamdabinca desde finais de 1968 até Julho de 1970, altura em que foi substituído pelo BART. 2917);

(ii) Forças de intervenção: CCAÇ. 12 / CCAÇ. 2590 (Bambadicna); Pelotão de Caçadores Nativos 52 (Missirá) (a partir de Junho de 1970, Pel.Caç. Nat. 53, aquartelado em Fá-Mandinga);

(iii) Subunidades em quadrícula: CCAÇ 2520 (Xime), 2339 (Mansambo) e 2413 (Xitole), substituídas em Junho de 1970 pelas CART 2715, 2714 e 2716, respectivamente (estas três companhias pertenciam ao BART. 2917).

Se considerarmos ainda o Pelotão de Reconhecimento e as suas obsoletas Daimler (esse mesmo, o P?EL REC do alferes miliciano Vacas de Carvalho, estão lembrados ?), além das forças militarizadas (pelotões de milícias aquarteladas em Taibatá, Dembataco e Finete, excluindo a população fula armada nas tabancas em autodefesa), a nossa força naquela época poderia ser estimada em cerca de 1250 homens em armas, o que nos dava uma vantagem , em relação à guerrilha do PAIGC, de talvez cinco para um (vd. GRAÇA, L. - Documento: Guiné 69/711: subsídios para a história da africanização da guerrra (conclusão). O Jornal. 18 de Junho de 1981). Alguns excertos destas estórias tenho vindo a publicá-los neste blogue.

2. Sei que o BART 2917 e as respectivas companhias de quadrícula foram rendidas em Janeiro de 1972. Ainda ontem recebi um e-mail de um camarada dessa época (que obviamente não conheci, já que regressei a casa em Março de 1971). Trata-se do Sousa de Castro (e-mail: cart3494@portugalmail.pt ), que me diz o seguinte:

"Foi gratificante para mim encontrar algumas estórias sobre a guerra colonial, mais concretamente sobre a Guiné. Curiosamente eu também estive na Guiné em Jameiro de 1972 a Abril de 1974, no Xime [e depois em Mansambo]. O meu Batalhão estava em Bambadinca, BART 3873 (CCS), com a CART 3494 no Xime, a CART 3493 em Mansambo e a CART 3492 no Xitole.

"No meu tempo o Xime continuava muito complicado. Como descreve no seu blogue, nas estórias de um tuga, continuamos com esta terra na cabeça, nunca mais nos sai e eu continuo buscando algo sobre aquele tempo passado relacionado com a guerra. Tenho reenviado a sua estória para colegas que estiveram na Guiné e é uma forma de dizermos que estamos vivos. Bem haja. Cumprimentos, Sousa de Castro".

O Sousa de Castro e todos os periquitos que estiveram em Bambadinca, Xime, Mansambo ou Xitole entre Janeiro de 1972 e Abril de 1974, serão bem vindos à nossa festa, no dia 11 de Junho, em Faro, na Ria Formosa. Eles terão muito para nos contar: afinal, andámos todos pelos sítios, picadas, rios e bolanhas do Sector L1 da Zona Leste, desde 1968 a 1974... E quer queiramos quer não, aquela terra marcou-nos a todos, a ferro e fogo, no corpo e na alma...

3. Transcrevo, a seguir, a carta que me chegou pelo correio, há dias, enviada pelo José Manuel Amaral Soares, o organizador do convívio deste ano (e também de anos anteriores):

"Guiné, Bambadinca 68/71. Companheiros: Desejo que estejam de saúde assim com os vossos familiares. Vamos mais uma vez realizar o nosso almoço anual a fim de convivermos, matarmos saudades e ainda relembrarmos aqueles bons e menos bons momentos que cimentavam a nossa amizade; de tal forma que passados 37 anos sentimos ainda um grande prazer de estar juntos, ainda que por breves horas.

"Por tudo isto, camaradas, no próximo dia 11 de Junho espero por todos na Baixa de Faro, junto ao Jardim Manuel Bivar, pelas 10.30 horas. Vamos aí fazer a nossa concentração para que, depois das habituais formalidades, possamos seguir para o Cais da Porta Nova e às 11.00 horas embarcar até à Ilha Deserta. Durante o percurso vamos apreciar a bela paisagem da magnífica Ria Formosa. Quando forem 13.00 horas iniciaremos o nosso alomoço, composto apenas por produtos do mar. O preço por pessoa é de 48 euros com viagem de barco incluída. As crianças dos 5 aos 11 anos pagam 50%, portanto 24 euros.

"Camaradas, a vossa confirmação tem que ser feita até ao dia 1 de Junho, impreterivelmente, com cheque cruzado para José Manuel Amaral Soares (...). Para toda ajuda, telemóvel 96 242 80 53".


O obus de Bambadinca...




Foto de © Frederico Amorim (1997)

Mais sitíos na Net:

O mundo do Fred (Vejam uma reportagem fotográfica sobre os sítios por onde andámos há trinta e tal anos e que o Frederico Amorim (Fred) visitou em Abril de 1997: Rio Geba, Bambadinca, Bafatá, Cussilinta, Saltinho...).

PAIGC -Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde (A página oficial do IN de há trinta e tal anos...).

Os "rangers" (Operações Especiais) > (Sítio dos Operações Especiais: na galeria de fotos há imagens da Zona Leste da Guiné)

Guiné-Bissau > Brochura sobre desenvolvimento rural e segurança alimentar (2001) (documento de um grupo de trabalho, em formato.pdf e com fotos).

Página de Pedro Gordinho > Cronologia da guerra colonial (1961-1974)

terça-feira, 7 de dezembro de 2004

Guiné 63/74- P4: Um Natal Tropical (Luís Graça)

1. Excertos da história da Companhia de Caçadores 12 (CCAÇ 2590): Guiné 1969/71


Bamdabinca, Dezembro de 1969:


(...) a 24, 2 Gr Comb [grupos de combate] da CCAÇ 12, em cooperação com a autoridade administrativa de Bambadinca [onde estava aquartelada a companhia], levam a efeito uma rusga (com cerco) à tabanca de Mero [aldeia balanta, junto ao Rio Geba]. Apesar de alguns indícios suspeitos, não foram detectados elementos IN [inimigo]. Para efeitos de controlo populacional, completou-se e actualizou-se o recenseamento dos habitantes de Mero (Op Acção Guilotina)[nome de código da operação]. Nas duas semanas anteriores, o IN tinha desencadeado várias acções de intimidação contra as populações de Canxicame, Nhabijão Bedinca e Bissaque, a última das quais levada a efeito por um grupo enquadrado por brancos que retirou para a região de Bucol, cambando o RGeba [atravesando o Rio Geba de canoa, para norte].

Por outro lado, prevendo-se a possibilidade o IN atacar os aquartelamentos das NT [nossas tropas] durante a quadra festiva do Natal e Ano Novo, foi reforçado o dispositivo de defesa de Bambadinca. Assim, além da emboscada diária até às 1 a 3 horas da noite, a nível de secção reforçada num raio de 3 a 5 km (segurança próxima), passou a ser destacado 1 Gr Comb para Bambadincazinha (em fase de reordenamento), todas as noites até às 6h da manhã, constituindo uma força de intervenção com a missão de fazer malograr o eventual ataque ao aquartelamento e/ou às tabancas da periferia, actuando pela manobra e pelo fogo sobre as prováveis linhas de infiltração e locais de instalação das bases de fogo do IN, ou no mínimo detê-lo e repeli-lo pelo fogo.

A 26 [de Dezembro de 1969], forças da CART 2520 [companhia de artilharia], reforçadas por um 1 Gr Comb da CCAÇ 12 realizam um patrulhamento ofensivo na região do Xime, Madina Colhido, Chacali, Colicumbel e Amedalai, sem detectacterm vestígios do IN (Op Faca Húmida).

A 30, Sua Excia. o Comandante Chefe [General António de Spínola]visita Bambadinca para apresentar cumprimentos de Ano Novo a todos os oficiais, sargentos e praças do CMD e CCS/BCAÇ 2852 [comando e companhia de comando e serviços do Batalhão de Artilharia 2852], e sub-unidades adidas [a CCAÇ 12 incluída].



2. Excertos do diário de um tuga:


Bambadinca, 24/25 de Dezembro de 1969:


Natal nos trópicos! Não consigo imaginá-lo sem aquela ambiência mágica que me vem do fundo da memória. É que do cristianismo terei apenas captado o sentido encantatório do Natal e a sua antítese, que é o universo maniqueísta da Paixão. Mas decididamente não vou fazer flash-back. Cortei o corão umbilical a frio e da infância resta-me apenas a sensação do salto mortal.

Há, porém, certas imagens poéticas, recalcadas no subconsciente ou guardadas no baú da memória, que hoje vêm ao de cima. Por um qualquer automatismo. Ou talvez por ser Natal algures, far from the Vietnam, longe da Guiné, e eu passar esta noite emboscado. O que não tem nada de insólito: é uma actividade de rotina. Mas é terrivelmnete cruel a solidão deste tempo em que os homens se esperam uns aos outros nas encruzilhadas da morte, os dentes cerrados e as armas aperradas, em contraste com o bando alegre de crianças cabo-verdianas que, não longe daqui, da Missão do Sono (uma estrutura sanitária, agora militarizada, transformada em local de emboscada!), entoam alegres cânticos do Natal crioulo ao som do batuque pagão.

No aquartelamanto, de que vejo as luzes ao fundo, ninguém se desejou boas festas porque também ninguém tem sentido de humor. Nem por isso deixou de celebrar-se a Consoada da nossa terra: um pretexto para se comer (o tradicional prato de bacalhau com batatas e grelhos.. desidratados) e sobretudo para se beber (muito).

Hoji, festa di brancu, noite di Natal, manga di sabe!, lembra-me um dos meus soldados africanos, enquanto ao longe a artilharia do Xime e de Massambo faz fogo de reconhecimento. E eu fiquei a pensar neste tempo de silêncio, de cobardia e de cumplicidade. Mas também de raiva. Como o Manuel Alegre, eu gostaria de poder dizer neste dia, todos os dias: "Mesmo na noite mais triste / Em tempo de servidão / Há sempre alguém que resiste / Há sempre alguém que diz não".

quarta-feira, 28 de abril de 2004

Guiné 63/74 - P3: Excertos do diário de um tuga (2) (Luís Graça)




Guiné > Região de Bafatá > Bambadinca > Abril de 1997 > O obus de Bambadinca... Vestígios da guerra colonial: uma peça de artilharia (obus de 140 mm) abandonada pelos tugas. (Foto reproduzida  gentilmente autorizada pelo Frederico Amorim.  vd. O Mundo de Fred).

Foto (e legenda); © Frederico Amorim (1997). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Os termos IN (abreviatura de inimigo) e NT (nossas tropas) são aqui usadas, de acordo com os usos e costumes castrenses da época em referência (Julho de 1969 a Fevereiro de 1971). Muito em particular, o termo IN não tem qualquer conotação negativa. 

É apenas um termo técnico usado, por comodidade minha, para designar as forças (a guerrilha do PAIGC, hoje partido político da Guiné-Bissau) que combatiam pela independência do território (bem como das Ilhas de Cabo verde), contra as tropas portuguesas (as NT).
Em 1969/71, o triângulo Bambadinca-Xime-Xitole correspondia, grosso modo, ao Sector L1 da Zona Leste da Guiné (que estava dividida, por sua vez, em cinco sectores, abrangendo o chão fula, ou seja, a região tradicionalmente habitada pela população de etnia fula e futa-fula).

Coincidindo basicamente com a charneira Rio Geba / Rio Corubal, este sector era de vital importância para as comunicações fluviais e terrestres da Zona Leste. O Rio Geba era navegável até ao Xime (LDG - Lanchas de Desembarque Grandes, da Marinha Portuguesa) e Bafatá (embarcações mais pequenas, em geral civis). Depois do Xime o Rio Geba estreitava e serpenteava ao longo do território, tornando-se a segurança fluvial mais difícil, em particular na temível zona do Mato Cão.

Na época, as ligações (e sobretudo o transporte de homens e material) entre Bissau e a Zona Leste (Xime, Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego/Gabu, Pitche) eram feitas ou por via aérea ou por barco (até ao Xime) e depois, por terra, em colunas militares e com um forte dispositivo de segurança.

Entretanto, o único percurso relativamente seguro, no Sector L1, era a estrada (asfaltada) de Bambadinca-Bafatá. O Rio Corubal, por seu turno, estava interdito à navegação, sendo controlado pela guerrilha do PAIGC, em toda área compreendida pelo Sector L1 (desde o seu estuário até ao Saltinho). O Rio Corubal, com cerca de 400 km. de extensão, nasce no maciço do Futa Djalon, na Guiné-Conakry, e vai desaguar no estuário do Rio Geba.

No triângulo Bambadinca-Xime-Xitole, as NT só chegavam à margem esquerda do Rio Corubal quando iam reabastecer o Saltinho, o famoso Saltinho, de grande importância estratégica, já que a sua ponte de quatro arcos, construída em 1955, era o único sítio que permitia a ligação, por terra, da capital, Bissau, com o sul.

Era, além disso, um sítio pitoresco devido aos rápidos do rio que lhe deram o nome. Só por ocasião de grandes operações, como a Operação Lança Afiada, que decorreu em Março de 1969 e que mobilizou mais de 1300 homens, é que as NT podiam chegar à margem esquerda do Rio. O estratégico aquartelamento da Ponta do Inglês, na região do Xime, tinha sido, entretanto, abandonado pelas NT, ainda antes da chegada de Spínola à Guiné.

2. Em rigor, havia ainda mais duas áreas que faziam parte do Sector L1, uma a norte do Rio Geba e outra a leste da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole. A actividade da guerrilha era mais intensa e regular no triângulo Bambadina-Xime-Xitole e na área a norte do Geba, até ao limite sul da mítica zona do Oio-Morés, de matas densas, cercadas de bolanhas, e que eram um dos grandes "santuários do IN" (usando um termo do jargão miliar, omnipressente nos relatórios de operações).

Em Jullho de 1969, o dispositivo das NT no Sector L1 era o seguinte:

(i) Comando e Companhia de Comando e Serviços do BCAÇ. 2852 (Bamdabinca) (a partir de Julho de 1970, BART 2917);

(ii) Forças de intervenção (Bambadinca): CCAÇ. 12; Pelotão de Caçadores Nativos 53 (a partir de Junho de 1970, Pel.Caç. Nat. 52);

(iii) Subunidades em quadrícula: CCAÇ 2520 (Xime), 2339 (Mansambo) e 2413 (Xitole), substituídas em Junho de 1970 pelas CART 2715, 2714 e 2716, respectivamente.

Se considerarmos ainda o Pelotão de Cavalaria Daimler (Bambadinca), os Pel. Caç. Nat. 52 (Missirá) e 53 (Fá Mandinga), além das forças militarizadas (pelotões de milícias aquarteladas em Taibatá, Dembataco e Finete, excluindo a população fula armada nas tabancas em autodefesa), a nossa força poderia ser estimada em cerca de 1250 homens em armas, o que nos dava uma vantagem , em relação à guerrilha do PAIGC, de talvez cinco para um (vd. GRAÇA, L. - Documento: Guiné 69/711: subsídios para a história da africanização da guerrra (conclusão). O Jornal. 18 de Junho de 1981).

Haveria ainda que considerar a existência de tropas especiais, aquarteladas em Fá Mandinga, embora às ordens do Comandante-Chefe. De facto, Fá Mandinga ficou conhecida sobretudo por ter sido o berço e a sede da 1ª Companhia de Comandos Africanos, a partir de inícios do ano de 1970 (vd. GRAÇA, L. - Documento: memória da guerra colonial: a tropa macaca e a elite da tropa. O Jornal.14 de Abril de 1981).

A CCAÇ. 12 era uma unidade de intervenção às ordens do comandante do Sector L1. E no período em causa (meados de 1969 e 1º trimestre de 1971), foi de facto a principal força de intervenção.

3. Nesse período, todas as posições da NT foram atacadas mais do que uma vez (com excepção de Bambadinca, Fá Mandinga, Ponte do Rio Undunduma e algumas tabancas em autodefesa nas proximidades de Bambadinca). As mais atacadas foram Xime, Mansambo, Missirá, Enxalé e todos os destacamentos de mílicias. Com muita frequência e a diferentes horas do dia e da noite. 

Embora menos vezes, também eram atacados os aquartelamentos de Xitole a Ponta dos Fulas. Os ataques podiam durar até duas horas e envolver efectivos do IN entre 30 e 200 elementos, fortemente armados.

As nossas operações em território controlado pelo IN eram geralmente efectuadas a nível de batalhão, mobilizando entre 150 e 300 homens, e contando com cobertura aérea. As colunas de reabastecimento (a Mansambo, Xitole e Saltinho) também mobilizavam importantes recursos, em homens e material. Eram particularmente penosas no tempo das chuvas.

4. No período de Julho de 1969 a Fevereiro de 1971, no Sector L1 as baixas do IN foram as seguintes:

(i) Guerrilheiros capturados: 3; população: 13;
(ii) Mortos confirmados no terreno: 13;
(iii) Mortos e/ou feridos graves estimados ou "confirmados posteriormente": 23.

Do lado das NT (nossas tropas, pertencentes ao Sector L1, sem considerar a população, nem as milícias, nem a 1ª Companhia de Comandos Africanos, nem outras tropas especiais como os paraquedistas), as baixas foram as seguintes:

(i) Mortos: 14 (2 da CCAÇ. 12);
(ii) Feridos graves (evacuados para Bissau ou Lisboa): 40 (dos quais 17 da CCAÇ. 12)
(iii) Feridos não evacuados: 9 da CAÇ. 12 (o número de feridos, ligeiros ou menos graves, das unidades em quadrícula é desconhecido). Fonte: História da CCAÇ. 12: Guiné 1969/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores 12. 1971.

5. Ainda sobre a Zona Leste, convirá dizer que Spínola, o "pai dos guinéus", soube conquistar o coração dos fulas por várias vias: por um lado, reprimindo certos abusos do poder colonial (PIDE/DGS, chefes de posto, exército); por outro, mantendo excelentes relações pessoais com os "homens grandes", os chefes tribais, os régulos, os dignatários religiosos (como o famoso Cherno Rachid, de Aldeia Formos); e, por fim, promovendo o turismo religioso (por exemplo, as peregrinações a Meca).

Os fulas, tal como os mandingas, eram islamizados, contrariamente aos balantas e outros povos do litoral, que apoiavam o PAIGC. De qualquer modo, os fulas estavam condenados ao colaboracionismo por razões que tinham a ver com a história colonial, já que as autoridades portuguesas haviam feito deles, contra os restantes povos da Guiné, os auxiliares do aparelho político-administrativo (régulos, sipaios...) e militar (milícias, soldados regulares...) (Graça, L.: Documento: memória da guerra colonial: Guiné 1969/71: subsídios para a história da africanização da guerra (2). O Jornal. 29 de Maio de 1981).


Outros links de interesse (, revistos em 23/4/2020:  o editor LG  verificou que já nenhum dos links estava ativo, razão por que foram eliminadas as URL; é possível que tenham sido atualizados)


Portal da Guiné-Bissau

CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa > Guiné-Bissau

Centro de Documentação 25 de Abril, Universidaded e Coimbra > Treze anos de guerra > Inbtervenientes > Guiné

Associação Nacional de Cruzeiros > Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa > Conakry, 22 de Novemrbo de 1970

Viriato > Campanhas Ultramarinas, 1961-1974 > Armamento

Companhia de Caçadores CCAÇ. 13 - Os Leões Negros

Guiné 66/67 > CCAÇ 1496 > Crónicas Perdidas no Tempo > Página de Pereira Monteiro (Esta página estava alojada no Portal Terravista, que em 2004 deixou de prestar o serviço gratuita aos cibernautas)

Sapo > Sociedade > Grupos e Associações > Antigos Combatentes

domingo, 25 de abril de 2004

Guiné 63/74 - P2: Excertos do diário de um tuga (1) (Luís Graça)

1. Trinta anos e tal anos depois...Para que não digam, os (por)tugas mais novos, que a Guiné nunca existiu. Que a guerra da Guiné nunca existiu. Ou que nunca ouviram falar da guerra colonial (em África). Uma guerra que marcou, se não um povo inteiro, pelo menos toda uma geração. A minha geração. A nossa geração.

Desenterro estes escritos, guardados no sótão da casa e sobretudo no sótão da memória, em homenagem a todos os que derramaram o seu sangue na Guiné, entre meados de 1969 e o 1º trimestre de 1971. Ou que deram o melhor da sua vida, a sua juventude, a sua generosidade, os seus sonhos, as suas ilusões. Pela Pátria, dizia-se então. Ou por nada, o que é pior.

Há trinta e tal anos... Em homenagem aos que combateram, de um lado e de outro, nos três teatros de operações (Angola, Moçambique e Guiné). Em particular aos meus camaradas, portugueses e guineenses, da Companhia de Caçadores nº 12 (CCAÇ 12). Que se bateram com dignidade, bravura, galhardia e honra (mas também com ética!) na Zona Leste, Sector L1, da Guiné.

"Guiné... país de azenegues e de negros, ali morreram alguns dos primeiros navegadores, varados por azagaias envenenadas....": pode ainda ler-se algures, em Coimbra, no "Portugal dos Pequenitos", no Portugal ternurento e salazarento dos anos 40.

Há trinta e tal anos... Em homenagem também aos que fizeram o 25 de Abril de 1974. Foi no meu tempo, na Guiné, entre os milicianos, que o moral das tropas começou a deteriorar-se. Inexoravelmente. E a contaminar os oficiais e os sargentos do quadro, já poucos, velhos e cansados. Por exemplo, em 26 de Novembro de 1970, a escassos três meses da minha rendição individual e do meu regresso a casa, mandei impunemente à merda toda a hierarquia militar do aquartelamento de Bambadinca, do tenente-coronel aos majores e capitães, depois de termos sofrido um dos nossos piores reveses militares, a CCAÇ 12 e a CART 2714 [Companhia de Artilharia aquartelada no Xime] , no decurso da Operação Abencerragem Candente: seis mortos e nove feridos graves...

Tudo aconteceu por grave erro que na altura imputámos ao major, segundo comandante do BART 2917, um militarão de artilharia que não gozava da simpatia dos alferes e furriéis milicianos. Abreviando razões, o comandante da força, que integrava a fatídica Operação Abencerragem Candente [vd, o meu poste de 25 de Abril de 2005], obrigara-nos a repetir o percurso de véspera (25 de Novembro de 1970), a caminho da Ponta do Inglês (Região do Xime, na confluência dos Rios Geba e Corubal)... Contra as mais elementares regras de segurança militar! É que na Guiné bichos e homens sabiam que nunca se pisava duas vezes o mesmo trilho e nunca se bebia duas vezes a água do mesmo rio...

Ainda recordo, com nitidez, as palavras que dirigi, depois do regresso a Bambadinca, na parada, alto e em bom som, frente às instalações do comando do BART [Batalhão de Artilharia] 2917, utilizando a mesma linguagem de caserna com que me fizeram soldado à força "contra a minha própria guerra" (Manuel Alegre): "Assassinos, criminosos de guerra, limpo o cu às folhas do RDM [ Regulamento de Disciplina Militar]"...

Podiam ter-me mandado prender por insubordinação, por grave infracção ao RDM, por crime de lesa-pátria... Não o fizeram, não tiveram coragem de o fazer: pediram apenas ao médico (miliciano) que me desse um Valium 10; o meu capitão, por seu turno, achava que eu andava muito cansado... Diagnóstico: distúrbio emocional, muito frequente na época entre as NT (nossas tropas).

E no final da comissão fiz-lhes a história dos seus gloriosos feitos em combate. Deram-me um louvor, averbado na minha caderneta militar, pela qualidade e seriedade do meu trabalho ... jornalístico. Dei-lhes a volta e fiz a crónica da guerra, baseado em toda a informação classificada a que tive acesso, para além das minhas próprias memórias, já que também fui um operacional com intensa actividade (Devo acrescentar que me orgulho de nunca ter dado um tiro em combate, apesar de ter estado debaixo de fogo nas mais diversas situações).

O acesso aos arquivos da CCAÇ 12/CCAÇ 2590 contou, naturalmente, com a cumplicidade de um dos sargentos do quadro. Um alentejano, de origem proletária, que meteu o chico (leia-se: seguiu a vida da tropa), e que me alcunhou carinhosamente de soviético ou camarada Sov, ao que julgo saber por eu ser do contra (entre os meus camaradas, pelo menos era conhecida a minha contestação do regime político e da guerra colonial).

Dezenas de exemplares da história da CCAÇ 12, tirados a stencil, acabaram por ser distribuídos pelos tugas da companhia ( e em particular pelos meus camaradas milicianos), chegando assim à Metropóle, mau grado as instruções do capitão que, aflito e em vésperas de ser promovido a major, a mandara classificar como documento reservado. Onde quer estejas, meu caro Sargento P., vivo ou morto, eu ainda tenho uma dívida de gratidão para contigo! E do meu capitão, então com 37 anos, uma comissão na Índia e três em África, eu só posso dizer que era um bom homem e um bom portuga.

Esta é, de resto, a prova de que, mesmo em condições difíceis, era possível, nessa época, exercer o mais elementar direito à resistência (activa e passiva). Havia ainda outras, mais ou menos arriscadas, mais fáceis ou mais difíceis: desertar, desobedecer, sabotar os planos de operações, evitar o contacto com o IN (inimigo), falsificar os relatórios...

Os oficiais, sargentos e praças da antiga CCAÇ 2590, que em Contuboel (Sector L2) formaram a CCAÇ 12, e que estiveram juntos na Guiné desde Abril de 1969 a Março de 1971, reunem-se com regularidade para matar saudades e conviver. Juntamente com outros camaradas de outras unidades que na época actuaram no Sector L1 (Bambadinca) e estiveram aquartelados, fizeram operações ou passaram por sítios com nomes ainda hoje tão míticos e tão exóticos e ao mesmo tão familiares para nós como Belel, Madina, Missirá, Finete, Mato Cão, Enxalé, Foz do do Rio Malafo, Xime, Nhabijões, Amedalai, Ponte do Rio Undunduma, Ponta Varela, Poindon, Ponta do Inglês, Ponta Luís Dias, Baio Buruntoni, Rio Corubal, Mangai, Fiofioli, Mina, Galo Corubal, Satecuta, Seco Braima, Xitole, Saltinho, Ponte dos Fulas, Jagarajá, Mansambo, Candamã, Camará, Afiá, Taibatá, Dembataco, Sinchã Mamadjai, Sansancuta, Rio Geba, Fá, Bafatá...

Durante a sua primeira comissão, a CCAÇ 12 (designação por que passou a chamar-se a CCAÇ 2590 a partir de Janeiro de 1970, por ter sido considerada uma unidade de guarnição normal e parte integrante da "nova força africana" e da estratégia do general António Spínola no sentido da "guineização da guerra"), actuou no Sector L1 às ordens do Batalhão de Caçadores 2852 (até Maio de 1970) e, depois, do já citado Batalhão de Artilharia 2917 (até Fevereiro de 1971).

2. Este ano o convívio do pessoal que esteve na Guiné, no Sector L1, entre 1968 e 1971, incluindo as companhias do BCAÇ 2852, é na Quinta da Graça, em Riade, Resende, junto ao Rio Douro, no próximo dia 29 de Maio de 2004.

A Quinta da Graça é propriedade do camarada Pinto dos Santos (Contactos: Telemóvel: 91 472 1651; telefone: 254 875 290). O preço por pessoa é de 30 euros (o convívio inclui almoço com animação regional, além de missa por alma dos camaradas já falecidos). A confirmação deve ser feita até ao dia 15 de Maio próximo. Contactar o José Manuel Amaral Soares (Largo Vieira Caldas, 6-A dtº 1685-585 CANEÇAS. Telemóvel: 96 242 8053).

Tanto o Pinto dos Santos (ex-furriel miliciano de informações) como o Amaral Soares (ex-fur. mil. sapador de minas e armadilhas) pertenciam à Companhia de Comandos e Serviços do BCAÇ 2852. Eu vou tentar estar presente no nosso convívio em Resende, no dia 29 de Maio próximo, embora tenha provas académicas a 15 de Junho... E espero lá encontrar camaradas da CCAÇ 12.

Luís Graça (ou ... ex-Fur. Mil. Henriques)
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Bambadinca,13.2.1971 > Esquecer a Guiné... por uma noite

(Poema republicado em 16 de Junho de 2005)

sexta-feira, 23 de abril de 2004

Guiné 63/74 – P1: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)

Trinta e cinco anos depois.
No 25 de Abril de 2004 presto a minha homenagem às mulheres portuguesas.
Que se vestiam de luto enquanto os maridos ou noivos andavam no ultramar.
Às que rastejavam no chão de Fátima, implorando à Virgem o regresso dos seus filhos, sãos e salvos.
Às que continuavam, silenciosas e inquietas, ao lado dos homens nos campos, nas fábricas e nos escritórios.
Às que ficavam em casa, rezando o terço à noite.
Às que aguardavam com angústia a hora matinal do correio.
Às que, poucas, subscreviam abaixo-assinados contra o regime e contra a guerra.
Às que, poucas, liam e divulgavam folhetos clandestinos ou sintonizavam altas horas da madrugada as vozes que vinham de longe e que falavam de resistência em tempo de solidão.
Às que, muitas, carinhosamente tiravam do fumeiro (e da barriga) as chouriças e os salpicões que iriam levar até junto dos seus filhos, no outro lado do mundo, um pouco do amor de mãe, das saudades da terra, dos sabores da comida e da alegria da festa.
E sobretudo às, muitas, e em geral adolescentes e jovens solteiras, que se correspondiam com os soldados mobilizados para a guerra colonial, na qualidade de madrinhas de guerra.

A maioria dos soldados correspondia-se, em média, com uma meia dúzia de madrinhas, para além dos seus familiares e amigos. Em treze anos de guerra, cerca de um milhão de soldados terá escrito mais de 500 milhões de cartas e aerogramas. E recebido outros tantos. Como este que aqui se reproduz.
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Guiné, 24 de Dezembro de 1969

Exma menina e saudosa madrinha:

Em primeiro de tudo, a sua saúde que eu por cá de momento fico bem, graças a Deus.

Estava um dia em que meditava e lamentava a triste sorte que Deus me deu até que toquei na necessidade de arranjar uma menina que fosse competente e digna de desempenhar tão honroso e delicado cargo de madrinha de guerra. Peço-lhe desculpa pelo atrevimento que tive em lhe dedicar estas simples letras. Mas valeu a pena e é com muita alegria que recebo o seu aero (1).

Vejo que também está triste por mor (2) da mobilização do seu mano mais novo para o Ultramar. Não sei como consolá-la, mas olhe: não desanime, tenha coragem e fé em Deus. Eu sei que custa muito, mas é o destino e, se é que ele existe, a ele ninguém foge. Nós, homens, temos esta difícil e nobre missão a cumprir.

Nós, militares, que suportamos o flagelo desta estadia aqui no Ultramar, não temos outro auxílio, quer material quer espiritual, que não seja o que nos dão os nossos amigos e entes queridos. E sobretudo as nossas saudosas madrinhas de guerra.

Sendo assim para nós o correio é a coisa mais sagrada que há no mundo. Porque nos traz notícias da nossa querida terra e nos faz esquecer, ainda que por pouco tempo, a situação de guerra em que vivemos e os dias que custam tanto a passar.

As notícias aqui são sempre tristes, nestas terras de Cristo, habitadas por povos conhecidos e desconhecidos. Não lhe posso adiantar pormenores, mas como deve imaginar uma pessoa anda triste e desanimanada sempre que há uma baixa de um camarada.

Lá na metrópole há gente que pensa que isto é bonito. Que a África é bonita. Eu digo-lhe que isto é bonito mas é para os bichos. São matas e bolanhas (3) que metem medo, cobertas de capim alto, e onde se escondem esses turras (4) que nos querem acabar com a vida. E mais triste ainda quando se aproxima o dia e a hora em que era pressuposto estarmos todos em família, juntos à mesa na noite da Consoada. Vai ser a primeira noite de Natal que aqui passo. Com a canhota (5) numa mão e uma garrafa de Vat 69 (6) na outra.

São duas horas da noite e vou botar este aero na caixa do correio. Daqui a um pouco saio em missão mais os meus camaradas. Reze por nós todos. Espero voltar são e salvo para poder ler, com alegria, as próximas notícias suas. Queira receber, Exma. Menina e saudosa madrinha, os meus mais respeitosos cumprimentos. Desejo-lhe um Santo e Feliz Natal.

O soldado-atirador da Companhia de Caçadores (...)

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Notas (L.G.):

(1) Aerograma. Também conhecido por corta-capim (o correio era, muitas vezes distribuído em cima de uma viatura, e o aerograma lançado por cima das cabeças dos soldados, à maneira de um boomerang). Os aerogramas foram uma criação do Movimento Nacional Feminino, dirigida pela célebre Cecília Supico Pinto desde 1961, e o seu transporte era assegurado pela TAP ("uma oferta da TAP aos soldados de Portugal"). Os aerogramas também foram usados na guerra da propaganda do regime, ostentando carimbos de correio com dizeres como "Povo unido, paz e progresso", "Povo português, povo africano", "Os inimigos da Pátria renunciarão" ou "Muitas raças, uma Nação, Portugal" (vd. Graça, L. - Memória da guerra colonial: querida madrinha. O Jornal. 15 de Maio de 1981).

(2) Por mor de =por causa de (expressão usada no norte).

(3) Terras alagadiças da Guiné onde tradicionalmente se cultivava o arroz (... e se pescava). Durante a guerra colonial, foram praticamente abandonadas como terras de cultivo, devido à deslocação de muitas das populações ribeirinhas e à escalada das operações militares. A Guiné, que chegou a exportar arroz, passou a importá-lo.

(4) Corruptela de terroristas. Termo depreciativo que era usado para referir os combatentes do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Os soldados portugueses eram, por sua vez, conhecidos como tugas (diminuitivo de Portugal, português ou portuga).

(5) Espingarda automática G-3, de calibre 7.62, de origem alemã, que passou a equipar as forças armadas portuguesas no Ultramar. Em 1961 o exército português ainda estava equipado com a velha Mauser (!).

(6) Marca de uísque escocês, muito popular na época entre os militares (Havia uma generosa distribuição de bebidas alcoólicas nas frentes de guerra, com destaque para o uísque, "from Scotland for the exclusive use of the Portuguese Armed Forces"). Na época o salário de um soldado-atirador (cerca de 1500 a 1800 escudos, parte dos quais depositado na metrópole) dava para comprar mais de uma garrafa de uísque (novo) no serviço de aprivisionamento militar (cerca de 40 pesos ou escudos por unidade). No entanto, a bebida mais popular entre os soldados era cerveja. Uma garrafa de cerveja de 0,6 litros chamava-se bazuca.