segunda-feira, 6 de março de 2006

Guiné 63/74 - P593: A última parte do diário do Zé Teixeira

Guiné > Uma propaganda pérfida e cínica, a do regime de Salazar-Caetano, que criou nas populaçõe africanas a falsa (e trágica) ilusão de que eram portuguesas, tão portuguesas como os minhotos ou os alentejanos; por outro lado, minimizou e desprezou os combatentes do PAIGC, reduzindo-os ao estatuto de pobres mercenários, por conta de interesses estrangeiros, a quem se podia estender facilmente uma nota de 1000 pesos em troca da sua rendição e da entrega da sua arma... (LG)

© José Teixeira (2005)

Guiné > Material (muito pobre e tosco...) de propaganda das NT recolhido pelo ex- 1º cabo enfermeiro Teixeira (CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

Fica-se na dúvida sobre o público-alvo: os pobres soldados e quadros milicianos a quem era preciso incutir e reforçar permanentemente a ideia de que, na Guiné, era a Pátria que estava em perigo; ou os guineenses, que nem sequer sabiam onde ficava Lisboa e quem era o homem grande de Lisboa... (LG)
© José Teixeira (2005)


1. Texto do Zé Teixeira:

Olá, Luís: Estive sem computador uns dias, pelo que só agora voltei ao blogue e. . . não me queria sentir a estrela da companhia, mas da maneira como me pintas, até pareço ser. Olha que não era bem assim, apesar de já nessa altura sentir que todo o homem é meu irmão , mesmo os que estavam da outra banda da barricada.

Pedes-me para continuar a escrever coisas da minha memória... Ainda tenho uma pequena parte do Diário que não te enviei. A parte que falta é muito voltada para mim mesmo na sua maior parte, pois caminhava para o fim da comissão e tinha de me readaptar ao Zé Teixeira do antes da guerra. Claro que esta parte não vou pôr em comum. Mesmo assim parece-me que ainda tenho alguma coisa para reflectir com os tertulianos e a dar a conhecer mais algumas aventuras.

Brevemente enviarei a última parte.

Há naturalmente outras estórias para contar, mas face ao desenvolvimento do Blogue e sobretudo os últimos artigos que colocaste, parece-me que por muitas coisas que tenha para contar, ficarei sempre muito longe das estórias que os camaradas têm para pôr em comum. São estórias verdadeiras que se ouvia contar em surdina, mas que agora contadas pelos próprios até me arrepiam.

Curvo-me respeitosamente perante tantos mártires da Pátria, que morreram porque os senhores da nossa terra não eram dignos de ser portugueses, quanto mais líderes deste País de brandos costumes.

Foram cerca de 10.000 os jovens, em Angola, Moçambique e Guiné, que foram enviados para a morte, os quais já foram esquecidos. Mas também os que se entregaram a esse projecto, as milícias locais e a população ultramarina, aliciados pela máquina da propaganda segundo a qual eram portugueses... Quantos desses não faleceram durante a guerra ?!.... Mas também os outros, filhos valorosos da Guiné, que se bateram contra nós, com bravura, e que morreram. Estes, sim, por uma causa naturalmente justa.

Um fraternal abraço
do Zé Teixeira

Guiné 63/74 - P592: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

Uma fotografia recentíssima do José Martins (ex-furriel miliciano de transmissões, da CCA 5, Canjadude, 1968/70), "tirada no meu lugar de meditação e recordação". © José Martins (2006)

1. Texto do José Martins (CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70):

Caro João e, por extensão, caro Luís:

Estive a ler os últimos momentos passados em Canjadude.

Voltei a visitar aqueles lugares e é curioso que, após mais de trinta anos a seguir ao meu regresso, pela primeira vez não estive lá sozinho. Passados estes anos ao folhear o álbum de fotografias, cuja capa foi feita com o tecido do meu camuflado, foi folheado e comentado com a minha mulher a meu lado.

Pelo relato da última noite, calculo que a entrega do destacamento aos novos inquilinos não foi muito pacífica.

Em conversa com alguém que esteve lá contigo nos últimos dias - creio que o Capitão Miliciano Silva de Mendonça, de que já te enviei o contacto -, sei que pagaram aos africanos seis meses de pré e, como se o contrato de trabalho de muitos anos e muita lealdade tivesse terminado, disseram-lhes, em nome de quem nunca os conheceu e viveu junto deles, vão à vossa vida.

Também em conversa tida com o Capitão Figueiredo Barros, soube que o Salazar Saliú Queta, Soldado Africano da Psico-social, foi sumariamente executado, por degolação, assim que o PAIGC tomou conta do aquartelamento. Este relato foi feito pelo Fernando Saliu Queta, filho do nosso nharo.

Foi assim que se passou? Gostava de saber, já que estou a tentar escrever uma pequena resenha sobre a CCAÇ 5, além de pretender agregar alguns elementos para constituir a história da unidade com o maior número de factos possível.

Mudando de assunto.

Asim que me for possível, tentarei pôr em comum algumas fotos que retratam os mesmos locais das tuas fotos, mas quatro anos antes: o posto de rádio, o Aeroporto da Portela de Canjadude, o Clube Militar, a Parada do Aquartelamento, etc.

Espero também que alguns dos camaradas espalhados por este canteiro junto ao mar, que conheça Gatos Pretos, os encaminhem para este convívio, para que possamos trocar experiências e recordações e, quem sabe, promover um encontro (...).

Um forte abraço
José Martins


2. Resposta do João Carvalho (ex-furriel enfermeiro da CCAÇ 5, Canjadude, 1973/74)

Olá:

Agradeço o email. Não sei como mas passou-me completamente ao lado, na lista que me tinhas enviado do pessoal que esteve em Canjadude, o nome do meu ex-capitão Mendonça. Recordo-me muitíssimo bem dele. Lembro-me que ainda fui uma ou duas vezes a casa dele, mas depois perdi o contacto. Em algumas das fotos por mim enviadas, aparece o camarada Mendonça. Se falares com ele, pede-lhe o email, para juntar à tua lista, e para que eu também o possa contactar. Há por vezes promenores dos quais eu já não me lembro muito bem, e assim pode-se confirmar alguns factos, para repor a verdade.

Em relação ao Salazar (não o que caiu da bendita cadeira), o professor de Canjadude, desconhecia o facto da sua morte. Tenho imensa pena. Apesar de eu pessoalmente não simpatizar muito com ele, acho que não merecia uma morte dessas. A maldita guerra e os ajustes de contas, têm sido uma vergonha da sociedade ao longo dos milénios. Quem diria que no fim do século XX e princípio do XXI ainda se fazem coisas [dessas]...

Enquanto nós estivemos em Canjadude não tive conhecimento de nenhum acto semelhante a este que aconteceu ao Salazar. Devem ter esperado pela nossa saída.

Sabes, estes emails e o blogue do Luís têm mexido comigo. (Provavelmente com os camaradas acontece o mesmo). Parece-me um pouco, a terapia do stress pós-traumático. (Nem sempre é fácil...).

Um grande abraço
João Carvalho

domingo, 5 de março de 2006

Guiné 63/74 - P591: Mulheres e mães-coragem (Zélia Neno)

Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > Viúva de Chambel, régulo de Cantabane. Na pessoa desta mulher guineense, fica aqui uma singela homenagem da nossa tertúlia a todas as mulheres, mães, namoradas, esposas, amantes ou companheiras de todos os combatentes da guerra colonial ou da guerra de libertação (como queiram), de 1963 a 1974... (LG)

© José Teixeira (2006)

Texto da Zélia Neno:

Uma vez mais aqui estou, tentando não fugir ao tema generalista do blogue, vou falar de pessoas que também viveram o drama da Guerra Colonial mas tão pouco têm sido focadas em qualquer texto ou livro ao longo do tempo, e porque se está a aproximar o dia 8 de Março que, não sendo o da Mãe, é O DIA DA MULHER.

Porquê? Porque as mulheres que viveram esse período da Guerra Colonial não devem ser esquecidas. Algumas, militares, normalmente enfermeiras paraquedistas, que à época tiveram de ultrapassar certos tabus para seguir essa carreira de resignação (à família e ao meio que lhes era querido), de coragem e amor ao próximo, contribuindo para que muitos feridos sentissem seu sofrimento amenizado ou até conseguissem sobreviver, as quais bem merecem ser lembradas e reconhecidas.

As outras quem eram? - Simplesmente MULHERES. Algumas já esposas, que sofreram nessa qualidada, mas a minha singela e mais profunda homenagem é para todas aquelas Mães que deste lado do Oceano ficavam a orar a Deus e Nossa Senhora para que os filhos regressassem sãos e salvos, o que infelizmente nem sempre aconteceu, e mães houve que por lá tiveram mais do que um filho em simultâneo.

Hoje, como mãe, atrevo-me a perguntar: quem terá sofrido mais? Os filhos lutando naquela guerra, ou suas mães que, a tão longa distância, nada sabiam deles durante semanas e semanas, casos houve de meses e anos (caso dos aprisionados), alimentadas pela Esperança que as fazia aguardar ansiosamente notícias suas ou contando cada dia que ainda faltava para abraçar os seus queridos meninos?

Quantas noites elas não conseguiram dormir ? Quantas lágrimas, algumas de sangue, lhes marcaram os rostos? Será que “as mães desta guerra” também não sofreram ou sofrem (as que ainda vivem) de stress pós-traumático ou de qualquer outra doença mental, provocada por essa situação? Sofrimento num coração de mãe deixa marcas irreparáveis!

Ao percorrer algumas daquelas picadas, onde ainda se vê marcas das minas anticarro que ali deflagraram, decerto causando muito sofrimento, não consegui evitar que as lágrimas me corressem pela cara, nem sequer imaginar qual inferno eu teria vivido se tivesse sido uma dessas mães. Elas tinham “fibra”, eu não (ou penso que não).

Mãe é Mãe, foi e é no seu ventre que se forma (claro, com a ajuda de um pai) e se desenvolve aquele pequenino ser, que desde logo se torna tão importante em nossa vida mais até do que o ar que necessitamos para viver e que, quando crescidos e chegada a ocasião que pensamos ser a oportuna, embora a evolução do tempo nos induza às vezes a errar, temos que fazer como a águia, quando ainda no ninho seus filhotes já estão crescidos e aptos para voar, no mais supremo acto de amor, lhes dá o derradeiro empurrão para que descubram suas asas e aprendam a fazer uso delas, sempre sob a sua protecção, vivendo assim o privilégio de terem nascido.

Esta oportunidade nem sequer foi dada às mães dos ex-combatentes, pois foram obrigadas a vê-los partir, tão jovens ainda, com regresso incerto, ficando sem poder dar um carinho, uma palavra de conforto ou sua protecção quando eles mais precisavam, nem tão pouco saber da sua vivência diária, o que acontecia só quando algum aerograma chegava e casos houve em que nessa ocasião quem o escrevera já não se encontrava no mundo dos vivos.

Não posso nem devo esquecer todas as outras mulheres de raça negra, espalhadas pelas ex-colónias, pois também elas sofreram, como mães de combatentes, quer seus filhos se enquadrassem, como milícias, nas nossas fileiras quer nas do inimigo.

Como viviam em pleno cenário de guerra, mesmo sendo população civil, sofreram as dores físicas de ferimentos e amputações, viram suas crianças chorar e gemer pelo medo ou pela dor e até morrerem em seus braços sem nada poderem fazer para as salvar, pois em situações de ataques, o que viam elas em seu redor? Sofrimento e Destruição!

Estas são as MULHERES E MÃES-CORAGEM do meu país de então, Continental e Ultramarino, e é para elas esta minha homenagem escrita, póstuma para muitas delas mas não em vão.
Zélia Neno


N.B.- Perdoem-me se com estas palavras feri a sensibilidade de alguém, cuja mãe somente esteja viva em seu coração.

Guiné 63/74 - P590: A pensão do Seni Candé (Hugo Moura Ferreira)

1. Mensagem do Hugo Moura Ferreira, de 24 de Fevereiro de 2006

Meus amigos:

Tal como lhes tinha dito que ia fazer, visitei o Arquivo Geral do Exército, tentando encontrar algo relacionado com o Seni Candé, ou mesmo o seu processo individual.

Como eles ali não têm nada digitalizado, por enquanto no que se refere às PU (Províncias Ultramarinas), não foi possível pesquisar nada. Muito menos quanto à hipótese de ele ter adquirido aqui outros nomes por erro de registo.

Assim ali o que me disseram foi para que tentasse saber os nomes do pai e da mãe, já que com a data de nascimento apenas (10 de Fevereiro de 1947) não seria também possível.

Assim, para dar continuidade ao que me propus fazer queria pedir a ajuda, caso seja possivel, do Jorge Neto que talvez localmente consiga obter essa informação.

Ficarei a aguardar qualquer notícia para poder dar continuidade, embora nos pareça difícil alterar a situação.

No meu caso, só no FIM de todas as tentativas é que as classificarei de infrutíferas ou não. Mas até lá...um abraço.
Moura Ferreira


2. Resposta anterior do Jorge Neto, de 10 de Fevereiro de 2006: 

Caros tertulianos,

Pelas informações que consegui apurar não podemos fazer muito pelo Seni Candé (2), pelo menos para já. Parece que em 1982 o governo português passou para o governo guineense a responsabilidade do pagamento das pensões de reforma, invalidez, etc., dos antigos combatentes que haviam lutado no lado luso. Como devem imaginar, depois de 1982 nunca mais ninguém recebeu nada. Em troca, Portugal perdoou a dívida à Guiné-Bissau.

Assim sendo, actualmente a responsabilidade pelo pagamento das pensões a estes homens é do Estado guineense. Ao longo do fim-de-semana irei ainda estabelecer mais um contacto para averiguar tudo isto.

Só a título de curiosidade!... O homem faz anos hoje. Estive a ouvir as gravações outra vez e apercebi-me que nasceu a 10/02/47.

Um bom fim-de-semana,
JN (Africanidades)
__________

(1) Vd. posts de:

8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)

10 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXVI: O Seni Candé da minha CCAÇ 6 (Moura Ferreira)

(2) Vd. post de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DX: O abandono do Seni Candé (Zé Neto)

Guiné 63/74 - P589: A dolce vita de Canjadude, até ao dia 27 de Abril de 1973 (João Carvalho)


Guiné > Zona leste > Algures > 1973 > Uma Daimler, avariada, é levada em cima de uma GMC... Sítio ? Talvez Bambadinca, talvez Bafatá, junto ao Rio Geba... quando o João Carvalho veio de férias à metrópole... © João Carvalho (2006).

Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Canjadude > 1973 > O Bar da CCAÇ 5, onde se fizeram muitos terrafianços. © João Carvalho (2006).

Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Canjadude > 1973 > O sentido de humor dos tugas da CCAÇ 5: Placa, em pedra, que sinaliza o "Aeroporto da Portela de Canjadude", com data de 2-11-68, e que tem a assinatura da CCAÇ 5 / CART 2338. © João Carvalho (2006)


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Canjadude > 1973 > Posto de rádio da CCAÇ 5
"onde eu, ilegalmente, muitas vezes passei umas boas horas a jogar King" (JC) © João Carvalho (2006).


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Canjadude > 1973 > Um furriel miliciano enfermeiro... em serviço no posto de rádio. © João Carvalho (2006).


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Canjadude > 1973 > O João Carvalho deve ter batido umas boas sonecas neste cadeirão, no posto de rádio... © João Carvalho (2006)

Olá Luís

Venho complementar a informação descrita no aerograma sobre o ataque a Canjadude em 27 de Abril de 1973, com mísseis terra-terra Katyusha (1).

1 - A razão da existência de um Unimog estacionado (contra a qual eu choquei) num local em que não era habitual haver viaturas foi a seguinte:

Tinha sido enviado para Canjadude um grupo de milícia africana para uma operação. Qual a finalidade ou objectivo dessa operação, eu desconheço. Sei é que esse grupo foi transportado desde Nova Lamego até Canjadude no referido Mercedes Unimog.

2 - Depois do ataque, constou que os mísseis não teriam sido levados para aquela zona, com a finalidade de serem lançados sobre Canjadude, mas sim sobre Nova Lamego e que o que originou a alteração dos alvos teria sido o PAIGC ter detectado (ou ter sido perseguido por) o grupo de milícias.

Não sei se esta versão corresponderá à realidade, nem se alguém terá dados para confirmá-la ou desmenti-la. O que me leva a supor que haja pelo menos um mínimo de verdade nisto, é que em todo o tempo que estive em Canjadude,esta foi a única vez que um grupo exterior à companhia CCAÇ 5 passou por lá para uma operação.

Observações pessoais:

Será que haveria informações que o PAIGC iria atacar Nova Lamego? Terá sido por isso que foi enviado um grupo de milícias para tentar que isso não acontecesse ? É evidente que atacar com mísseis Nova Lamego ou Canjadude, o impacto político-militar seria muito diferente:
- Manga de ronco!!! - diríamos nós, na época. Ou melhor: já não me lembro bem se a expressão utilizada era esta para grande façanha).


Anexo duas fotos a cores, mais algumas, a preto e branco, que ilustram a calmaria - direi mais, a dolce vita ! - em que se vivia em Canjadude, antes do famoso ataque com foguetões:

(i) Uma tirada quando vim de férias à Metrópole: uma Daimler, avariada, em cima de um GMC, talvez em Bambadinca... (a memória é fraca, se alguém me confirmar, eu agradeço!).

(ii) O nosso bar em Canjadude, vendo-se um dos bancos em que eu estava sentado quando se ouviu o lançamento dos mísseis terra-terra Katyusha. Neste bar foram feitos muitos terrafianços. (Não sei se a expressão era utilizada também nas outras companhias para designar farras com muita, muita, bebida).

Abraços para ti e para todos os tertulianos
João Carvalho
__________

Nota de L.G.:

(1) Vd post de 5 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIX: O ataque de foguetões a Canjadude, em Abril de 1973 (João Carvalho)

sábado, 4 de março de 2006

Guiné 63/74 - P588: A última noite em Canjadude (CCAÇ 5) (João Carvalho)

Guiné > Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 > 1974 > A azáfama dos últimos dias ...© João Carvalho (2006)

Guiné > Bissau > 1974 > A peluda à vista para os tugas da CCAÇ 5... © João Carvalho (2006)

Olá, Luís:

A fotos que se publicam,em anexo, mostram: a primeira, os preparativos para a saída definitiva das NT de Canjadude, após a independência; a segunda, a chegada a Bissau, ao QG, para em seguida apanharmos o avião de volta à Metropole.

Relacionado com a retirada das NT de Canjadude, vou contar-te mais um dos episódios por que passei nesses lugares longínquos, mas que não nos saiem da memória.


A última noite em Canjadude

Finalmente chegou o dia! Pegar nos trapos e deixar Canjadude para regressar à metrópole. Peluda!!! Aquele regresso tão ansiosamente esperado!!!

Carregam-se as Berliet Tramagal e os Mercedes Unimog, com tudo o que era possível lá encaixar: caixotes com armamento, malas, etc, etc. A azáfama é grande, pois a quantidade de tralha para trazer é enorme e o dia é curto.

Com o aproximar do fim do dia, constatando-se que era quase impossível carregar tudo, foi decidido que partiria nesse dia uma coluna em direcção a Nova Lamego e que no dia seguinte algumas viaturas voltariam a Canjadude para transportar o resto, assim como um mini grupo das NT que ainda ficavam uma noite a tomar conta do resto dos pertences. Fui incluído nos que ficavam.

Depois de assistir à partida da coluna, dirigi-me para o abrigo, para me deitar um bocado, pois carregar viaturas deixa-nos um pouco cansados.

Como o abrigo já tinha diversas camas sem ocupação, pois os camaradas já tinham partido, as camas vagas foram ocupadas pelas tropas do PAIGC (ex-IN).

Nessa altura começaram os problemas. Um dos nossos camaradas furriéis do mini grupo (não me lembro qual) quis tirar o seu armário (caixote), para ir dar a um dos nossos soldados africanos que vivia na tabanca e a quem já o tinha prometido há muito.

Um dos soldados do PAIGC começou a refilar, porque aquilo agora era deles e que dalí não saia nada. A situação começou a ficar um bocado esquisita, se assim se pode dizer. Os ex-IN, deitados, com garrafas de cerveja (manga delas) e Kalashnikov na mão, não davam bom agouro àquela noite.

Saímos do abrigo e fizemos uma mini-reunião. A partida era complicada. Ainda havia bastante tralha para carregar e a única viatura existente era uma Berliet que tinha um buraco enorme no radiador.

A probabilidade de chegar a Nova Lamego durante a noite e com uma viatura naquele estado, era bastante remota. A alternativa era ficar e esperar que nada de grave acontecesse.

Foi decidido partir. Mesmo com a grande probabilidade de passar a noite no meio da picada, era mais seguro do que ficar.

Carregámos a Berliet de tal forma que, lá em cima da tralha, quase era necessário fazer equilibrio para não vir parar ao meio do chão. O nosso camarada mecânico resolveu improvisar (como bom português) e deitou no radiador água e cimento (sim, cimento em pó!).

Finalmente partimos. Pelo caminho, andando muito devagar devido à carga instável, fomos sempre deitando água (a pouca que conseguimos transportar) no radiador da bendita Berliet.

Já perto do final da picada, relativamente próximo da estrada alcatroada, fomos encontrar, para nosso espanto, parte das viaturas que tinham saído, ainda durante o dia, de Canjadude (Avarias também acontecem às máquinas que parecem estar em bom estado).

O mini grupo chegou ainda nessa noite a Nova Lamego, enquanto as viaturas que avariaram na picada, tiveram de esperar pelo dia seguinte para serem rebocadas.

Estas nossas estadias por aquela maravilhosa África foram cheias de pequenos episódios bons e maus, mas que nos marcaram, não há dúvida nenhuma.

João Carvalho

Guiné 63/74 - P587: Os últimos dias de Canjadude (fotos de João Carvalho)

Olá, Luís!

Se não me pedes para parar, não sei onde vais arranjar espaço para guardar tantas fotos.

Envio-te mais umas fotos, com as respectivas legendas, todas relacionadas com a partida em definitivo de Canjadude (1).

Um abraço
João Carvalho
(ex-furriel mil enfermeiro, CCaç 5 - Os Gatos Pretos,
Canjadude, 1973/74)

Guiné > Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 > 1974 > Queima da papelada existente que não podia ser trazida e que não devia cair nas mãos do ex-IN, na altura da entrega do aquartelamento aos novos senhores da Guiné (JC).
Comentário de LG: Presumo que tenham sido dias de sentimentos contraditórios, de alívio e de tristeza... Para os africanos, para os verdadeiros gatos pretos, dias de tensão e de apreensão... Ou não ? Para os tugas, por sua vez, terão sido dias de descompressão, cantarolando o Hino da Velhice (2)...
© João Carvalho (2006)

Guiné > Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 > 1974 > Penso que esta foto se refere à entrega da farda e armamento, por parte dos nossos soldadoa africanos. Não me lembro se também tinha a ver com o receber o último pré (JC).

Comentário de LG:
O que terão pensado os teus gatos pretos, agora abandonados pelos tugas ? Como terão vivido os dias que antecederam a chegada dos guerrilheiros do PAIGC, seus inimigos de muitos anos ? © João Carvalho (2006)


Guiné > Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 > 1974 > O pessoal da tabanca teve autorização para ficar com os bidões vazios. Foi uma verdadeira corrida para ver quem conseguia ficar com eles (JC).

Comentário de LG:
Fracos despojos de guerra...

© João Carvalho (2006)
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O nosso fotógrafo em Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74)

Guiné > Canjadude > 1974 > O PAIGC toma posse do antigo aquartelamento da CCAÇ 5 e hasteia a bandeira da nova República da Guiné-Bissau, na presença da população local (fula) e dos poucos brancos, fardados, da CCAÇ 5 ...
Fonte: João Carvalho / Wikipédia > Guerra do Ultramar (2006)

(2) Vd. post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIII: Cancioneiro de Canjadude (CCAÇ 5, Gatos Pretos)
Hino da Velhice
Ai....
Tirem-me daqui,
Mandem-me p'ra Metrópole,
Que eu estou a ficar maluco, maluco, maluco,
Quero ir daqui embora!...

Já lá vem o meu periquito
A saltar na bolanha,
Quando for daqui para fora
Nunca mais ninguém me apanha.

Quero ir embarcar...
E à Metrópole voltar...

Refrão

Despedidas eu vou fazer
E a arma entregar.
Depois então vou receber
A guia p'ra marchar.

Quero ir embarcar...
E à Metrópole voltar...

sexta-feira, 3 de março de 2006

Guiné 63/74 - P586: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (2)

Aqui vai o resto das fotos enviadas pelo Manuel Mata, ex-1º cabo apontador de Carros de Combate M 47, do Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71)(1). II Parte da história desta unidade.

Guiné > Zona Leste > Bafatá > Sede do Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640. Na foto, o nosso camarada de pé, em cima de uma viatura Auto-Metralhadora Daimler. Ao fundo, o famoso cartaz, visível dos ares: "Aqui mora a cavalaria!"...

© Manuel Mata (2006)

Guiné > Zona Leste > Bafatá > Uma AM Fox, em reparação na oficina do Esquadrão... Este tipo de viaturas blindadas adaptava-se mal às difíceis condições do terreno na Guiné... Não me lembro de ter visto muitas a andar pelos seus próprios meios nos sítios por onde andei... Imagino a trabalheira que terá sido trazê-las até aqui" ... (LG)

© Manuel Mata (2006)

Guiné > Zona Leste > Bafatá > Duas viaturas White estacionadads junto à catedral da cidade... Nunca as vi integradas em colunas logísticas lá para os meus lados (Sector L1, triângulo Xime - Bambadinca - Xitole). Nas nossas picadas, em tempo de chuva, afundar-se-iam inevitavelmente... Nas ruas (alcatroadas) de Bafatá não se portavam mal... Mesmo assim, eram capazes de meter algum respeito aos atrevidos guerrilheiros do PAIGC que nos emboscavam e faziam a vida negra (LG)

© Manuel Mata (2006)

Guiné > Zona Leste > Bafatá > Viatura White com a sua guarnição completa... Uma recordação para a posteridade... Espero que haja mais camaradas, de preferência da arma de cavalaria, que completem estas lacónicas e mal alinhavadas legendas... (LG)

© Manuel Mata (2006)
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(1) Vd post de 2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DXCVII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (1)

Guiné 63/74 - P585: Horácio Ramos, presente!! (BCAV 2867, Tite, 1979/70)

1. Texto do José Martins:

Caros Camaradas:

Estive há poucas horas a falar com o Fernando Fraquito que me confirmou que o pai pertenceu ao BCAV 2867. Prometi enviar-lhe novos elementos, que seguem em anexo.

Resta agora que alguém que tenha conhecido o Horácio, que entre em contacto com o Fernando, para ele obter aquilo porque anseia.

Creio que, quando houver um encontro desta unidade, ele vai estar na fila de frente.

Um forte abraço
José Martins

2. Mensagem do Fernando Fraquito:

Olá, bom dia, Sr. José Martins:

Quero agradecer do fundo do coração toda a ajuda que me tem prestado, toda a simpatia e disponibilidade.

Na caderneta militar do meu pai está, de facto, indicação de que pertenceu à CCS Batalhão de Cavalaria 2867.

Dados completos:

Nome: Horácio Martinho Ramos

Natural de Colos, concelho de Odemira

Nº Militar: 075576/68

Gostaria muito de encontrar antigos camaradas do meu pai na Guiné e participar num encontro/almoço se possível, ficaria muito honrado e grato, é como o cumprir de uma ultima missão pelo meu pai.

Os meus maiores cumprimentos
Fernando Manuel Ramos Martinho Fraquito
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BATALHÃO DE CAVALARIA 2867

Unidade Mobilizadora > Regimento de Cavalaria 3, em Estremoz

Comandante > TCor Cav José Luís Trinité Rosa
2º Comandante > Maj Cav Francisco José Martins Ferreira
O Inf Op/Adj > Maj Cav Carlos Dias Antunes
Comandantes CCS > Cap Mil Art Carlos Pedro da Fonseca e Silva / Cap Mil Art Mário Pais Mexia Leitão

Divisa >"SOMOS COMO SOMOS"

Partida em 23 de Fevereiro de 1969; desembarque em 1 de Março de 1969; e regresso em 23 de Dezembro de 1970.

Em 3 de Março de 1969 assumiu a responsabilidade do Sector S1, com sede em Tite, abrangendo os subsectores de Tite, Nova Sintra, Jabadá e Fulacunda, mantendo as suas subunidades enquadradas no seu dispositivo.

Desenvolveu actividade operacional de patrulhamento, reconhecimento, batidas, emboscadas e controlo de itinerários, coordenando as suas subunidades em várias operações em que se destacam: ARMAS LEAIS, GERÊS, 3ª ESTOCADA, 4ª BATALHA, 6º DESFORÇO, ANDAR LIGEIRO e GRANDE RODA.

Do material que capturou, destaca-se: 4 metralhadoras ligeiras, 6 pistolas-metralhadoras, 12 espingardas e 5 lança-granadas foguete.

Companhia de Cavalaria 2482

Comandante > Cap Cav > Henrique de Carvalho Morais

Assumiu o subsector de Tite em 2 de Março de 1969

Foi transferida para Fulacunda em 30 de Junho de 1969.

Foi rendida em 14 de Dezembro de 1970, recolhendo a Bissau para regresso à Metrópole

Companhia de Cavalaria 2483

Comandantes > Cap Cav Joaquim Manuel Correia Bernardo / Cap Mil Art João José Pires de Almeida Loureiro / Cap Mil Art Ricardo José Prego Gamado

Assumiu o subsector de Nova Sintra em 31 de Maio de 1969, destacando um pelotão para S. João.

Foi transferida para Tite em 23 de Setembro de 1970 com função de intervenção e quadrícula. Foi rendida em 14 de Dezembro de 1970, recolhendo a Bissau para regresso à Metrópole.

Companhia de Cavalaria 2484

Comandante > Cap Cav José Guilherme Paixão Ferreira Durão

Assumiu o subsector de Jabadá em 4 de Março de 1969.

Destacou, entre 3 de Novembro de 1969 e 9 de Novembro de 1969, três pelotões para Tite. Foi rendida em 9 de Dezembro de 1970, recolhendo a Bissau para regresso à Metrópole.

Fontes:

História da Unidade – Arquivo Histórico Militar (Caixa 126 – 2ª divisão – 4ª Secção)

© Resenha Histórico-Militar das Campanhas de Africa (1961-1974). 7º Volume/Tomo II – Fichas das Unidades – Guiné. Condensação de José Martins – Março 2006

quinta-feira, 2 de março de 2006

Guiné 63/74 - P584: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato

Guiné-Bissau > Maqué > 2006 > " O mais belo poilão que conheço da Guiné" (Paulo Salgado) .
© Paulo & Conceição Salgado (2006)


Texto do Paulo Salgado:

O regresso de um homem bom!

Quero falar-vos do Moura Marques – camarada de luta, companheiro de labutas, amigo de confidências. Nos idos meses de 1970-1972. Foi no Olossato que se forjou uma solidariedade grande, mas já em Santa Margarida se notava ali a bondade e valentia do Moura Marques, para quem não havia heroísmos nem cobardias, para quem mais valia a verdade do que o servilismo. Se foi louvado, só o poderia ser pela coragem, pelo exemplo, pela calma que dele transparecia, que dele irradiava.

Ontem, dia 26 de Fevereiro de 2006, 35 anos depois de a CCAV 2721 embarcar para Lisboa, fomos ao Olossato: ele, a Maria da Conceição e eu no Prado. Devagar, para bebermos em conjunto as emoções, e rememorar momentos vividos com os outros camaradas.

Saída em direcção a Bula e dali para Bissorã: o largo, as fotos ao que resta de Os Bigodes, as casas coloniais envelhecidas pelo tempo inclemente, a picada, que outrora era picada por causa das minas, e, não sei por que razão, agora estava linda, avermelhada, e, ao lado, as pequenas bolanhas do alto do Maqué, onde está o mais belo poilão que conheço da Guiné, o que resta do aquartelamento da pontão do Maqué, não mais do que algumas paredes onde ainda se descobre uma fresta espreitando para a mata lá atrás (ai quantas sentinelas feitas pelos infernais, pelos vampiros). As fotos da praxe. O marejar de lágrimas do MM.

- Vês, ali, Salgado, tantas horas de trabalho na construção do heliporto, quantas horas perdidas na solidão da mata, quanto de nós ali está ! – dizia ele, emocionado… E a Maria da Conceição tirando as fotos das mais bonitas que já vimos…
Na ligeira subida para o Olossato, alguém grita correndo:
- Bolea, patim bolea!Parámos. Uma mulher vinha correndo:
- Um mindjer prenhadu sta ali na caminhu!

E nós os três preparados para o que desse e viesse que as dores e contracções (percebiam-se) eram repetidas e já nos imaginávamos a fazer de parteiros na beira da estrada…Felizmente a mulher aguentou. E lá foi levada com mil cuidados ao centro de saúde. E nós, como sorrimos de satisfação e de alívio.

Guiné-Bissau > Cumeré > 2006 > Uma viagem de regresso ao passado... © Paulo & Conceição Salgado (2006)

O reencontro com os amigos. Um deles anda se recordava do cabo Moura. E o Moura Marques mais uma vez emocionado:
– Bolas, um homem sofre, com este exorcismo (palavras do MM).

Uma oferta aos amigos. Uma visita à campa muçulmana do Suleiman Seidi. Uma oração em silêncio, um silêncio de saudade, uma saudade enorme – o Suleiman era um irmão. Eu que o diga. O Moura Marques chorou, de pé, honrando a memória de soldado milícia português – um homem chora quando tem que chorar, bolas.
- Olha, ali era o PC, e ali o local dos morteiros; acolá o bar…
-E ali, bem visível a caserna, agora escola de marabu...

O sol já caía a pino. E os amigos, de volta: mantenhas, e o desejo manifesto do grão-de-bico (homem agora com quatro filhos…menino era naquele tempo):
- Cabo Moura leva-me para Lisboa.

Guiné-Bissau >Olossato > 2006 > O grão-de-bico, ontem criança, hoje homem grande, pai de filhos, reencontra o Moura Marques e o Paulo Salgado... © Paulo & Conceição Salgado (2006)

Que carinho e que ternura e que vontade de ter outra vida o desejo destes homens, dos que estiveram connosco dos que combateram do outro lado.
- Salgado, isto é demais!

Lá fomos em direcção ao rio Olossato, sempre bonito e frondosas as margens, lodoso, embora. Mais fotos e sempre as crianças, as belas crianças. Umas bolachas que a Conceição distribuiu fizeram-nas sorrir. Sorrir ainda mais, se é possível.

Guiné-Bissau > Rio Olossato > O Paulo Salgado e o Moura Marques, 35 anos depois...
© Paulo & Conceição Salgado (2006)

Depois a picada para Farim com passagem por Cansambo (só possível agora visitar, pois naquele tempo estava arrasada) e K3; a travessia de canoa a remos para a outra banda: Farim. Tarde quente de calor do sol e de calor humano. Uma cerveja meio quente junto da Fatu Turé e Mustika Turé, encarregadas do bar da festa carnavalística (assim lhe chamou o comandante da canoa! – um neologismo (?!) para o nosso vocabulário.
- Boa tarde! A bos portuguisis? Pai di nôs.
O que responder a tal fé antiga? Sem palavras.
De novo a cambança. No meio do rio, gritou o comandante da canoa vizinha, a motor, sorrindo:
- Li, tene manga di lagartus…

Guiné-Bissau > Rio Farim > 2006 > Cambana do rio..."A bos portuguisis? Pai di nôs".© Paulo & Conceição Salgado (2006)

A corrida para Mansabá, umas fotos do jovem ferreiro e da forja… Depois, Mansoa. Um hospitalzinho novo, da cooperação francesa, e as ruínas do quartel com soldados sentados à sombra dos mangueiros…!

E a seguir, Uaque. O último olhar para uma viagem longa, mas emocionantemente bela, reconfortante. Estava (quase) feita a catarse… O Moura Marques:
- Meu Camaradão, meu amigo.

PS - No dia anterior, estivéramos em Nhacra e no Cumeré… exactamente no dia em que pela última vez o MM almoçara com o seu amigo Fernando (periquito) que viria a morrer em emboscada dois dias depois…

Guiné 63/74 - P583: Poema em memória do Conceição (Zé Teixeira)

Guiné > Algures no sul (Quebo, Mampatá, Buba ou Empada) > 1968 ou 1969 > O Zé Teixeira nas noites de escrita e solidão... 
© José Teixeira (2006)


1. Mensagem do José Teixeira:

Fui ao meu baú de memórias buscar mais este poema Em memória do Conceição (1) que escrevi em 1996, vinte e cinco anos depois do regresso. Não pela sua qualidade, mas sobretudo para realçar que cá dentro ficam recalcadas estas memórias que o tempo não cura.

Vinte e cinco anos depois tive de escrever, dolorosamente, um poema e rever em sofrimento esso momento terrível em que pulava e gritava em plenos pulmões, de contente à porta da enfermaria:
- Não há mortos nem feridos. Filhos da puta, deixei-nos em paz ! - quando o Pedro muito calmamente me chamou e disse:
- Teixeira, estás enganado, leva este para a enfermaria, está morto !

Um abraço
José Teixeira
(ex-1º cabo enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).


A Carta que escrevi

A carta que escrevi
Não escrevi.
Ao seu destino chegou.
Atrasada.
No avião seguia, quando morri,
Levou-me o sopro de uma granada.
Dizia eu que estava bem. Era verdade.
A guerra estava parada.
À vista o fim da Missão,
Servir a Pátria amada.
Cantava.
Cantava de alegria,
Afastava a solidão,
O medo, a angústia, o desejo de voltar.
E veio a granada para me matar.
A notícia voou rápida,
Para ferir.
Levou à minha amada
A dor de me ver partir,
Sem me despedir.
A carta.
Juro que a escrevi,
Mas não escrevi
Porque morri.
Sei que a leste
Com que fé, amor !
Esperança danada,
Que fez esquecer a dor,
Da mensagem levada
Pelo Crocodilo lacrimado
Com o resto da minha granada ,
medalhado.
Eu estava.
Mas não estou.
Quando cantava
A morte me levou
E a minha carta
Para ti, Amor
Viajava, levando a esperança
Que acabou.

Abril/96
____________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXIV: Estórias do Zé Teixeira (2): o Conceição ou o morrer de morte macaca

"O Conceição era uma camarada de Lisboa, que tanto quanto eu sabia, não tinha pais e vivia com a avó. Era um moço muito alegre e passava o dia a cantar.

"Já perto do fim da comissão, em Empada (está na parte do diário que não enviei para o blogue), estava na retrete ... e a cantar. Não ouviu as saídas de morteiro que nos foram enviadas do cimo da pista e controladas via rádio por alguém lá dentro ou junto ao arame farpado. Uma das primeiras rebentou no telhado da retrete e projetou-o para trás, esmagando parte da nuca contra a parede.

"Eu, logo após o ataque, dei uma volta pelo quartel. Fiquei assustado, pois cairam várias lá dentro e gritava de contente. Não havia aparentemente feridos e muito menos mortos. Nesse momento, o Furriel Pedro (actualmente muito doente, com um derrame celebral) grita-me:
- Teixeira vem aqui ! - Fiquei horrorizado com o que vi. Mais uma vez chorei de raiva" (...)".

Guiné 63/74 - P582: (Contra)posições (Carlos Marques dos Santos)

Guiné > Zona Leste > Estrada Xime- Bambadinca > 1969 > O Cap Brito, da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)

© Humberto Reis (2006)

Estrada Xime-Bambadinca > 1968 > Uma coluna da CART 2339... © Carlos Marques dos Santos (2006):

1. Ao ler recente texto, no blogue, com a imagem do Capitão da CCAÇ12 na estrada Xime Bambadinca, veio-me à memória uma outra foto, minha, no mesmo sítio, que faz contraposição... Vejam os contratastes: a Guiné da época sêca, e a Guiné da época das chuvas.


Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Ingoré > 1998 > A Zélia... e o burro.

© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné > Zona Letse > Sector L1 > Subsector de Mansambo > 1968 > Ponte do Rio Carantabá (entre Mansambo e Candamã) © Carlos Marques dos Santos (2006):


2. Mais uma contraposição: (i) A Zélia a tentar, em 1998, lá para os lados do Ingoré, no Cacheu, demover o burro para poderem passar uma ponte (?); (ii) a minha foto com um dos nossos burrinhos passando a ponte do Rio Carantabá.

Em trinta anos, de 1968 para 1998, muita água correu nos rios da Guiné, mas as pontes não mudaram muito... iguais em qualidade e segurança....

Um Abraço
CMS

Guiné 63/64 - P581: Os meninos do Geba: uma desabafo, melancólico (Albano Costa)

Guiné- Bissau > Saltinho > 2000 > Lavadeiras do Rio Corubal © Albano Costa (2006)


Texto do Albano Costa:

Meu caro amigo Luís Graça

Só neste momento me foi possível ver as fotos (1): as legendas estão perfeitas e o resto também... Realmente neste mundo em que estamos a viver, às vezes eu penso como aqueles meninos são tão felizes!... Eles não vão à escola, é verdade, o que é pena... Mas naquela situação eu pergunto: para quê?... E logo penso que pena eu tenho de estes meninos não terem uma escola...

É tudo muito complicado, até no nosso Portugal: tantos meninos que um dia se transformam em jovens adultos, a esforçarem-se tanto a fazer os seus cursos e um dia quando imaginavam que iriam realizar o seu sonho, vai tudo por água abaixo, que se vêem sem futuro para o seu curso... E aí eu penso, ao menos os meninos na Guiné neste sentido não têm este trauma de terem andado na escola e de quase nada servir-lhes isso..

Isto é só um desabafo, melancólico, porque a escola é muito importante, mas é também importante fazer uma «estrada» para os futuros homens de amanhã terem por onde caminhar...
(...) Eu vou arranjar mais umas fotos para te enviar e para fazeres delas o que vem entenderes na ilustração do teu «nosso» blogue, que está a tomar proporções enormes, e ainda bem.

Um abraço,
Albano
_________

(1) Vd. pots de 27 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCII: Album fotográfico do Albano Costa (1): O Geba

Guiné 63/74 - P580: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (1)

Guiné > Estrada Bambadinca-Bafatá > 1969 > Coluna da CCAÇ 12, a caminho de Bafatá, vendo-se ao fundo uma AM (autometralhadora) Daimler, do Pel AM Daimler 2046, instalado em Bambadinca, e que era comandado nesse tempo pelo Alf Mil Cav J. Vacas de Carvalho, nosso tertuliano de Montemor-O-Novo. A estrada Bambadinca-Bafatá era uma das poucas, na Guiné, que estava alcatroada. Para nós, era uma verdadeira autoestrada, originando acidentes (e alguns graves) por excesso de velocidade. Entre Junho de 1969 e Março de 1971, não me recordo de qualquer actividade da guerrilha neste troço: mina, emboscada, flagelação à distância... Ainda no nosso tempo, deu-se início à construção da nova estrada (alcatroada) Xime-Bambadinca. Este troço entre o Xime e Bafatá era de grande importância estratégica para os transportes terrestres na Zona Leste (Bafatá e Gabu) (LG).

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).



Texto do Manuel Mata (ex-1º cabo apontador CCM 47, integrado no Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640, aquartelado em Bafatá nos anos 1969/71, organizador dos convívios anuais da referida unidade) (1).

HISTÓRIA DO ESQUADRÃO DE RECONHECIMETO FOX 2640, GUINÉ-BAFATÁ 1969/71 - Parte I

Caro Luis Graça:

Obrigado pela oportunidade que dás aos ex-combatentes. É de louvar, pois nos fazes reviver um pouco da nossa juventude e dos tempos passados por África.

O camarada A. Marques Lopes, ao referir-se, num dos textos que tem no Blogue-fora-nada, ao Esquadrão de Reconhecimento 2640, de Bafatá, convidou alguém do referido Esquadrão a participar, e uma vez que o amigo Luís Graça me autoriza a entrar na caserna dos tertulianos, aqui estou eu para dar o meu contributo e creiam que é com o maior prazer que o faço... Mas se me for permitido, fá-lo-ei desde a formação do Esqadrão à instalação em Bafatá, puxando dos meus apontamento e fotos e rebuscando o baú das minhas memórias, bem como fazendo apelo às memórias de outros camaradas.

Campo Militar de Santa Margarida > Regimento de Cavalaria 4 > 1969 > Carro de Combate M47. © Manuel Mata (2006)

No ano de 1969, mês de Agosto, com a apresentação no Regimento de Cavalaria 8, em Castelo Branco, foram mobilizados, para o T.O. da Guiné, os 142 militares que vieram a formar o Esq Rec Fox 2640, mais o Pelotão Rec Fox 2175, este independente e composto por 38 militares.

Terminado o período de organização do Q.O. da unidade, veio a I.A.O. [Instrução de Aperfeiçoamento Operacional] durante o mês de Setembro de 1969. Aí começou a guerra: o exército não tinha viaturas AM Fox, disponíveis para instrução na Metrópole, as poucas AM Daimler tinham feito Pum!!!, na última instrução de especialidade de 1969.

Ficámos então esclarecidos da razão que levou à nossa mobilização, os 16 apontadores de Carros de Combate M47, coisa que ainda não tinha acontecido até então, em todo o período de guerra. Como não podia haver especialidade de apontador AM Fox e AM Daimler, socorreram-se dos apontadores CCM47, do RC 4, de Santa Margarida, grupo de especialidade terminada em Maio de 1969.

Depois da mobilização para o CTIG, da falta de aperfeiçoamento dos condutores, dos apontadores, nas viaturas que o Esq Rec Fox 2350 a render na Guiné tinha, juntou-se-lhe a pescada amarela de mau sabor, com as batatas a saber mal, a água com pouco vinho, os castigos de mais uma semana no campo (24 horas por dia), a massa para o almoço que no campo chegava chocalhada nas viaturas e era... pasta!

Lá vinha uma revolta, no próximo dia de pescada amarela, lá se fazia à pressa um arroz com chouriço. Voltava-se à pescada, voltávamos a fazer levantamento de rancho e, como castigo, mais uma semana de campo. Resultado: camas da caserna, almofadas, etc., destruídas.

Numa dessas noites de maior tensão, aparece o Furriel Amadeu Fernandes que estava de Sargento Dia, a tentar acalmar a rapaziada... Choveu tanta almofada, botas e outros objectos que prometeu:
- Lá é que vamos ver quem brinca!.- Foi um amigão, este furriel!...

O Comandante do R. C. 8, já saturado com a nossa rebeldia por não aceitarmos ser assim tratados, duas vezes fez formar o Esq 2640 na parada, dando ali uma grande lavagem de orelhas, foi para todos simples música, tendo inclusive apelidado a rapaziada de Diabos!... Não satisfeito, interpelou-nos (e vou citar de cor):
- Se algum dos militares aqui presentes for homem para se bater comigo, que dê um passo em frente! - Claro, a bravata do comandante ficou por ali...

Pior que tudo isto da guerra que nos impunham, foi mesmo termos perdido um companheiro devido a um acidente, numa das saídas a Penamacor, para fazer fogo real. Por caricato que pareça, um burro aparece na estrada causando o acidente onde ficaram feridos dois praças sem gravidade e faleceu o Aspirante Mil Fernando M. Lopes. Quero deixar aqui bem sublinhado que este amigo está sempre presente no coração dos elementos do Esq Rec Fox 2640.


Lisboa > O N/M Uíge, que transportou o Esq Rec Fox 2649, mais o Pel Rec Fox 2175 até Bissau, em 15 de Novembro de 1969. Mas nem todos compareceram: um oficial desertou... © Manuel Mata (2006)

Finalmente, na manhã de dia 15 de Novembro de 1969, embarcámos em Lisboa no N/M Uíge... Foi o meu primeiro dia de forte dor, de desilusão, de grande desmotivação se é que alguma vez houve motivação...Faltou ao embarque o Alferes Mil Elpídio Codinha dos Santos. Este tinha vindo de véspera para Lisboa, para reconhecer o navio e fazer a marcação de quase todo o Esqadrão em camarotes. De facto, poucos de nós foram no porão, pelo que todos ficámos muito agradecidos e sensibilizados pela moralização de muitos contra uma guerra que não era nossa...

Algum tempo depois foi confirmado, para nossa alegria (e minha, em particular), que ele estava em França: tinha desertado (coragem que eu não tive, não por falta de o Santos não nos ter incentivado!)...

Em 21 de Novembro de 1969, regista-se o desembarque em Bissau dos 141 militares do Esq Rec Fox 2640, que seguem depois para a C.C.S., em Santa Luzia. Alguns dias a seguir, partimos para Bafatá, na nossa primeira viagem pela Guiné. Vimos pela primeira vez uma AM Fox em Bambadinca, que veio a fazer Pum!!! não muito tempo depois (2).

Guiné > Zona Leste > Baftá> 1970 > O autor junto à Fonte Pública, Bafatá, 1918.
© Manuel Mata (2006)

Chegada a Bafatá, após um curto período de adaptação e feita a rendição do Esq Rec Fox 2350, aí está a rapaziada pronta para actuar em qualquer ponto da zona leste, visto constituirmos reserva móvel do agrupamento leste.

Caro Luís Graça, um abraço extensivo a todos os tertulianos.E venham mais ex-combatentes.

Manuel Mata
Crato - Portalegre
____________

(1) vd. post de 26 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXC: Convívio anual do Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71)

(2) Recordo-me perfeitamente desta peça de museu que lá ficou a um canto, em Bambadinca (LG)

quarta-feira, 1 de março de 2006

Guiné 63/74 - P579: A viagem do Xico Allen e da Zélia Neno em 1998


Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Ingoré > 1998 > Este foto já correu mundo... ou, pelo menos, já deu a volta à nossa caserna...De facto, foi enviada em primeira mão para a nossa tertúlia…A legenda é do Albano (Costa): “Esta foto vale pela imagem, e os brancos em África converteram-se? Não é que ficaram a ver a Zélia a puxar o burro, mulher de armas!"... O Albano fez questão me mandar esta e outras fotos da viagem do Xico e da Zélia, em 1998, com o seguinte recado: "... para ilustrares o que entenderes, com a devida autorização da Zélia" (sic).

© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)


1. Mensagem da Zélia Neno, nossa nova tertuliana, portuense, mulher do Xico Allen:

Luís:

Por falta de oportunidade ainda não agradeci a atenção com que fui recebida no blogue. Fiquei não só sensibilizada mas também contente pelos elogios e, como na verdade, sou uma "mulher do norte" (nascida e criada, assim como o Xico, nas casas que existem imediatamente a seguir à Ponte da Arrábida para quem vem de sul para norte, bem pertinho onde o nosso famoso rio Douro se encontra com o mar), vou tentar não ser um estorvo para a escrita de todos os tertulianos, porque além de ser crescidinha, também sei pelo Xico, das necessidades sexuais que todos os meninos/homens ditos normais, mandados para aquela guerra, tiveram de enfrentar, alguns já casados e com filhos, que ali tinham de se desenrascar conforme podiam nem que tivessem de partir catota na Rua da Palma nº 5 .

Por tal não se inibam, por favor, de falar dum tema que hoje mais do que nunca já não deve ser tabu para ninguém e todos os momentos e factos por ali vividos é que compõem a vossa própria História de Vida.

Obviamente que eu, Zélia, aquilo de que possa vir a escrever nada tem a ver com relatos daquela guerra, alguns minuciosamente aqui contados, mas porque ela existiu é que eu já lá fui várias vezes e logo que possível, pois é o meu sonho desde 1992 poder passar lá uns meses como voluntária em qualquer Missão no interior do país, e como por lá tenho vivido e compreendido tantas coisas, até então desconhecidas, só delas posso falar.

Há dias o nosso amigo Albano enviou algumas fotos minhas/nossas mas todas elas falam pois todas têm na minha lembrança algo a contar, o momento e situação em que foi tirada, o sentimento que naquela ocasião eu sentia e muito mais. Por exemplo, aquela dos burros foi um dia muito especial para aquele grupo que connosco foi ter, como anteriormente contei, porque aquele ia ser o dia D, pois saíramos de Bissau para ir a Jumbembem, onde eles haviam estado e dali seguiríamos para o Saltinho.

Algumas das peripécias desse dia já as contei, por email, ao "nosso fotógrafo de serviço" [o Albano Costa], e aqui e uma vez mais agradeço a sua disponibilidade em as enviar.

Quanto ao Xico, ele ainda nada escreveu para o blogue porque anda ocupadíssimo com os preparativos da próxima viagem [, em Abril de 2006], pois para além de o jeep, comprado propositadamente para este fim, requerer uma preparação especial e rigorosa (para não ficar pelo caminho), tem todos os bastidores que uma Expedição de Solidariedade requer, desde a angariação de materiais, especialmente escolar e médico, a alguns pequenos patrocínios, pois este tipo de viagem tem muitos gastos e não sendo isto um rally, o nome dessas empresas ao ir mencionado no veículo fica a ser conhecido do Porto a Bissau.

Talvez, senão antes, o Xico após esta nova jornada, muito mais vai ter que contar, assim como o tertuliano coronel Marques Lopes que ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente, já que factos importantes e previstos se irão passar por terras da Guiné.

Parabéns a todos e continuem. Luís, obrigada e até um qualquer dia.

2. Nova mensagem da Zélia:

Luís

Ao ver agora a imediata resposta que deste ao meu email e como dizes ir lançar as fotos no blogue, vou tentar documentá-las minimamente, pois quem as vir não sabe nem onde nem as circunstâncias de cada momento. A foto dos burros vai como Anexo, pois há dias mandei ao Albano e evito escrever a mesma coisa. Que me lembre, além dessa ele enviou outras [que passo a comentar a seguir].

(...) Aproveito para enviar um beijinho para tua esposa que sendo uma "mulher do norte" é minha conterrânea e tem que ser "especial", porque ter maridos como os nossos que não passam um dia sem falar de ou com alguém da Guiné, mesmo eu gostando tanto dela, às vezes torna-se complicado (...). Zélia



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 1998 > "Luís, esta é, julgo eu, da tua zona, Contuboel... Esta foto é tirada no centro da picada que vai para Bafatá... Esta picada é um autêntica autoestrada, dá para circular a 120 km, mas à vontade" (Albano Costa). © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá> Bambadinca > 1998 >"Eu rodeada pelo capim quando observava uma queimada, na estrada entre Mansoa e Bambadinca" (Zélia). © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu >S. Vicente > 1998 > Travessia do rio Cacheu (1) © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu >S. Vicente > 1998 > Travessia do rio Cacheu (2)© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 1998 > A famosa Fonte de Empada... " O calor era tanto que o melhor naquele momento foi despejar várias bacias de água pela cabeça abaixo somente para refrescar e tirar a maioria do pó apanhado ao atravessar as muitas picadas para ali chegar. Fomos ali pois era àquela fonte que o Xico ia fazer o carregamento de água e assim nos deparamos com as mulheres a lavar a roupa após o que tomavam banho. Na foto eu estava nas escada a filmar enquanto meu marido tirava fotos" (Zélia)... "A Zélia é mesmo assim e lá foi tomar o seu banho" (Albano Costa). © Francisco Allen & Zélia Neno (2006).

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada, Canchuma> 1998 > "Fazendo a cama...Foi em Canchuma, onde como hóspedes especiais, dormimos na única cama de madeira existente por aquelas bandas. A cama nem era má, os lençóis eram meus pois mulher prevenida vale por duas, e se não fosse a brincadeira dos cabritinhos a correr toda a noite ao redor da casa que era construída sobre uma plataforma ou coisa do género, até teria sido uma noite repousante devido ao cansaço" (Zélia)... "No hotel de Empada o seu director (chefe de tabanca) ofereceu-lhes a sua suíte, só na Guiné" (Albano Costa). © Francisco Allen & Zélia Neno (2006).

Região de Quínara > Empada, Canchuma> 1998 > "Eu em camisa de dormir, quando acordei após a dita noite, saindo da Casa de Banho, que era algo de inédito até então. No interior daquele cercado, montado com algumas placas de chapa, pedaços de madeira, ramos de palmeira e a porta era um pano que movíamos para entrar e sair, o chão era em cimento com um leve declive para a água correr para a terra ao tomar banho a qual nos ia sendo entregue pelas gentis mulheres daquela família, que a retiravam de um poço e a iam passando dentro das meias cabaceiras, utensílio com várias utilidades por terras de África. No centro daquele espaço, no chão, existia uma abertura circular com cerca de 20 centímetros, tapado com um pedaço de lousa amovível e cuja função era a de sanita. Giro, não? Isto é África, não é especial da Guiné pelo que sei, assim como sei que nem toda a gente acharia graça a meter-se nestas andanças, mas estas experiências fascinam-me e fazem-me sentir muito feliz e só convivendo com culturas, hábitos e costumes de gentes tão iguais e tão diferentes, é que vamos evoluindo um pouco na nossa curta existência - é isto que penso" (Zélia) ... "A Zélia admirando o espaço à sua volta" (Albano Costa). 

© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 1998 > "Eu e Xico numa tabanca entre Empada e Binhar, rodeados pelo velho Mamadú e família, homem este por quem o Xico sentia muita admiração e respeito, graças ao qual ele não passou muitas vezes fome pois ele sempre o safava , como dizemos, pela porta do cavalo

A nossa primeira visita ao Mamadú foi em 1994, o que quase o endoideceu de alegria quando viu o Xico pois reconheceu-o de imediato e a mim era como se sempre me conhecera. Foi tamanha a sua euforia, e sabendo nós que na Guiné a riqueza dos homens vê-se pelas cabeças de gado que possuem e que somente matam para consumo próprio em ocasiões muito especiais, que ele queria insistentemente que nós trouxéssemos um cabrito para comer no hotel em Bissau, o que era impossível. Voltamos lá em 1998 e esta foto foi a última que tirámos com aquele homem grande, pois faleceu algum tempo depois. Os seus gritos e risadas de alegria ainda hoje se mantêm gravados na minha memória auditiva" (Zélia)... "A alegria estampada no rosto de toda a gente, assim como no Xico e Zélia" (Albano Costa).
© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné 63/74 - P578: A história do Cancioneiro de Canjadude (José Martins)

Guiné > Canjadude > O gato preto José Martins (em 1968 ou 1969)
© José Martins (2006)


Texto do José Martins (ex-furriel miliciano de transmissões da CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70), com a seguinte nota: 

" Aqui vai mais um modesto contributo acerca do Cancioneiro de Canjadude. Em breve espero pôr NO AR a versão áudio.

Um abraço".


No blogue, com a data de 28 de Fevereiro de 2006, encontram-se composições que foram elaboradas a partir de músicas em voga nos finais da década de sessenta do pretérito século XX, e que tiveram como nome genérico o título acima.

Das seis apresentadas, não sei se existem mais e que ainda estão para ser divulgadas, todas elas têm uma estória subjacente, a saber:

HINO DOS GATOS PRETOS

A CCAÇ 5, com sede, comando e um grupo de combate em NOVA LAMEGO, tinha à sua responsabilidade os destacamentos de CANJADUDE, CHECHE e CABUCA

Em Agosto de 1968 o comando foi transferido para Canjadude, tendo sido reforçado pela CART 2338.

Em 6 de Fevereiro de 1969 com a retirada das tropas de Madina do Boé, o seu grupo de combate instalado no Cheche, veio para Canjadude, onde se lhe reuniu o grupo de combate estacionado em Cabuca e rendido por uma companhia metropolitana.

A CART 2338 retirou-se para Nova Lamego em Março de 1969.

Ficaram, assim, os Gatos Pretos com o destacamento mais avançado desde “o Gabú (Nova Lamego) ao Boé…”.

Esta foi a base que serviu de mote ao HINO, acrescentando que na versão original o refrão começa DESDE QUE ESTAMOS TODOS JUNTOS …

BINÓCULOS DE GUERRA
Canção muito em voga na metrópole a que bastou um pouco de imaginação para se transformar e que a rádio da Guiné também passava com frequência

Esta é contemporânea do HINO.

Guiné > Gabu (Nova Lamego) > Canjadude > 1973 > CCAÇ 5 (Gatos Pretos) >

Interior do Clube de Oficiais e Sargentos de Canjadude (o furriel miliciano Carvalho é o 2º a contar da direita... No mural, na pintura na parede, pode ler-se: [gato] preto agarra à mão grrr.... Percebe-se que estamos no Rio Corubal com o campo fortificado de Cheche do lado de cá (margem direita) e... a mítica Madina do Boé, do lado de lá (margem esquerda)... Em 24 de Setembro de 1973, em Madina do Boé, o PAIGC proclama a independência da nova República da Guiné-Bissau.

© João Carvalho (2005)


HINO DA VELHICE

Nasceu duma frase muito usada pelo Furriel Miliciano Carvalho, que sistematicamente gritava

EU NÃO ESTOU MALUCO!
TIREM-ME DAQUI1

Da frase ao HINO DA VELHICE, foi apenas escrever a letra adaptada ao Puppet on the string.

BALADA DE CANJADUDE

Nasceu depois de realizada a Operação LUTA realizada em 16 e 17 de Maio de 1969. Esta operação, em que participei, tinha por missão detectar e neutralizar as forças IN que se encontravam a norte do Rio Corubal, onde seria largada uma vaga de paraquedistas heli-transportados.

A guarnição do destacamento ficou a cargo de uma companhia de periquitos, dado que a CCAÇ 5 se devia apresentar com a máxima força.

Trocadas as voltas, o quartel foi atacado, os piras baptizados, e o resultado estava à vista quando regressamos.

O tuga sabe transformar e dar a volta por cima e ainda não esqueceu que, muito atrás no tempo, as notícias também corriam mundo em forma de canção e/ou poema.

FADO DA EMBOSCADA
Este fado, com música do Embouçado, faz referência à Operação LACOSTE, que foi uma patrulha de combate ocorrida em 27 e 28 de Junho de 1969, que tendo partido de Canjadude passou por Sare Andebe, Ponto Cota 70, BURMELEU, Samba Gano e regresso a Canjadude.

Houve contacto com o IN no final do dia 27, quando a patrulha se preparava montar a emboscada, foi detectado, na zona de Burmeleu, um grupo que nos atacou e ao qual foi iniciada a perseguição. No terreno ficaram armas e munições. Após o recontro retiramos para o Ponto Cota 70, que nos garantia protecção nocturna.

Durante a noite assistimos à passagem de guerrilheiros, que no dia seguinte, ao voltar a passar pela zona de BURMELEU, tínhamos “festa rija” á nossa espera.

GATO PIRA

Esta canção não fazia parte das minhas lembranças, até que a vi publicada no numero 7 do jornal GATO PRETO, editado em Abril de 1972, e que faz parte de uma colecção de 16 (?) números, que se encontram depositados na biblioteca do Estado Maior do Exército.

OUTROS SÍMBOLOS

A CCAÇ 5 tinha outros símbolos criados em 1968/69, [no meu tempo]:

- O Guião, que inicialmente não tinha a inscrição GATOS PRETOS;

- O ex-libris que, igual ao guião, era usado sobre o bolso esquerdo da camisa ou
dólmen;

- Guiões triangulares, de cores várias, para cada um grupo de combate e para o comando e serviços;

- O lenço preto, tipo cachecol, usado por debaixo do colarinho da camisa

- Cinzeiro, quase plano, de cor vermelha com um gato preto

terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P577: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões > 1970 > Luta balanta, presenciada por militares destacados para protecção do reordenamento (à esquerda, o furriel miliciano Henriques, da CCAÇ 12, de calções, tronco nu e óculos escuros, o autor destas linhas)
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).
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Excertos do Diário de um Tuga (L.G.):

Nhabijões, 20 de Dezembro de 1969

Nhabijões: um conjunto de tabancas, ao longo do Rio Geba, habitadas por balantas (uma delas por mandingas), sob duplo controlo (a expressão é das NT) e agora em fase de reordenamento (outro eufemismo: para mim, trata-se de puro etnocídio sociocultural, o que se está aqui a fazer, obrigando os pobres dos balantas e mandingas de Nhabijões a transferir-se da beira rio para uma zona de planalto, sobranceira ao Geba, e a viver em casas desenhadas e construídas por europeus)...

Há sempre um rosto (humano) por detrás da máscara mais impassível. Desespero, porém, de encontrá-lo nestes velhos e velhas, de sexo aliás indefinido, que carregam com todo o peso do tempo, e em que os próprios olhos perderam o seu brilho (humano).

Olhos de múmias que já não nos olham nem nos espiam. Fixam-nos, muito simplesmente. Se porventura existisse a eternidade, deveria ser este o olhar dos condenados (eternos). Já não são testemunhas de nada (mesmo mudas) porque a sua consciência individual se petrificou no tempo.

Nada têm de patético estes seres que já não são humanos. A única coisa que me inspiram é talvez um sentimento de abjecção. E, no entanto, eu deveria sentir uma profunda revolta pelas estruturas que criam esta inumanidade.

Os balantas foram, segundo o testemunho insuspeito dos meus soldados (fulas), as maiores vítimas da repressão colonial nesta década. Seis anos depois (é difícil confiar na memória dos africanos que não usam calendário, mas isto ter-se-á passado em 1963, depois do início oficial da guerra), Samba Silate (1) (cuja população terá sido parcialmente massacrada pela tropa ou pela polícia administrativa de Bambadinca, não posso precisar) e Poidon (2) (regada a napalm pela força aérea) ainda despertam aqui trágicas recordações: evocam o tempo em que todo o balanta era suspeito aos olhos das autoridades militares e administrativas, presumivelmente coadjuvadas pela PIDE (Tenho dificuldade em explicar aos meus soldados, que não falavam português quando os conheci em Contuboel, o que é isso, o que é essa sinistra polícia…).

Há uns anos atrás, nos anos do terror, ser encontrado fora da sua tabanca ou do seu perímetro, de catana na mão ou faca de mato à cintura - que é ronco ou adorno para um balanta que se preze - , eis um belo pretexto para um balanta ser preso, levado para o posto administrativo de Bambadinca, sumarianente interrogado e às vezes, hélàs!, mais sumariamente ainda liquidado.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Ponta Brandão > 1970 > Dois velhos balantas.
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).

A justificação era simples, segundo os meus nharros: "um balanta a menos, era um turra era menos" (sic)… Admito que haja aqui alguma dose de fanfarronice e de exagero, por parte dos fulas, históricos inimigos e vizinhos dos balantas… Mas não há fumo sem fogo: estas histórias parecem-me ter consistência…
Donde esta hostilidade passiva que julgo poder ler nos olhos e nas atitudes da população de Nhabijões que alimenta a guerrilha, em homens e mantimentos, provavelmente mais por razões de parentesco do que por simpatia para com o PAIGC: ao avistarem-me, fardado, na sua tabanca – a mim, tuga, representante da tropa ocupante - os mais velhos baixam a cabeça ou viram-me as costas como se sentissem acabrunhados com a minha presença… Quem se sente mal, sou eu, que venho invadir-lhes a sua privacidade e perturbar os seus irãs

Devia ser esta, aliás, a atitude com que caminhavam para a morte: sem medo mas também sem revolta, com uma estranha dignidade ancestral, a pá e a pica em cada uma das mãos. Sim, por que o método era tão requintado como o dos nazis, a crer na descrição que me fazem alguns dos meus informadores, os mais velhos, como o Abibo, por exemplo – o Abibo, o bom gigante do Abibo, que sofre de epilepsia e tem elefantíase no escroto…
Ou até senão mais: a própria vítima abria a estreita vala onde devia caber o seu próprio corpo, três palmos abaixo da superfície, e onde ficava deitado… à espera que o carrasco da polícia administrativa (sempre os africanos para as tarefas sujas…) se dignasse dar-lhe o passaporte para a eternidade: um tiro de pistola, uma lata de gasolina, um fósforo…
Ter-se-á passado assim ? Um frémito de horror passa-me pela espinha acima. Recuso-me a aceitar que isto se tenha passado debaixo da bandeira verde-rubra da minha pátria, com a cumplicidade ou até o envolvimento (activo ou passivo) das tropas portuguesas ou dos representantes das autoridades portuguesas… Faço, ao menos, votos para que estes crimes sejam apenas imputados à odiosa PIDE… Enfim, nunca o saberei… Ou melhor, poderei perguntar-lhes onde era o sítio... O Adibo e outros falam-me do antigo cemitério de Bambadinca, um sinistro local de outrora onde hoje as alfaces crescem, viçosas…
Mas os tempos são outros, dizem-me com uma certa nostalgia os veteranos da guerra do norte de Angola - ah!, esses tempos em que os cavaleiros do terror branco faziam verdadeiros safaris nos muceques de Luanda, e em que se abatia a tiro em plena rua o cão negro (sic) que dirigisse um simples olhar insolente a uma mulher branca, como ouvi a alguns sargentos racistas, com uísque a mais no bucho, nos poucos dias que passei em Bissau, à nossa chegada ).
Recuperação psicológica e promoção sócio-económica das populações – a chamada acção psicossocial: eis agora a palavra de ordem, sob o consulado de Herr Spínola… É isso: agora faz-se psico (psícola, como dizem os nossos soldados): o major aperta, com visível repugnância, as mãos das múmias; o médico observa, enfastiado, uns tantos casos constantes do catálogo das doenças tropicais; um outro miliciano distribui cigarros Marlboro; e o cabo da CCS anda a ver se come a bajuda de mama firme

Admitem-se abertamente, na linguagem fetichista dos spinolistas, os erros do passado da nossa administração que não terá tido na devida conta as susceptibilidades, as idiossincracias e até os direitos das populações guineenses, mas omite-se, talvez por uma questão de má-consciência, os crimes praticados pelas NT, no passado recente e no passdo mais remoto, pelos nossos métodos particulares de pacificação
Sim, quem é – dos militares do quadro e dos milicianos de hoje – que sabe dessa história das guerras da pacificação da Guiné, do Teixeira Pinto, do Adbul Injai (3), etc. ? …
E no entanto, hoje, as NT sabem que podem ser responsabilizadas, disciplinar e criminalmente (por ironia, à face das leis de um país que assinou as convenções de Genebra, mas que considera os nacionalistas africanos como simples terroristas, bandidos, bandoleiros, turras…) por eventuais actos de violência física cometidos contra prisioneiros e população civil… O etnocídio dos reordenamentos, esse, não tem enquadramento jurídico...

Não se trata obviamente, em meu entender, de uma tentativa de redenção do colonialismo (que, de resto, não existiria, desde 1951, ano em que as nossas colónias passaram a chamar-se províncias ultramarinas…) mas de uma táctica defensiva, como o denunciou o secretário-geral do PAIGC, referindo-se a estas novas directivas do comando-chefe e governador-geral da Guiné, António de Spínola, que visam dissociar o binómio guerrilha-população…

Mas, fazendo deslocar a guerra do TO (teatro de operações) para a ACAP (repartição de acção psicológica), Herr Spínola admite implicitamente que a vitória já não pode ser ganha pelas armas… O que não deixa de ser irónico: retratando-se das suas anteriores posições militaristas, constata afinal o impasse a que tem nos conduzido o militaristismo e acaba por justificar, involuntariamente, a propaganda do IN.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Parada do aquartelamento e centro do posto administrativo. O Humberto Reis posando frente aos memoriais dos vários batalhões e companhias que por ali passaram. Atrás, o edifício da escola local onde leccionava e vivia uma professora branca, portuguesa, a única que wu conheci na em toda a região...
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).

Simplesmente não será através da via de desenvolvimento colonialista ou neocolonista (isto é, da nossa via) que iremos conseguir a paz. É que os nacionalistas da Guiné e Cabo Verde lutam, antes de mais, pelo poder político, pela independência da sua terra, condição sine qua non dum futuro desenvolvimento, integral e autónomo, destes dois territórios, intimamente ligados pela história… Eis por que Herr Spínola nunca poderá “falar a linguagem do IN em matéria de reivindicações” (sic), por muito maquiavélico que ele seja…

Está-se agora proceder ao reagrupamento e reordenamento das tabancas de Nhabijões, ditas sob duplo controlo. Mas esse plano (longinquamente inspirado nos campos de concentração nazis e, mais proximamente, nas aldeias estratégicas que os americanos conceberam para o Vietname) obedece mais a razões psicológicas e sociais (aculturação ou assimilação através da construção de raiz de casas de adobe e rachas de cibe, com cobertura de zinco, portas e janelas à portuguesa, e arruamentos feitos a régua e esquadro) e estratégicas (controlo populacional, demarcação de zonas livres a partilharia e a força aérea, corte do cordão umbilical com a guerrilha) do que a um deliberado plano de promoção social dos guineenses, se bem que esteja prevista uma certa cobertura escolar e sanitária das populações reordenadas…. Com o recurso a pessoal de educação e de saúde, recrutados entre os próprios militares!!!... Contam-se pelos dedos da mão os civis, brancos, missionários, comerciantes, professores, médicos ou enfermeiros, que existem nesta região, de Bambadinca, parte integrante do concelho de Bafatá… Eu apenas conheço três: dois comerciantes e uma professora …

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões > 1971 > O estado em que ficou o burrinho, depois de accionar uma mina anticarro à saída do reordenamento, em 21 de Janeiro de 1971 (4).
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).
A acção psicossocial que vejo anunciada e praticada é essencialmente fetichista. Isto é: exorcisa os fantasmas da nossa má consciência civilizacional, cristã e ocidental… Estou a ser mauzinho ? Depois dos navios negreiros, do chicote esclavagista, das concentrações de artilharia e dos bombardeamentos de napalm, ainda há luvas de veludo, as de Herr Spínola, para apertar as mãos das múmias ou distribuir sorros, cigarros e pastilhas…

Não, decididamente perdemos inclusive o direito à autocrítica, ao revelarmos pela última vez o nosso pobre rosto de espantalhos da história. O processo do colonialismo está feito. Salazar sempre o recusou. O seu sucessor deve sabê-lo mas recusa-se a admiti-lo. Mas para Spínola trata-se ainda (e sobretudo) de ganhar tempo. Talvez para negociar uma paz honrosa… Irá a tempo ?
Luis Graça
(ex-furriel miliciano Henriques, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71, também conhecido por Camarada Sov)
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(1) Samba Silate: A sudoeste de Nhabijões, junto ao Rio Geba. Vd. mapa de Bambadinca.
(2) Poidon > Na confluência dos Rios Corubal e Geba: vd. mapa do Xime
(3) Vd. post de 15 de Fevereirod e 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

" (...) Percebi que uma Guiné idílica e pacífica, de negros portuguesismos, nunca existira… Todo o território ao longo dos séculos foi palco de imensas guerras, sangrentas repressões e alguns desastres das nossas tropas. Perante o meu espanto, indicaram-me, em Fá, o local onde no tempo dos avós, dos avós deles, havia sido aprisionado o Governador, que teve de pagar resgate aos beafadas (1). E em Missirá levaram-me a conhecer o campo onde as forças portuguesas e seus ajudantes estiveram longo tempo entrincheirados, preparando a conquista de Madina/Belel, na luta contra o grande guerreiro Unfali Soncó, no princípio do século XX (2).

"Foram também os velhos que me falaram de Abdul Injai, régulo do Cuor e do Oio, companheiro de Teixeira Pinto, herói tão amado quanto odiado, caído em desgraça no fim da vida, e degredado para Cabo Verde (...)".

Vd. ainda o seguinte sítio na Net:

Wilson Trajano Filho > Pequenos mas honrados: um jeito português de ser na Metrópole e nas Colónias > Brasília: Universidade de Brasília. 2003

(4) Vd. post de 23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)
" (...) O dia 13 [de Janeiro de 1971] seria uma data fatídica para as NT, e em especial para a CCAÇ 12 cujos quadros metropolitanos estavam prestes a terminar a sua comissão de serviço em terras da Guiné. Eis o filme dos acontecimentos: (...)"