domingo, 14 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P751: Do Porto a Bissau (15): Diário de bordo e avisos à navegação (A. Marques Lopes)





Viagem Porto-Bissau > Abril de 2006 > Percalços no deserto. Créditos fotográficos:

© A. Marques Lopes (2006)


Texto do nosso amigo e veterano desta tertúlia, o A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)...

Caros camaradas e amigos:

Já lá vão quinze dias após o regresso. Vários problemas que houve a resolver. Só agora deu para começar a falar.

Não vos vou fazer o relato pormenorizado desta nossa viagem por terra até à Guiné-Bissau (Rali Porto-Bissau...) (1). Vou, apenas, realçar alguns aspectos que, em minha opinião, podem ser úteis e alertas para futuros andantes nestas aventuras.

MARROCOS:

5 de Abril [de 2006]


Em Tânger, já de noite, o inspector da alfândega Abderalak El Moussadek, com os seus ares e ademanes esquisitos, reteve o jipe por causa do material médico que continha (cerca de 200 quilos de soro fisiológico e seringas), alegando falta de guia e incumprimento das normas nacionais marroquinas, e dizendo que, pelas mesmas razões, já tinha sido detida uma viatura portuguesa na véspera...

Grande chatice (no barco que faz a travessia de Tarifa para Tânger, o Allen já tinha sido obrigado por um polícia a apagar uma fotografia, pois é proibido tirar fotografias no barco...); mas deu para uma conversa amigável com o sargento dos guardas, Mohamed Farak, que tem duas mulheres e sete filhos, com 30 anos de serviço e prestes a reformar-se (a reforma é aos 50 anos) com dirhams equivalentes a 300 € e, por isso, muito interessado em saber as condições de reforma dos militares portugueses; dorminos no Hotel Ibis (El Jadida, Place Nour El Kamar, Route de Casablanca), que se recomenda, tem perto o Café Oasis, aberto toda a noite (mas, cerveja só no hotel...).

6 de Abril

Eu, o Allen e a Inês voltámos à alfândega logo de manhã para ver da situação. Ainda pensámos que o amigo sargento Farak tivesse feito alguma coisa a nosso favor. Mas não, o inspector, só visto ao longe, agora, tinha dado ordem para o material médico não sair sem guia. Os muitos cadernos e canetas, bem como as centenas de chupa-chupas e dezenas de camisas que tínhamos não interessaram... Palpitou-nos, a mim e ao Allen, que a razão era o receio de entregarmos o material médico à Frente Polisário. Pusemo-nos a andar e lá ficaram os 200 quilos de soro fisiológico e as seringas.

7 de Abril

Dormimos em El Quatia, praia perto de Tan-Tan, já pero do Sahra Ocidental, na Villa Ocean, uma pequena pousada de um casal francês, ele ex-militar. Também a recomendo. Depois do jantar, eu fui dar uma volta (meu hábito) e encontrei um marroquino que me perguntou se tínhamos vinho e se lhe dávamos um copo. Fui buscar um copo de vinho e dei-lhe (no dia seguinte trouxe-me o copo lavadinho).

A seguir entrei numa escola infantil, porque a vi aberta, com luzes e gente lá dentro. Espanto deles e o director dirigiu-se a mim e perguntou-me o que queria. Disse-lhe que só queria visitar. Depois de eu falar, diz-me ele:
- Você bebeu vinho!.

Perguntei-lhe como é que ele sabia. Disse-me que o cheiro conhecia (o bafo deu-lhe...). Não me digam que ele vai bufar a alguma autoridade religiosa... Lá lhe fui dizendo que as religiões na minha terra não proibiam as bebidas alcoólicas, cada um podia ter a religião que quizesse, que eu até nem tinha nenhuma, etc, etc... Mas, depois desta conversa, achei por bem desistir da visita à escola e fui-me embora.

SAHARA OCIDENTAL

8 de Abril


Saímos de El Quatia em direcção ao Sahara e, 20 km depois tivemos um controlo policial. Cinco minutos depois, fui eu controlado pessoalmente. É que o Allen tinha dado antes uma lista com os passageiros e respectivas profissões, tendo colocado que eu era militar. Que estivessem descansados, que estava reformado e não tinha já nada a ver com a actividade militar... Lá os consegui convencer e seguimos para Tarfaya.

No caminho para lá, o turbulento fotógrafo Hugo pediu ao Allen para sair do asfalto para colher uma imagem. Assim foi feito e... o jipe enterrou-se na areia, rodou, rodou, mas nada. Lá ficou. Valeu-nos a juda de uns marroquinos que passaram num camião. Com uma corda que tinham e força de braços lá conseguimos voltar ao asfalto.

Às 11h20 entrámos no Sahra Ocidental, por Tah. Às 12h10 tivémos um controlo policial. Cinco minutos depois, antes de entrarmos em Layoune, capital do Sahara, novamente controlados, desta vez com militares também. Há, aliás, um quartel à entrada desta cidade, que, verificámos depois, está altamente militarizada, com vários quartéis e muita tropa pelas ruas, embora não armada. Sinal da situação são também as dezenas de jipes junto à delegação da ONU. Depois de Layoune, há uma grande cimenteira, em El Marsa, com uma grande cintura de segurança à volta e várias guaritas de vigia.

Almoçámos conservas no meio do deserto, ao sol, e surgiu um jipe da polícia pelo que tivemos de beber o vinho à pressa e guardar as garrafas. Seguimos e, às 14h45 tivemos novo controlo da polícia, com um camião de soldados por perto. Às 15h15 novamente controlados.

Entrámos, de seguida, em Boujdour, que verificámos ser igualmente uma cidade muito militarizada, também com muitos soldados na rua. Boujdour tem uma extensa praia, o que leva a estranhar que seja aqui o cabo Bojador dos portugueses (o nome foi afrancesado), mas tem um grande farol. E há razão para isso, embora não haja penhasco algum, nem na praia nem no mar: os vários navios que se vêem encalhados testemunham as marés e correntes contrárias que se cruzam naquela zona, a dor que os marinheiros portugueses tinham de passar.

À saída de Boujdour há um grande quartel e fomos controlados por perto. Seguimos e fomos novamente controlados às 16h20, e mais outra vez às 16h30. Houve outro controlo policial às 17h30, e mais outro às 18h45.

Dormimos em Rokchip, no Hotel Oasis (fácil de encontrar, pois é uma localidade muito pequena), com chuveiros e casas de banho comuns, mas já vi pior. Travei aí conhecimento com três marroquinos imigrados em Itália e que vinham com duas brutas máquinas, um BMW e um Mercedes do último modelo. Falámos lindamente em italiano e...
- Temos de fazer pela vida!, disseram-me. Os carros eram roubados e eram para vender na Mauritânia. Pediram-me para os acordar às 7 da manhã (eu era, aliás, o despertador de todo o nosso grupo), pois tinham pressa para serem os primeiros na fronteira.

MAURITÂNIA

9 de Abril

Antes de pertirmos, um dos guias do deserto pediu-nos, a mim e ao Allen, para lhe arranjarmos uma garrafa de vinho e lha darmos, depois, na terra de ninguém, cerca de um quilómetro pedregoso e sem qualquer controlo entre a fronteira do Sahara e a fronteira da Mauritânia.

Às 08h48 chegámos a Gargarate, a fronteira do Sahara, mas já estava uma longa bicha de carros. Nos primeiros lugares da frente lá estavam os tais marroquinos italianos. Durante a espera vi muitos tuaregues, claramente aborrecidos, assentados no chão, à espera que os funcionários marroquinos os atendessem. Decidi fazer uma provocação a um deles. Perguntei-lhe se era marroquino. Olhou-me duramente e com ar ofendido:
- Marroquino no!! Esta es mi tierra!- respondeu-me em perfeito castelhano. E lá me explicou que a terra dele tinha sido uma colónia espanhola e que os marroquinos a tinham ocupado após os espanhóis saírem.

Esperámos algum tempo, mas, após várias conversas minhas e do Allen com os funcionários alfandegários, e após o Allen lhes ter dado várias camisas, canetas e chupa-chupas lá passámos à frente da bicha. Os italianos olharam para nós desconsolados. O tuaregue perguntou-me:
- Te marchas ya?- Disse-lhe que sim e ele pôs a cabeça de lado e abriu os braços como quem diz: - Blanco, claro.

Antes de sair a fronteira fomos controlados por militares. Depois da terra de ninguém , entrámos na Mauritânia, depois de três controlos, um na alfândega, um policial e um militar. Depois, fiquei a saber, junto de uns tratadores, que podia comprar um camelo por 2 €.

Até Nouakchott fomos controlados às 15h35 pelos militares mauritanos, às 16h20 pela guardas alfandegários e às 16h35 pela polícia. Chegámos a Nouakchott, capital da Mauritânia (e, se não única, quase única cidade deste país deserto). É uma cidade que se caracteriza pelos montes de lixo acumulado nas ruas e nos passeios, com um trânsito caótico, sem regras, com os ministérios, os organismos oficiais e a estação de rádio guardados por militares.

Falei com um mauritano (sei o nome dele mas não ponho aqui, por razões óbvias) sobre isto, sobre um país com uma cidade, com escassos centros populacionais, muito deserto, e um governo que parece não tratar de nada, não cuidar do bem da população:
- Oh, le gouvernement!... Il mange, il mange, seulement! (que é como quem diz: eles comem tudo e não deixam nada).
- E vocês não fazem nada?
- É que - disse-me ele - há poucos brancos, alguns árabes e a esmagadora maioria são pretos, como eu, mas o problema é que estão divididos em vários partidos políticos que não se entendem, é difícil.

Dormimos no Hotel El Amane (Av Gamal Abdel Nasser, 26), um sítio muito agradável, com uma recepcionista muito simpática, destoando de todo o ambiente degradante da cidade.

10 Abril

Metemos-nos ao caminho e tivemos às 09h00 o primeiro controlo policial do dia, seguido, às 09h15 de um controlo militar. Às 10h20 tivemos outro em Tiguent e, às 10h52 e 11h20, mais dois controlos policiais. Á entrada de Rosso dois controlos policiais imediatamente seguidos: um às 11h30 e outro às 11h35.

Metemo-nos, de seguida, por uma picada de 90 quilómetros até chegarmos à fronteira (lado da Mauritânia), onde chegámos às 14h00, demos 5€ ao guarda da alfândega, o Mohamud (disse que era solteiro e perguntou ao Allen quanto é que queria pela Inês...), mas só saímos de lá às 14h55.

Desde esta hora até às 16h10 estivemos empatados com os vários guardas da fronteira do Senegal, polícias, alfandegários, militares, e até nos obrigaram a fazer um seguro para o carro. Aqui, com os senegaleses, foi só largar dinheiro. No final, um major queria meter um polícia no jipe para ir connosco até à Guiné-Bissau. Chamei-o à parte, mostrei-lhe o meu cartão militar:
- Ouve lá, nós somos colegas! Não confias em mim? Pega lá 50 € e deixa-nos andar.

E lá andámos, sem polícia pendura. Fomos controlados pela polícia às 16h30 e chegámos a Saint Louis às 16h40. Dormimos no Hotel Cab St. Louis. Muito agradável, e pudémos aí comprar CFAs. Fica perto da margem direita do rio Senegal e está pegado, do outro lado, a uma praia oceânica.

SENEGAL

11 Abril

Partimos para Tambakounda e fomos controlados às 12h00 e 12h15 pela polícia. Chegámos a Tambakounda depois de almoço (de conservas, no caminho). Ficámos no Hotel Oasis. Houve quem fosse à piscina. Não é mau. A empregada do bar é solteira mas diz que não quer saber de homens.

12 Abril

Saímos às 07h10 a caminho da Guiné-Bissau. Às 10h15 passámos a fronteira do lado do Senegal sem qualquer problema. À entrada da Guiné já não estavam para chatear. Também há uma terra de ninguém. A entrada na Guiné foi uma festa.
- Até que enfim oiço falar português - disse-lhes eu.

E um guarda até era sportinguista!

Recomendações ou dicas para quem se aventurar por estes caminhos:

(i) Quem se aventurar nestes caminhos conte em levar bastante dinheiro para distribuir pelas várias fronteiras (nós gastámos cerca de 500€, pagos pelos patrocínios conseguidos); levem camisas, caramelos e canetas também para distribuir, em certas situações os guardas contentam-se com isso;

(ii) Quem se aventurar nestes caminhos tenha uma conversa prévia com o Francisco Allen, o globtrotter destas viagens, batido em todos os esquemas necessários para ultrapassar as chatices destes espíritos africanos.

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Nota de L.G.

(1) Vd post de 20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXIII: O Rali Porto-Bissau (1): Jantar em Moreira de Cónegos

Guiné 63/74 - P750: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

Guiné > Mansoa > BCAÇ 1912 (1967/68) > O capelão, Mário de Oliveira, alferes miliciano, entre soldados. Viria a receber ordem de expulsão da Guiné em 8 de Março de 1968.

Foto: © Padre Mário da Lixa (2003) (com a devida vénia...)

Já aqui falámos de vários capelães militares: por exemplo, do Padre Libório, que passou por Nova Lamego e Canjadude, no tempo do José Martins (1); do major capelão Nazário, que o A. Marques Lopes conheceu, em Lisboa e em Geba (2); do Padre Poím, que era amigo do David Guimarães (3)... Também já aqui evocámos a curta e dramática experiência de capelão militar do Padre Mário de Oliveira, mais conhecido por Padre Mário da Lixa (4). Este último foi, dos poucos (onde se inclui o açoriano Poím) que entrou em rota de colisão com a dupla hierarquia da Cruz e da Espada...
Da sua página pessoal retirámos alguns apontamentos autobiográficos que nos ajudam a entender melhor a o seu percurso como homem, cidadão e padre bem como a sua curta passagem pela Guiné. Espero que o Mário (que eu conhei, pela primeira vez, no dia do meu casamento civil, em Candoz, Paredes de Viadores, no dia 7 de Agosto de 1976) me perdoe este abuso e que venha a aceitar o meu convite para integrar esta tertúlia de amigos e camaradas da Guiné:

(i) Nascido em 1937, na freguesia de Lourosa, concelho de Santa Maria da Feira, numa família da classe trabalhadora, entrou no seminário em 1950;

(ii) Em 1962, foi ordenado padre, na Sé Catedral do Porto, pelo bispo D. Florentino de Andrade e Silva, Administrador Apostólico da Diocese, que subsitui o Bispo D. António Ferreira Gomes (1906-1989), exilado por ordem de Salazar em 1959...

(iii) A partir de 1963 foi professor de religião e moral em dois liceus do Porto;

(iv) Em Agosto de 1967 "foi abruptamente interrompido nesta sua missão pastoral pelo Administrador Apostólico da Diocese, por suspeita de estar a dar cobertura a actividades consideradas subversivas dos estudantes (concretamente, por favorecer o movimento associativo, coisa proibida pelo regime político de então)"... Nomeado capelão militar, "sem qualquer consulta prévia, pelo mesmo Administrador Apostólico", viu-se compelido a frequentar, durante cinco semanas seguidas, um curso intensivo de formação militar, na Academia Militar, em Lisboa;
(v) Em Novembro de 1967, desembarca na Guiné-Bissau, na qualidade de alferes capelão do Exército português, integrado no Batalhão 1912, com sede em Mansoa;

(vi) "Março 1968: foi expulso de capelão militar, por ter ousado pregar, nas Missas, o direito dos povos colonizados à autonomia e independência, e regressou à sua Diocese, rotulado pelo Bispo castrense de então, D. António dos Reis Rodrigues, como padre irrecuperável " (2).

(vii) Em Abril de 1968, foi nomeado pároco da freguesia de Paredes de Viadores (Marco de Canaveses);

(viii) Em Junho de 1969 é exonerado da paróquia de Paredes de Viadores pelo mesmo Administrador Apostólico da Diocese do Porto, que o havia nomeado;

(ix) Em Outubro de 1969 está a paroquiar a freguesia de Macieira da Lixa (Felgueiras), por nomeação do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, entretanto, regressado do exílio;

(x) Em Julho de 1970 é preso pela PIDE/DGS;

(xi) Em Março de 1971 sái da prisão política de Caxias, depois de ter sido julgado e absolvido pelo Tribunal Plenário do Porto;

(xxii) Volta a ser preso pela PIDE/DGS em Março 1973; quando sai em liberdade, em Fevereiro de 1974, é "informado, de viva voz, pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que já não era mais o pároco de Macieira da Lixa";

(xxiii) Em 1975 torna-se jornalista porfissional ...

(xxiv) "Em Julho 1995, e a convite do jornal PÚBLICO, regressou à Guiné-Bissau, onde permaneceu durante uma semana, com o encargo de escrever uma crónica por dia sobre o passado e o presente daquela antiga colónia portuguesa, hoje, mais um país de língua oficial portuguesa, felizmente independente" (...) (5).

Guiné > Mansoa > 1995 > Mário de Oliveira com o padre missionário que foi encontrar em Mansoa.
Foto:© Padre Mário da Lixa (2003) (com a devida vénia...)

Sobre a sua experiência na Guiné entre finais de 1967 e princípios de 1968, disse o seguinte:
"Na guerra colonial, vivi integrado no Batalhão 1912, sedeado em Mansoa. Era o único padre capelão. Havia outro padre em Mansoa, mas na igreja da Missão, com quem sempre dialoguei, durante os quatro meses que lá vivi e actuei. Mas como capelão militar era o único padre no Batalhão.
"Enquanto não me expulsaram, pude privar de perto com as diversas chefias militares e com as centenas de soldados rasos que davam corpo ao Batalhão. Encontrei homens que estavam na guerra com convicção. A tese oficial do Regime sobre a guerra estava bem interiorizada neles. E eram generosos, à sua maneira, na entrega de si mesmos àquela causa, sem se aperceberem que era uma causa perdida. Mas havia também os que se aproveitavam da guerra, com sucessivas comissões, bem remuneradas, e quase sempre longe dos perigos das frentes de combate. Dizê-lo, não é novidade para ninguém. E havia os oficiais milicianos que, duma maneira geral, estavam na guerra contrariados e cuja preocupação maior era poderem regressar à sua família e à sua terra sãos e salvos" (...).
Fonte: Vd. post de 27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 12 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVI: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)

(2) Vd post de 28 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)

(..) "Mas deixem-me contar o que aconteceu antes do embarque. No dia 3 de Abril [de 1967] houve a cerimónia de despedida, assim lhe chamaram, no RAC (Regimento de Artilharia de Costa) de Oeiras, que era onde estávamos à espera de embarque. Houve missa na parada celebrada pelo padre Nazário, perdão, o senhor Major-Capelão Nazário, que, ainda por cima tinha sido meu superior quando eu fiz a instrução primária nas Oficinas de S. José, em Lisboa!

"Não fui à missa nem ouvi o sermão que ele fez, e que me disseram que foi uma bela dissertação sobre o amor à pátria e a defesa do património nacional. Mas tive que o gramar mais tarde, porque ele, um dia, apareceu em Geba para ver como estava a guerra.
- Nós por cá todos bem, é claro, disse-lhe eu" (...).

(3) Vd post de 27 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXIV: A igrejinha de Geba

(...) "Em Bambadinca lembro-me do Padre Poím, capelão militar, de origem açoriana, pertecente ao BART 2917 (1970/72) (vd. respectiva foto com o furriel miliciano Guimarães da CART 2716, na nossa página dedicada ao Xitole).

"Devido às suas homilias, este capelão teve problemas com a PIDE/DGS, acabando por ser expulso do Exército, tal como o Padre Mário da Lixa. Não sei muito bem o resto da história, que me foi (re)contada pelo Guimarães. Confesso que nunca ouvi nenhuma das suas homilias, uma vez que não ía à missa. Mas conheci-o pessoalmente em Bambadinca e lembro-me do seu ar frágil e sofrido" (...).

(4) Esta experiência foi relatada no seu livro Como fui expulso de capelão militar (Edições Margem, 1995)
(5) Essaas crónicas forma publicadas em livro: "Mas à África, Senhores, Por Que Lhe Dais Tantas Dores...(Porto, Campo das Letras, 1997). Vd post de 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CX: Bibliografia de uma guerra (4)

sexta-feira, 12 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P749: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)



Guiné > Brá > 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanca e o Joaquim. Esta era a 1ª equipa do seu grupo de comandos. Em vésperas da Op Atraca. O Jamanca será mais tarde ofical da 1º Companhia de Comandos Africanos, participará na Op Mar Verde (invasão da Guiné-Conacri, em 22 de Novembro de 1970) e comandará, em 1973, a CCAÇ 21, da qual farão parte antigos graduados africanos da CCAÇ 12. A CCAÇ 12, provavelmente refrescada, foi colocada no Xime, de meados de 1973 até ao final da guerra, e dela fez parte o furriel miliciano António Duarte, membro da nossa tertúlia. A CCAÇ 21 ficou em Bambadinca como unidade de intervenção (LG)

Foto: © Virgínio Briote (2005)


1. Texto do nosso querido amigo José Carlos Mussá Biai (outrora, o nosso menino do Xime) (1):

Caro Luís:

Acabo de ler depoimentos muito impressionantes que me fizeram recuar a minha infância em Xime, que você e muitos outros tertulianos bem conhecem de outros tempos.

Aquilo que o António Duarte escreveu e que lhe foi transmitido por um estudante guineense no ISEG é pura verdade.

Eu (com os meus quase 11 anos) e muitos outros, em 1974, vimos os militares do PAIGC em dois camiões de fabrico russo, um deles completamente tapado de toldo. Passaram por Xime, de manhã, para Madina Cudjido (Colhido, como vocês dizem). Passados uns 30 minutos ouvimos muitos tiros. Só que por volta da hora do almoço ouvimos [dizer] que foram lá fuzilados 8 pessoas. E das pessoas que nós ouvimos que tinham sido fuzilados - não sei se corresponde a verdade ou não - um deles era o tal Abibo Jau (2) que esteve na CCAÇ 12 em Xime. A outra pessoa seria o Tenente Jamanca, da CCAÇ 21 que estava em Bambadinca.

Mas tudo isso não me espanta porque os meus irmãos e primos que cumpriram o serviço militar no exército português, em Farim e depois em Bissau e Bambanbadinca, também foram presos, mas felizmente não lhes aconteceu o pior.

Um abraço.

José Carlos Mussá Biai

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Nota de L.G.

(1) Vd posts anteriores do (ou relacionados com o) J.C. Mussá Biai:

10 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XVI: No Xime também havia crianças felizes (2)

20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXII: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)

20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXI: Sete mortos civis no ataque ao Xime (Dezembro de 1973)(J.C. Mussa Biai)

(2) Soldado Arvorado 82 107 469 Abibo Jau, 1ª secção, 1º Grupo de Combate, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), Comandante: Alf Mil Op Especiais Francisco Magalhães Moreira...

O Abibo era o nosso bom gigante, um poço de energia... Era ele que transportava às costas os restos dos nossos mortos ou até os nossos feridos... Estou ainda vê-lo a levar um dos embrulhos macabros dos camaradas, tugas, da CART 2715 que foram massacrados na Op Abencerragem Candente. Quem sabe, talvez do malogrado Cunha, do meu amigo furriel Cunha... Vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

Mas o Abibo também era o nosso torcionário: o trabalho sujo era para ele... Nós fomos embora da Guiné, repressámos a casa e dormimos, hoje, tranquilos (?), em camas com lençóis lavados... É certo que, pelo menos no nosso tempo, travámos alguns dos impulsos de morte do Abibo... Mas, que sei eu ? Ele interrogava os nossos prisioneiros (o Malan Mané, o Jomel Nanquitande, o Festa Na Lona...), e a essas cenas eu poupei-me, nunca assisti... Eu e todos (ou quase todos) nós, os milicianos, os gajos decentes da CCAÇ 12 e das outras unidades estacionadas em Bambadinca...

Imagino o pó que os gajos do PAIGC lhe tinham... O Abibo há muito que apodrece em Madina Colhido. Mas não podemos ignorar ou escamotear que o Abibo foi uma criatuar nosso, uma peça da nossa máquina de repressão... Hoje ele teria ficado livre da tropa: sofria de epilepsia e de elefantíase... Tinha ataques frequentes. Era preciso meia dúzia de homens possantes para o segurar. Um dia vi o diagnóstico da doença dele numa ficha médica, no nosso posto clínico. O seu mau génio e o seu corpo de gigante foram postos ao serviço do exército português. Nunca houve um cabrão de um miliciano (médico, alferes, furriel...) ou de um oficial do quadro do exército (civilizado) do meu país (civilizado) que dissesse: este homem é um doente, não pode ser soldado!... Eu sabia que algo estava errado no comportamento, bipolar, do Abibo Jau... Simplesmente, também eu me calei... Todos nós gostávamos do lado bom do Abibo, do bom gigante do Abibo...

José Carlos, que raio de notícia é que me trazes!... E, no entanto, não era nada que eu não temesse... Mas fizeste bem: é assim, falando - mesmo com o coração apertado - que a gente, tu e nós, o teu povo, os guineenses, os fulas, os mandingas e os demais povos da Guiné, vamos fazendo as contas com passado que nos atormenta, a todos, de uma maneira ou de outra... É assim que vamos exorcizando os nossos fantasmas, libertando-nos dos diabos da floresta...

Abibo, paz à tua alma e que a tua morte não tenha sido totalmente inútil, para que os meninos do Xime e de Madina Colhido, livres, possam hoje contar outras estórias, dos bons gigantes da floresta, expulsos os diabos que um dia os atormentaram...

Vd post de 9 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

(...) "O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus mais de 100 quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 1º Gr Comb, do Alferes Moreira. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané. Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima.

"Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar" (...).

Guiné 63/74 - P748: Vítimas e carrascos, amos e servos, sacanas e traidores (João Tunes)


Guiné-Bissau > Região Leste > Secytr L1 > Bambadinca > Missirá : Pelotão de Caçadores Nativos nº 54, em 1970. Tugas e nharros eram pessoas, tem um rosto, tinham um nome...

"Na 1ª fila da direita para esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Mário Armas; o terceiro é o 1º cabo Capitão; na 2ª fila da direita para a esquerda: o primeiro é o soldado Amarante; o segundo é o soldado Bulo; o quinto é o furriel miliciano Inácio; o sexto é o 1º cabo Tomé; o nono é o soldado Samba; na 3ª fila da direita para a esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Sousa Pereira; o quinto é o alferes miliciano Correia (comandante de pelotão); o sétimo é o 1º cabo Monteiro; o oitavo, africano, é o soldado Pucha (era guerrilheiro do PAIGC, foi capturado e ficou no nosso exército)"

Foto e legenda do © Mário Armas de Sousa (2005)

Texto do João Tunes:
Caro Camarada e Amigo Luís,

Claro que aceito todos (repito: todos) os argumentos e sensibilidades que se exprimiram e venham a exprimir sobre o drama dos guineenses que, tendo lutado pelo lado colonial, no exército colonial, em que também eu servi, nós todos servimos, foram vítimas, no pós-guerra, de ajustes de contas entre guineenses. Mas, como não há almoços grátis, aceito todos os argumentos e sensibilidades esperando que as minhas tenham lugar na formatura (1).

Concordo com o argumento que assenta no raciocínio de que o exército colonial devia ter protegido, em plano de absoluta igualdade, todos os que o serviram. Da única forma que podia ter sido viável - trazê-los para a Sede do Império (extinto). Como, aliás, se fez relativamente aos pides. Até porque, falando de escumalha, não encontro medida para achar que um pide fosse melhor rês que um guineense que traiu o seu povo, lutando pelo lado do ocupante, o nosso lado, o lado pelo qual combatemos. Pois que um torturador e assassino impune, um homem que fez profissão da tortura e do desmando, também renega a sua pátria - a da humanidade, do direito e da civilização. Nisso, não o considero melhor que o guineense que lutou pelo Império e contra a Guiné.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > 1969 ou 1970 > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba. No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (salvo erro), vê-se o Furriel Miliciano Tony Levezinho, ao meio, ladeado pelo 1º Cabo Branco (à sua direita) e pelo 1º Cabo Alves (à sua esquerda) (LG).
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).

Devíamos ter trazido todas as nossas porcarias próprias dos ocupantes que fomos. Recolhendo o nosso lixo mais o lixo que ajudámos a criar, multiplicar e acumular. Se trouxemos de volta militares culpados (embora sem culpa formada) de crimes de guerra, mais outros culpados de invasão de países estrangeiros tentando executar em terra alheia golpes de estado, se trouxemos impunes violadores de bajudas, se trouxemos vaidades com os nossos roncos, se trouxemos essa persistente distinção entre NT e IN, se trouxemos um falar em que se mantém o termo turra para aqueles que combatemos e nos combateram, se até Spínola trouxemos e ainda o fizemos Presidente, se trouxemos a eterna incapacidade de entender que fizemos uma guerra que perdemos e em que cada um alguma coisa de si ali inutilmente perdeu (pelo menos, parte da sua juventude), se nunca apurámos se todos os peitos medalhados com cruzes de guerra e torres e espadas o foram por valentia cometida por homens leais na guerra ou se têm, á mistura, alguns peitos inchados de crime e de abusos, se trouxemos os pides e outros mais, se trouxemos essa forma atávica de olhar os guineenses de cima para baixo e ainda se ouve falar deles como sendo simpáticos bárbaros que sem nós não passam, devíamos ter trazido, e protegido, todos os que nos serviram (como nós servimos, acreditando ou não na bondade do projecto imperial). Porque as pessoas decentes não deixam lixo em casa alheia, trazem-no para depositar nos seus contentores caseiros, suportando-lhes o mau cheiro, inclusivé um que é super pestilento - o da traição ao seu povo.

Afinal e talvez, no essencial, estejamos todos de acordo. Pelo menos no repúdio quanto às execuções sumárias, esse macaquear de justiça dos vencedores guerreiros, iníqua, cruel e desumana, de que foram vítimas os traidores da Guiné e nossos companheiros de barricada colonial. Porque é uma vergonha que nos deve envergonhar. Nem menos. Pior, abandonando-os ao ajuste de contas, cometemos, nós outros - os coloniais, uma dupla sacanice - servimo-nos da sua traição de sacanas, depois deixámos os sacanas à mercê do destino pior que se reserva aos sacanas (morder o pó da vingança). Daí até se transformar um sacana, o melhor que seja entre os melhores sacanas, porque abandonado pelo amo a quem serviu em troca de pré e rancho, em herói ou patriota de pátria ocupante (o que é, como identidade, um anacronismo), além do silêncio conveniente com os nossos muitos milhares de sacanices e dadas em desconto para o rol inimputável das contingências da guerra, vai um passo, digamos, de grande (demasiado) tamanho, com alguma desfaçatez e uma mão bem cheia de hipocrisia insuflada de duplicidade moralista.

E, perante um tal eventual convite a salto, se para ele fosse convidado, que não foi nem é o caso, eu não me mexo, fico aqui a ler-vos com toda a atenção e consideração, concordante ou discordante, mas quieto, em sentido. A ver o batalhão passar. Mas sem dar um cêntimo para esse peditório.

Abraços para ti e para todos os estimados camaradas tertulianos.
João Tunes

Uma versão ligeiramente diferente deste texto foi publicada no Água Lisa (6)
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Nota de L.G.

(1) Sobre este tópico (directa ou indirectamente com ele relacionados), já foram publicados diversos posts no nosso blogue. Eis uma lista indicativa:

11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

4 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIX: Guerra limpa, guerra suja (3)

21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXI: O juramento dos guerrilheiros do PAIGC

8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)

10 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXVIII: A sanha revolucionária e os meus Jagudis (A. Marques Lopes)10 de Fvereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXV: Uma dívida que Portugal nunca pagou aos seus soldados africanos (Mário Dias)

11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXII: Os ajustes de contas do PAIGC: o caso do Candé de Quebo (Zé Teixeira)

15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCV: A última noite em Canjadude (CCAÇ 5) (João Carvalho)

6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCIV: Panfleto de propaganda, em crioulo, do PAIGC: Irmãos...(1970)

4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)

6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)

9 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXVI: A RTP1 e os 'Órfãos de Pátria': a montanha pariu um rato (José Martins)

10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLII: O poilão dos fuzilamentos em Bambadinca (David Guimarães)

Guiné 63/74 - P747: Metade da CCAÇ 6 (Bedanda, 1967/74) foi fuzilada (Hugo Moura Ferreira, ex-alf mil, CCAÇ 1621, Cufar, e CCAÇ 6, Bedanda, 1966/68)


Caros amigos:

Tudo o que ambos [António Duarte e Luís Graça] afirmam é a verdade, pura e crua!


Eu também tenho conhecimento através de quem por lá esteve, como cooperante militar, já depois do 25 Abril, com instruções para que usasse da postura dos três macacos (não ver, não ouvir e não falar), que o mesmo aconteceu a metade dos nossos homens guineenses, não só graduados, da CCAÇ 6, de Bedanda. Alguns deles eram meus Amigos. Poderia aqui mencionar uma data deles, mas talvez um dia se faça justiça e os seus nomes venham a integrar a triste lista que se encontra gravada no Monumento do Forte do Bom Sucesso.

E, se querem confirmação, é só ouvirem os relatos do Seni Candé, que pertencia ao pelotão de Milícias destacado naquela Companhia, inseridos nos posts do Jorge Neto no seu Africanidades e nomeadamente em 8.2.06 e 25.1.06, sob os títulos Seni Candé - Iludido pelo Destino  e O Canto dos Daris do Sul, respectivamente, em parte reproduzidos no nosso blogue (1).

Este, e se calhar outros, não foi ele visitar e ouvir, pois que ele vive tão longe, no Cantanhez, a seis horas de caminho de Bissau. Desculpem esta ironia, mas não me resta outro sentimento depois de ter andado ansioso por ver o que a RTP tinha para nos mostrar e depois... depois... depois... Sim, depois NADA ou quase nada.

É a tal coisa, ninguém tem a coragem. Será que só no tempo da guerra é que ela existia? É o mesmo que se está a passar com a célebre Lei 9. Não há coragem!!!

Desculpem o estado de espírito.

Um abraço para todos.
Hugo Moura Ferreira
Ex-Alf Mil Inf (1966/1968)
CCAÇ 1621 e CCAÇ 6
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Nota de L.G.

(1)Vd post de 8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)

Guiné 63/74 - P746: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)


Texto e fotos do
© José Martins (2006)

Caros camaradas

Com o aproximar das celebrações Marianas, envio um texto, de REFREGA (livro meu de memórias, não publicado) que relembra uma procissão em Canjadude (1) em 1969, ou seja, há 37 anos.

Um Abraço
José Martins
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PROCISSÃO EM CANJADUDE

Todas as unidades a nível de batalhão ou escalão superior incluíam no seu quadro de pessoal um sacerdote católico romano que, depois de uma breve instrução militar na Academia Militar e graduado no posto de Alferes, acompanhava as unidades combatentes para África, para as apoiar moral e religiosamente durante a sua comissão de serviço (2).

Na zona onde se encontrava a minha companhia, Nova Lamego, o capelão do batalhão ali estacionado e que dirigia a actividade daquele sector, era o padre Libório, natural dos Açores, que, na sua missão de visitas de rotina a todos os destacamentos da área do Batalhão, se encontrava a passar uns tempos em Canjadude.

Na manhã de 12 de Maio de 1969, logo ao pequeno almoço, confidenciou que gostaria de fazer uma cerimónia especial nesse dia, já que se celebrava o 51º aniversário da primeira aparição, em Fátima, de Nossa Senhora aos pastorinhos.

Não seria necessário repetir. Com a amizade e respeito que todos nutriam por ele e, ainda na sua qualidade de hóspede, os seus desejos eram ordens para qualquer um dos militares, independentemente do posto e mesmo posicionamento perante a religião. O que se iria realizar, e cujos planos e preparativos ali mesmo começaram a ser traçados, iria exceder a expectativa, não só do capelão, mas de todos os que assistiram.



Um pequeno barril de vinho foi serrado ao meio para, com a ajuda de duas varas, servir de base ao andor. Esta base foi revestida de verduras, já que não havia flores para ornamentar o andor. Para servir de base à imagem, e para a fazer sobressair sobre o rebordo da meia pipa, foi colocada uma pilha de um emissor/receptor AN-PRC/10 que com as medidas de 25x25x6 centímetros, mais ou menos, e que também serviu para alimentar um pequeno projector com que a imagem foi iluminada.

Este projector eram restos de um bombardeiro T-6 que se tinha despenhado numa zona próxima do destacamento e que a companhia tinha ajudado os mecânicos da Força Aérea a retirar do local e que por ali ficou, com outros destroços irrecuperáveis.


Se nos outros dias se notava uma necessidade louca que o tempo voasse para riscar mais um dia do calendário, aquele dia parecia que nunca mais passava. Notava-se alguma agitação em todos os rostos.

Ao jantar, e ainda que o dia ainda fosse bastante claro, já os militares se apresentavam com fardas lavadas, antecipando o momento de se incorporarem na procissão.

Quando a noite caiu, o padre Libório paramentou-se e deu início à cerimónia. Depois de uma breve alocução que serviu não só como preparação para os católicos, mas fundamentalmente como explicação para os muçulmanos que estivessem presentes, deu início à procissão.

Na frente, a abrir, seguiam as flâmulas dos pelotões da companhia. Seguiam-se os fiéis, com as suas velas acesas, o andor iluminado de Nossa Senhora, logo seguido do sacerdote que ia dirigindo as orações e cânticos.

A procissão saiu do edifício onde estava instalado o Comando e outros serviços, e iria percorrer uma área interna do destacamento, onde não houvesse o perigo de queda na rede de valas que ligavam os vários abrigos.

Calmamente e sem que tal estivesse previsto, os elementos que abriam o cortejo digiram-se para o cavalo de frisa que separava a parte militar da parte civil, entrando na tabanca pelo caminho que a atravessava.

Rezando e cantando, a procissão percorreu o caminho que levava à porta sul, tantas vezes percorrido pelas patrulhas quando se dirigiam para efectuarem operações para aqueles lados. Chegando ao fim do caminho, circundou uma árvore enorme, à sombra da qual se davam reuniam os homens grandes, regressando pelo mesmo caminho até ao aquartelamento.

Se no percurso de ida o caminho estava ladeado pela população que tinha acorrido, não só atraído pelas ladainhas e cânticos, mas também pelo cortejo de luz que as velas proporcionavam, no regresso pouca gente se via. Poucas pessoas estavam a ladear o caminho.

Feitas as orações finais e quando o padre Libório se voltou para os militares para proferir a despedida, ficou surpreso, direi mesmo espantado. Na sua frente estavam quase todos os habitantes civis que, tendo à frente os seus sacerdotes, com os seus terços, rezando a Alá, se foram integrando no cortejo, fazendo daquela procissão, um acto ecuménico espontâneo.

Terminada a cerimónia, os homens grandes dirigiram-se ao padre e ao comandante para partir mantanha (cumprimentar), dizendo que tinha sido um grande ronco (festa).

Quando todos começaram a dispersar, a foco de luz que iluminava a imagem da Santa apagou-se subitamente, como que a lembrar-nos que naquele local, em pleno mato africano, a par da devoção, que tínhamos acabado de demonstrar, havia a obrigação, ou seja, teríamos que voltar a vestir a pele de soldados e regressar às nossas tarefas.

José Martins
Ex-Furriel Miliciano de Transmissões
CCAÇ 5, Canjadude (1968/70)
26 de Agosto de 2002
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Notas de L.G.

(1) Canjadude: ficava entre Nova Lamego (Gabu Sara) e Cheche, no Rio Corubal.

(2) A experiência de capelania nem sempre correu bem, do ponto de vista do Exéricto e da Igreja Católica...
Já aqui citámos dois casos de capelões, expulsos do exército:
(i) O Padre Poím (Bambadinca, BART 2917, 1970/72)
(ii) e o Padre Mário (mais tarde conhecido como Padre Mário da Xira) (Mansoa, BCAÇ 1912, 1967/1968): vd post de 27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

quinta-feira, 11 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P745: Ex-graduados da CCAÇ 12 também foram fuzilados (António Duarte)

1. Caro Luís Graça,

Sou o António Duarte, ex-furriel atirador da CART 3493 e da CCAÇ 12 (1). Quero dizer-te que tenho uma nova religião, que passa por todos os dias ver o nosso blogue (peço desculpa pelo nosso, mas já o sinto como tal).

Tenho escrito muito pouco, porque o tema ainda me incomoda, mas gostava de dar duas notas [a segunda, a ser publicada noutro post, tendo a ver com a contagem do tempo para a reforma].

A primeira prende-se com o programa [da RTP 1, Órfãos de Pátria, que passou na 3ª feira]. Partilho das opiniões já expressas, traduzidas pela expressão muita parra e pouca uva. Foi pobre na forma e no conteúdo. Foi superficial e não quis ser politicamente incorrecto.

Sem querer alongar-me, gostava de apresentar um exemplo. O programa foca-se exclusivamente nos comandos africanos e, tanto quanto sei, os graduados das CCAÇ africanas, de origem local, foram também fuzilados.

Esta informação foi-me prestada por um estudante guineense, meu contemporâneo no ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão (ex-ISE). Referia esse jovem, que era natural de Bafatá, que grande parte dos graduados da CCAÇ 21 foram fuzilados.

Ora, para nós, ex-militares da CCAÇ 12, esta situação toca-nos profundamente, pois em 1973 esta companhia [a CCAÇ 21], que ficou em Bambadinca comandada pelo Ten Jamanca [ex-comando africano], foi constituída, tendo por base furriéis que eram ex-cabos da CCAÇ 12 (na época colocada no Xime).

Com a ausência de referências aos outros fuzilamentos, fica a ideia de que se tratou de uma mera perseguição aos homens dos Comandos Africanos, o que realmente não foi. Foi muito mais do que isso.

Este assunto, para ser tratado num órgão de informação como a TV, merecia mais. Deveria ter uma forte componente política, onde provavelmente os governos de Portugal iriam ser responsabilizados sobretudo pelas omissões.

O comandante da nossa Marinha ainda aflorou o assunto, mas o jornalista não pegou. Acho que mais para a frente poderemos voltar ao tema.

(...) E por hoje deixo-vos com um abraço de camaradagem,

António Duarte

2. Comentário de L.G.:

O António Duarte (que foi furriel miliciano na CCAÇ 12 na fase final, depois de transitar da CART 3493, que esteve em Mansambo) vem lembrar que em Bambadinca (e um pouco por todo o lado), os que foram encostados ao trágico poilão por onde passávamos muitas vezes, não foram apenas os comandos africanos mas também os nossos nharros da CCAÇ 12 (que foram constituir novas unidades, como a CCAÇ 21), e se calhar dos Pel Caç Nat 52, 53, 54, 63... 

No nosso tempo já havia ou dois três soldados arvorados por cada grupo de combate da CCAÇ 12... Mais tarde passaram a cabos e, em segunda comissão, foram promovidos a furriéis, ao que parece na CCAÇ 21, comandada pelo comando Jamanca...

Dos soldados arvorados da CAÇ 12 estou-me a lembrar do Abibo Jau, do Vitor Santos Sampaio (um dos raros que não era fula, era mancanhe, um reguila de Bissau...), o Mamadu Baló, o Alfa Baldé, o Mamadu Baldé, o Braima Bá, o Totala Baldé, o Mamadu Jau, o Saljo Baldé, o Samba Só, o Quecuta Colubali...

O único cabo era o bom do Zé Carlos Suleimane Baldé, que estudava português que se fartava para chegar a graduado... É provável que muitos destes homens e nossos camaradas (alguns, ainda putos, quando eu os conheci em Contuboel) tenham sido fuzilados no poidão de Bambadinca...

Esta é a parte feia, macabra e trágica da história da nossa guerra... Ainda hoje os guineenses têm dificuldade em falar disto... As testemunhas, os figurantes, os actores, os executantes, os mandantes... Se calhar todos têm medo de falar, por vergonha, culpa, cobardia ...

Nós, amigos e camaradas da Guiné, temos a obrigação de falar - com emoção, mas também com dignidade moral e elevação intelectual, com serenidade... Até para os ajudar a fazer o luto (individual, familiar, colectivo)...

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 18 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - DLXI: Um periquito da CCAÇ 12 (António Duarte / Sousa de Castro)

Guiné 63/74 - P744: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Alouette III, a descolar do heliporto local. O piloto era o Coelho, diz a legenda do fotógrafo. No mato, em operações, o helicóptero era o nosso anjo da guarda, como muito bem diz o Paulo Raposo. A sua presença era sempre securizante e protectora. Até ao dia em que começaram a ser abatidos, nos primeiros meses de 1973, pelos foguetões terra-ar e nós perdemos a nossa supremacia aérea... (LG).

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).

VII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 22-25 (1).



5. A nossa ida ao Santuário do inimigo, no Morés:

Durante uma semana, a Força Aérea tinha estado a bombardear os objectivos. Após este bombardeamento, organizou-se uma grande operação, formada por várias companhias. Umas iam pelo Norte e outras pelo Sul.

Nós saímos de madrugada, de Mansabá, conjuntamente com outra companhia, depois de uma noite dormida no chão, em quartel alheio. Logo depois de sairmos dei por falta de um soldado. Até ao fim da operação fiquei sem saber o que se tinha passado com ele. Tinha ficado para trás no bem bom. O susto e a responsabilidade foram grandes.

Para esta operação, a Força Aérea tinha deslocado muitos meios, DO e helis. A meio do dia tivemos contacto com o inimigo. Depois do tiroteio, perdemos o contacto com os nossos da frente, e eu fico para trás, com apenas uma secção e alguns africanos. Para nossa salvação, tínhamos ficado com o banana, nome que dávamos ao rádio que fazia a ligação à Força Aérea.

A curta distância vimos passar o inimigo, com as armas às costas, a fugirem. Nem eles nem nós fizemos fogo.

Passados estes momentos, seguimos um trilho que julgávamos ser o da companhia. Um africano disse logo:
- Por aí não, Alfero, que é caminho de turra.

Vejo-me perdido. Agarro no banana e, sem saber os códigos, chamo a Força Aérea:
- Atenção heli, aqui tropa à rasca.

Instantes depois, Nossa Senhora mandou-nos o nosso Anjo da Guarda, na forma de um heli. Acenámos e pedimos via rádio para voar em círculo por cima do local onde estava a companhia. E foi assim que nos juntámos a eles.

Logo de seguida vá de sair dali, uma vez que estávamos localizados. Durante toda a noite andámos pelo mato denso com os mosquitos agarrados aos ouvidos e com os ramos que os da frente afastavam, a baterem-nos continuamente na cara. Foi um suplício de noite. Só parámos na estrada que ligava Mansabá a Mansoa. Deve ter sido a noite mais penosa que passei na minha vida.

6. Havia na estrada entre Mansoa e Mansabá, um aquartelamento a nível do grupo de combate, perto de um trilho inimigo que passava perpendicular à estrada, chamado Cutia. Era uma zona perigosa.

Um belo dia, mandaram-nos, a nível da companhia, fazer uma emboscada durante toda a noite nesse trilho, para criar insegurança ao inimigo. Foi um pesadelo de noite.

Choveu toda a noite, ficámos molhados até aos ossos e com os mosquitos a morderem-nos os ouvidos o tempo todo. Se o inimigo por lá tivesse passado, teria sido um desastre. Hoje vejo os rapazes a perderem noites em discotecas, com toda a ligeireza.

7. Uma operação:

As operações ou patrulhamentos tinham como objectivo manter o inimigo em respeito e longe das nossas posições. Em Mansoa nunca perdemos a nossa capacidade ofensiva. Saíamos normalmente do quartel para as operações pela meia noite.

Quando estávamos no melhor do sono vá de levantar. Passávamos a noite toda a andar, dormíamos mais uma noite no mato, e regressávamos cheios de fome e de sede no dia seguinte. Aquelas noites no mato eram o pior que podíamos ter, ora os mosquitos ora as formigas não nos davam descanso. Se tivéssemos a azar de pisar um formigueiro, estas subiam-nos pelas pernas acima e mordiam-nos todos. Tínhamos de nos despir e retirar as formigas o melhor que podíamos. Isto, é claro, sempre sem fazer barulho e às escuras.

Há histórias de soldados que se queixaram de sentir cobras a passearem-lhe por cima enquanto estavam deitados à noite.

Como calçado, tínhamos umas botas de lona com piso de borracha, que se desgastava rapidamente. O pé andava sempre à vontade. Calçar novamente sapatos de couro era uma tortura para os pés.
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Nota de L.G.

(1) Vd último post, de 8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

Guiné 63/74 - P743: Aos nossos queridos nharros (Zé Teixeira)

Guiné > Zona Leste >Sector L1 > Estrada Xime-Bambadinca > 1970 > Coluna auto da CCAÇ 12 nas proximidades da tabanca fula, em autodefesa, de Amedalai.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).


1. Em pleno chão fula, foram os balantas, os beafadas e os mandingas que aderiram mais facilmente (ou foram condenados a aderir) à guerrilha. Os fulas, pelo contrário, reforçaram a sua velha aliança secular com os tugas. Fulas e balantas cultivavam um ódio de estimação. Eu, pessoalmente, nunca consegui falar, olhos nos olhos, a um balanta de Nhabijões (1)...

Os demónios étnicos e velhas contas por liquidar vieram, infelizmente, ao de cima, a seguir à nossa saída da Guiné. Bambadinca, tal como no início da guerra, em 1963, foi depois da independência palco de crimes contra a humanidade, nomeadamanente de execuções sumárias de dirigentes fulas, de ex-comandos e outros ex-militares que estiveram integrados nas NT. Ou seja, desta vez, de sinal contrário. A extensão destes crimes está por investigar.

Provavelmente nunca chegaremos a conhecer toda a verdade dos crimes praticados nas décadas de 1960 e 1970 na Guiné, por nós e pelo PAIGC, em nosso nome e em nome do PAIGC. Os fuzilamentos do Cumeré, de Bambadinca e de outros sítios, praticados por ou em nome dos guerrilheiros no poder, não podem todavia fazer esquecer, ignorar ou branquear a repressão exercida pelas autoridades coloniais no início da guerra: Samba Silate e Poidon, por exemplo, não honram a memória dos tugas. Foram lugares de massacres no início da guerra (1).

Eu não estava lá, mas os meus meus nharros, os mais velhos, os homens grandes, contavam-me estórias desse tempo, do terror branco de Bambadinca. Terror branco ou crioulo, já que a administração colonial da Guiné era basicamente preenchida por funcionários oriundos de Cabo Verde, ou de origem caboverdiana... Na Missão do Sono de Bambadincazinha, a G-3 a tiracolo, enquanto fazíamos horas para o sol esplendoroso de África aparecer e fazer espantar os nossos medos e os nossos fantasmas nocturnos. E com aquela espécie de inocência de criança com que os fulas falavam destas coisas trágicas e macabras da guerra e da morte aos senhores da Guiné, que eram os tugas...

Tive as relações mais afáveis, afectuosas e cordiais que me foi possível manter com os fulas, com os meus queridos nharros, mas eu sabia que as relações entre iguais, logo as relações de amizade, eram impossíveis entre nós: eu, fardado, representava uma potência estrangeira, colonial; eles, fardados, soldados de 2ª classe, pertenciam a um tempo e a mundo que já não existia... Os fulas estavam condenados pela história: infelizmente, eles não tinham alternativa... Corrompidos pelo poder colonial, cinduzidos pelos seus altos dignatários a um beco sem saída, os fulas acabaram por escolher o lado errado da barricada. Nem mesmo neutrais eles poderiam ter sido...

Enfim, especulo: que sei eu, ao fim e ao cabo, das complexas relações das principais etnias da Guiné, entre si, e com o poder colonial, durante os anos de guerra ?!... No entanto, subscrevo, de coração aberto, o belíssimo e texto que o Zé Teixeira me enviou e que passo a inserir no blogue... O Zé foi talvez dos poucos que, graças ao seu papel de enfermeiro (e também por mérito pessoal e pelas suas qualidades humanas), consegui saltar a barreira da espécie: ele, tuga, foi aceite e amado pela população fula, e ainda hoje tem verdadeiros amigos fulas...

Devo acrescentar que o termo nharro, que nós usávamos no nosso calão militar da Guiné, e nomeadamente na zona leste, não tinha propriamente uma conotação racista... Não era sinónimo de preto ou de barrote queimado... Enfim, tudo dependia da entoação... Não sei qual é a origem do termo, provavelmente é crioulo da Guiné. Ele ainda não consta do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, mas continua a fazer parte da língua portuguesa viva... Já o vi traduzido por gandarro, massaro, pessoa ignorante, sem conhecimentos, num sítio brasileiro ... Continua a fazer parte do calão dos nossos jovens urbanos e suburbanos... Já vi inclusive a utilização do termo como adjectivo: um tuga nharro (ou português ignorante)... (LG)


2. Texto do José Teixeira

Luís: Saúde, paz e felicidade.

Após algum silêncio... É bom dar espaço a outros, ler e apreciar e reviver a Guiné de outrora nos seus testemunhos e as suas histórias.

Volto de novo para entrar na onda que passa sobre os antigos combatentes nativos, que recordo com saudade, que admiro e e a quem presto a minha homenagem.

Recordo os que tive o prazer de rever, abraçar e com, eles recordar bons momentos (hoje, são todos bons, esses momentos), porque guera na passa manga di tempu e ainda estamos vivos, com há um ano [em 2005] me dizia um turra, embora muitos deles e de nós, tenham no corpo o ferrete desse tempo e que teima em não desaparecer Se vires que tem interesse para entrar no Blogue.. .
Um abraço fraterno,
Zé Teixeira
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Aos nossos queridos nharros... Tropa africana que connosco deram o seu sangue suor e lágrimas, por Portugal, com toda a carga emotiva, de carinho e afecto que a palavra nharro possa conter.

O programa aparecido na TV (2) teve pelo menos o condão de nos pôr a reflectir, a nós que durante cerca de dois anos convivemos diariamente com a tropa africana, fiel a Portugal e não ao regime, como alguns tentam deixar passar.

O conceito de mãe-pátria, Metrópole, Lisboa, estava arreigada naquela gente, não pelos políticos, mas pelos portugueses brancos que por lá foram passando, muitos dos quais para cumprir penas de índole criminal e quantas vezes por estarem em desacordo com os políticos e as políticas exercidas em Portugal.

Era um conceito forte, de esperança e de orgulho. Foi com eles que eu aprendi quanto se deve respeitar a bandeira do meu País. Com que orgulho eles a saudavam (e toda a população) no hastear e arrear diário. Gesto que ainda hoje se repete. Há um ano em Bissau pude testemunhar o toque de hastear no quartel da Amura e a reacção de toda a população na rua exterior, até onde era possível ouvir o toque.

Era este conceito de filhos de Portugal, aliado naturalmente à propaganda da época e aos benefícios financeiros que os faziam alinhar ao nosso lado com a sua experiência e conhecimento de logística local, dos carreiros das tabancas inimigas, dos perigos desconhecidos para um europeu ingénuo, para quem tudo era estranho, desde o clima ao modo de estar em sociedade, à floresta com os seus segredos e perigos, às técnicas de guerrilha usadas pelo adversário.

Pergunto:

- Quem de nós, periquitos, não sentiu ao chegar, uma mão amiga, um sorriso e um alerta para um eventual perigo ?

- Quem nos orientava na Tabanca, na busca de uma lavandera bonita e jeitosa ?

- Quem nos avisava dos perigos da floresta, abelhas, formigas, cobras ? (Aos bloguistas que se deram ao trabalho de lerem o meu diário (3), recordo a cena do ataque de abelhas e a forma como um milícia cujo rosto não fixei que me agarrou por um braço, me escondeu atrás de uma árvore e me aconselhou a ficar rigidamente quieto até elas, as abelhas, se irem embora. Foi assim que aprendi a não ter medo de abelhas e tanto jeito me fez no segundo ataque que sofri mais tarde.)

- Quem nos indicava à chegada o melhor sítio para tomar banho, no rio para tomar banho sem correr perigo ?

- Quem nos arranjava os frangos e os cabritos para as tainas, para esquecer as mágoas ?

- Quem se prontificava a ajudar o colega do morteiro, o enfermeiro ( Bons amigos que tive e recordo com saudade), no transporte do equipamento, etc ?

- Quem ainda hoje apesar de tão desprezados pela mãe-pátria, como costumavam dizer, nos recebem com um carinho e afecto, que só quem lá foi consegue entender e apreciar ? (Vi e senti lágrimas, recebi abraços longos e quentes, passados 35 anos de separação).

- Quem servia o meu País e desprezava o seu país, deixando mulheres e filhos da outra banda (Kebá de Empada, meu querido amigo, recordo as conversas que tive contigo, sobre as tuas duas mulheres e os teus filhos que optaram pelo outro lado, quanto tu sofrias quando eras atacado! Porque te recusavas a ir comigo para o mato!).

- Quem, debaixo de fogo, avançava de peito aberto para o Inimigo (eu
testemunhei), protegendo-nos (quantos de nós tão acagaçados, que não cabia um feijão no buraquinho) convencidos que era esse o caminho certo para o seu País ?

- Quem vergonhosamente os abandonou, deixando que tantos fossem assassinados pelos seus conterrâneos, só porque estavam do lado errado, quando politicamente correcto Portugal admitiu que não tinha saída, a não ser dar a oportunidade a um povo de construir e seguir o seu próprio destino ?

- Quem a partir desse momento os deixou órfãos de Pátria, obrigando-os a irem procurar a sua pátria que até então lhe garantiam não existir, sem qualquer preocupação de lhe dar o prémio merecido por tudo quanto fizeram em nome e para Portugal ?

- Quem lhe traiu todas as promessas de uma Guiné melhor, com Portugal ?

Sinto vergonha. Estão-me na memória, os Sambá, os Adbulai, os Ussumane, os Amadu, os Aliu, os Braima, os Mamadu, tantos outros, que conheci e com quem convivi sadiamente, que me acompanharam em tantos encontros com o adversário e que merecem ser considerados filhos de Portugal, pelo que fizeram, pelo que sentiam e ainda sentem, pela alegria que expressam quando nos vem chegar.

Quantos deles assassinados por incúria de Portugal, quantos andaram anos fugidos no mato, deixando a família nas mãos dos adversários, quantos ainda não reconstruíram as suas vidas, quantos sofrem o stress de guerra, quantos morreram à fome, quantos passam fome, por falta de trabalho. Não sabiam fazer mais nada a não ser guerra.

Telefonou-me há dias o Quintino Procel, de Empada. Esse conseguiu fazer no meu tempo a 4ª classe e seguiu a carreira de enfermeiro, sendo hoje o enfermeiro-chefe em Canjadude. Quando em 2005 passei por Empada, procurei-o.

Alguém o informou da minha presença e o seu telefonema chegou um ano depois:
- Tissera, tu vai na Guiné e não fala comigo ? Eu na tem casa em Canjadude. Bó na vem e firma lá. Eu fico triste, manga dele, por não ver Tissera. - Foram estas palavras que guardei no coração passados 35 anos.

Creio que ainda há algum tempo para Portugal olhar para esta gente. Não pode desperdiçar esta oportunidade.

Creio que nós, antigos combatentes, ainda podemos fazer algo por eles. No mínimo ir visitá-los(os que puderem), testemunhar-lhes a nossa amizade, tanto quanto eles nos deram a deles. Permitir que sintam e vivam essa alegria de não sentirem que foram esquecidos, por aqueles que, como eles, deram sangue, suor e lágrimas, por uma Pátria que, não sendo actualmente a deles, se deve sentir orgulhosa de os ter tido como filhos, embora de 2ª...

Zé Teixeira
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos

(...) "Há uns anos atrás, nos anos do terror, ser encontrado fora da sua tabanca ou do seu perímetro, de catana na mão ou faca de mato à cintura - que é ronco ou adorno para um balanta que se preze - , eis um belo pretexto para um balanta ser preso, levado para o posto administrativo de Bambadinca, sumarianente interrogado e às vezes, hélàs!, mais sumariamente ainda liquidado.

"A justificação era simples, segundo os meus nharros: "um balanta a menos, era um turra era menos" (sic)… Admito que haja aqui alguma dose de fanfarronice e de exagero, por parte dos fulas, históricos inimigos e vizinhos dos balantas… Mas não há fumo sem fogo: estas histórias parecem-me ter consistência…

"Donde esta hostilidade passiva que julgo poder ler nos olhos e nas atitudes da população de Nhabijões que alimenta a guerrilha, em homens e mantimentos, provavelmente mais por razões de parentesco do que por simpatia para com o PAIGC: ao avistarem-me, fardado, na sua tabanca – a mim, tuga, representante da tropa ocupante - os mais velhos baixam a cabeça ou viram-me as costas como se sentissem acabrunhados com a minha presença… Quem se sente mal, sou eu, que venho invadir-lhes a sua privacidade e perturbar os seus irãs…

"Devia ser esta, aliás, a atitude com que caminhavam para a morte: sem medo mas também sem revolta, com uma estranha dignidade ancestral, a pá e a pica em cada uma das mãos. Sim, por que o método era tão requintado como o dos nazis, a crer na descrição que me fazem alguns dos meus informadores, os mais velhos, como o Abibo, por exemplo – o Abibo, o bom gigante do Abibo, que sofre de epilepsia e tem elefantíase no escroto…

"Ou até senão mais: a própria vítima abria a estreita vala onde devia caber o seu próprio corpo, três palmos abaixo da superfície, e onde ficava deitado… à espera que o carrasco da polícia administrativa (sempre os africanos para as tarefas sujas…) se dignasse dar-lhe o passaporte para a eternidade: um tiro de pistola, uma lata de gasolina, um fósforo…

"Ter-se-á passado assim ? Um frémito de horror passa-me pela espinha acima. Recuso-me a aceitar que isto se tenha passado debaixo da bandeira verde-rubra da minha pátria, com a cumplicidade ou até o envolvimento (activo ou passivo) das tropas portuguesas ou dos representantes das autoridades portuguesas… Faço, ao menos, votos para que estes crimes sejam apenas imputados à odiosa PIDE… Enfim, nunca o saberei… Ou melhor, poderei perguntar-lhes onde era o sítio... O Adibo e outros falam-me do antigo cemitério de Bambadinca, um sinistro local de outrora onde hoje as alfaces crescem, viçosas" (...)…


(2) Vd. post de 6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)

(3) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

quarta-feira, 10 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P742: O poilão dos fuzilamentos em Bambadinca (David Guimarães)

1. Ontem, na RTP 1, a seguir ao Telejornal, foi exibida uma curta reportagem sobre os ex-comandos africanos que foram fuzilados a seguir à independência, uns (os mais graduados), ou pura e simplesmente abandonados à sua sorte, a generalidade das praças, perseguidos, discriminados, esquecidos...

Órfãos de Pátria intitulava-se a primeira peça do programa Em Reportagem, da autoria do jornalista António Mateus.

Eu tinha mandado um lembrete a todo o pessoal da tertúlia e pedi inclusive um voluntário para tirar umas notas, visionar o programa e escrever um pequeno texto para o blogue. Recebi de imediato uma nota, crítica e de frustação, assinada pelo José Martins (CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70).:
- A montanha pariu uma rato! - disse ele.

Para o nosso camarada, o porgrama não trouxe nada de novo. E sobretudo perdeu-se uma oportunidade, a de fazer a justa homenagem aos guineenses que combaterem ao nosso lado e que se sentiam tão portugueses como nós:

"É pena que, mais uma vez, se tenha perdido a oportunidade de, pelo menos, prestar uma homenagem aqueles que, generosamente, defenderam uma terra que era sua e agora se sentem estrangeiros na própria terra".

O tema não é fácil, para nenhum de nós. Ainda há um bocado me telefonou o Jorge Cabral a perguntar se tinha visto o programa (perdi a primeira parte) e se tinha reconhecido o trsitemente famoso poilão dos fuzilamentos em Bambadinca, à beira da estrada:
- Passei por ele montes de vezes!

Para o Jorge Cabral que tem uma visão crítica da guerra e da nossa presença na Guiné ("só conhecemos a guerra, nunca conhecemos a Guiné, a sua cultura, a sua história, a história da sua violenta pacificação pelos portugueses"...) (1), é doloroso relembrar o destino trágico de antigos combatentes que ele conheceu e com quem privou, em Fá Mandinga e em Bissau, e alguns dos quais eram seus amigos: o Saegue, O Jamanca, o Camará...

2. Outro comentário que me chegou, cauteloso, foi o do David Guimarães (ex-Furriel Miliciano, CART 2716, Xitole, 1970-1972):

Luís: Eu vi o programa e direi porque não o quererei comentar no blogue... Como sabes, existe muita gente que tem amigos lá na Guiné - é assim e decerto eu também tenho...

Quanto ao que aconteceu, ainda um dia destes alguém queria incriminar o Nino Vieira. Ora bem, tudo isso se passou no tempo de Luís Cabral. Mas a sentença estava escrita desde 1973: isso sabe-se desde a declaração da Independência no Boé. Sabes que eu entendo que aquele povo tinha razão! Acho mesmo que os Comandos foram traidores à sua Pátria: não desmobilizaram e continuaram a lutar contra a sua pátria...

Se tivessem desmobilizado e entregue aos seus pátrios guerreiros e irmãos de raça, decerto não seriam mortos. Bem, mas isso é uma questão deles...

Outra, contudo, é a acusação que Luís Cabral faz a Nino Vieira, dizendo que este como Chefe das Forças Armadas teria sido o executante e responsável por tais actos sendo que ele não saberia de nada... Isso deve ser uma grande mentira, mas enfim quem tem razão ?!...

Existem as dores do crescimento da democracia: a Guiné padeceu mais ainda... e continua a padecer, pois não se entendem...

Sei da posição de alguns bloguistas que estão mortinhos por começar a falar de política... Ai, Luís, que os maiores culpados decerto até fomos nós, que abandonámos aquela gente... Ora eles tinham a nacionalidade portuguesa, tinham as mais altas condecorações portuguesas e os nossos governantes da altura (e de agora) nem se mexeram...

O Nino hoje [na reportagem] disse e teve razão, apontando a principal culpa aos Portugueses. Naturalmente, se trouxemos os brancos, os negros também viriam, se quisessem... Então, sim, não tínhamos que nos penitenciar...

Vi o programa todo e vi Bambadinca - a nossa Bambadinca... Decerto ou sou romântico demais ou sou parvo, mas naquela altura todo o combatente anti-pátria da Guiné, já independente em Madina de Boé, passou à qualidade de traidor à Pátria...

O que tu farias??

Pronto, aqui tens a minha opinião...

Um abraço David Guimarães

3. Comentário de L.G.

Meu querido David:

Não vou permitir que o pessoal entre em demagogias, no discurso fácil, emocional, acusatório... É abrir a Caixa de Pandora... O tema é doloroso e emotivo...

De qualquer modo, peço-te autorização para publicar o teu texto... É corajoso... Mas a verdade tem sempre um verso e um reverso...

De qualquer modo, nenhum de nós defende a pena capital - no primeiro país do mundo a abolir a pena de morte (em 1852, para crimes políticos; em 1867, para todos os crimes, excepto os militares; em 1911, para todos, incluindo os militares; e definitivamente, em 1976)...

Nenhum de nós, é a favor da pena de morte, revolucionária ou não... Por isso, a execução (praticamente sumária) dos nossos antigos camaradas dos comandos africanos não tem nem pode ter justificação alguma... Pode explicar-se, mas não justificar-se. Que fique clara a nossa posição!

4. O David respondeu a seguir:

Autorizado ... Nós só abolimos a pena de morte em Portugal em 1976... Luís, em crimes de guerra eram permitidas as penas capitais... Claro que eu não sou a favor de penas capitais, mas entendo naquele processo... É só isso...

Um abraço. És livre de publicar o meu texto, corrige algum Português que eu, emocionado, escrevo-te como falo...

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Nota de L.G.

(1) Vd post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

Guiné 63/74 - P741: Em busca de: Ajudem-me a encontrar o tenente evacuado em 1973 do Corredor da Morte (Victor Barata)

Texto do Victor Barata, o mais recente membro da nossa tertúlia:

Pois bem, Luís Graça, tomei o gosto, não vos largo.

Chamo-me Victor Barata, fui Especialista da Força Aérea Portuguesa, MELEC (1) de Aviões e Instrumentos de Bordo.

Cumpri o meu serviço militar de 1969 a 1974, sendo o período de 1971/1973 cumprido na Província da Guiné, mais concretamente na linha da frente das DO27, fazendo todo o tipo de serviço desde a tão desejada entrega de correio, géneros alimentícios, etc., às tristes evacuações, algumas sabe Deus em que circunstâncias.

Percorri todos os locais onde este tipo de aeronave tinha poucas condições para se entregar a uns metros de terra avermelhada. Tive um acidente dentro de uma desta aeronaves, já em terra. Mas...existiu uma situação, há 35 anos, que me faz perder a fala de cada vez que a recordo... Vou tentar!

Julgo, se a memória não me atraiçoa, que em Fevereiro/Março de 1973, fui destacado para uma operação no Corredor da Morte (ainda não li nada com este nome no site!...). A carta cartográfica da Guiné designa por Guileje, onde participaram também os Fiats, os T6, os Helis.

Aterrá mos e, obviamente, que a expectativa era grande,não só por ser a primeira vez que ali estava como também pela alcunha com que o local foi baptizado [Corredor da Morte].

Estacionou-se o avião, abriu-se a porta e vejo a uma certa distância uma pessoa que de repente desapareceu. Não manifestando a minha desconfiança pelo facto, eis que nos aparece um Capitão do Exército, que se apresenta como o comandante da unidade, para nos dar as boas vindas e nos fazer uma visita guiada ao local.

Não perdendo o rumo ao local onde a tal figura desapareceu, lá fomos olhando para isto e para aquilo e eis que me é identificada a minha referência que não era mais nem menos que os abrigos subterrâneos onde dormia o pessoal!

Beliche, chão de terra batida e o tecto uma placa que, dizia o Capitão, era à prova de 120! Acredito solenemente nos traumas da Guerra, 24 meses, às vezes lerpava-se com mais uns meses, naquelas condições, debaixo de guerra constante?!...

Bom, chegou a hora de me ser destinado o aposento. Nada mais, nada menos, o quarto do Capitão Caldas, paraquedista, que estava no mato, não era subterrâneo mas sim em superfície, talvez 1,50 x 1,50, MUITO BOM!

O dia correu normalmente, até que fui jantar à messe de oficiais e depois jogar umas cartas até se fazer noite, pois a transição do dia para a noite, segundo diziam, era a hora do IN bater à porta.

Encontrei um Tenente do Exército cujo nome, infelizmente para mim, já não recordo, e que me aturou jogando comigo o que eu sabia e ensinando o que eu não sabia, somente para passar aquele mau período do dia.

Chegado às 23h00, como a noite já ia longa,resolvi pedir-lhe a sua anuência para me ausentar e fui-me deitar. Ainda não me tinha descalçado e já a festa estava a começar, pois os foguetes já estalavam no ar... Forte morteirada!

Nesta minha estada conheci figuras hoje públicas, recordo o actual Presidente da Guiné, Nino Vieira, desertor do nosso Exército, como prisioneiro (2).

Terminada a minha missão, regressei a Bissalanca.

Passados uns 2 meses, 6 horas da manhã, a sala de operações chama o alerta e sai o Dakota, avião bimotor, com trem de cauda, que traria sempre umas 20 macas, enquanto a DO 27 só podia trazer uma. A coisa era muito má, viemos a saber antes do regresso do Dakota... A expectativa para mim era total, porque tinha lá estado, até que se começa a ouvir o barulho dos motores, cada vez mais perto, a instabilidade, embora o tempo já nos tivesse reservado péssimas situações, não sabíamos o que ali vinha.

Eis o avião na placa (estacionamento), a porta é aberta, subo os poucos degraus da escada de acesso ao seu interior e coloco-me ao fundo, a meio,vendo cerca de 10 macas de cada lado com corpos envoltos em lençóis brancos! Clima de verdadeiro massacre,o silêncio era a voz que perdurava, os corpos começaram a ser retirados e eu arrisquei subir o corredor até à cabine.

Eis que num preciso momento ouço uma voz de grande sofrimento emitir o meu nome, não conseguia localizar a sua origem, volto a ouvir e ai, sim, era o tal Tenente que tanto me ajudou na minha estada no Corredor da Morte... E eu incapaz de lhe poder valer!

Acreditem, companheiros, que estou a redigir estas letras com muita emoção,e porque não dizê-lo, com algumas lágrimas à mistura! Hoje, a minha grande esperança reside no facto de que eu não o pude ajudar, mas Deus encarregou-se disso por mim...

Não consigo escrever mais, desculpem!

AJUDEM-ME A ENCONTRÁ-LO!!!

Victor Barata
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Notas de L.G.

(1) Melec: termo usado pelo pessoal da Força Aérea para designar a especialidade de manutenção electrónica...Vd. post de hoje > Guiné 63/74 - DCCXXXIX: Victor Barata, MELEC da FAP (1971/73)

(2) Deve haver aqui um mal-entendido por parte do nosso camarada: o 'Nino' Vieira, comandamte da frente sul, nunca foi nosso prisioneiro, pese embora as muitas operações de busca e caça e emboscadas que lhe foram montadas pela nossa tropa de elite, a começar pelo temível e mítico Marcelino da Mata.

Guiné 63/74 - P740: Regressei bem e sem traumas (Manuel Cruz, ex-cap mil, CART 3493 / BART 3873, Bolama, Mansambo, Cobumba, Fá Mandinga e Bissau) 1972/74))

Artigo de opinião do Manuel Cruz, que foi enviado com data de 19 de Abril de 2004. 

Este nosso camarada foi Capitão Miliciano da CART 3493 / BART 3873, tendo passado por Bolama, Mansambo, Cobumba, Fá Mandinga e Bissau (1972/74) (1).

Meus caros:

1. Tenho lido, apreciado e pouco tenho comentado. Perdoem-me, mas não sou muito dado à história, mesmo que esta nos toque de perto, ou antes, tenhamos vivido.

Regressei bem e sem traumas, apesar de ter vivido horrores. Participo em alguns encontros anuais da CART 3493, e saboreio esses momentos. ... e pouco mais.

2. Agora, um tema que suponho nos interessa a todos, pois se todos nós fomos forçados a fazer o que não queríamos, devemos colher todos os benefícios do que "temos direito".

- CONTAGEM DE SERVIÇO MILITAR para efeitos de reforma (dos que ainda estamos no activo)?
- CONTAGEM DE SERVIÇO MILITAR para efeitos de complemento de pensão (dos que já não estão no activo)?
- CONTAGEM DE SERVIÇO MILITAR para efeitos de ...
ETC, ETC.

Creio que nesta matéria haverá muitas dúvidas em alguns de nós. Como estamos? No meu, no teu caso e noutros?

Por exemplo, eu não consigo respostas do Ministério, a várias questões mesmo utilizando os meios que o Ministério da Defesa Nacional coloca ao dispor via-mail.

Também existe um balcão oficial na Rua Braancamp, 90, em Lisboa, que presta esclarecimentos, mas ainda não visitei.

Afinal, do tempo do Ultramar sempre temos os 100% de bónus em tempo ou em euros ? Algum de vós tem respostas a estas matérias?

Manuel Cruz
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 13 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CVIII: Welcome aboard, captain ! (CCAÇ 3493, Mansambo, 1972)

Guiné 63/74 - P739: Tabanca Grande: Victor Barata, MELEC da FAP (1971/73)

Força Aérea Portuguesa (FAP) > Museu do Ar > Alverca > Imagem de um DO 27
© Museu do Ar - Alverca (2006) (com a devida vénia...) (1)


1. Texto de Victor Barata, ex-especialista da Força Aérea Portuguesa, MELEC (1) de Aviões e Instrumentos de Bordo, Guiné, 1971/73.

Luis Graça,

Não tenho a honra de te conhecer mas tenho o privilégio de ser, há uns dois meses a esta parte, um assíduo [visitante] e admirador do teu site Blogue-Fora Nada. Parabéns!

Por diversas vezes redigi um artigo com um assunto que me traz no peito há 35 anos, relativo a uma episódio passado na Guiné, mas sempre achei que era inoportuno da minha parte estar a meter a foice em seara alheia e como tal nunca tive a coragem de o enviar.

Isto tudo, porquê? Porque servi, com muito orgulho, a Força Aérea Portuguesa (FAP)!

Para meu espanto e alegria em paralelo, aparece um companheiro da Armada (2) e de imediato tu a salientares a falta de um da FAP!

Pois, do que é que eu estou à espera para entrar nesta maravilhosa colectânea de recordações de toda a espécie e saudar todos os que me vão receber, e a ti agradecer esta minha primeira intervenção ?!

Fui Especialista da FAP, na área dos Instrumentos de Bordo, de 1969 a 1974. Fiz a Guiné de 1971 a 73, na linha da frente das DO 27. Conheço tudo o que era sítio onde havia a pista de aterragem para este tipo de aeronave.

Oportunamente, se me for permitido, contarei o tal episódio que tenho preso há 35 anos!

Bem hajas! Victor Barata.


2. Comentário de L.G.:

Victor: A pista pode ser curta mas é toda tua... Na nossa caserna cabem todos os camaradas, sejam eles terrestres, voadores ou anfíbios. A FAP, tão dignamente representada por ti, é bem especialmente bem vinda à nossa tertúlia e ao nosso blogue... 

Por mim, sempre tive uma especial admiração pelos malucos das dessas máquinas voadoras que eram as DO 27 e que nos traziam notícias do mundo, do outro do mundo... Já não gostava tanto quando elas, em vez do carteiro, transportavam o senhor major de operações ou do senhor comandante de qualquer coisa... Ou sejam, quando de frágil caranguejola eram promovidas a um coisa que pomposamente se chamava o PCV.

Um reparo: o blogue chama-se Luís Graça & Camaradas da Guiné > Blogue-fora-nada. Eu sou apenas o editor. A partir de hoje o blogue também é teu, de pleno direito. Vou publicar o texto adicional que me mandaste, e que é um bonito testemunho de solidariedade em tempo de guerra, ou seja, de camaradgem. Se tiveres fotos desses tempos que já lá vão, manda, que os tertulianos têm ainda a ilusão de que recordar é viver duas vezes...
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Notas de L.G.

(1) No sítido do Museu do Ar, em Alverca (e que está aberto das 10 às 17 - Jul, Ago e Set, das 10 às 18 -, encerrando à segunda-feira, 1 de Jan, Domingo de Páscoa e 24 e 25 de Dez), pode ler-se o seguinte sobre a história do DO 27 em Portugal:

"Os aviões Do 27, de que a Força Aérea teve 133 exemplares nas versões A3 e A4, começaram a ser recebidos em 1961. Estes aviões foram adquiridos para operação no Ultramar, em missões de transporte ligeiro, evacuação sanitária e reconhecimento armado - para o que era equipado com lança foguetes - e operaram, praticamente, de todas as unidades do Ultramar. No fim das hostilidades alguns aviões foram cedidos aos novos países independentes e os restantes voltaram para a Metrópole onde serviram até 1979. O Museu do Ar tem 3 Do 27 estando todos a voar".

(2) Vd. post de 21 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXIII: Apresenta-se o Imediato da NRP Orion (1966/68) e 1º tenente da reserva naval Lema Santos

Guiné 63/74 - P738: Festa Na Lona, um bravo combatente do PAIGC (CCAÇ 12, Fevereiro de 1970) (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1970 > Força da CCAÇ 12 na estrada Mansambo-Xitole, a caminho de mais uma operação, em plena época seca, na zona de acção das unidades de quadrícula de Mansambo e Xitole.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).


Extractos de: História da CCAÇ. 12: Guiné 1969/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores 12. 1971. Capítulo II. 28-29.


(81) Fevereiro de 1970 Op Bodião Decidido: uma operação com sucesso na área de Satecuta

Foi realizada em 14 e 15 de Fevereiro de 1970 para uma batida à área de Satecuta até ao Rio Corubal (1), por forças da CART 2413, CCAÇ 2404 e CCAÇ 12 (1º, 2º e 4º Gr Comb), constituindo respectivamente os Destacamentos A, B e C (2).

De acordo com o plano estabelecido para a acção, os 3 Dest saíram de Mansambo e Xitole às 5h00 do dia D (14), percorrendo a estrada [Xitole-Mansambo] até ao ponto de encontro (área de Gulobó) [onde fizeram paragem para descanso e almoço, entre as 12h00 e as 16h00](3).

Após uma rápida reunião dos Comandantes dos Dest, iniciou-se a progressão a corta-mato, tendo-se atingido pelas 17h00 o local escolhido para pernoita e montagem de emboscadas nocturnas (4).

Verificou-se, através de vestígios, que o IN tinha reconhecido o trilho utilizado pelas NT durante a Op Navalha Polida (5), embora não tivessem sido detectadas quaisquer minas ou armadilhas.

Às 4h00 da manhã (dia D + 1), os Dest continuaram a progressão até atingirem um trilho muito batido na região Xime 4 F2 – 29. Aí ficou emboscado o Dest B (CCAÇ 2404), reforçado por 1 Gr Comb do Dest C (CCAÇ 12), enquanto os outros Dest seguiram em direcção a Satecuta.

Pelas 7h00, o Dest B avistou 1 grupo IN de 15/20 elementos, tendo os homens da frente aberto fogo no momento oportuno, causando 1 morto deixado no terreno e feridos prováveis, com um gasto mínimo de munições (1 dilagrama e 1 carregador de G-3). Foi apreendido ao IN um RPG-2 [ LGFog ] e várias granadas.

O IN dispersou imediatamente e flagelou o Dest B quando alguns elementos deste foram à zona de morte a fim de verificar os resultados colhidos.

Os Dest A e C foram também flagelados com fogo de morteiro e armas automáticas, não reagindo para não revelar a sua localização exacta e movimentando-se apenas para conseguir estabelecer ligação com o Dest B.

Uma vez que toda a população e elementos IN da área tinham ficado alertados, devido à troca de tiros, as NT após uma batida muito rápida retiraram de forma a evitar quaisquer emboscada de outros grupos IN vindos de Seco Braima ou Galo Corubal.

O ponto de reunião inicial foi atingido cerca das 10h00, regressando depois as NT aos seus aquartelamentos.

Constatou-se que o IN, depois da Op Navalha Polida (5), tinha redobrado de vigilância, patrulhando constantemente a região entre Seco Braima e Galo Corubal a avaliar pelos trilhos feitos.

Verificou-se também que por vezes executa tiros à distância na tentativa de localizar as NT e posteriormente montar-lhes embocadas, especialmente no regresso. No presente caso, as NT não tiveram qualquer reacção pelo fogo, o que malogrou as intenções do IN.

Transcrição da Mensagem 676/C COM-CHEFE (REP/OPE): “COM-CHEFE manifesta seu agrado realização Op Bodião Decidido e resultados obtidos” (6).

A 24 de Fevereiro, efectua-se outra operação a nível de Batalhão (7) a fim de executar um golpe de mão conjugado com emboscadas em linha e batida na área compreendida entre o Rio Samba Uriel, o limite da ZA das CART 2413 e CCAÇ 2404 e estrada Xitole-Mansambo.

Das declarações prestadas pelo prisioneiro Festa (8), ficou a saber-se que o IN tinha um acampamento na região de Biro, junto à margem direita do Rio Bissari depois da confluência com o Rio Samba Uriel. Os efectivos eram estimados em 30 elementos, divididos em 2 grupos de 15 e dispondo de Mort 60, LGFog e armas automáticas.

A operação foi realizada por forças das CCAÇ 2404, CART 2413 e CCAÇ 12 (2º e 4º Gr Comb).O prisioneiro serviu de guia (8). No decorrer da acção, quando as NT progrediam na região de Galoiel/Biro, ouviram tiros de reconhecimento e aviso feitos pelo IN.

Encontraram-se trilhos batidos (especialmente o trilho assinalado na carta que conduz à foz do Rio Bissari e daí à região de Galo Corubal, apresentando indícios de ser utilizado por pequenos grupos IN em acções de patrulhamento) e grandes extensões de capim queimado, mas as NT não conseguiram localizar o acampamento IN (Op Leão Nómada) (9).
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Notas de L.G.

(1) Patrulhamento ofensivo com emboscadas nas regiões de (Vd. mapa do Xime):

(i) Mansambo, Culobó, (Xime 4H6-46), Seco Braima, Culobó, (Xime 4H6-46),
(ii) Xitole, Ponte dos Fulas, Satecuta, Bissau Novo, Benate, Ponte dos Fulas, Xitole…

(2) Unidades aquarteladas, respectivamente, em Mansambo, Xitole e Bambadinca. As duas primeiras eram unidades de quadrícula. A CCAÇ 12, constituída por soldados africanos e quadros metropolitanos, era uma unidade de interevenção, às ordens do BCAÇ 2852, até meados de 1970 (e depois do BART 2917, até ao final da sua 1ª comissão, em Fevereiro de 1971).

(3) Para saírem àquela hora de Mansambo, os 3 Gr de Comb da CCAÇ já se tinham deslocado umas largas horas antes, de Bambadinca para Mansambo.

Tal significou que alguém teve de picar a estrada e montar segurança na ZA da CART 2413. Nessa noite, obviamente ninguém dormiu. Tal como não dormiu na noite seguinte… Soldados e quadros da CCAÇ 12 eram um bando de noctívagos e sonâmbulos… Estávamos então em plena estação seca…

(4) Repare-se como escassos quilómetros em linha recta, nas matas da Guiné, levavam um dia a percorrer em corta-mato…Quando o sol estava a pique, não havia outro remédio senão procurar a sombra protectora e a fresquidão da orla da mata, circundante de uma bolanha ou lala, até às 4h00 da tarde… Homens e bichos reduziam ao mínimo a sua penosa actividade fisiológica…

(5) Vd post de 7 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXII: Assalto ao destacamento IN de Seco Braima, na margem direita do Rio Corubal (Janeiro de 1970, CCAÇ 12, CAÇ 2404, CART 2413)

(6) Em geral, o Com-Chefe só mandava mensagens destas quando havia ronco: no mínimo, apreensão de material de guerra, prisioneiros ou mortos IN, confirmados no terreno. Os burocratas da guerra do ar condicionado, em Bissau, sabiam que, por sistema, os operacionais, os do mato, tinham tendência para amplificar e hiperbolizar os seus feitos heróicos e contabilizar baixas no papel que não tinham qualquer correspondência no terreno… Em suma, todos, do alferes ao tenente coronel, queriam ficar bem na fotografia... Por causa das dúvidas, os paraquedistas fotografavam os cadáveres, quando havia tempo e vagar para isso…

(7) É de notar que neste sector (L1) qualquer operação implicava a afectação de importantes meios humanos: no mínimo, dois destacamentos, 6 grupos de combate, duas ou mais companhias... A desproporção de meios era flagrante: levávamos 150 a 250 homens, no mínimo, para andar à caça de 15 a 30 guerrilheiros... Esta região tinha sido palco de uma megaoperação, que mobilizou 1200 homens, entre miliatres e carregadores, onze meses antes: Op Lança Afiada, de 8 a 18 de Março de 1969: vd post de 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

(8) Vd. post de 19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado

(...) "Um dos homens capturados disse chamar-se Festa Na Lona, de etnia Balanta, estar alí a passar férias e pertencer a uma unidade combatente do Gabu. Foi-lhe apreendido uma pistola Tokarev (7,62, m/ 1933) e vários documentos" (...).

(9) Presto aqui a minha homenagem aos combatentes do PAIGC que, mesmo sob as duras condições (físicas e psicológicas) de cativeiro, eram capazes de nos ludibriar, a nós e aos nossos guias, e salvar os seus camaradas e a população afecta à guerrilha... Nunca cheguei a saber qual foi o destino dado ao Festa Na Lona, provavelmente recambiado para a região do Gabu, para ser de novo interrogado e forçado a servir de guia às NT...

Já vimos como, em operação anterior, a Op Boga Destemida, outro prisioneiro, Jomel Nanquitande, conseguiu fugir, debaixo de fogo, algemado e provavelmente ferido: vd post de 10 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXXVIII: Violenta emboscada em L (Op Boga Destemida, CCAÇ 12, CART 2520 e Pel Caç Nat 63, em Gundagué Beafada, Fevereiro de 1970)

(...) "O Dest A progrediu com o prisioneiro Festa em direcção ao objectivo, tendo passado por um acampamento com vestígios de abandono recente. Depois de progredir mais de 2 horas na direcção sul, e como o prisioneiro continuasse a dizer que era longe, contradizendo-se, o Dest A que só dispunha de 2 Gr Comb, entrou em ligação com o Dest B a fim de tomar uma decisão face à situação (...).

(...) "Cerca das 11.30h, o PCV sobrevoou a zona, quando o Dest B, já feita a cambança, armadilhava o local onde havia vestígios recentes do IN.

"Em marcha lenta, devido ao transporte do ferido em maca, os 2 Dest seguiram o trilho de Darsalame Baio-Gundagué Beafada, através do capim alto. Próximo da antiga tabanca beafada, cerca das 13h, as NT sofreriam uma violenta emboscada montada em L e com grande poder de fogo, especialmente de lança-rockets. A secção que ia na vanguarda do Dest B ficou praticamente fora de combate, tendo sido gravemente feridos, entre outros, o respectivo comandante e a praça encarregada da segurança do prisioneiro Jomel Nanquitande que, aproveitando a confusão, conseguiu fugir, embora algemado e muito provavelmente ferido" (...).

terça-feira, 9 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P737: Blogoterapia: A guerra que ainda não acabou (José Martins)

Texto de opinião do José Martins (enviado já há alguns dias):

Caros camaradas!

Durante anos quisemos esquecer que fomos combatentes. Pura ingenuidade. Agora recordamos, cada vez mais, e cada vez mais dolorosa é a recordação.

Quando quizemos falar, não nos deixaram. Não era politicamente correcto. Não era uma atitude revolucionária.

Os governos passaram a ser constituidos por aqueles que nunca vestiram uma farda, mas usavam-na para as fotografias dos jornais ou em visitas a forças militares em manobras ou no estrangeiro. Pareciam soldadinhos de chumbo.

Depois vieram aqueles que: OU ERAM MUITO NOVOS, PARA TEREM IDO À GUERRA DO ULTRAMAR, OU MUITO VELHOS, PARA QUE OS PAIS LÁ TENHAM ESTADO.

Resta-nos esperar que o actual COMANDANTE SUPREMO DAS FORÇAS ARMADAS, o primeiro Presidente da Républica de Portugal que, como nós, tambem foi combatente à força, envide esforços no sentido de mudar as coisas.

Como mudar as coisas, entendo, atender às dificuldades daqueles que, com marcas visíveis no corpo e/ou invisíveis na alma, sejam devidamente ajudados.

Veja-se a situação em que se encontram camaradas nossos que têm a vida completamente destroçada, e o futuro sem FUTURO.

Para nós, infelizmente, a guerra ainda não acabou.

José Martins
Ex-Furriel Miliciano
CCAÇ 5
Guiné, 1968/70