domingo, 4 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1493: Estórias de Madina do Boé (António Pinto) (2): Eu e o Furriel Comando João Parreira


Emblema do Grupo de Comandos Os Fantasmas (1965/66).

Foto: Tantas Vidas, blogue de Virgínio Briote (com a devida vénia).





Guiné > Bissau > Fins de Fevereiro de 1965 > O Furriel Miliciano Comando João Parreira, do Grupo de Comandos Os Fantasmas... "Esta foto foi tirada numa esplanada em frente ao Hotel Portugal, creio que se chamava Café Universal".

Foto: © João Parreira (2005). Direitos reservados.


Mensagem de 3 de Janeiro de 2007, enviada pelo António Pinto ao João Parreira:

Amigo João Parreira:

Pelas datas que apontaste nas duas últimas conversas, é muito natural que nós nos tivéssemos conhecido em Madina (1).

Já não consigo precisar quando fui para Beli, mas recuando no tempo e partindo do princípio que o ataque em Beli foi em Maio de 65 e eu já lá estava há algum tempo e a tragédia em Madina com os nossos Camaradas, que faziam parte da minha equipa, foi - segundo mo recordas - em Fevereiro do mesmo ano, tudo indica que nos devíamos ter encontrado.

Francamente não me lembro e não tive a mesma ideia que tiveste de ir apontando numa agenda notas do dia a dia. O que me tem valido são as fotos que mandava para a minha Mulher onde anotava, na parte de trás, a data o local e as pessoas que comigo estavam.

O que não me posso esquecer jamais é daqueles que deixaram este mundo, alguns nos meus braços, balbuciando a última palavra: MÃE.

Já lá vão 42 anos e ainda hoje sonho muitas vezes com este e outros factos, que, inevitavelmente, deixaram muitas marcas (2).

Amigo João Parreira, até breve. Sou dos mais novos, se não o mais novo na Tertúlia e não quero ser aborrecido. Mas a verdade é que apetece estar constantemente a falar com Camaradas, que parece já conhecer há muito tempo.

Passo os meus tempos livres, que agora são muitos, a visitar o site do Amigo Luís Graça.

Um grande abraço do

Pinto

_________

Notas de L.G.:

(1) vd. post de:

17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1437: Estórias de Madina do Boé (António Pinto) (1): a morte horrível do Gramunha Marques e o ataque a Beli em que fui ferido

3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1397: Ataque ao destacamento de Beli em Maio de 1965 (António Pinto, BCAÇ 512)

20 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1378: António de Figueiredo Pinto, Alf Mil do BCAÇ 506: um veterano de Madina do Boé e de Beli

(2) O grupo de Comandos Fantasmas perderam 9 homens na região de Madina do Boé, antes de serem extintos: 8 homens em 28 de Novembro de 1964 (junto do Rio Gobije, na estrada Madina do Boé para Contabane, a oeste); 1 homem em 8 de Dezembro de 1965:

Vd. post de 15 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)

Infelizmente, não temos 'on line' a carta de Gobije, contínua à de Madina do Boé.

Grupo Comandos Os Fantasmas

• António Joaquim Vieira Pereira, 1º Cabo Corneteiro Comando, natural de Santa Leocádia / Baião, inumado no cemitério de Santa Leocádia, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de Novembro de 1964;

• Artur Pereira Pires, Furriel Miliciano Comando, natural de S. Sebastião da Pedreira / Lisboa, inumado no cemitério da Ajuda em Lisboa, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de Novembro de 1964;

• Braima Seidi, 1º Cabo Comando natural de Buba / Fulacunda, inumado no Cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de Novembro de 1964;

• Eugénio Campos Ferreira, Soldado Condutor Auto Comando, natural de Vila Frescaínha (São Pedro) / Barcelos, e inumado no cemitério de Vila Frescaínha, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de Novembro de 1964;

• João Ramos Godinho, Soldado Condutor Auto Comando, natural de Valverde / Coruche, e inumado no cemitério de Coruche, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de Novembro de 1964;

• José da Rocha Moreira, Soldado Condutor Auto Comendo, natural de Arcozelo 7/7 Vila Nova de Gaia, inumado no cemitério de Arcozelo, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de Novembro de 1964;

• Manuel Couto Narciso, Soldado Condutor Auto Comendo, natural de Santa Catarina / Caldas da Rainha, inumado no cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de Novembro de 1964;

• Ramiro de Jesus Silva, 1º Cabo Condutor Auto Comando, natural de Valongo (Colmeias) / Leiria, inumado no cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de Novembro de 1964;

• Artur Mateus Martins, Soldado Cozinheiro Comando, natural de Olhão, inumado no cemitério do Alto de S. João - Lisboa, faleceu, no Hospital Militar Principal (Lisboa), vítima de ferimentos recebidos em combate em 28 de Novembro de 1964, no contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em
8 de Dezembro de 1965;

Guiné 63/74 - P1492: Álbum das Glórias (7): Eu, o Mário Soares, o grande cantautor de Coimbra, Luiz Goes, e o Spencer (António Pinto)


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > BCAÇ 506 > Abril de 1964 > Da esquerda para a direita: O Alf Mil António Pinto, o Mário Soares, comerciante de Pirada, o Alf Médico (e hoje conhecido como o grande intérprete do fado de Coimbra) Luiz Goes (1) e o Alf Mil Spencer.

Série Álbum das Glórias (2)


Foto: © António Pinto (2007). Direitos reservados (3).

______

Notas de L.G.:

(1) Vd. sítio Coimbra XXI, Gestão e Promoção Cultural > Sobre Luiz Goes (Reprodução do texto, com a devida vénia):

"Luiz Fernando de Sousa Pires de Goes

"Coimbra, 5 de Janeiro de 1933

"Licenciado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, em 1958, exerceu a profissão de médico estomatologista, em Lisboa, até 2003. Prestou serviço militar na Guiné como Tenente-médico, entre 1963 e 1965 [, BCAÇ 506].

"Iniciou-se no Fado de Coimbra por influência do seu tio, Armando Goes, um dos grandes cantores e compositores dos anos vinte, contemporâneo de Edmundo Bettencourt, António Menano, Lucas Junot e Paradela de Oliveira.

"Cantou pela primeira vez em público com apenas 14 anos de idade, numa festa do Liceu D. João III, em Coimbra, interpretando a Feiticeira, de autoria de Ângelo de Araújo. Já anteriormente tinha tido o privilégio de ser acompanhado, em convívios de antigos estudantes, por Artur Paredes, Afonso de Sousa e Francisco Menano, irmão mais velho de António Menano. Fez as primeiras gravações em 1953 com José Afonso, António Brojo e António Portugal.

"Enquanto estudante, integrou o Orfeon Académico, onde foi solista, e o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), sob a direcção do Prof. Paulo Quintela. Colaborou ainda com outros organismos académicos como o Coral da Faculdade de Letras e a Tuna Académica.

"Com José Afonso, Fernando Rolim e Machado Soares participou na gravação de discos de setenta e oito rotações, os primeiros depois da geração de oiro dos anos vinte, acompanhado por António Brojo, António Portugal, Mário de Castro e Aurélio Reis. ´

"Luiz Goes tem desenvolvido uma actividade artística regular enquanto cantor, compositor e poeta, sendo unanimemente reconhecido como o maior intérprete da segunda metade do século XX da Canção de Coimbra. Gravou vários LP´s sendo de destacar: Serenata de Coimbra (Coimbra Quintet), Coimbra de ontem e de hoje, Canções do mar e da vida, Canções de amor e esperança e Canções para quase todos.

"É Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique e recebeu a Medalha de Oiro da Cidade de Coimbra e a medalha de Mérito Cultural do Município de Cascais.

"Carlos Carranca disse, a 4 de Julho de 1998, aquando da cerimónia de entrega da Medalha de Ouro da Cidade de Coimbra a Luiz Goes:

"Dizia Teixeira de Pascoaes que a voz de Hilário "subia nas noites de Coimbra até se ouvir na lua". Ele era o primeiro grande cantor das inesquecíveis noites de luar da Velha Alta. Hoje, no dealbar do novo milénio, cem anos depois de Hilário, a voz de Luiz Goes enche a noite, universalizando a toada coimbrã, penetrando fundo na cósmica inquietação do Futuro. A alma de Coimbra é a voz de Luiz Goes e a voz de Luiz Goes é a voz telúrica e trágica da condição humana. A sua obra é um monumento humano. É obra moça. Não exibe velhices precoces, é fruto de uma personalidade riquíssima, de uma sensibilidade invulgar e de uma visão plural da vida.
"- É através de ti, da tua voz, das tuas interpretações, dos teus poemas, que Coimbra ultrapassa os limites da cidade, vai mais longe. Vai ao encontro de quem sonha, do homem só, adquire sangue novo. Chega mais longe porque tu lhe insuflaste a tua própria vida, lhe deste a tua inteligência e a tua criatividade inacessíveis aos que de Coimbra se contentam em imitar o estilo, a exibir erudição, a contabilizar louvores.

"Com Luiz Goes o canto de Coimbra rompe com a 'lamechice', desce às raízes, ganha autenticidade e sensualidade. Luiz Goes não só canta, como escreve sobre nós, e fá-lo apaixonadamente. Os labirintos da nossa alma profunda percorrem as nossas canções. São pedaços de nós, de Portugal, de uma paisagem física e humana que visceralmente somos. Seus versos pedem canto. E o que é cantar? É talvez o meio de sermos por fora o que somos por dentro. É escancarar o que nos vai na alma reduzindo a distância que nos separa. E não há forma mais perfeita de estar com os outros.

"Em Luiz Goes habitam as múltiplas influências do trovador inquieto e intemporal, do poeta, do respeitador da tradição no que ela possui de essencial, rejeitando exibicionismos vocais, poéticos saudosismos serôdios e intransigências reaccionárias. Luiz Goes é um cantor da Saudade. Mas de uma saudade que nos faz compreender que todos nós participamos num ser universal".

(2) Vd. post de 30 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1473: O álbum das glórias (6): A 'dolce vita' de Bolama (Joaquim Mexia Alves, CART 3492)

(3) Vd. post de 3 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1491: Gabu: Fotos com legenda (António Pinto, BCAÇ 506 e 512) (2): Nova Lamego, Pirada, Buruntuma, Senegal

sábado, 3 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1491: Gabu: Fotos com legenda (António Pinto, BCAÇ 506 e 512) (2): Nova Lamego, Pirada, Buruntuma, Senegal













Fotos: António Pinto (2007). Direitos reservados.

Mensagem do António Pinto, com data de 3 de Janeiro último, enivada ao José Martins:

Caro José Martins:

Permito-me enviar mais algumas fotos (1), que legendei, esperando que sejam recebidas em boas condições. Ainda não são de Madina e Beli pois ainda não as encontrei.

Como diz o teu neto, temos que ser os escritores da nossa história, para que ele, bem como as minhas netas (tenho 4) e também todos os netos dos nossos camaradas, percebam um pouco do que foi a nossa passagem por terras da Guiné.

Um abraço do

António Pinto
(ex- Alf Mil, BCAÇ 506 e 512,
Nova Lamego, Pirada, Madina do Boé, Beli,
1963/65)

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

23 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1456: Gabu: Fotos com legendas (António Pinto, BCAÇ 506 e 512) (1): Pirada e Piche

17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1437: Estórias de Madina do Boé (António Pinto) (1): a morte horrível do Gramunha Marques e o ataque a Beli em que fui ferido

3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1397: Ataque ao destacamento de Beli em Maio de 1965 (António Pinto, BCAÇ 512)

20 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1378: António de Figueiredo Pinto, Alf Mil do BCAÇ 506: um veterano de Madina do Boé e de Beli

Guiné 63/74 - P1490: Favores sexuais furtivos em Mampatá (Paulo Santiago)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Fevereiro de 2005 > À noite na Pousada do Saltinho: o Abdu, de gorro vermelho, o Paulo Santiago e Sado (1)

Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.

Texto do Paulo Santiago (ex-Alf Mil do Pel Caç Nat 53, SPM 3948, Satinho, 1970/72):

Luís:

Após ter lido o excelente post do Vitor Junqueira sobre a Fanta Baldé (2), não resisto, tenho de contar o meu primeiro encontro sexual, ocorrido na Guiné.

Estava há seis/sete meses sem saber o que era mulher. Tinha uma lavadeira, mas essa tratava-a com muito respeito, era mulher do meu soldado Fodé Sané, um dos meus
militares condecorados com Cruz de Guerra. Mulheres de soldados do 53 eram minhas irmãs, ninguém lhes tocava (Hei-de contar, um dia destes, um problema grave havido com um militar da CCAÇ 2701,quando tentou violentar uma dessas minhas irmãs).

Uma tarde, o Abdu, mandinga, chefe de tabanca do Saltinho, diz-me, meio em segredo, ter uma bajuda para descarregares baterias (3), nessa noite, na tabanca de Mampatá, onde ele esperaria por mim para me indicar a morança.

Claro,a partir desta conversa, a cabeça,propriamente dita, deixou de funcionar, passando os neurónios para a cabeça da... piça. Mal jantei, dando a desculpa de uma indisposição e de que iria dar uma volta até à tabanca do meu pessoal, que ficava no exterior do arame farpado do quartel.
Mampatá distava uns 2 kms do quartel, percorridos em marcha acelerada, levando como única arma a faca de mato no cinturão. Estava uma escuridão que mal dava para lobrigar a picada.

À entrada da tabanca, estava o Abdu, à minha espera e foi-me conduzindo pelo meio das moranças,até chegar a uma onde me indicou para entrar,tendo-se ele afastado. Entrei, meio encurvado, a porta era baixa, há uma mão que me puxa, não dizemos qualquer palavra, não consigo ver a cara da mulher, se era nova ou velha. Falando portuguesmente foi uma foda à coelho.

Após consumação do coito, dou por mim meio aterrorizado. Puxo as calças para cima, agarro no cinturão e raspo-me dali para fora.Chego ao quartel ofegante.

Andei montes de tempo sem contar esta cena a ninguém, arrepiava-me só de pensar nela. Poderiam ter-me cortado a cabeça, a de cima, a que pensa,ou poderiam apanhar-me à mão. Nenhum outro militar sabia onde tinha ido naquela noite.

Após a independência vim a saber que o Abdu era o homem do PAIGC na zona. Em Fevereiro de 2005, tentei sacar-lhe se a intenção daquele convite não seria para ter outro resultado. Disse já não se lembrar do acontecido.

Putas, só mais tarde, quando estava em Bambadinca e aos Sábados lá ía, com o amigo Vacas de Carvalho, a Bafatá. Histórias para outra altura.

Abraço
Paulo Santiago

_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 30 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P926: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (3): Saltinho e Contabane

(...) "Vem o Rui, encarregado da pousada, chamar-me pois anda o homem grande à minha procura- era o Abdu, mandinga, chefe de tabanca do Saltinho, negociante de vacas e magarefe de serviço na 2701, e, soubemo-lo mais tarde, homem do PAIGC na zona... Abraçamo-nos fortemente e, penso, que consegue estar mais emocionado que eu própio. Sentamo-nos a lembrar o arroz à Abdu que ele fazia de forma magistral. Pergunta-me por muitos ex-militares da 2701, por alguns dos meus furriéis do 53, falamos de vários assuntos, até sobre canhotos, aqueles cachimbos tradicionais" (...).

(2) Vd. post de 31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação (Vitor Junqueira)

(3) Expressões equivalentes, no nosso jargão porno-militar, machista e sexista, da Guiné: dar uma cambalhota, mudar o óleo, partir catota, dar uma penachada... Não se pense, no entanto, que no nosso tempo nos comportávamos como tropa ocupante: na generalidade dos casos, e pelo menos no consulado de Spínola, as relações com a população que estava do nosso lado pautavam-se por regras (mínimas) de civilidade, de decoro e até de respeito pelas suas tradições e pela sua cultura...

Depois do primeiro choque cultural com comunidades e grupos humanos com valores e práticas sociais muito diferentes da nossa sociedade de origem, o soldado português rapidamente se adaptava e, nalguns casos, até sabia tirar partido das situações - por exemplo, em termos de favores sexuais por parte das mulheres ...

Não se pense que a prostituição - geralmente associada à presença de um ocupante estrangeiro ou de um forte contingente militar, em situação de guerra - estava generalizado a toda a Guiné... Na zona leste, por exemplo, Bafatá, sede de concelho e centro da máquina de guerra, era praticamente o único sítio onde o comércio do sexo funcionava segundo as leis da oferta e da procura... É claro que em Bambadinca (ou em Nova Lamego) também havia mulheres que faziam favores sexuais ou alinhavam em farras, mas o controlo social da comunidade era maior... Em Bafatá bastavam os pesos; em Bambadinca, o tuga tinha que saber também tirar partido da sua capacidade de sedução...

E é bom que se diga que, na Guiné, no nosso tempo, lavadeira não era sinónimo de criada para todo o serviço... A maior parte das mulheres e bajudas da Guiné que trabalhavam para a tropa, nomeadamente na zona leste - como lavadeiras, por exemplo - , deram provas de grande dignidade e humanidade, apesar da sua pobreza e do assédio sexual a que estavam sujeitas...

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1489: Tabanca Grande (5): Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico, Catió, BCAÇ 2930

Guiné > Região e Tobali > Catió > CCS do BCAÇ 2930 (1970/72) > O Alf Mil Médico Amaral Bernardo.



Porto > 2007 > Amaral Bernardo, Professor Catedrático Convidado no ICBAS - Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar; responsável do Departamento de Ensino Pré Graduado do HGSA - Hospital Geral de Santo António, Porto.

Fotos: © Amaral Bernardo (2007). Direitos reservados.

Luís:

Com este e-mail e estas fotografias formalizo a minha entrada para a família da guerra da Guiné que faz deste Blogue (propositadamente com maiúscula) o seu ponto de encontro para partilha de vivências que, de outro modo, teriam que continuar a ser ruminadas e recalcadas na solidão da nossa angústia - as boas e as péssimas.

Foi pela mão do Paulo Salgado, meu amigo, que diariamente, quase desde o princípio, aqui venho - com atenção e muita emoção, como já disse. E desde o princípio me senti sempre em família.

Aceito, pois, o teu convite e prometo cumprir as regras e partilhar... mesmo as minhas críticas frontais e abertas (se as houver).

Neste momento não posso fugir ao lugar comum de te felicitar por esta iniciativa cujos resultados estão à vista. Mesmo quande se discorda ocasinalmente.

Cumprimento também todos os que já fazem parte desta família.

Abraço

Amaral Bernardo

(CCS / BCAÇ 2930, Catió, 197o/72)

2. Comentário de L.G.:

Reiterando o que já te disse, em privado, estás triplamente em casa, neste nosso blogue: és um camarada da Guiné e um homem da saúde, além de professor, formador de médicos e outros profissionais de saúde. São três características que temos em comum: se lhe juntarmos o facto de termos um amigo em comum que se chama Paulo Salgado, já são quatro. Se te disser que tenho uma costela nortenha pela via do casamento (a minha mulher é do Marco de Canaveses e tenho numerosa e fantástica família no Porto), então já são demasiadas coincidências... Mas tu estás, por mérito próprio, nesta grande família que são os amigos e camaradas da Guiné... Ficamos honrados com o teu pedido (formal) de adesão à tertúlia. Já reparaste que é gente do melhor, amiga do seu amigo, camarada do seu camarada... Terás de arranjar algum tempo para nos contares as tuas estórias de médico no martirizado sul da Guiné... LG

_________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

30 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1474: O capelão Mário Oliveira, de Catió, que ia a Bedanda (Mário Bravo)

29 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1471: O tenente miliciano capelão Mário Oliveira, Catió. BCAÇ 2930 (Amaral Bernardo)

12 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1363: Questões politicamente (in)correctas (13): Combatentes e desertores não cabem no mesmo saco (Amaral Bernardo)

Guiné 63/74 - P1488: Vídeos (1): Reportagem da RTP sobre os talhões e cemitérios militares no Ultramar (Jorge Santos)

Informação que nos chega, amavelmente, pelo nosso camarada Jorge Santos, membro da nossa tertúlia e editor do sítio Guerra Colonial Portuguesa:


EM REPORTAGEM - DOR ADORMECIDA

Programa da RTP, de 20 de Setembro de 2006, sobre os talhões e cemitérios militares em Angola, Guiné e Moçambique.

Trinta anos depois do fim da guerra colonial, existem famílias que estão interessadas em transladar os restos mortais dos seus parentes e pretendem pedir ajuda ao Governo português. A última trasladação dos restos mortais de um militar falecido nas ex-colónias ocorreu em 2003 (1).

Entrem no link abaixo indicado e vejam a reportagem na íntegra (em vídeo de 15 m). Inclui imagens dos cemitérios militares de Bissau e Bambadinca (este completamente abandonado):

http://www.rtp.pt/wportal/informacao/reportagem/

Cumprimentos
Jorge Santos

___________

Nota de L.G.:

(1) Sobre este dossiê (doloroso) , vd. os seguintes posts:

28 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1468: Mortos que o Império teceu e não contabilizou (A. Marques Lopes)

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1453: Ninguém fica para trás: uma nobre missão do nosso camarada ex-paraquedista Manuel Rebocho

25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

26 de Setembro de 2006 > né 63/74 - P1117: Reabilitação de talhões e cemitérios militares nas antigas colónias (Jorge Santos)

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1108: Cemitérios militares: chocado com o programa da RTP1 (Paulo Santiago)

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1106: A ubiquidade dos nossos mortos (Zélia)

21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1099: O cemitério militar de Guidaje (Manuel Rebocho, paraquedista)

20 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1093: Programa da RTP1, hoje, às 21h, sobre as campas abandonadas dos nossos mortos (José Martins)

28 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P919: Vamos trasladar os restos mortais dos nossos camaradas, enterrados em Guidage, em Maio de 1973 (Manuel Rebocho)

30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P1487: Blogoterapia (17): As nossas leituras em tempo de guerra (Beja Santos)

Mensagem do Beja Santos, com data de 11/1/2007:

Caro Luís:
Como é bom revisitar as leituras de juventude, textos que foram importantes no teatro de guerra.

Agradeço-te sempre com alegria o bem que representa agora na minha vida escrever o que julgava tão íntimo e intransmissível.

Teu,
Mário.

Guiné 63/74 - P1486: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (31): Abelhas africanas assassinas

Guiné > Zona Leste > SEctor L1 > Pel Caç Nat 52 > Outubro de 1968 > Operação Meia Onça > Em primeiro plano, o Alf Mil Beja Santos a caminho de Amedalai e Taibatá... "As minhas filhas descobriram esta foto que alguém me tirou naquele dia 13 de Outubro. Da Meia Onça já se falou no blogue: um fiasco que serviu para nos mortificar, sobretudo a CART 2339 [, Mansambo, 1968/69]. Eu usava estes óculos que ficaram destruídos pela mina anticarro de Canturé, em Outubro de 1969" (BS)

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Texto enviado em 10 de Janeiro de 2007. Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).

Caro Luís, aqui vai o texto da semana. Farei a referência a duas obras literárias que seguirão pelo correio, e confesso-te que são graficamente muito belas. Como igualmente faço referência aos bilhetes postais que a família e os entes queridos mandavam, tu farás o registo dos que entenderes. Se me permites alguma sugestão para fotografias, tens aí apontamentos sobre Missirá, seja os recentemente chegados por via do Luis Casanova seja daqueles que te tenho vindo enviar (por exemplo, a dar escola aos milícias). As minhas filhas descobriram uma fotografia a cores, quando eu ia a caminho do Xime para a Operação Meria Onça. Vou digitalizar-te e enviar-te para a semana. Recebe um grande abraço do Mário.


Aquelas abelhas eram sempre assassinas!
por Beja Santos

Os dois tiros rasgaram a noite exactamente quando eu lia o aerograma do Pedro Abranches, dando notícias do estado de saúde do Paulo Ribeiro Semedo. O Pedro Abranches era médico de análises clínicas no HM 241, casado com uma enfermeira colega da minha irmã, e fora visitar o sinistrado do presépio de Chicri. O Paulo acabara de ser evacuado para a metrópole para o Hospital da Estrela e estava fora de perigo. Nessa altura o diagnóstico, segundo o Pedro Abranches, ainda era favorável: "Da vista conseguirá recuperar, depois de um período de expectativa em que parecia que a ia perder. Tem o membro superior esquerdo completamente paralisado devido a estilhaços que lhe cortaram nervos fundamentais. Com fisioterapia poderá recuperar parcialmente".


A honra de macho lava-se aos tiros

Aos dois tiros sucedeu-se uma algazarra, da algazarra passou-se a um formidável coro de tragédia grega, abro a porta da cubata onde se forma um ajuntamento e Trilene Camará, um soldado que os camaradas chamavam "homem curto" (homem baixo) avança para mim com o rosto congestionado:
-Alfero, apanhei a Sali a dormir com o Mamasamba, venha ver a cama!

Perguntei de quem eram os tiros e a resposta do amante enganado foi de que procurara atingir os adúlteros, em vão. Chamo o régulo, a quem entrego a administração desta justiça, e avançamos para a cubata de Trilene, não sem eu ter dito ao Cherno para procurar encontrar Mamasamba e escondê-lo no armazém dos víveres.

O coro grego seguia-nos, vistoriámos um catre com roupa desarrumada, procurei, com o beneplácito de Malã Soncó, tranquilizar o desditoso marido que dentro em pouco nos acompanharia na Operação Andorra. Pedi ao Trilene que não se esquecesse que era soldado, todo o julgamento desta situação ficaria a cargo do régulo, tudo seria apreciado e decidido dentro de dois dias. O desconsolado a tudo dizia que sim de cabeça baixa mas rematou de cabeça erguida:
-Eu quero é que a família dela me dê uma vaca mais 3200 escudos que foi quanto me custou

Pedi a alguns soldados, e sobretudo ao Domingos Silva, que vigiassem Trilene até de madrugada, para evitar disparates e mais tiroteio avulso.


Operação Andorra e a memória de elefante do Quetá Baldé

Voltei para a cubata e pedi para me chamarem Quebá Soncó, o nosso picador. Sentámo-nos e terei dito algo como isto:
- Quebá, está a chegar um pelotão que ficará em Missirá enquanto nós partimos com toda a milícia para fazer um grande reconhecimento nas lalas de Paté Gidé, descer por Sancorlã em direcção ao rio de Biassa e cerca de 12 Km à frente contornar o rio de Ganturandim , atravessar para Salaquinhé e sair em Chicri, acima de Mato de Cão. Prevejo cerca de 40 horas de marcha, dormiremos uma noite muito perto de Madina. Peço-lhe para ir com os olhos muito abertos. Pretendo saber exactamente quantos caminhos saem de Madina até ao Geba. Num deles emboscaremos até um dia. Seja franco comigo, fale sempre verdade comigo, sempre que houver trilhos novos, vestígios da passagem recente de gente que vai aos Nhabijões ou para Santa Helena ou Mero, diga-me logo.

A Operação Andorra deixou marcas em nossas vidas de combatentes: foi penosa, pôs-nos os nervos à prova e terá sido provavelmente a gota de água da luta feroz que a partir daí Madina nos vai desencadear. Pessoalmente, aprendi que existia um inimigo oculto na mata, tão ou mais letal que o fogo: as abelhas. Não há relatório da Andorra e por essa razão recorri à memória prodigiosa de Queta Baldé:
-Lembro que saímos ainda de noite, o capim todo molhado, era capim de época seca, muito alto, molhava até ao pescoço. Havia lua, tínhamos dois cajueiros à direita, frente à porta de armas, e virámos para Cancumba, onde nosso alfero gostava de ver as árvores do pau de sangue. Como sou de Amedelai, negociava muito com a ponta de Sancorlã. Vendiam ali aguardente e amendoim. Fizemos bem o caminho porque eu conhecia os trilhos velhos e indiquei-os ao Quebá. Fomos de Cancumba até Paté Gidé, não havia nada a não ser floresta fechada, à volta da ponta tínhamos laranjeiras, eu conhecia aqueles campos onde antes da guerra se plantava milho, mandioca e arroz. Caminhámos com as fardas molhadas, metemo-nos na lama, depois veio o Sol e depois choveu, e a seguir voltou o sol. Em Sancorlã, também nada. Nosso alfero disse ao Quebá para descer ao rio de Biassa, passando por Tumaná. Se até aí não tínhamos avistado nada, quando saímos para Biassa encontrámos um trilho que tinha usado há algum tempo. Uma hora depois, entrámos no velho trilho onde antes da guerra eu fora fazer comércio a Madina. Mas estava tudo abandonado, só íamos encontrando javalis, cabras de mato e porcos espinhos. Quando eu era menino ia com o meu paizinho por este caminho até Sarauol, que durante a guerra passou a ser um local terrível onde as tropas não iam. Lembro-me também que Cibo Indjai me substituiu nesta altura a orientar Quebá Soncó. À volta de Madina, nas bolanhas, havia sentinelas permanentes e pedimos a nosso alfero para descermos dentro do mato fechado como se fôssemos em direcção a S. Belchior. Caminhávamos para o fim do dia, quando se descobriu um trilho fresco perto de Iaricunda. Atravessámos em direcção a Sinchã Corubal e aí jantámos e montámos emboscada junto do trilho. Foi uma noite sossegada e ao amanhecer subimos para o interior, era um trilho que avançava para Chicri. Foi aí que nosso alfero, quando viu marcas no chão mandou montar nova emboscada.

Abelha, abelha!!!...

Eu olho banzado para este homem a quem só falta perguntar o nome de todos aqueles que ali estavam... na verdade, é acima de um palmeiral em Mato de Cão que usamos a convencional meia lua e no pressuposto que iríamos surpreender um contigente que viesse dos Nhabijões com sal, tabaco e outros produtos necessários à vida em Madina/Belel. As horas passam, as fardas ensopam, a vigilância perigosamente quebra. Eis então que levo uma cotovelada do José Jamanca que cicia ao meu ouvido direito:
-Vem um grupo mas de Madina para Chicri!
-Manda todo o grupo emboscado inverter a posição - respondo-lhe - e passa a palavra de que serei o primeiro a disparar, orientando o fogo de dilagrama e morteiros. Até nova ordem os bazuqueiros não trabalharão dentro daquela mata densa.

É um trilho enorme, bem sulcado e eu avisto à distância de centenas de metros. E quando vários vultos entram na minha mira mando despejar os morteiros sobre a coluna de Madina e disparo uma rajada para o interior da picada, onde avançam vultos em marcha apressada. Mas a coluna vinha preparada para reagir e reagiu desta vez. A floresta é um clamor de descargas, a folhagem desfaz-se, os ramos partem-se, os gritos de fúria e pesadelo misturam-se. Peço a dois apontadores de dilagrama para responderem aos RPG2 que não param de trabalhar.

Respondem e segue-se o alívio de um silêncio sepulcral. Grito para avançarmos e avançamos centenas de metros, até onde estava a cabeça da coluna. Como um mês atrás, encontrámos esteiras, sacos de comida, carregadores e uma arma semiautomática. Chamam-me a atenção para vestígios de sangue, há quem se prepare para uma caça ao homem. Mas a coluna inimiga fincara-se talvez um quilómetro atrás e despejou fogo na nossa direcção. Escondidos atrás das árvores, procuramos ver onde disparam as kalash e as bazucas. É nesse preciso instante se ouvem vozes estridentes que semeiam o pânico:
- Abelha, abelha, toca a fugir!.

É um espectáculo assombroso o que se segue e vejo de pé, impotente, incapaz de qualquer reacção: à distância, os guerrilheiros de Madina gritam e fogem, correndo por mim em pânico, os soldados de Missirá fogem. Fogem sacudindo-se batendo com as mãos no peito e nas pernas. Fogem com uivos de dor. Aquela indecifrável cena apocalíptica levanta-me o ânimo e por pura imitação desato a correr. É mais à frente que consigo que o Quebá me explique o que se está a passar: os tiros destruíram os favos, as abelhas atacam. As abelhas podem matar, irei aprender.

Mais tarde, em Março, quando entrar no HM 241 para ser operado assistirei à chegada de uma companhia de fuzileiros que caíra debaixo de um enxame de abelhas, entraram com o corpo todo inchado, alguns em estado de profundo choque, urrando com aquele sofrimento inusitado de abelhas que atacam quando se sentem perseguidas ou sentem o cheiro do suor ou do sangue.

É nesta atmosfera de dilúvio e derrocada que o soldado Sadibi Camará larga duas granadas e ouve-se uma explosão e a seguir um clamor de sofrimento: Sadjo Seidi tem as duas pernas estilhaçadas por uma granada ofensiva que se desencavilhou. Exactamente como um mês atrás retiramos com um ferido (felizmente menos grave), seguimos de Chicri para Gambaná, atravessamos em passo estugado para Malandim e ficamos em Finete a aguardar um helicóptero que o Teixeira chamara entretanto. Sadjo irá recuperar de uma das pernas, a outra deixou-a coxear para todo o sempre, devido a ferimentos no joelho e calcâneo.


Os livros do mês

Aprendi muito com as abelhas. Elas irão reaparecer no próximo mês, na Operação Anda Cá, onde seremos obrigados a regressar ao local do acidente para recuperar bazucas e morteiros, e também a Mansambo e na região do Xime, como aqui se irá contar. O lastimável disto tudo é que íamos tendo, todos nós, um saber de experiência feito, sem nenhuma indicação, sem sabermos quais as reacções mais adequadas perante esta fúria biológica. Quem diz abelhas diz macaréu, diz travessias de riachos, tornados e até doenças cuja existência nos era completamente desconhecida.


Capa do romance policial de SS. Van Dine, A Série Sangrenta. Lsiboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Vampiro, 30). Capa de Cândido Costa Pinto.
Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Volto para Missirá, onde nos esperam as obras, as aulas, um quotidiano fervente. No regresso ouvimos as explosões das morteiradas com que em Madina se espera um inimigo que já está longe. Em Missirá espera-nos o aconchego do banho e uma carne assada preparada por Jobo Baldé. Com o corpo moído e a convicção que amanhã regressaremos a Mato de Cão, vou para a minha cubata ler o correio que me foi entregue em Finete.

Capa da novela de Ernest Hemingway, O Velho e o Mar. Lisboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Miniatura, 41). Capa (falubosa) de Bernardo Marques.

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Os postais ilustrados dos nossos amigos e familiares

Já vos falei dos bihetes postais que enviei sobretudo a partir de Bissau e Bafatá. Uma palavra para os bilhetes postais que vinham de Portugal até este ponto obscuro da floresta silenciosa:

A Cristina manda-me um marco do correio e insinuações que apontam para um casal de namorados. Se era verdade que suspirávamos pelo correio, convém agora relembrar que as nossas notícias, quando faltavam, ou se atrasavam, quebravam o ânimo dos nossos entes queridos. A minha irmã dá-nos notícias da família e manda-me um avião da TAP a sobrevoar impossivelmente o velho Aeroporto da Portela, como a recordar-me que eu era bem vindo a qualquer momento. O meu irmão agradece lembranças do Natal através do Palácio da Pena, com as pinturas da época. E a minha mãe escreve-me de S. Pedro do Sul com uma panorâmica de Vouzela e um velho comboio a atravessar a ponte. Espero que os historiadores do séc. XXI cuidem da função determinante que estes bilhetes postais tiveram nos nosso ânimos, substituindo palavras, acentuando sentimentos, gritando ausências.

Portugal > Bilhete postal > Edição Lifer - Porto, s/d. Colecção Postales Escudo de Oro > Impresso en España / Print in Spain, Barcelona / Nº 516 > Vouzela (Portugal) > Vista panorâmcia / Panoramic view / Vue panoramique...

Enviado ao Alf Mil Mário Beja Santos, SPM 3778, por sua mãe: "S. Pedro do Sul, 27/8/1969: Meu estimado e querido filho: Estou sem notícias tuas há uma semana. Mas possivelmente [há] atrasos na correspondência... De Lisboa, escrever-te-ei uma longa carta. Peço que rezes pelas minhas melhoras e que as águas produzam o seu efeito na minha saúde. Sigo com o Rudolfo para casa. Estive aqui 15 dias. Vês como é lindo, este sítio ? Muito tenho pensado em ti, meu querido filho. Como estarás de saúde ? (...).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

Há entradas e saída no nosso contigente militar. Chegou o Benjamim Lopes da Costa que veio substituir o Paulo. O Benjamim será um camarada inesquecível, mesmo quando, cheio de sofrimento, lhe darei voz de prisão após uma emboscada em que ele perdeu a cabeça e me chamou assassino. Cimentámos uma grande amizade que durou até 1990, ano da sua morte num estúpido acidente. E leio, leio desalmadamente. Primeiro, o épico que é O Velho e o Mar, por Ernest Hemingway. Nunca me cansarei desta narrativa em que um velho marinheiro, de nome Santiago, lá para Cuba, persegue um espadarte com 5 metros de comprimento, ganhando a luta mas perdendo a carne da presa, devorada por tubarões. Luta metafórica da nossa vida, vitória sobre o silêncio e sobre a solidão no alto mar: "Mesmo no alto mar, um homem nunca está só", escreve Hemingway. O herói policial do escritor S. S. Van Dine é o fleumático, super chique e super intelectual Philo Vance. O romance que devorei em duas horas livres é A Série Sangrenta, a tragédia dos Greene, um clã de multimilionários de Nova Iorque que vão sendo abatidos em casa, contrariando toda a lógica, graças a um génio diabólico que se vai revelar impotente perante os dotes de análise desse investigador gastrófilo, amante de porcelanas chinesas, mestre de esgrima e profundo conhecedor da música renascentista. Estes livros suavizam as asperezas do barro do quotidiano, uma roda que não pára de dançar.

Vem aí Fevereiro, mês em que vou ser punido, irei a Quebá Jilã donde traremos um prisioneiro, segue-se a tragédia da Anda Cá e temos por fim a Operação Fado Hilário, uma ida à base de Galoiel, salvo erro na companhia do Torcato Mendonça, e numa operação capitaneada por Laranjeira Henriques, de quem tenho saudades. Vamos então contar.
_______

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá

Guiné 63/74 - P1485: Bambadinca revisitada... ou os azares de um operador cripto em fim de carreira (Gabriel Gonçalves, CCAÇ 12)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca (vd. mapa da região)

Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste).

Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3), assinalado também cum círculo a vermelho.

A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole.

De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).

Apesar do apartheid (leia-se: segregação sócio-espacial) que vigorava, não só na sede dos batalhões, como em muitas unidades de quadrícula, uns e outros, oficiais e sargentos, tinham uma cozinha comum (19).

Do lado direito, ao fundo, a menos de um quilómetro corria o Rio Geba, o chamado Geba Estreito, entre o Xime e Bafatá. O aquartelamento de Bambadinca situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste). São visíveis as valas de protecção (22), abertas ao longo do perímetro do aquartelamento que era todo, ele, cercado de arame farpado e de holofotes (24). A luz eléctrica era produzida por gerador...

Junto ao arame farpado, ficavam vários abrigos (26), o espaldão de morteiro (23), o abrigo da metralhadora pesada Browning (25). Em 1969/71, na altura em que lá estivemos, ainda não havia artilharia (obuses 14).

A caserna das praças da CCS (11) ficava do lado oeste, junto ao campo de futebol (3). Julgava-se que o pessoal do pelotão de morteiros e/ou do pelotão Daimler ficava instalado no edifício (12), que ficava do outro lado da parada, em frente ao edifício em U. Mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14). Creio que por detrás ficava o refeitório das praças.

Em frente havia um complexo de edifícios de que é possível identificar o depósito de engenharia (15) e as oficinas auto (16); à esquerda da secretaria, eram as oficinas de rádio (17).Do lado leste do aquartelamento, tínhamos o armazém de víveres (20), a parada e os memoriais (18), a escola primária antiga (19) e depósito da água (de que se vê apenas uma nesga).

Ainda mais para esquerda, o edifício dos correios, a casa do administrador de posto, e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do Alf Mil Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12).

Esta reconstituição foi feita pelo Humberto Reis, completada por mim (LG) e, mais recentemente, pelo Gabriel Gonçalves (GG), que identificou novos sítios: cantina (27), posto de rádio (28), refeitório das praças (29) e centro cripto (assinalado com uma seta no topo do edifício 5).


Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Mensagem do Gabriel Gonçalves (ex-1º Cabo Op Cripto da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71):

Caro Henriques:

Junto devolvo a imagem (que me pediste para ver, comentar e corrigir), com a identificação da cantina (27), posto de rádio (28), refeitório das praças (29) e centro cripto (assinadado com uma seta no topo do edifício 5).

Como tu dizes, realmente eu estive trancado no quartel, mas foi durante 22 meses, porque o meu periquito não chegou e, segundo me constou, o rapaz era sobrinho de um tenente-coronel e deu baixa ao hospital. Quando deram nota da ocorrência para a repartição de sargentos e praças, o responsável que recepcionou a nota esqueceu-se de nomear um substituto e lá fiquei eu a ver-vos partir e a gramar mais dois meses daquela merda.

Aqueles dois meses foram os piores da minha vida... de tal maneira que em dada altura resolvi deixar de alinhar na escala de serviço, com a anuência dos meus superiores, passando apenas a dar apoio aos periquitos.

Como tinha mais tempo disponível passei estupidamente a dedicar-me às bazucas [, garrafas de cerveja de 0,6 ], e dessa forma andava anestesiado o que me trouxe alguns dissabores. Um dia, estava eu sentado na cantina a saborear uma bazuca, quando apareceu o cripto do Xime que me convenceu a ir na coluna que ia para o Xime, porque os gajos tinham lá um grande petisco, tratava-se de um belo cabrito assado com batatinhas.

E lá fui eu todo contente, mas como estava anestesiado esqueci-me de avisar a malta de Bambadinca, que andaram toda a noite à minha procura. Ao fim da manhã do dia seguinte, como eu não aparecia, resolveram comunicar o meu desaparecimento aos superiores, pensando que eu tinha sido apanhado à mão. Quando já iam na direcção do edifício do comando, entrou pelo quartel dentro a coluna do Xime, com o belo do GG ainda não refeito da noitada. Quando os gajos me viram, foram direitos a mim, chamaram-me todos os nomes que lhes veio à cabeça (podes imaginar que nomes é que me chamaram) e o Chaves, o cripto do BCAÇ 2917, pregou-me uma pera na tromba que ainda hoje me doi.

Se os gajos tivessem ido comunicar o meu desaparecimento, as consequência para mim teriam sido bastante graves, pois com o meu desaparecimento todos os PSRT (*) de toda a Guiné teriam de ser destruídos e substituídos e eu, no mínimo, ia de cana com uma valente porrada e em vez de 22 meses ficava a apodrecer na prisa.

Um grande abraço
Gabriel

(*) Publicações do Serviço de Reconhecimento das Transmissões.

Comentário: GG: Não te conheci essa faceta...Sempre foste um gajo muito aprumado e disciplinado. Imagino o inferno que terão mais esses dois meses de Guiné - Março e Abril de 1971, não ? ... Olha, já não me lembrava que lá tinhas ficado à espera do desgraçado teu periquito... Obrigado, por esta revisitação de Bambadinca onde, para o bem e para o mal, passámos um grande bocado dos nossos verdes anos... Um abraço, camarada!

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores do GG:

26 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1464: Oficiais, sargentos e praças: tropa é tropa, uísque é uísque (Gabriel Gonçalves / Luís Graça)

18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1377: CCAÇ 2590/CCAÇ 12: Apresenta-se o 1º Cabo Operador Cripto Gabriel Gonçalves

Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

Guiné > Região do Oio > Mansoa > Bajuda Balanta > Série de postais ilustrados do tempo da Guiné Portuguesa, s/d nem editor... Colecção do nosso amigo e camarada José Casimiro Carvalho (ex-fur mil op esp, CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1973/74).

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.


Um estória do Albano Costa (ex-1º cabo da CCAÇ 4150, Guidaje, 1973/74), que já está em arquivo há uns dois ou três meses... Ele vive e trabalha hoje em Guifões, Matosinhos. Se lá forem perguntem pela FotoGuifões... O Albano é a gentileza em pessoa.

Caro Luís:

Quando cheguei à Guiné, fomos logo directos para o Cumeré. Lembro-me de termos chegado a um sábado de manhã. Tudo era diferente, tudo era estranho. Fomos em coluna militar, mas nada parecido com as que fazíamos no mato. A viagem foi feita numa Berliet, íamos acomodados como os porcos, todos a monte. A população local fez uma grande festa no trajecto de Bissau até Safim, a chamar piu-piu, periquito vai pró mato...Para mim tudo era novidade.

Depois de acomodado no Cumeré, uma das minhas primeiras prioridades era vir à cidade encontrar-me com um colega que tinha a informação de estar na Manutenção Militar. E então, quando me encontrei com o velhinho, meu amigo, pedi-lhe para me levar ao Pilão, às bajudas...

Então lá fomos os dois, e no caminho fui avisado sobre os preços que na altura eram praticados:
- Se for guineense, são 50 pesos; se for caboverdiana, são 100 pesos.

E lá fui eu, cheio de vontade. Quando lá cheguei, o meu amigo foi dar a volta dele e eu fiquei um pouco à deriva, sem saber o que fazer...

É que eu estava há 24 horas na Guiné e num sítio que era sempre preciso ter cuidado e, para mais, dava para perceber que era periquito... Então esperei pelo meu amigo, até que ele entretanto chegou e eu falei do que estava a ver, nenhuma me interessava a não ser aquela com quem ele foi mas essa, eu não a queria naquele momento, por razões óbvias...

Fomos a outro bar e aí eu acabei por escolher uma guineense que parecia mais caboverdiana do guineense, mas como o meu amigo me tinha dito que guinenese era só 50 pesos, eu ao puxar pelo dinheiro, lembro-me que não tinha ainda pesos mas sim escudos... Só que, como o apetite era grande, eu não me importava nada de pagar em escudos, mesmo sabendo que valia mais qualquer coisinha...

Guiné > 1971 > Cópia de nota de 50 escudos (pesos) da Guiné. Frente. Banco emissor: BNU. Imagem gentilmente enviada pelo Sousa de Castro (CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74):
Foto: © Sousa de Castro (2005). Direitos reservados.



Entretanto, a companheira furtiva, ao ver notas de 50 e 100 escudos, vendo que eu era periquito, pede-me 100 escudos... Aí eu disse:
- Não, se quiseres são 50 escudos; se não quiseres, vou-me embora.

Ela disse que não, e aí eu vim embora a seco.O meu amigo. quando chego à beira dele tão rápido ficou admirado, e disse
- Já ?! ... Nem deu tempo para tirar a roupa!...

Então, eu contei-lhe o sucedido e ele disse-me:
- Fizeste bem, vamos a outro bar.

Ora bares era o que não faltava no Pilão ou Cupilon... Eu respondi-lhe:
- Agora já perdi a vontade, amanhã eu venho cá outra vez para saciar o desejo... - E assim aconteceu.

Cambiei os escudos por pesos, a diferença não era assim muito mas era alguma coisa, e lá fui com a caboverdiana por cem pesos.

Depois fui para Guidaje, não havia nada, era como já disse uma terra de ningém, só lá existíamos nós e a população civil quase toda ligada aos militares da CCAÇ 19. Era um pouco difícil, não se passava nada, uma autêntica pasmaceira. Mas eu, como fotógrafo, consegui arranjar uma lavadeira, e para todo o serviço. Nunca lhe paguei propriamente os favores sexuais, embora me tivesse ficado mais cara... Julgo que era também por prazer que ela vinha ter comigo ao meu quarto...

Estava só com um colega, ele já sabia, pelo que quando ela vinha buscar a roupa ele ia dar uma volta. E por isso todo o tempo que estive em Guidaje, foi sempre a mesma. Ela era casada. O marido tinha mais de uma mulher e, por motivos de saúde, esteve um tempo ausente, e aí eu estive sempre à vontade.

Quanto ao pré, sei que, como 1º cabo, recebia 750$00, os outros 500$00 ficavam na metrópole, mas eu tinha mais dinheiro que ganhava a tirar fotografias, e dava para tudo, só não deu foi para trazer para casa, mas isso já é outra estória.

Um abraço, Albano Costa

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1483: Blogoterapia (16): Males de amores ou... Tenho um lenço da minha lavadeira ali guardado na gaveta (David Guimarães)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 > 1973 > O Fur Mil de Operações Especiais Casimiro Carvalho com duas bajudas da tabanca.

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector l1 > Xitole > CART 2716 > 1970 > O Guimarães e a Helena, a sua lavadeira. O Xitole era, tal como Bambadinca, um posto administrativo, pertencente ao concelho de Bafatá. A povoação que lá vivia era, no entanto, menos numerosa do que a de Bambadinca, sede do BART 2917 (1970/72) .
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.

A história das relações das NT com a população em geral, e com as mulheres, em particular, está por contar. Em muitos casos, a presença de centenas de homens, europeus, brancos, jovens, solteiros, combatentes, a milhares quilómetros de casa e com muitos pesos no bolso, terá tido um impacto considerável na desestruturação social de algumas comunidades tradicionais...

"Tenho um lenço da minha lavadeira, ali guardado na gaveta" (DG) podia ser o título de uma bela estória sobre os (im)possíveis amores em tempo de guerra... Ou sobre os nossos males de amores, que era muitas vezes o preço que se passava por uma noite (suada) de sexo...

O post do Vitor Junqueira (1) já obteve vários comentários, do pessoal da tertúlia, a começar pelo Torcato Mendonça (2). Publicam-se a seguir outros, que já nos chegaram. Devo acrescentar que as estórias de homens e de mulheres em tempo de guerra - muito desiguais em termos de estatuto e de poder, e vindos, se não dos antípodas, pelo menos de culturas muito diferentes - não têm abundado no nosso blogue (3)... Amores de soldados e de marinheiros são levados pouco a sério, e rapidamente esquecidos... Evocá-los, décadas depois, é complicado e é preciso talento, além de bom senso e bom gosto... É difícil contá-las, para mais em público, em grupo, na caserna virtual que é o nosso blogue... Por pudor ? Por preconceito ? Por autocensura ? E, no entanto, erotismo, exotismo e guerra andam muitas vezes de mãos dadas... E tudo indica que, como a do Junqueira, há belíssimas estórias por contar... (LG).

1. Amaral Bernardo (CCS / BCAÇ 2930, Catió, 197o/72):

Acabo de ler o escrito por Vitor Junqueira... Impressionante. É belo e envolve-nos a todos, de um modo ou outro, numa mesma cumplicidade. Lindo!!!

2. Fernando Franco (BIG, Bissau, 1973/74):

Para além de fazer meus, os comentários do Amaral Bernardo, tenho a acrescentar que me revi na mesma situação, só que estava na zona nobre de Bissau, o Pilão. Como nós, devem estar centenas, para não dizer milhares, que viveram a mesma situação, ou de maneira diferente. Quero deixar aqui um agradecimento ao Vitor Junqueira, por me relembrar esses momentos e dar-lhe os parabéns pela forma como escreveu ao pormenor essa situação.

3. David Guimarães (CART 2716, Xitole, 1970/72):

Esta, diria eu.... é a verdadeira história de amor que aconteceu com o Junqueira .... E eu que nem sou piegas - só sou velho - até as lágrimas me vieram aos olhos de emocionado ao lê-la....

Tenho um lenço dado pela minha lavadeira, ali guardado na gaveta, mas decerto que quereria ter vivido uma história de amor como o Junqueira.... Porque pelo que ele escreve, houve sim muito para além do sexo. E isso é lindo...

Um abraço e obrigado, Vitor, deste-me uma lição de humanidade.

Nota - Já li várias vezes o post do Vitor. Lerei mais, pois apetece ler e reler, faz-me bem...

4. Sousa de Castro (CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74):

Linda Estória!... Real, verdadeira, estória mais ou menos igual a tantas outras vividas por ex- combatentes, sentimentos de saudade que muitos de nós não conseguimos relatar, passar para o papel o que nos vai na alma, embora pessoalmente não tenha passado pela experiência do Junqueira (quem me dera!...).

Lembro-me, com saudade, da pele macia, aveludada, as mamas apetitosas e o cheiro característico do perfume que elas usavam. Lembro-me em determina altura no Xime uma Badjuda (minha lavadeira) que, a troco de algum pão e marmelada, me agradeceu com um apetitoso beijo nos lábios que me deixou sem fala... e outras recordações.
__________

Notas de L.G.:

(3) Em tempos eu já aqui tinha evocado a Helena de Bafatá, que sucessivas levas de batalhões conheceram, no sentido bíblico do termo... Ela foi, avant la lettre, uma verdadeira profissional do sexo, e eu ainda hoje acho que lhe devíamos ter erigido, por gratdão, uma estátuta na sua terra natal... Vd. post de 12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá (Luís Graça)

(...) "Amorosa Helena, pequena fula dengosa, ‘salva das garras do Islão’ (sic) por zelosos missionários católicos – mas não da faca da fanateca, que te extirpou, na festa do fanado, o clitóris – para se tornar o colchão de todas as camas, a Vénus negra de batalhões inteiros, a iniciadora sexual de mancebos que as sortes vieram arrancar às saias da mamã, a alegre e traquinas companheira de muitas farras de caserna, correndo nua e lasciva do regaço de tropas bêbedos que nem cachos, para o abrigo mais próximo quando às tantas da madrugada soava o canhão sem recuo!...

"Bela Helena de Bafatá que sabias pôr na ordem os arruaceiros paraquedistas de Galomaro que te batiam à porta a pontapé quando eu estava contigo, deitado na tua liteira, e me dispensavas pequenas gentilezas – um ronco de missangas, vermelhas, ou uma talhada de papaia que trazias do mercado – sempre que eu ia a Bafatá e procurava a tua companhia, na melhor das hipóteses, uma vez por mês, no dia de folga dos guerreiros… Tu e as tuas amigas de Bafatá que tanto trabalho deram que fazer ao competentíssimo furriel enfermeiro Martins, que nunca punha os pés fora da sua enfermaria e que eu duvido que alguma vez tenha ido a Bafatá, o nosso querido Pastilhas que vivia 24 horas dentro do arame farpado, trabalhando incansavelmente, de bata branca, em prol de uma Guiné Melhor, que nos aturou mil e um travessuras, partidas de mau gosto, brincadeiras estúpidas, bebedeiras de caixão à cova e sobretudo nos curou de alguns valentes esquentamentos……

"Destes e doutros males de amores, estás perdoada, Helena. Afinal, quem vai à guerra, dá e leva… Tu curavas-nos dos males da alma, o Pastilhas dos males do corpo… Entretanto, quando a guerra acabar, para mim e para os meus camaradas da CCAÇ 12, não terei tido tempo de te devolver a pulseira de missangas vermelhas nem de te dizer um 'Adeus, até sempre', um adeus sem regresso… Guardarei de ti a doce lembrança das tuas estridentes e saudáveis gargalhadas, do cheiro exótico do teu corpo, das tuas sagradas funções de sacerdotiza do amor em tempo de guerra… Imagino que a tua vida não tenha sido fácil depois da independência, se é que lá chegaste com vida e saúde… Nunca mais tive notícias tuas, mas hoje, revendo a minha primeira viagem, por terra, no interior da Guiné, do Xime até Contuboel onde me esperavam os meus queridos 'nharros', ao longo do interminável dia de 2 de Junho de 1969, o teu nome, o teu rosto e as tuas gargalhadas vieram-me à lembrança...

"Lembrei-te de ti em Ponta Coli, frente à vasta bolanha, agora seara inútil de capim alto, com o cadáver do furriel vagomestre nos braços; lembrei-te de ti e das minhas escapadelas a Bafatá… Também foste, à tua maneira, uma heroína daquela guerra, minha impossível amiga, separada pelos papéis que nos obrigaram a representar na tragicomédia da guerra colonial da Guiné… Daí figurares, contra a toda a ortodoxia (do teu povo fula, dos teus missionários católicos, dos 'tugas' que apenas queriam o teu corpo, dos revolucionários do PAIGC que não te terão perdoado o colaboracionismo com os colonialistas, para mais sendo tu conterrâneo do pai da Pátria, o Amílcar Cabral), daí figurares, dizia eu, na minha galeria de heróis e de heroínas… Com todo o direito, com o direito que ganharam as mulheres do teu país, ofendidas e humilhadas, violentadas pelo sistema, pela guerra, pela dominância dos machos, pelo imperativo da sobrevivência… Aceita esta pequena homenagem da minha parte, onde quer que estejas, na terra, no céu ou no inferno!

Guiné 63/74 - P1482: Guidaje: os mortos da CCAÇ 3518 (A. Marques Lopes / Daniel Matos)

Mensagem do A. Marques Lopes:

Hoje, o Daniel de Matos disse-me mais sobre a sua estadia em Guidaje. Apesar de eu lhe ter dito para ser ele a contar (1).

"Estiveram 2 pelotões da Companhia [, a CCAÇ 3518,] durante cerca de 20 dias trancados em Guidaje na altura da crise. Com efeito, a Companhia tinha vindo de Gadamael para o COMBIS (Bissau), passando a fazer colunas regulares para Farim.

"Uma delas foi prolongada até Guidaje e os dois pelotões por lá ficaram esse tempo, durante o qual tivemos 4 mortos e diversos feridos. Morreram no abrigo de artilharia referido pelo Capitão Salgueiro Maia no seu livro (2), dentro do qual também me encontrava (estávamos 16 lá dentro quando a morteirada o destruiu).

"Elaborei um croquis da localização e da ordem por que ficaram enterrados e entreguei-o no COMBIS, quando regressámos a Bissau. Por meu intermédio, o Notícias da Amadora publicou então os nomes desses 4 camaradas (metade dos que viríamos a enterrar em Guidaje, dado o estado de decomposição em que se encontravam, e em virtude de não haver mais urnas disponíveis e de não termos conseguido efectuar colunas de evacuação até Binta/Farim, - fomos emboscados no Cufeu e tivemos de regressar a Guidaje.

"Os nomes desses militares mortos constam obviamente na Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África 1961-1974, do Estado-Maior do Exército."

_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1480: Guidaje e Gadamael: os marados da CCAÇ 3518 (A. Marques Lopes / Daniel Matos)

(2) MAIA, Salgueiro - Capitão de Abril: Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril. Depoimentos, 3ª ed. Lisboa: Editorial Notícias. 1995. Vd. pp. 59-72 ("Crónica dos feitos por Guidage").

Guiné 63/74 - P1481: Tabanca Grande: Carlos Américo Rosa Cardoso, ex-1º Cabo Radiologista (HM 241, 1972/74)

Guiné > Bissau > 1972 > O edifício do Hospital Militar... Os horrores da guerra (os mutilados, os politraumatizados, os feridos graves...) eram ali despejados todos os dias, de helicóptero... O 1º Cabo Radiologista Cardoso mandou-nos documentos fotográficos, inéditos, do fim da linha: restos (macabros) de corpos humanos, restos de camaradas nossos a quem foram amputados braços ou pernas...


Guiné > Bissau > 1972 > A chegada, as primeiras descobertas e emoções...


Guiné > Bissau > 1972 > O primeiro passeio pela cidade...



Guiné > Bissau > 1972 > As primeiras ostras...



O novo membro da nossa tertúlia: Carlos Américo Rosa Cardoso: pertenceu aos Serviços de Saúde Militar, com o posto de 1º Cabo Radiologista. Vive em Lisboa. Trabalhou em artes gráficas. Hoje está reformado. Falei com ele pelo telefone. Dei-lhe as boas vindas... Vamos continuar a falar do inferno do Hospital Militar de Bissau que a maior parte d enós, felizmente, n
ao chegou a conhecer ao vivo... (LG)

Fotos: Carlos Américo Rosa Cardoso (2007). Direitos reservados


1. Mensagem de 29 de Novembro de 2006, enviada pelo ex-1º Cabo Radiologista Cardoso, dos Serviços de Saúde Militar:

Amigo:

Estive no Hospital Militar de Hissau como radiologista de 1972 a 74 e tenho algumas fotos que gostaria que não ficassem no esquecimento. Diga-me como as hei-de mostrar no vosso blogue.
Aguardo notícias

Um abraço
Cardoso

2. Camarada Luís Graça:

Conforme combinado, vão aí as fotos que me pediu. Se as quiser publicar todas ou só algumas, faça o favor. Como lhe disse terei muito prazer em fazer parte da tertúlia e mostrar algumas fotos inéditas.
Sem mais, um abraço

Cardoso, ex- 1º cabo radiologista


3. Apresentação do ex-1º Cabo Radiologista:



Guiné > O Hospital Militar de Bissau: "No meu tempo... Como foi ficando... Como está..."


"O meu Hospital Militar de Bissau:

"Ao navegar pela Internet procurando coisas sobre a Guiné, deparei com este site e achei piada porque acabei por encontrar algo que eu procurava há bastante tempo.

"Felicito ao mesmo empo o camarada Luís Graça por esta brilhante ideia.

"A minha história nada tem de especial: fui para a Guiné em 1972 e estive lá até 1974, como 1º cabo radiologista, em rendição individual.

"Foi neste hospital que fiz o meu serviço militar.

"Ao mesmo tempo aproveito par dizer á rapaziada do hospital que me contacte para ver se conseguimos uns quantos para nos organizarmos e depois aí partirmos - quem sabe ? - um almoço convívio. Telemóvel 939 928 718.

"Um abraço a todos os camaradas. Cardoso RX"

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1480: Guidaje e Gadamael: os marados da CCAÇ 3518 (A. Marques Lopes / Daniel Matos)

O nosso querido amigo e camarada A. Marques Lopes veio lembrar-me que, sendo coronel DFA, na reforma, já não pode andar fardado, de acordo com as normas... Daí mandar-me uma nova foto, à paisana, que irá figurar na página da nossa tertúlia.

Foto: © A. Marques Lopes (2007). Direitos reservados.


Mensagem do A. Marques Lopes:

Um amigo meu de longa data, e a quem estou farto de convidar para participar no blogue, mandou-me hoje esta mensagem:

"Olá, estás bom? Tenho tido pouco tempo para entrar no blogue e colaborar. Mas uma notícia (telejornal de 2ª feira, não sei em que canal) chamou a minha atenção: a de se pretender recuperar as ossadas de oito militares que ficaram sepultados em Guidaje, em Maio de 73 (1).

"É um assunto que me é caro, pois fui eu quem os enterrou (quem procedeu às cerimónias militares, sem salvas de tiros para o IN não os contar, por ordem do comandante!). Quatro deles são da minha ex-Companhia (Companhia de Caçadores Independente 3518).
Um abraço".

A companhia dele esteve em Gadamael em 1972/73 , eram Os Marados de Gadamael, mas em Maio de 1973 já estavam em Guidaje. Ele chama-se Daniel Matos e o mail dele é: daniel@lis.sitava.pt .

Se alguém for da companhia dele que o convença a vir falar connosco.

A. Marques Lopes

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1453: Ninguém fica para trás: uma nobre missão do nosso camarada ex-paraquedista Manuel Rebocho

Guiné 63/74 - P1479: Questões politicamente (in)correctas (23): O que podemos (ou não) fazer pelo povo guineense (Beja Santos)



Guiné-Bissau > Bijagós > 2007 > Poderá um país soberano viver (quase só) da caridade internacional ? Um pergunta (incómoda e dolorosa) de muitos dos amigos e camaradas da Guiné que fazem parte deste blogue e que não são propriamente um clube de saudosistas, antes pelo contrário gostariam de poder encontrar formas de serem activamenhte solidários para com um povo (irmão) que neste momento sofre, e sofre profundamente.

Fotos: © Jorge Rosmaninho (2007). (Com a devida vénia...). Extraído do seu blogue Africanidades (Vivências, imagens e relatos sobre o grande continente África vista pelos olhos de um branco que, por sinal, é também um portuga do pós-império)

Mensagem de 11 de Janeiro de 2007, enviada pelo nosso camarada Beja Santos:


Caro Luís, caros tertulianos, vou procurar participar na conversação bloguístca face a esta etapa de agressividade e intolerância que se vive de novo na Guiné Bissau. Como somos um fórum, bom seria que apontássemos aonde o blogue pode ir mais longe, contribuindo para a paz e o desenvolvimento do país onde mudámos de mentalidade e aderimos aos ideais de Abril. Estou convencido que virá o dia em que podemos cooperar para a formação de quadros guineenses, ajudando-os nas suas competências e qualificações. Por ora, creio que será um esforço sério aprofundarmos entre todos nós os porquês de uma vida irreconciliável que pode augurar uma tragédia inominável : uma Guiné Bissau inviável, que só resiste ao sabor da caridade internacional. Vosso, Mário Beja Santos



O sofrimento profundo da Guiné-Bissaupor Beja Santos


Trabalhei na Guiné Bissau nos últimos cinco meses de 1991. Portugal subescrevera um protocolo na área do Ambiente e da Defesa do Consumidor, já numa perspectiva de um trabalho conjunto a pensar na Cimeira da Terra, que se realizou no Rio, em 1992. A missão que eu recebi, em Lisboa, era a de apoiar as autoridades guineenses a promover a criação de uma legislação básica e de um serviço público orientado para o fomento de políticas do Estado e do associativismo livre e independente.

Tal missão , e na especificidade da Guiné, obrigou-me a contactar os departamentos governamentais da área económica, agricultura, pescas, saúde, educação e ambiente, pelo menos. Procurei igualmente conhecer os programas das agências das Nações Unidas, das fundações, decorrentes de tratados inter-estados conducentes à melhoria das condições de vida, bem como apurar o que faziam as Organizações Não Governamentais e grupos de interesse público.

Bastou-me um mês para constatar que a Administração Pública estava completamente paralisada, que as autarquias não funcionavam ou eram irrelevantes no que cabe à qualidade de vida, que não havia legislação nem vontade de a preparar, que nos mais altos cargos da Administração não se pretendia beliscar os interesses económicos instalados, claros ou obscuros.

A Bissau onde eu trabalhei desmoronava-se na coesão, na economia clandestina, na divisão entre os ricos do aparelho político e a multidão de sobreviventes. O que procurei fazer foi ouvir a opinião de quem representava o FMI, o Banco Mundial, o PNUD, a FAO, a OMS, os múltiplos programas no terreno, abarcando o saneamento básico, a criação de economia formal, os cuidados de saúde, a formação contínua, por exemplo.

De quase todos os que consultei e auscultei ouvi a mesma opinião: é um partido sem modelo económico, entregue aos altos e baixos do ajustamento estrutural proposto pelo FMI; os programas por mais generosos que sejam, nunca têm continuidade ou qualquer espécie de retorno. Prevalecem os expedientes, decididos e apoiados pela clique presidencial. Não há classe política, não há sentido dos interesses do Estado, os funcionários públicos e os professores não são pagos, enfim, nem na esfera produtiva nem na dos serviços nada funciona.

Este terrível diagnóstico levou-me a propor a criação de um serviço interministerial de defesa do consumidor com um corrdenador permanente, com reuniões mensais de todos os representantes, públicos e privados, com senhas de presença, e com a obrigatoriedade de apresentar um programa bianual de acção a favor de uma melhor cidadania no consumo e responder faseadamente pela sua execução. As autoridades portuguesas comprometiam-se a pagar inteiramente os custos deste funcionamento.

Estes documentos foram assinados pelas autoridades guineense e portuguesa e nunca levados à prática. A única experiência ditosa que trouxe foi na área da comunicação social onde a TV guineense produziu seis programas sobre a problemática do consumo numa óptica de satisfação das necessidades básicas. Depois disso nada mais aconteceu nos domínios do Ambiente e Defesa do Consumidor, continua-se sem leis nem vontade de as executar, os guineenses vivem muito pior depois da guerra e das peripécias político-militares subsequentes.

Serve este preâmbulo para vos dizer que antes de falarmos no posicionamento da Guiné-Bissau no actual espaço da CEDEAO e do franco CFA como nova moeda, e porque é totalmente inútil questionar se os povos da Guiné estão identificados com o Estado ou pôr novamente em tribunal todas as irresponsabilidades praticadas depois da independência, estou em crer que a Guiné tem severas limitações económicas, se deve reflectir como é que o quadro político, social, económico e cultural se devem reconciliar com o país.

A Guiné dos últimos 30 anos procurou desenvolver-se culpando o colonianismo, lançando-se em programas desmesurados e incompatíveis com o seu grau de riqueza, habituou-se à ajuda externa, trocou o modelo proteccionista rígido por uma liberalização que só satisfez alguns grupos de interesses, continua sem infraestruturas, sem sistema educativo, sem classe de funcionários comprometidos com o interesse público, sem saúde, sem potenciar as suas riquezas agrícolas e piscatórias.

Arrancar um país do marasmo não se faz por golpes de mágica. Tem que haver crença nas instituições, seriedade no seu funcionamento, respeito mútuo nos órgãos de soberania, sentir-se a autoridade responsável no saneamento básico, na protecção do ambiente, na desconcentração dos poderes junto de quem aceita o desafio da desconcentração e ousadia nas mudanças socioculturais travando o tribalismo e fomentando a identidade nacional. A Guiné-Bissau mostrará a confiança interna quando aderir a um Orçamento de Estado.

Arrancar um país do marasmo não se pode confinar à permanente negociação da dívida externa e dos auxílios dos doadores. Um programa de Governo (chame-se de unidade nacional ou não) tem que apostar em receber apoios para melhorar a sua produção nos bens onde está apto, desde o amendoim, passando pelo coconote, a extracção sustentável e exportação de madeiras e, sobretudo a colheita e a exportação do cajú. Os tratados económicos nas pescas deviam prever benefícios na formação dos pescadores e melhoria nos equipamentos da frota pesqueira nacional. Uma boa parte da ajuda externa devia estar afectada a planos de formação conjungando os departamentos da educação e formação profissional. A negociação da estabilização económica devia fazer-se à luz deste quadro de desenvolvimento e obter o consenso de credores e doadores.

Aliás, devia ser aq esta luz que Portugal devia restabelecer a sua cooperação, aprovado o modelo de desenvolvimento suportado pela generalidade dos partidos. Só invertendo o definhamento do Estado, só gerando a participação dos operadores económicos e dos agentes sociais, só negociando com garantias e probidade é que a comunidade internacional pode sentir que não se depende da arbitrariedade da fulanização política e vale a pena apostar numa ajuda e cooperação que esteja para lá da pressão a curto prazo e que perspective no longo prazo a coesão do Estado.

Ao nível da nossa modesta intervenção e pensando em tertulianos como o Paulo Salgado (1), devíamos reflectir para onde deve ir a cooperação portuguesa para além da língua e da formação universitária: a criar verdadeiros empresários e industriais, quadros públicos, pessoal de saúde, agricultores e pescadores. E enquanto blogue podíamos dar o exemplo: criando uma bolsa de estudo para alguém que possa contribuir para trazer mais paz à Guiné.

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de

11 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1421: Crónicas de Bissau (o 'bombolom' do Paulo Salgado) (14): Um final com homenagem a um homem grande, Fernando Sani

13 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1069: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (13): Para quando África ?

Guiné 63/74 - P1478: Unidades de Guileje: Coutinho e Lima, ligado ao princípio e ao fim (Nuno Rubim)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCav 8350 > 1973 > O helicanhão, num recuerdo do nosso camarada Casimiro Carvalho.

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.


Mensagem do Nuno Rubim, com data de ontem:

Caro Luís:

Um dia muito produtivo e ... instrutivo, no AHM - Arquivo Histórico Militar (1).

Relativamente às Companhias que estiveram em Guileje verifiquei o seguinte ( ainda há vários aspectos sujeitos a confirmação , até porque não tive oportunidade de consultar todos os processos) :

(i) Afinal e para surpresa minha, ainda sobreviveram documentos oficiais que permitem ter uma ideia bastante aproximada da suas histórias. Mas não existem os relatórios de operações redigidos pelos comandantes, peças essas fundamentais !

(ii) Se a isso juntarmos os testemunhos individuais que têm sido transcritos no teu blogue ( e aqueles que ainda surgirão.. ), já fico muito mais satisfeito, como interessado que sou na nossa história.

(iii) De todas essas unidades a única sobre a qual nada consta é, para minha eterna vergonha, uma das duas que lá comandei, a CCAÇ 1424 ! Mas se se souber o que foi o final da minha 1ª
comissão na Guiné, isso talvez não surpreenda ..., até porque a companhia ainda lá ficou, sendo devolvida ao seu comandante de origem ...

(iv) Embora ainda sob reservas, a história da CCAÇ 3477 (os Gringos de Guileje ), foi a mais completa que me foi dada analisar, detalhada, bem redigida, objectiva, com interessantes pormenores, enfim ... excelente ! A sua redacção foi, sem dúvida, elaborada pelo seu comandante, o Cap Mil Grad Abílio Delgado, ferido em combate em 24 de Julho de 1972.

(v) A 1ª unidade a ir para lá foi um GC [Grupo de Combate9 reforçado da CART 494, em Jan / Fev de 1964. A Companhia estava a instalar o quartel em Gadamael. Só mais tarde é que um grupo da CART 495, em final de Fevereiro, foi reforçar a guarnição até à chegada das primeiras forças da CCAÇ 726, em 31 de Outubro, permanecendo ainda algum tempo em sobreposição.

A CART 494 era comandada pelo então Capitão... Coutinho e Lima, que assim fica para sempre ligado ao início e fim de Guileje (2) ...

Se algum desejar rectificar ou ampliar as informações acima fornecidas agradeço.

Um abraço

Nuno Rubim

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 7 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1408: Vamos salvaguardar a(s) nossa(s) memória(s), apoiando a Liga dos Amigos do Arquivo Histórico Militar (Luís Graça / Nuno Rubim)

Instalações do AHM:

Arquivo Histórico Militar
Largo dos Caminhos de Ferro, 2
1100-105 Lisboa.

COP5 o major de artilharia Alexandre da Costa Coutinho e Lima, comandante do COP 5, na altura da batalha de Guilehe e Gadamael: Vd. posts de

2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael (Afonso M.F. Sousa / Serafim Lobato)

Reprodução da reportagem "Estamos Cercados por Todos Os Lados", de Serafim Lobato.
Público. Domingo, 28 de Dezembro de 2003.

15 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1431: Guileje: Quem (e quando) construiu os abrigos de cimento armado (Pepito / Nuno Rubim)

Pepito escreveu: (...) "Como vou aí na 3ª semana de Fevereiro [de 2007], gostaria de contactar com o [Coronel] Coutinho Lima, último Comandante do quartel de Guiledje [ou, melhor, do COP 5], elemento determinante do nosso projecto.(...) "

Vd. ainda os posts:

14 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1174: Três homens de Guileje: Nuno Rubim, Zé Neto e Pepito (Luís Graça)


15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P870: Ideias para um diorama do quartel ou quartéis de Guileje (Nuno Rubim)

Guiné 63/74 - P1477: Guileje: CCAÇ 3325 (Alexandre Agra)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325 (Jan-Dez. 1971) > Crachá

Foto: © Alexandre Agra (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem de Alexandre Agra:

Amigo e Antigo Combatente,

Bom dia.

Ao fazer uma pesquisa de trabalho fui cair em Guileje!

Agradavelmente surpreendido, começo por dar o meu primeiro contributo para a história de Guileje enviando o crachá da CCAÇ 3325, que lá esteve entre Janeiro e Dezembro de 1971, sucedendo à famosa Companhia dos Magriços de Guileje [, CCAÇ 2617,] e antecedendo a [CCAÇ] 3477 (1). De lá partimos para Nhacra.

Um forte abraço.

Alexandre Agra

2. Comentário de L.G.: Obrigado, Alexandre. O nosso puzzle vai-se compondo. Diz-nos mais coisas da tua unidade e do tempo que vocês passaram em Guileje. Estás, naturalmente, convidado para ingressar na nossa tertúlia, se for esse o teu desejo.

Falei hoje com o ex-enfermeiro da CCAÇ 3325, Vitor Manuel Rodrigues Fernandes - mais conhecido na época como o Fininho. Mora na área da Grande Lisboa e é gráfico. Não conhece o nosso blogue. Não tem Internet em casa. Mas ficou entusiasmado com as notícias que lhe dei a nosso respeito. Costuma reunir-se com a malta da sua unidade todos os anos, e está regularmente com o Coronel Jorge Parracho. Estiveram juntos no verão passado, ele , o Pepito e o Parracho. A história da unidade ainda não está pronta. Dentro de dias vou contactá-lo de novo. Conhece o Alexandre Agra.
__________

Nota de L.G.

(1) As unidades sediadas em Guilele, por ordem cronológica (e respectivo contacto):

CCAÇ 495 (Fev 1964/Jan 1965)
CCAÇ 726 (Out 1964/Jul 1966) (contactos: Teco e Nuno Rubim)
CCAÇ 1424 (Jan 1966/Dez 1966) ( contacto: Nuno Rubim )
CCAÇ 1477 (Dez 1966/Jul 1967) (contacto: Cap Rino)
CART 1613 (Jun 1967/Mai 1968) (contacto: Cap Neto)
CCAÇ 2316 (Mai 1968/Jun 1969) (contacto: Cap Vasconcelos)
CART 2410 (Jun 1969/Mar 1970) (contacto: Armindo Batata)
CCAÇ 2617 ( Mar 1970/Fev 1971) > Os Magriços (contacto: Abílio)
CCAÇ 3325 (Jan 1971/Dez 1971) (contacto: Jorge Parracho)
CCAÇ 3477 (Nov 1971 / Dez 1972) > Os Gringos de Guileje (contacto: Amaro Munhoz Samúdio)CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 1973) > Os Piratas de Guileje (contacto: José Casimiro Carvalho )


Vd. post de 15 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1431: Guileje: Quem (e quando) construiu os abrigos de cimento armado (Pepito / Nuno Rubim)