quinta-feira, 10 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3047: Os nossos regressos (9): Uma viagem tranquila...(Belarmino Sardinha).

1. Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, 1972/74, Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau


Bilhete? Ida e Volta

A ida

Sem fugir aos factos concretos, vou procurar dar um pouco de cor ao texto para não se tornar uma coisa chata e enfadonha. Pode servir para intercalar com relatos mais dolorosos que chocam e colocam no local aqueles que os viveram.
As guerras não são feitas por homens sábios, são feitas por bestas, apoiadas por interesses de pessoas sem escrúpulos e alimentadas com juventude.

Não posso começar a dizer, fui para o aeroporto …
Decorridos 14 meses de serviço militar e quando, pensava eu, estavam já habituados à minha presença, eu por mim estava habituado a estar por cá, ofereceram-me como prenda de aniversário, presumo, tinha completado 22 anos havia uma semana, uma ida para a Guiné. Propuseram-me que estivesse no aeroporto, no terminal militar, eu e mais 14 ou 15, não me recordo com exactidão se éramos 15 ou 16 no total, mas adiante, pelas 22H00 do dia 15 de Junho de 1972, para embarcarmos num voo às 00H00.
Como nunca tinha andado de avião aceitei.

Não foi lá ninguém levar-nos, nem apareceram a ver se tínhamos comparecido, tal era a confiança que tinham em nós, só fazíamos parte da lista de passageiros. Ainda hoje continuo sem saber o que teria acontecido se não aparecêssemos. Mas não, fomos todos exemplares, o nosso exército sabia-o, embora sem presidentes na despedida, nem o do meu clube, ou ministros de estado ou mesmo só de nome, lá estivemos acompanhados pelas famílias.

Passada a hora das lágrimas e depois de acomodados dentro do DC6 (?), para quem queria ter sido piloto, uma prenda de aniversário destas era o máximo, ir de avião passar dois anos numa terra que ainda não conhecia, que diziam ser ecológica devido à muita vegetação, portanto boa para o ambiente, com cama mesa e roupa lavada (desde que alguém a lavasse), quem é que recusava?

Mas, o avião que levado do terminal militar para a pista da TAP decidiu não levantar

Volta tudo para trás e há que esperar, ninguém sai do avião, são só 15 minutos para ver uma coisa e vamos já seguir. Passada meia hora começámos a ver desmantelar o avião, a impaciência dos 65 ou 75 ocupantes, oficiais, sargentos e praças todos em rendições individuais, a crescer e a vontade de fumar etc., veio a ordem de podermos descer à pista para desentorpecermos as pernas, fumar e aguardarmos, que estava quase.

Passada mais meia hora na pista, era só vir a peça que tinham ido buscar a Alverca e embarcávamos. Claro que já começávamos a ver que indo naquele objecto tínhamos certo o embarque, só não sabíamos era quando e onde íamos desembarcar e de que maneira.

Pelas 02H00 horas da manhã, ou a peça não chegou ou o mecânico já não sabia de onde eram as peças e como o avião tivesse a carcaça cada vez mais à vista, foram levar-nos ao terminal civil do aeroporto com a indicação para estarmos de volta nesse dia à noite, pelas 00H00.

Às 02H00 da manhã só de táxi podíamos ir para o centro de Lisboa. Além de gastarmos o pouco que tínhamos voltávamos para casa e dizíamos o quê à família, que já tinham passado dois anos? No dia seguinte dizíamos ir fazer nova comissão? Ficávamos um dia inteiro em Lisboa a andar de um lado para o outro até às 00H00?

O certo é que assim aconteceu e cada um desenrascou-se como quis e no dia seguinte lá estávamos todos de novo para ver se era mesmo verdade. E não é que foi mesmo?

Que maravilha, ver despontar o dia pelas janelas do avião.

Eram aproximadamente 08H00 quando aterrámos e se abriu a porta. Perante a baforada de ar quente, ficámos todos molhados, parecia termos aterrado no Alentejo em pleno sol de Agosto, não fosse alguém ter gritado "eh pá, é só grilos", o que como alentejano habituado a anedotas não estranhei. E os cheiros? Incómodos mas só até os interiorizarmos. Não serão eles que inconscientemente recordamos hoje e nos ligam e aproximam daquela terra?

Desembarcado e a caminho do quartel, Regimento de Transmissões, situado dentro da parte que englobava também o QG, julgava eu ter uma suite à minha espera, mesmo que o não fosse ou não fosse só para mim, já calculava, pelo menos devia ter ar condicionado e outras mordomias para estarmos sempre prontos e em forma.

Surpresa das surpresas, pelo calor que estava devia ser período de férias, como no Algarve, estava tudo superlotado e tivemos que fazer campismo. Deram-nos três tendas cónicas e mandaram-nos para um sítio ainda por construir e nem nos avisaram que se não tivéssemos cuidado, durante a noite, éramos comidos pelos mosquitos. Como bons militares, sempre prontos e preparados para tudo descobrimos depressa.

Passámos 5 ou 6 dias naqueles aposentos até sermos despachados cada um para seu sítio.
Eu fui para Mansoa, outros para Bafatá, Nova Lamego e os outros não me recordo para onde.

A estada ou estadia, já que também andei de barco e estive a bordo de patrulhas como o "Orion" ou do Navio Hidrográfico "Pedro Nunes", onde tinha colegas de secundário, e os comes e bebes eram diferentes e melhores que na unidade. O meu abraço e agradecimento para o Francisco Correia dos Santos e para o Etelvino Ribeiro Alves.


O regresso

O regresso, esse foi mais simples e sem complicações, tranquilo diria mesmo, passavam 20 dias de ter completado os 24 meses quando embarquei, num 707 ou 727 da Força Aérea. Como não trazia bagagem, apenas aquele saco tipo chouriço que a TAP utilizava para os seus passageiros que tinha guardado das últimas férias à Metrópole, haviam passado apenas três meses, foi sair do aeroporto com destino a Odivelas e aparecer em casa a dizer agora já vim definitivamente, não volto mais, acabou-se. Mas confesso ter sonhado várias vezes, durante algum tempo, que tinha voltado a ser chamado e estava a fazer uma outra comissão.

Depois do regresso tem sido a conversa de ocasião, até que este Blog veio reavivar tudo de novo, mas ainda bem, está vivo e tem sido a forma de os relembrar a todos, sem excepção, embora com muita emoção. Afinal tínhamos apenas vinte e poucos anos e a esperança de toda uma vida pela frente. O que dói e corrói não é o exterior.

Um abraço para todos,
Belarmino Sardinha
__________

Notas:

1. fixação do texto e sublinhados de vb;

2. Artigos relacionados em

1 de Julho de 2008 >
Guiné 63/74 - P3009: Com sangue na guelra: Nós e a mística dos comandos da 38.ª, em Mansoa (Belarmino Sardinha)

8 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3037: Os nossos regressos (8): E vieram todos. Luís Dias.

Guiné 63/74 - P3046: Convívios (73): European Golden Oldies Rugby Festival (Paulo Santiago)

1. No dia 23 de Junho de 2008, recebemos uma mensagem do nosso camarada Paulo Santiago, dando conta de um Festival de Râguebi, no Funchal.

Luís, Briote e Vinhal
Estive a participar no European Golden Oldies Rugby Festival, que decorreu no Funchal de 19 a 22.

Organização impecável a cargo do Porto Old Greens, onde pontificava como um dos dirigentes do Staff o nosso camarada Miguel Vareta, ex-Fur Mil da 38.ª CCMS.
O Miguel foi incansável, vamos ver, passado este trabalho de muitos meses, se arranja tempo para nos contar umas histórias.

O Torneio foi uma festa, como tudo o relacionado com o Rugby, sem classificações, só interessa o prazer de jogar e o convívio das terceiras partes.

Participaram 41 equipas europeias e 1 da Argentina, com atletas que iam dos 35 aos 70 anos.

Se virem interesse, divulguem na Tertúlia.

Abraço
Paulo Santiago

Foto 1 > Vareta (está em excelente forma) e Santiago

Foto 2 > Nesta foto Luís Caldas, antigo atleta do Benfica, dirigente do C.O.P., árbitro de luta greco-romana em várias edições de Jogos Olimpicos, Paulo Santiago, uma belíssima acompanhante da equipa Lituana Gelezinis Vilkas e João P.Sousa dirigente do Porto Old Greens

Foto 3 > Veteranos do Rugby C.Bairrada (a minha equipa)

Foto 4 > Equipa do Porto Old Greens com Miguel Vareta atrás da bola

Guiné 63/74 - P3045: Convívios (72): Em Campia, Vouzela, homenageando os esquecidos da guerra (Artur Conceição / José Manuel Lopes)

Guiné > Região do Oio > Jumbembem > CART 730 (1965/67) > O Sold Trms Artur Conceição, natural da freguesa de Campia, concelho de Vouzela, residente hoje na Damaia/Amadora e membro da nossa Tabanca Grande desde Maio de 2007... Aqui com duas meninas de Jumbembem, a Fili e a Djar. Que será feito delas ? - pergunta o Artur, apreensivo. Também elas são as esquecidas da guerra...


Vouzela > Campia > Monumento aos Combatentes do Século XX > Inaugurado em 13 de Novembro de 1999 e dedicado aos campienses combatentes deste século. Lembra aos vindouros a participação de muitos naturais de Campia na Guerra Colonial, na Primeira Grande Guerra e em expedições a África e à India. A iniciativa inseriu-se no IV Convívio dos Combatentes e Forças Expedicionárias da Freguesia de Campia. Em 2007, realizou-se o XII Convívio. No início da cerimónia, o nosso camarada Artur Conceição no uso da palavra. Ao centro, o Capitão Álvaro Dório Correia Tavres, que esteve em Bedanda.

___________________



Gostava de vos falar
dos esquecidos,
dos heróis que a história
não narra,
que as viúvas choraram
mas já não recordam,
daqueles
que nem tempo tiveram
de ter filhos
que os amassem,
descendentes
que os lembrassem,
daqueles
que nunca tiveram
o dia do pai,
vítimas de guerras
que não inventaram,
em tempo que já lá vai;
falar deles é prevenir,
se bem que de nada lhes valha,
de guerras que possam vir,
geradas pela ambição
dos que nunca morrerão
num campo de batalha.


josema

[s/d nem local,
possivelmente escrito em Mampatá,
no sul da Guiné,
c.1972/74](*)

Revisão e fixação do texto (pontuação): L.G.

Poema: © José Manuel Lopes (2008). Direitos reservados.
_____________________

1. Mensagem do Artur Conceição. com data de 9 do corrente, dirigida ao José Manuel Lopes (que assina os seus poemas por josema):

Assunto - Permissão

Olá, José Manuel

Os Combatentes da Freguesia de Campia vão efectuar o seu convívio anual no dia 13 de Setembro do corrente ano.

De alguns anos a esta parte cabe-me a missão de Relações Públicas e redactor de algumas palavras alusivas ao evento.

Leio os teus poemas, e procuro entendê-los da mesma forma que me obrigavam a entender os Lusíadas, e juro que não encontro nenhum adjectivo para os classificar.

Seguindo o princípio "O seu a seu dono" ou a "César o que é de César", quero pedir-te permissão para ler o teu poema [,acima transcrito]:

Gostava de vos falar
dos esquecidos
dos heróis que a história
não narra (...)


aquando da homenagem aos que tombaram, junto ao monumento aos Combatentes do século XX, sediado em Campia.

Um abraço

Artur António da Conceição (**)
Damaia / Amadora

2. Comentário de L.G.: Meu caro Artur, ainda não sei qual será a resposta do José Manuel... Mas, como camarada generoso e solidário que ele é, terá todo o gosto que recites este seu poema, no dia do XIII Convívio dos Antigos Combatentes de Campia, no dia 10 de Setembro de 2008.

A pensar em ti, e em futuras declamações, em público, tomei a liberdade de, ao arrepio do poeta (mas procurando sempre respeitar o espírito e a letra), fazer a necessária pontuação. Ajudar-te-á a recitar melhor estes versos que calam fundo na alma da gente. Os poetas têm liberdades que os outros utentes da língua portuguesa não têm E uma delas é o não uso da pontuação, por razões estéticas ou de liberdade criativa. O josema nunca usa pontuação. Para quem diz poesia, a pontuação ajuda muito... Espero que o autor concorde com a minha pontuação... Vou interpretar o seu silêncio como um OK (para ti, Artur, e para mim).

_______

Notas dos editores:

(*) Enviado em 14 de Março e último e já publicado no
Poemário do José Manuel. Sobre o José Manuel Lopes, vd. o último poste publicado: 9 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3039: Poemário do José Manuel (20): Mãe, se eu não regressar, lembra-te do meu sorriso...

(**)
Artur Conceição, ex-soldado de Trms, CART 730 (1965/67), Bissorã, Farim e Jumbembem (actual Região do Oio). Vd. os postes do nosso camarada, publicados no nosso blogue:

16 de Dezembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2355: O meu Natal no mato (1): Jumbembem, 1965: Os homens às vezes também choram... (Artur Conceição)

8 de Dezembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2335: A trágica morte do Cap Rui Romero: 10 de Julho de 1966, dia de correio (Artur Conceição)

21 de Novembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2291: Convívios (36): XII Convívio dos combatentes da Freguesia de Campia, no dia 10 de Novembro de 2007 (Artur Conceição)

24 de Julho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1989: Homenagem ao António da Silva Batista (Artur Conceição, CART 730, Jumbembem, 1965/67)

8 de Junho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1824: O Aeroporto de Jumbembem e os ecologistas 'avant la lettre' (Artur Conceição)

21 de Maio de 2007 >
Guiné 63/74 - P1772: Tabanca Grande (5): Também quero estar ao lado dos que não permitem o virar da página (Artur Conceição, CART 730, 1965/67)

Guiné 63/74 - P3044: Estórias avulsas (3): Os cães de Bambadinca (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 > 1969 > Um periquito em Bambadinca, ao tempo do BCAÇ 2852 (1968/70) o editor deste blogue, quando Fur Mil Armas Pesadas Inf, pertencente à unidade de intervenção CÇAÇ 2590 / CCAÇ 12... Nas suas costas, a grande bolanha de Bambadinca... Um anos depois, já após a chegada do BART 2917, os cães vadios enxameavam a parada do aquartelamento e tornavam-se um pesadelo, à noite, não deixando ninguém dormir... Foi na sequência dessa situação, calamitosa, que se decidiu preparar e executar a Op A Noite das Facas Longas, de que resultou talvez a maior mortandade em canídeos de toda a guerra da Guiné...

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados


1. Mensagem, com data de 7 do corrente, de Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 83 (Bambadinca, 1961/63)


2. Estórias avulsas (16) > A Matilha de Bambadinca (*)
por Alberto Nascimento


Alguém apareceu um dia no quartel, com dois cachorros recém desmamados, que foram imediatamente adoptados e baptizados com os nomes de Gorco, ele, e Djiu, ela.

Adaptaram-se facilmente ao hotel e, quando começaram a vadiar pelas imediações, devem ter feito grande publicidade porque passado pouco tempo veio outro e mais outro e mais uns quantos, até perto da dezena de rafeiros que, agora bem nutridos, não mostravam vontade nenhuma de voltar à antiga vida de privações e maus tratos.

Mais tarde, o tenente Castro, comandante do destacamento, juntou à matilha um boxer, o Lobo que, pelo seu pedigree, foi aceite como comandante da tropa canina, que passou a segui-lo para todo o lado.

Embora alguns dos rafeiros se desenfiassem durante algumas horas de dia, a hora das refeições e a pernoita eram sagradas e após a última refeição esparramavam-se num espaço entre as duas construções que constituíam o quartel, formando uma roda de cães no meio da qual, não sei se por estratégia, se acomodava o Lobo.

Uma noite, estava eu num posto guarda a trocar umas palavras com o sargento Leote Mendes, quando o Lobo se levantou subitamente e saiu a grande velocidade, seguido com grande algazarra pelo resto da matilha. Atravessaram a estrada e durante algum tempo continuámos a ouvir um barulho infernal, sem conseguirmos compreender o que se estava a passar, até que os latidos cessaram e pudemos vislumbrar o regresso da matilha.

Ficámos preocupados a pensar que a reacção dos cães se devia à passagem de algum viajante, já que era hábito quando a distância a percorrer era grande, fazerem os percursos de noite a pé enquanto mastigavam noz de cola e mais preocupados ficámos quando vimos que o Lobo trazia na boca um cantil de plástico cheio de leite. Deduzimos e desejámos que alguém tivesse tido a ideia de desviar a atenção dos cães, das suas canelas para o cantil de leite, largando-o enquanto fugia.

Depois da operação de Samba Silate (**), alguns prisioneiros disseram que nessa noite o quartel estava já cercado e seria atacado, não fora o alarme dado pelos cães, o que os levou a pensar que factor surpresa já não surtiria efeito.

Felizmente para nós, enganaram-se. Não sei que armas traziam mas a nossa surpresa ia com certeza ser grande. Nunca se soube com certeza absoluta, eu pelo menos não soube, com que apoios esta operação contava do exterior e do interior do quartel, mas um dia depois, um cabo indígena de Bafatá que reforçava o nosso destacamento, desertou.

Depois deste episódio, que recordamos sempre nos nossos encontros anuais, a matilha começou a desaparecer. Uns nunca mais voltaram ao quartel, outros voltaram doentes, acabando por morrer por envenenamento e nós passámos a redobrar a nossa atenção aos sistemas de vigilância e defesa, que dependiam mais de nós que do equipamento que possuíamos, na altura limitado às G3, granadas e uma metralhadora fixa num ponto estratégico.

Todos os camaradas que estavam na altura em Bambadinca sabem, julgo eu, o que ficaram a dever àqueles animais que, por acção indirecta, acabaram por ser as únicas vítimas, pelo seu natural instinto de guardiães e defensores de um território, que também era seu.


Alberto Nascimento

3. Comentário de L.G.:


Alberto:

É uma história fabulosa!!!... Manda mais, temos tão poucas referências aos primeiros tempos da guerra... Dá-me mais elementos sobre a tua companhia. E fala-nos da Bambadinca desse tempo. Como sabes, eu estive lá em 1969/71, seis anos depois de ti... No meu tempo tanbém havia muitos cães, famélicos e vadios... Não nos deixavam dormir... Um dia, às tantas da noite, pegámos num jipe, nas pistolas Walther, e matámo-los todos... Ainda hoje essa cena me incomoda... Evoquei-a ou tentei exorcizá-la num dos meus poemas, Esquecer a Guiné:


Esquecer a Guiné... por uma noite!
As bombas de napalm
Carbonizando cada centímetro quadrado de vida,
Lá longe, em Sinchã Jobel,
Na ZI do Com-Chefe.

As insónias às três da manhã,
A hora mortal da madrugada.
Os famélicos cães vadios
Que um dia abatemos a tiro,
Um a um,
Depois de loucas correrias de jipe
À volta da parada.
No manicómio de Bambadinca.

Um a um,
Às tantas da madrugada,
Com tiros de pistola Walther na cabeça.
Sem dó nem piedade.
Pela simples razão
De que... não nos deixavam dormir.
A mim, a ti, ao major.
A todos nós, almas penadas...
Chamei-lhe a Operação
Noite das Facas Longas. (...)


Nessa noite nem o pobre do Chichas, que era a nossa mascote, escapou da morte anunciada:

Segundo esclarecimento posterior do Humberto Reis [vd. poste de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXII: Op Noite das Facas Longas ], meu camarada da CCAÇ 12 e meu companheiro de quarto em Bambadinca, "o cão, que dormia à porta do nosso quarto, era o Chichas, alcunha vinda do 2º sargento corneteiro do BCAÇ 2852, que também era o Chichas. O condutor do jipe nessa Noite das Facas Longas era o major de operações do BART 2917 (o tal que mandou ir para lá a mulher quando se casou) e o assassino... fui eu".

Acrescento eu: esse tal major era conhecido como o B.B.... Gostava de saber notícias dele...

__________

Notas de L.G.:


(*) Vd. último poste desta série, Estórias Avulsas: 1 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2598: Estórias avulsas (15): O bom pastor (Luís Fonseca)


(**) Vd. poste de 11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63)

(...) " a CCAÇ 84, três meses depois de aterrar no aeroporto de Bissalanca, foi literalmente fragmentada e enviada para os mais diversos pontos do território, tendo o meu pelotão tido como último destacamento, entre Novembro de 1962 e 7 ou 8 de Abril de 1963, Bambadinca, sob o Comando de Bafatá.

"O primeiro destacamento, ainda em Julho de 1961, foi para Farim, após os primeiros e ainda pouco violentos ataques a Bigene e Guidaje. Seguiu-se o destacamento de Nova Lamego, conforme é dito no seu blogue (P 1292 - Contributos) onde o pelotão foi dividido por Buruntuma, Piche e Canquelifá.

"Só estou a mencionar o 1º pelotão da Companhia, porque à grande maioria dos camaradas dos outros pelotões só voltei a ver nos dias que antecederam o embarque para a Metrópole.

"Como a memória se perde no tempo por indocumentação, ou porque a essa memória se teve medo de atribuir qualquer importância (existiam e ainda existem muitos complexos sobre a guerra colonial), resolvi dar o meu contributo para esclarecer uma dúvida colocada no seu blogue, sobre quem teria participado nos massacres de Samba Silate e Poindom, no início de 63.

"Sem conseguir precisar o mês, um dia soubemos que a PIDE estava em Bambadinca para deter o padre António Grillo, italiano da Ordem Franciscana, acusado - não sabíamos se por denúncia, se por investigação - de colaborar, proteger, e fornecer alimentos a elementos do PAIGC, a partir de Samba Silate" (...).

Guiné 63/74 - P3043: Em busca de ... (33): Memórias do príncipe Abdulai Jamanca, irmão do meu tio Gonçalves Dias (Miguel Ribeiro de Almeida)

Guiné > Brá > 1965 ou 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanca e o Joaquim. Esta era a 1ª equipa do seu grupo de comandos, os Diabólicos. Em vésperas da Op Atraca. O Jamanca será mais tarde ofical da 1º Companhia de Comandos Africanos, participará na Op Mar Verde (invasão da Guiné-Conacri, em 22 de Novembro de 1970) e comandará, em 1973, a CCAÇ 21, da qual farão parte antigos graduados africanos da CCAÇ 12 Enquanto a CCAÇ 12, provavelmente refrescada, foi colocada no Xime, de meados de 1973 até ao final da guerra, a CCAÇ 21, comandada pelo Tenente Jamanca [lê-se Djamanca], ficará em Bambadinca como unidade de intervenção.


Guiné > Bissalanca > o 1º Cabo Abdulai Jamanca a ser condecorado com a Cruz de Guerra pelo Coronel Kruz Abecasis (Cmdt da BA 12) em 10 de Junho de 1967 (?).

Abdulai Queta Jamanca (1937-1975), de seu nome completo, Príncipe Fula por nascimento, era natural de Farim. Foi alistado nas NT a 12 de Janeiro de 1956. Foi um dos militares que em Outubro de 1963 se deslocaram a Angola para frequentar o curso de comandos. Fez parte do grupo que actuou na Ilha do Como, na Op Tridente (Jan-Mar 1964).

Em Brá colaborou na instrução do 1º curso de comandos e, em data não determinada, foi evacuado, por acidente em serviço, para o HMP, de Lisboa , onde foi tratado durante alguns meses. Regressou à Guiné, já o curso tinha terminado, ficando a pertencer ao grupo de comandos Panteras. Em Setembro de 1965, ingressou nos Comandos do CTIG, tendo feito parte, no período de 1965/66, dos Grupos Vampiros e Diabólicos (neste último, sob o comando do Alf Mil Comando Virgínio Briote).

Mais tarde, fez parte, em 1969, ingressou na 1ª CCmds/BCA, tendo participado na invasão a Conacri, Op Mar Verde, que levou à libertação dos nossos prisioneiros de guerra, em poder do PAICG.

O então 1º tenente Jamanca foi, em Junho de 1973, nomeado como comandante da CCAÇ 21, extinta em Agosto de 1974. Regressou à CCmds a que pertencia. Foi fuzilado em Bambadinca, em dia não apurado de Março de 1975.

Fotos e legendas: © Virgínio Briote (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem de Miguel Ribeiro de Almeida, sobrinho de do ex-Alf Mil J. M. Gonçalves Dias, que pertenceu à CART 3492 ( Xitole) e depois à CCS do BART 3873 ( Bambadinca) (1971/74):


Meu caro Luís Graça,

Venho agradecer-lhe, bem como ao seu camarada Beja Santos, pessoalmente e em nome do meu tio, a vossa inestimável ajuda, sem a qual não teria sido possível localizar o 2º Sargento Fodé Dahaba e família [, que moram em Mem Martins].

Acabo de abrir a minha caixa de correio e encontro a sua mensagem, pelo que vou de imediato telefonar ao meu tio para lhe dar esta magnífica notícia [, a morada, o telefone e o telemóvel do Fodé Dahaba, 2 ºSargento do Pel Mil nº102, Finete].

Tenho pesquisado no seu blogue para encontrar notícias de um outro camarada vosso, infelizmente assassinado pelo PAIGC em 1975. Trata-se do Tenente Abdulai Jamanca. O meu tio conheceu-o em Bambadinca, e ficaram muito amigos, como irmãos. O Tenente Jamanca ofereceu-lhe uma foto, tirada no aquartelamento de Bambadinca aí por 1972/3, dedicando-a ao meu tio, e nela escrevendo "Para o meu irmão José M. Gonçalves Dias". Esta foto está na sala de casa do meu tio desde que ele regressou da Guiné.

Pesquisando no vosso blogue, como dizia, encontrei uma foto do Tenente Jamanca a ser condecorado com a Cruz de Guerra, a alguns posts a ele referentes que mostrarei ao meu tio assim que estivermos juntos. Um desses posts é escrito por um cidadão guineense, hoje a residir e a trabalhar em Lisboa, que viu o camião do PAIGC levar o Tenente Jamanca para o local onde seria assassinado. No post, que é de 2006, estão os telefones de contacto dessa pessoa. O Luís acha que nós, eu e o meu tio, poderíamos contactá-lo?

Sei que é também um desejo de longa data do meu tio encontrar familiares do Tenente Jamanca. Caso o Luís, ou um seu camarada, saibam de alguma forma de contactar com algum parente do Tenente Jamanca, por favor diga-me.

Continuarei a acompanhar o vosso blogue, com muito gosto e todo o interesse. É um espaço que preserva a memória da nossa história contemporânea e que abre lugar ao debate e à convivência entre os antigos combatentes. Numa época em que se fala tanto de serviço público, talvez fizesse bem a muitos programadores dos canais de televisão portugueses ler o vosso blogue.

Assim que entrar de férias e estiver com o meu tio, que vive em Viseu, levo comigo o PC portátil para ver se o convenço a aderir ao ciberespaço e a entrar na vossa tertúlia. Ele ficou entusiasmado com as coisas que eu lhe contei sobre o vosso blogue - a infinidade de posts, textos e fotos, a possibilidade de ele próprio vos enviar textos e comentários e, sobretudo, a facilidade de contactar com os seus camaradas da Guiné de uma forma rápida - , por isso espero "levá-lo"
em breve até vós.

Mais uma vez, o nosso muito obrigado pela ajuda prestada. Um abraço da minha parte, um Alfa Bravo para o Luís Graça e Beja Santos da parte do meu tio, e votos de boa saúde. Até breve.

Miguel

2. Comentário de L.G.:


Meu caro Miguel: Tens uma missão delicada: converter o teu tio à nossa mística bloguística, e ajudar a desenvolver a sua literacia informática de modo a poder comunicar connosco. Para já, podes servir de elo de ligação. Mais tarde, teremos todo o gosto em recebê-lo como camarada nosso, nesta Tabanca Grande, de que tu passas de imediato a fazer parte como amigo... (Temos vários familiares de camaradas nossos, a maior parte já falecidos - o que não é felizmente o caso do teu tio Gonçalves Dias - nessa condição).

Aqui te deixamos mais alguns elementos informativos sobre o Abdulai Jamanca, que eu conheci em Fá Mandinga e em Bambadinca, em 1969/70, e que uns anos antes (1965/66) fez parte do grupo de comandos liderado pelo nosso co-editor Virgínio Briote. Se puderes, e com a autorização do teu tio, manda-nos a tal foto autografada que o Jamanca lhe ofereceu, possivelmente em meados de 1973 quando ele foi comandar a CCAÇ 21 (que também tinha graduados africanos da minha antiga CCAÇ 12, a que eu pertenci entre Junho de 1969 e Março de 1971; homens, portanto, que eu ajudei a formar e que enquadrei).

Quanto ao nosso amigo José Carlos Mussá Biai, que é natural do Xime, é engenheiro agrónomo e trabalha no Instituto Geográfico Português, estás autorizado a telefonar-lhe. Oxalá consigas o contacto de algum familiar do saudoso amigo do teu tio e grande combatente fula ao serviço das NT. O seu fuzilamento foi uma tragédia e, como todos os outros, ensombrou a festa que deveria ser a independência da Guiné-Bissau.

__________

Notas de L.G.:


(1) Vd. poste de 3 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3016: Em busca de... (32): Margarida Dahaba, professora, filha do 2º Sargento Fodé Dahaba (M. Ribeiro de Almeida / J.M. Gonçalves Dias)

(2) Sobre o 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXII: Dos comandos de Brá ao pelotão de fuzilamento (Virgínio Briote)

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

14 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2843: Ainda os Comandos fuzilados após a independência (III): Alguns dados de 1965/66: Abdulai Queta Jamanca (Virgínio Briote)

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3042: A Guerra estava militarmente perdida? (24). Comentário do J. Mexia Alves.

Guiné - Guerra e Descolonização…


Mexia Alves


Quem me conhece sabe que tenho as emoções à "flor da pele", que rio e choro com a mesma facilidade, que me empenho nas causas e com elas sofro e me alegro, que não tenho problema em mostrar as minhas emoções e que como referências da minha vida, para além de Deus em primeiro lugar, tenho a amizade, a fidelidade, a gratidão.

Este intróito é para vos dizer que ontem, ao ler o post 18 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2959: A guerra estava militarmente perdida? (19): MIGS e Aliados. Juvenal Amado. M. Beja Santos. ", me irritei, com uma irritação daquelas que fazem sair de dentro de nós golfadas de revolta, e que nos "tiram do sério" como se costuma dizer.

Sentei-me ao computador e comecei a escrever, mas depois, como já me vou conhecendo ao longo destes 59 anos de existência pensei:
"Joaquim, irritado como estás, vais fazer merda. Vais escrever coisas que depois perceberás que não querias escrever ou que colocarias de outro modo."
Assim, levantei-me dali, fui dar uma volta, estar com a família e depois voltei.

Fui alegremente surpreendido com a minha "declamação" no Encontro de Monte Real, (obrigado Luís), o que logo acalmou o meu espírito e me trouxe uma qualquer água aos olhos.
Decidi então que a noite é boa conselheira e portanto que deixava para hoje a minha resposta, ou melhor, os meus considerandos sobre o referido post.

E então o que é que tanto me irritou?
O que tanto me irritou foi isto:

"Quanto se utiliza o relato de actos de bravura dos nossos soldados, para se negar o que era inegável.
A derrota militar era uma realidade.
As derrotas militares são normalmente precedidas do sofrimento das populações civis. O Povo Português estava casado de sofrer.
Se não se tem promovido etnias em desfavor de outras. Se não se tem promovido a cavaleiros do Império, soldados oriundos das populações indígena, que fizeram em muitos casos o trabalho ‘sujo’, a guerra teria durado ainda menos.
Quando li as opiniões de alguns nossos camaradas sobre a questão, fiquei perplexo.
Parece que falam de outra realidade.
Na opinião deles, este país que vivia num atraso tal que competia com as próprias colónias, tinha condições para se manter como a última potência colonial. Contra tudo e contra todos.
Na minha opinião há de facto falta de realismo nesta visão e 34 anos após a revolta dos que lá combatiam, alguns ainda mantêm o sonho inexplicável do Império Colonial."


Apetecia-me responder ponto por ponto ao que aqui está escrito, mas confesso não tenho paciência para isso.
Mas mais uma vez vou dizer aquilo que tenho repetido até à exaustão:

Não gosto da guerra, não queria a guerra, fiquei muito feliz por a guerra ter acabado, e não tenho nenhum sonho com o Império Colonial.
E tenham paciência, é inadmissível que torçam as palavras e que se retire delas o que elas não contêm.
Quando iniciei esta "polémica" foi no sentido de afirmar que à data do 25 de Abril a guerra na Guiné não estava militarmente perdida, e neste desiderato não coloquei quaisquer intenções politicas, ou outras que sejam a não ser a afirmação de que, para mim, a guerra na Guiné, na altura do 25 de Abril, não estava militarmente perdida.
Vir-se agora com conotações políticas, chamando colonialistas e sei lá mais o quê a quem defende esta afirmação, é no mínimo trazer argumentos políticos para uma discussão que nada tem de político, (embora a guerra envolva o político, obviamente), e é vir colocar labéus infelizes sobre camaradas que respeitam e devem ser respeitados.

"Parece que falam de outra realidade.”

Porquê? Também lá estive e até estava nessa altura, ou será que a realidade de uns é mais realidade que a dos outros?
Quanto aos guineenses que lutaram connosco apenas digo que tenho muito orgulho neles e tenho muito orgulho em os ter comandado.
Quanto aos considerandos da guerra deixo ao Graça de Abreu a resposta que já deu, e que o faz bem melhor do que eu, mas deixo a talhe de foice, que por esses tempos a CCaç 12, comandada brilhantemente pelo Cap. Bordalo, numa operação, salvo erro na zona do Xime, eliminaram em combate, (andei a escolher a palavra), o comandante da zona do PAIGC, Mário Mendes.

Quanto a ti meu caro comandante e amigo Mário Beja Santos já to disse uma vez e volto a repetir:
Estou-me borrifando, (desculpa porque não é menos consideração por ti, que a tenho como sabes), para o Kissinger, Nixon, Marcelo Caetano e todos esses políticos que apenas falam do que julgam saber.
É curioso reparar que mesmo ao nível dos militares a diferença é abissal nas opiniões sobre este assunto da guerra perdida ou não militarmente:
Aqueles que nela mais se empenharam e participaram operacionalmente são da opinião que não estava perdida, aqueles que ocupavam outro tipo de posições e depois se voltaram mais para a política têm opinião contrária.
Já agora deixa-me dizer-te que Freire Antunes não é, nem de perto nem de longe, o oráculo fiel da guerra de África e que se percebe nalgumas entrevistas que a opinião dos entrevistados já vem influenciada pelas mudanças, em boa hora (repito em boa hora), ocorridas no país.

Como é mesmo o "motivo" do nosso blogue?

Não deixes que sejam os outros a contar a tua história por ti.

Sem mais palavras.
Apenas para confirmar aquilo que já sabes, ou seja, que as informações, os relatórios, nem sempre correspondiam à verdade, digo-te aqui que a história oficial da minha companhia do Xitole, relata a certa altura uma tentativa de "golpe de mão" ao quartel pelo PAIGC.
Como nunca tinha ouvido falar em tal coisa perguntei aos meus camaradas e amigos que tinham ficado no Xitole como tinha sido: ficaram tão admirados como eu!!!

"Por favor, não se insinue que os militares portugueses estiveram associados ao colapso."

Não, caro Mário, não insinuo nada disso, nem sei onde vais buscar tal ideia!
Afirmo pelo contrário, que não houve colapso nenhum e que a não existência desse colapso, ou derrota militar, se deveu, apesar de todas as dificuldades que tão bem enumeras, à incrível valentia, coragem, empenho e heroicidade dos soldados, furriéis e oficiais portugueses, na sua esmagadora maioria milicianos.

Quanto a este assunto, dou por terminada a minha intervenção, pois me parece que é polémica sem fim, a não ser que algo me faça por imperativo de consciência voltar à liça, com o respeito e amizade que todos me merecem.

Duas palavras finais neste já longo escrito para dizer que gostei do texto do José Belo, no qual me revejo em muitas coisas e que foi uma alegria poder vir a saber que fomos colegas de colégio, em Lisboa, embora ele mais adiantado, porque nasceu primeiro!
A outra para os textos do Carmo Vicente e apenas para dizer que são muito vivos e impressionantes, mas desculpem-me porque para a guerra do "nós somos bestiais, e os outros não prestam", já dei e não volto a dar.
Os Fuzileiros fogem, os Comandos descansam, a Força Aérea não voa, os oficiais não prestam e a tropa do "arre-macho" é uma desgraça, apenas os Pára-quedistas se safam no meio disto tudo!

Termino como comecei, ou seja, com as emoções à "flor da pele", para dizer que tenho os braços do tamanho do mundo e que nunca os fecharei a ninguém, porque todos neles cabem, como eu acredito que caibo nos braços de todos.

Abraço camarigo do

Joaquim Mexia Alves
__________

Notas:

1. Adapatação do texto da responsabilidade de vb;

2. Mensagem perdida e recuperada graças ao Joaquim Mexia Alves;

2. vd. artigos relacionados em:30 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P3002: A Guerra estava militarmente perdida? (23). Comentário do Cor Amaro Bernardo.

Guiné 63/74 - P3041: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (6): O cabaço da bajuda

Foto 1 > Soldados da Milícia de Mampatá

Foto 2 > A Ádada, mulher do régulo Suleimane


Foto 3 > O Aliu Baldé
Foto 4 > A mulher do régulo Shambel de Contabane, mãe do Suleimane
Foto 5 > Nobia na tem kabaço. Manga de ronco Fotos e legendas: © José Teixeira (2008). Direitos reservados.


1. Publicamos hoje mais umas Notas Soltas do nosso camarada José Teixeira, ainda a propósito da sua ida à Guiné-Bissau, por altura do Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2008).

2. O Cabaço da Bajuda. 

Por José Teixeira 

 Na minha recente peregrinação à Guiné-Bissau, fui visitar um velho amigo de Mampatá, agora régulo em Sinchã-Shambel – Saltinho. O Suleimane Shambel é filho do falecido régulo de Contabane, tabanca assaltada e queimada pelo IN em 22 de Julho de 1968. 

Parte de uma Companhia operacional que lá estava estacionada, regressou em 24 de Junho do mesmo ano a Aldeia Formosa com a roupa que tinham aquando o ataque, tal foi a violência do mesmo. O régulo Shambel fixou-se em Aldeia Formosa. A população dividiu-se entre Aldeia Formosa e Saltinho, até ser reagrupada em Sinchã-Shambel. 

O meu amigo Suleimane fixou-se em Mampatá, integrando o Pelotão de Caçadores Nativos (Milícia local), tendo casado com a Ádada (*), filha do régulo local, Aliu Baldé. 

 Aí convivemos durante seis meses. Agora voltámo-nos a encontrar, para reviver velhos tempos. Sentado num trepo (banco de três pernas) conversávamos os três animadamente, recordando outros tempos, recordando amigos(as), alguns vivos e localizáveis, outros em lugar incerto e tantos que já partiram… 

 Eram cerca de três da tarde, quando se começa ouvir um burburinho, que se deslocava na nossa direcção. Um coro de vozes femininas a cantarolar em simultâneo com gritos e risos que reflectiam alegria e boa disposição. Poucos segundos depois, passa à nossa frente uma procissão de bajudas e jovens mulheres. Uma das da frente levava um pau tipo bandeira com um pequeno pano vermelho pendurado na ponta. A algazarra era enorme. As mulheres espreitavam e batiam palmas, os homens lançavam uns sorrisinhos marotos, face àquela festa. 

 Eu, embasbacado, perguntei: 

- Ádada, que festa é esta? 

 Ela com um sorriso malandro retorquiu: 

- Ontem houve casamento, grande ronco. A noiva ergueu-se agora da cama e mostrou o lençol com sangue. Bajuda na tem kabaço. É ronco, é festa. As outro bajudas estão a mostrar a população qui noiva na tem kabaço mesmo

- Até ontem! - Comentei. 

- Sim, hoje já não tem. 

- O lençol tinha sangue dela ou de alguma galinha que lá puseste. - disse eu com ar de malandro. 

 Uma gargalhada geral encerrou a conversa enquanto eu seguia com os olhos o grupo de mulheres que se deslocava tabanca fora na sua alegre cantilena. 

 Hoje recordo como foi diferente o casamento em Dezembro de 1968 da Mariama de Mampatá: 

 (i) Os preparativos, desde o pentear do cabelo que demorou horas; 

(ii) A chegada do noivo e sua comitiva, vindo de Aldeia Formosa; 

(iii) A festa contida pela necessidade de não se fazer demasiado barulho para não acordar o IN; 

(iv) O batuque que acabou ao escurecer para que o silêncio se impusesse e os ouvidos se concentrassem em possíveis ruídos ameaçadores; 

(v) A expectativa no dia seguinte em ver o lençol pintalgado de manchas vermelhas, sinal de que a Mariama ainda tinha kabaço. Cena de que fui delicadamente afastado por uma mulher grande. 

 Zé Teixeira

(*) Em escritos anteriores falei da alegria que senti quando a Ádada me reconheceu em 2005, 

altura da minha primeira visita à Guiné-Bissau no pós-guerra.

________

  Nota de CV: 

 Vd. último poste da série de 7 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2816: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (5): Água, fonte de vida para as gentes de Cabedu

Guiné 63/74 - P3040: Estórias cabralianas (37): A estranha 'missão' do Badajoz (Jorge Cabral)

Guiné >Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1971 > Pel Caç Nat 63 > Furriéis Milicianos Pires, Branquinho e Amaral, o saudoso Amaral (***). O António Branquinho é irmão do Alfredo Branquinho, membro da nossa tertúlia.

Foto : © Jorge Cabral (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71 , seguramente um dos camaradas mais fixes com que podemos contar, sempre, nos bons e nos maus momentos (Aliás, até dá jeito ter, na nossa Tabanca Grande, advogados, com a experiência e o saber dele, Jorge Cabral; e, a propósito, prometo publicar um dia as deliciosas estórias judiciais que ele arranja para os seus alunos aprenderem a matéria; há uma colecção delas, publicadas em livro, por iniciativa dos seus alunos):

Querido Amigo: Renovo os parabéns pela brilhantíssima actuação do teu talentoso filho e companheiros, [os Melech Mechaya] (*). No decurso do Concerto, fui fumar para o Bar, onde também se encontrava a estrela Soraia Chaves. Que mulher! Olhar para ela constituiu uma violência contra este idoso…

Junto mais uma Estória Cabraliana.

Abraço

Jorge

PS - Em anexo foto dos furriéis do Pel Caç Nat 63 em Missirá (Pires, Branquinho e o saudoso Amaral)


2. Estórias cabralianas (37) > A Estranha “Missão” do Badajoz
por Jorge Cabral (**)


Em Missirá existiam sempre cinco ou seis adidos. Um enfermeiro, um cozinheiro, um motorista, dois soldados dos Morteiros e às vezes um mecânico, como o célebre Pechincha. Vinham de Bambadinca, cumprir uma espécie de castigo, pois Missirá representava o isolamento, o mato e o perigo.

Chegavam receosos e um pouco atarantados, mas, passado algum tempo, parecia que o castigo se transformara em prémio e já ninguém queria regressar. Gostavam de ali estar, naquele quartel–tabanca, onde muitos nem sequer se fardavam e quase não existia hierarquia.

Porém, no primeiro dia todos se haviam sentido apreensivos. O Alferes recebia-os formalmente com um discurso incompreensível e confiava-lhes uma “missão”, sempre absurda.

As “missões” inspiravam-se nas discussões, manias e cismas vigentes na altura e podiam consistir nas mais disparatadas obrigações.

Assim, a um porque alguém jurara ter visto o avião turra, foi determinada a observação aérea todos os dias entre o meio-dia e as seis da tarde. Outro foi incumbido de vigiar e contar os macacos que costumavam reunir na pequena elevação fronteira, pois o Amaral (***) alvitrara que o aumento do seu número significaria um ataque iminente.

Já em Maio de 71, apresentou-se o Badajoz, grande louco ou perfeito simulador, que passara por Bolama onde fizera a recruta por via de uma pena sofrida em Elvas, estacionara em Bissau, e lá por duas vezes, tentara embarcar de regresso à Metrópole, acabando na CCS [, Companhia de Comandos e Serviços,] de Bambadinca a aguardar “melhoras”. Claro que o [Cap] Passos Marques [, da CCS/BART 2917,] logo o mandou para Missirá…

Tal como a todos os outros foi necessário confiar-lhe uma “missão”. Ora na época, a discussão que nos ocupava a todos, era a resposta à importante questão: Porque mijam as mulheres de pé, e os homens de cócoras? Quanto às mulheres, o assunto não constituía novidade pois o Monteiro afiançara que na terra dele também as velhas tinham esse costume. Sobre os homens sim. Para mijarem de cócoras não encontrávamos explicação.

Encontrá-la foi a “missão” do Badajoz, que a levou muito a sério… Infelizmente não teve tempo. Quinze dias depois veio a ordem. Baixou à Psiquiatria. E nós lá continuámos sem resposta…

Curiosamente foi na véspera do [meu] regresso que tive notícias do Badajoz. Era a minha última noite em Bissau. Bebia, discursava, declamava…

Conhecidos e desconhecidos, juntavam-se na minha mesa. De Missirá nenhum ouvira falar… Um Alferes médico psiquiatra lembrou-se porém de um Soldado que lá dissera ter estado. Declarado incapaz, passara à peluda.
- Um caso perdido… Metia-se na casa de banho a espreitar os africanos a mijar….


Jorge Cabral

_________


Notas de L.G.:


(*) Vd. poste de 7 de Julho de 2008 >Guiné 63/74 - P3028: Eu, o Jorge Cabral, o António Graça de Abreu e... o Levezinho, no velho/novo Maxime, com os Melech Mechaya (Luís Graça)

(**) Vd. último poste desta consagrada série > 20 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2862: Estórias cabralianas (36): Uma proposta indecente do nosso Alfero (Jorge Cabral)



(***) Vd. 6 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2033: In Memoriam (2): O saudoso Amaral da horta e dos presuntos de Missirá (Jorge Cabral / António Branquinho)

Guiné 63/74 - P3039: Poemário do José Manuel (20): Mãe, se eu não regressar, lembra-te do meu sorriso...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "Em Nhacubá... tendas de campanha, bidons de alcatrão, máquinas de engenharia, calor, muito pó e solidariedade"....

Foto, poemas e legendas: © José Manuel (2008). Direitos reservados.

1. Mensagem, com data de 28 de Abril de 2008, remetida pelo o José Manuel Lopes (*):

Camarada Luís: Enviei até agora 62 poemas que tinha guardados (**). Algures em casa de minha avó, na Régua, onde vivi até me casar em 83, devo ter mais alguns junto às coisas que trouxe da Guiné. Me lembro que numa altura, perturbado, sem saber o que fazia, destrui parte do que trouxe. Tudo que conseguir recuperar enviarei para o nosso Blogue, por agora pouco mais tenho para enviar, pois algumas coisas são muito pessoais e outras podem ferir a sensibilidade de terceiros.

Um abraço
jose manuel


2. Comentário de L.G.:

Publicam-se hoje mais dois poemas do Josema, dos tais 62 que foram salvos do fogo da lareira: voltam a aparecer, como temas recorrentes e fortes da poesia do José Manuel Lopes, a figura da mãe, a infância, o Rio Douro, a paisagem única do Douro com os seus vinhedos, a morte, a saudade, o desejo do regresso, as mães que choram em silêncio pelos filhos ausentes, longe, na guerra...

É um registo, intimista, que só pode enobrecer o nosso camarada duriense e cuja divulgação nos honra a todos. É um privilégio o nosso blogue poder publicar este tipo de documentos, 34 anos depois do fim da guerra. Que seja também um estímulo e um exemplo para aqueles de nós que guardam, no velho baú do sótão, papéis amarelecidos pelo tempo, com os seus versos do tempo de guerra, e que por pudor, ou por excessivo sentido autocrítico ou por simples esquecimento não os divulgam... Este blogue serve justamente para isso: para dar à luz do dia o testemunho, emocionado, da nossa passagem pelas terras da Guiné, em tempo de guerra... Não fazemos juízos de valor (muito menos literários) sobre o que publicamos. Basta-nos a autenticidade dos documentos, e a vontade de comunicarmos uns com os outros... Infelizmente não temos todo o tempo do mundo: grande parte das memórias da guerra da Guiné vão morrer connosco... Por isso, camarada, não deixes que sejam os outros a contar a tua história por ti... Em verso, em prosa, em imagem... LG


Um sorriso...mãe

Mãe
se não regressar
lembra-te do meu sorriso
aquele sorriso malandro
a mendigar o perdão
para me não castigares
por ter faltado às aulas
para ir p'ró rio nadar
oh
como era bom nadar
da fraga do cavalo saltar
o Douro atravessar
e as uvas apanhar
e depois
chegar a casa
com um sorriso para te dar.

Mampatá 1973
josema


Até ao nosso regresso...

Porque choram as mães?
mártires de coração partido
desta guerra sem sentido
porque choram elas?
heroínas anónimas
sem louvores
nem medalhas
eternamente esquecidas
choram porque sofrem
choram porque temem
as notícias do correio de amanhã
choram enquanto aguardam
o regresso desejado.

Mampatá
Natal de 1972
josema
_____________

Notas de L.G.:

(*) Sobre o autor, vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)


(**)Vd. poemas já publicados (Inicialmente, do poste 1 ao 7, foram publicados vários poemas, em cada poste) (***):


1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3010: Poemário do José Manuel (19): Aqueles assobios por cima das nossas cabeças...

22 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2973: Poemário do José Manuel (18): Não se morre só uma vez...

15 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2946: Poemário do José Manuel (17): A Companhia dos Unidos

2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2911: Poemário do José Manuel (16): Saudades do Douro e do Marão...

25 de Maio de 2008 >Guiné 63/74 - P2884: Poemário do José Manuel (15): Dois anos e alguns meses

17 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2852: Poemário do José Manuel (14): É tempo de regressar às minhas parras coloridas...

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2844: Poemário do José Manuel (13): A matança do porco, o Douro, os amigos de infância, os jogos da bola no largo da igreja...

9 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2824: Poemário do José Manuel (12): Ao Zé Teixeira: De sangue e morte é a picada...

2 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2806: Poemário do José Manuel (11): Até um dia, Trindade, até um dia, Fragata

24 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2794: Poemário do José Manuel (10): Ao Albuquerque, morto numa mina antipessoal em Abril de 1973

19 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2776: Poemário do José Manuel (9): Nós e os outros, as duas faces da guerra

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2757: Poemário do José Manuel (8): Nhacobá, 1973: Naquela picada havia a morte

(***) Vd. os sete primeiros postes:

3 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...

Pior
que o inimigo
é a rotina
quando os olhos já não vêem
quando o corpo já não sente (...)

9 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2619: Poemário do José Manuel (2): Que anjo me protegeu ? E o teu, adormeceu ?

Uma vida quanto vale?
na mira da minha arma
só há vultos
sem sentido
corpos sem alma
consciências amordaçadas
na outra mira
estou eu? (...)

O nascer de um bruto

Já não sei rezar
já não acredito
já não sei amar
só sei que grito (...)

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2630: Poemário do José Manuel (3): Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

Estradas amarelas
corpos cobertos de pó
pica na mão à procura delas
o polegar ferrado no pau
tac, tac, tac, tac, tac, tac (...)

Tenho saudades
do amor que não se compra
daquele que se sente
o tal
que vem de dentro (...)

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2665: Poemário do José Manuel (4): No carreiro de Uane... todos os sentidos / são poucos / escaparão com vida ? / não ficarão loucos ?


A escuridão
pode não ser o fim
se após a noite
vier o dia (...)

Pensar que amar é doré não amaramar
é dominar
a violência
que há em nós (...)

-Sabes?Sonhei
que as coisas boas
não acabaram (...)

Seria bom pronunciarnuma doce ilusão
um até sempre (...)

Quero sonhar
e não consigo
viver um mundo
que não tenho
nem encontro (...)

Gostava de vos falar
dos esquecidos
dos heróis que a história
não narra (...)

Olhos semi cerrados
querendo ver
para além das árvores (...)

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...(...)

Calor, cansaço, suor
saudades de tudo
e de um rio... (...)

Ouve-se um violão
numa noite de luar
tocado pelo Gastão
p'ra algo comemorar
cantigas de Zeca Afonso (...)

As brincadeiras loucasacabam por ter sentido
se as alegrias são poucas
neste cantinho perdido (...)

Guernica!
pintura
visão, mensagem, recado?
para quem e porquê? (...)

Quantas batalhas e guerrasgeradas pela ambição?
quantos pior que feras
mataram o seu irmão? (...)

O calor húmido nos envolve
abraça-nos a escuridão
e a noite se faz dia
c’o ribombar do trovão (...)

Neste imenso sofrerpensar Nele ajuda
mas Ele parece não ouvir (...)

Um ruído vem do céu
e há cabeças no ar
hoje é dia de correio
há novas para chegar (...)

Quero irmas não sei onde
tudo me parece um delírio
sem sentido nem razão
neste mundo desumano (...)

5 de Abril de 2008 Guiné 63/74 - P2723: Poemário do José Manuel (6): Napalm, que pões branca a negra pele, quem te inventou ?

10 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2739: Poemário do José Manuel (7): Recuso dizer uma oração ao Deus que te abandonou...

(...)

Recuso dizer uma oraçãoao Deus que te abandonou
não sei se é do nó
que me aperta a garganta
ou da revolta que brota do meu peito
só sei que não consigo
desculpa... (...)

Escuta mãe
espero como nunca um conselho
mas não consigo ouvir a tua voz
aguardo um aviso
um sussurro de alguém
e só me responde o silêncio
como é duro estar só (...)

Este pó que nos seca a garganta
este calor húmido que sufoca
esta terra vermelha
que se cola ao corpo
estes estranhos odores (...)

Não quero os dias todos iguais
nem águas da mesma cor
pois a vida não é sóalegrias e beleza
e ainda muito menos
só a dor e a tristeza (...)

Como eram belas
as miúdas que conheci
as amigas as amantesas
de amores realizados (...)

Guiné 63/74 - P3038: Álbum de fotografias do José Couto (CCS/BCAÇ 2893) (3): Mansoa

1. Apresentamos mais umas fotos de José Couto, enviadas pelo nosso camarada Tino Neves.
Desta feita são fotos de Mansoa tiradas por aquele nosso camarada em 2005.










_____________

Nota de CV

(1) Vd. os primeiros postes da série de:

7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1254: Álbum de fotografias do José Couto (CCS/BCAÇ 2893) (1): Quinhamel

12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1272: Álbum de fotografias do José Couto (CCS/BCAÇ 2893) (2): Com saudades de Cacheu para o Joaquim Ascensão

terça-feira, 8 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3037: Os nossos regressos (8): E vieram todos (Luís Dias)

Cheira bem, cheira a Lisboa 

Luís Dias

No regresso da Guiné 

No regresso dissemos: "E Vieram todos!" 

O regresso do BCAÇ 3872 à zona de Bissau, oriundo do Leste da Guiné (Galomaro, Dulombi, Cancolim e Saltinho), deu-se no dia 9 de Março de 1974. Ficámos instalados no Cumeré, onde estivéramos já no longínquo ano de 1971, mais propriamente ali chegados na véspera de Natal de 71… raio de três Natais passados nas terras vermelhas e quentes do Corubal e a família tão distante. 

Em virtude de ser o 2.º Comandante da CCAÇ 3491, fui nomeado pelo capitão para, juntamente com o 2.º Sargento Chanca, procedermos ao "desembaraço" da companhia. Isto queria normalmente dizer que dificilmente eu iria acompanhar a companhia no embarque marcado para 28 de Março, pois a burocracia a efectuar era muita. 

Efectivamente, a Guia de Desembaraço necessitava de ser assinada pelos responsáveis de diversas repartições, secções, secretarias e serviços, a saber: REP/OPER/QG/CC; REP/INFO/QG/CC; REP/PESLOG/QG/CC; REP/ACAP/QG/CC; SEC/POP/QG/CC; 1ª REP/QG/CTIG/OF e 1ª REP/QG/CTIG/FICH; 2ª e 3ª REP/QG//QG/CTIG; 4ª REP/QG/CTIG; SVC SAÚDE; SVC TRANSPORTES; SVC JUSTIÇA E DISCIPLINA; SECRETARIA/QG e BIBLIOTECA. 

No dia seguinte lá fui para Bissau mais o 2.º Sargento Chanca e um condutor, para conseguir obter as tais tão preciosas assinaturas, mas a coisa….não era fácil. É que em cada local tínhamos de, primeiramente, recolher um montão de assinaturas de sectores e subsectores, para aceder, finalmente, à assinatura principal, a do Chefe da Repartição. Foi uma luta diária, uma lufa-lufa, interrompida unicamente para o desfile de despedida perante o Com-Chefe, General Bettencourt Rodrigues (relembro o momento emocionante da chamada aos mortos, no qual a nossa companhia não teve de dizer presente, pois tivemos a sorte de não termos sofrido baixas. 
Já não havia o habitual discurso do antigo Homem Grande de Bissau que dizia "…chegastes meninos, partis homens!"). 

O trabalho que aquilo dava quase não nos deu tempo de saborearmos umas ostras e uns cocktails de camarão, mas conseguimos… Ah! O grande Chanca que foi uma preciosa ajuda no paleio e a dar a "volta" àqueles sargentos dos subsectores. 

No dia 28 de Março saímos do Cumeré em direcção ao Porto de Bissau, com o pessoal da companhia a cantar canções do Cancioneiro do Dulombi e da Tecnil e músicas populares portuguesas, em que se destacava aquela do "Cheira bem, cheira a Lisboa"… O embarque no navio Niassa deu-se sem quaisquer peripécias, a não ser o costume do amontoado de pessoas e bagagens nos porões, onde as praças seguiam "empilhados" – péssima maneira de estimar quem dera o coirão pela Pátria. 

ADEUS GUINÉ 

É o fim do castigo 
Terminou a comissão 
É necessário gritar Piras! 
Não venham 
Deixem isto acabar 
Morrer de tédio 
Sem remédio 
Isto é vida de cão 
A velhice vai embora 
Enquanto a bajuda chora 
E a nau está a naufragar! 

Adeus Guiné! 
GRITA! 
Se quiseres 
Se te apraz 
Se te sentes feliz 
Se isso te satisfaz 
Eu não quero continuar de verde-claro 
Saí do Dulombi! 
Deixei Galomaro! 
Sofre-se porquê? 
Se não mereces tal sacrifício 
Ou é apenas vício? 
Tu não sabes o que andas a fazer ou afinal até sabes…! 
Espero que de mim só leves suor e muitas lágrimas 
Cheira bem, cheira a Lisboa! 
Aqui o tempo está parado 
Lá parece que voa Sabes como é 
Tudo é finito 
Assim, solto o meu grito 
Ponho-me de pé 
Atraca o navio. 
É hora de embarque 
Viro as costas ao cais 
Aqui não volto mais 
Não há lágrimas em destaque 

Adeus Guiné! 

A viagem decorreu sem incidentes até ao Funchal, onde desembarcaram as companhias independentes, CCAÇ 3520 e CART 3521, bem como os graduados do Batalhão que foram autorizados a darem uma volta pela cidade. 
Aproveitei para comprar umas orquídeas para dar à minha mãe e telefonei para casa a dizer que estava no Funchal e que regressava de barco, mas sem dizer quando iria chegar. 

Durante o passeio umas senhoras inglesas, já de alguma idade, perguntaram-nos sobre o navio e o porquê de só saírem alguns militares, ficando a maioria a bordo. Respondemos que se tratavam de militares que vinham de regresso a casa, depois de mais de dois anos a combaterem em África, sem verem mulheres brancas e que se lhes dessem liberdade, nem as velhinhas lhes escapavam….!!!! O que elas riram! 

A razão não era essa é claro, mas se eles todos saíssem, com aquela poncha… uma semana depois ainda ali estaríamos à espera e à procura de muitos deles. 

No barco, fui muito bem tratado, até porque algum do pessoal de apoio era de Alfama, do meu bairro e portanto estava a jogar em casa e a propósito de jogo, lembro-me de ter ganho mais uma aposta ao furriel enfermeiro Nevado, um sportinguista ferrenho, com o qual passava a vida a apostar, quer em futeboladas no Dulombi, nos quais ele tinha de reunir simpatizantes do FCP, com os seus do SCP, para jogarem contra os militantes do Benfica, os SLB e… infelicidade para ele, lá se ia uma grade de cerveja ao ar. 

De facto nessa altura, com o campeonato quase ganho e ganhou-o, o SCP recebia o Benfica em Alvalade e o Nevado lá estava pronto para apostar uma garrafa de Whisky em como levávamos uma abada, aceitei e claro… depois de uma grande jogatana, que nós ouvimos integralmente pelo relato radiofónico, o SLB espetou 5 a 3 à lagartagem – bons tempos – e paga Nevado!!! 

O navio entrou no suave estuário do Tejo pela madrugada do dia 4 de Abril. Assisti da amurada ao nascer do sol sobre Lisboa – o tempo estava límpido – ao brilho que se reflecte nas águas do rio e dá aquela cor inigualável às casas da zona antiga. 
Estava ali a minha cidade, mais velha do que Portugal, com 20 séculos de história, onde eu vira a luz do dia há 23 anos, a cidade que Alan Tanner iria apelar de Cidade Branca. 
Sentia os odores frescos daquela manhã e os sons do início do bulício do dia. 
As fragatas do Tejo sulcavam as águas (ainda existiam) e os cacilheiros lá andavam no seu vaivém. 

Lisboa acordava do torpor nocturno e iniciava um novo dia. A cidade das sete colinas (só Roma foi também assente em sete colinas), apresentava-se, como diz na canção Carlos do Carmo; "…toalha à beira mar estendida…" e ainda como diz o poeta Joaquim Pessoa: "Em Lisboa a gente morre sem idade. Devagar. Como se faz uma canção. E há um pássaro que voa. É a saudade. É uma janela aberta. O coração." 

Muitos homens choravam, num silêncio, feito de muitos ruídos contidos, de muitas emoções estancadas no peito. Lisboa representava aqui, seguramente, as suas terras, os seus lugares e lembrava-lhes o tempo perdido, longe das suas famílias, dos seus amigos – era o regressar da sua natureza.

 
O Tejo e tudo. O navio iniciou as manobras de atracagem na Rocha do Conde de Óbidos – miradouro das Janelas Verdes em frente – e o cais já fervilhava daquelas gentes que vieram, na sua maioria, de longe, de muito longe, para dar o primeiro abraço àqueles que chegavam depois de quase 28 meses de Guiné. 

Olhei em volta, os homens acotovelavam-se para melhor verem a multidão, punham as mãos na cara, a envolver os olhos, a fazer de binóculos, para conseguirem localizar os seus familiares, vi muitos dos meus camaradas da Companhia e pensei em voz alta – "E Vieram Todos!" E novamente pensei no poeta – "a dor que vai dos lenços aos navios"…"Desembarquei aqui. Estou desarmado. Lisboa cabe dentro dos meus olhos." …."Desembarquei aqui. Sem uma espada." E na emoção do momento pensei nos que lá ficaram, nos que perderam a vida e contive a lágrima. "Os que tombam às portas da cidade Sobre um lençol de feridas e de fogo. Sem nome. Sem culpa. Sem idade. Que assim morrem os homens deste povo." 

Em virtude de não terem aparecido, em devido tempo, quaisquer autoridades para nos receberem e para o desfile da praxe, (um prenúncio dos tempos que se iriam seguir), o Tenente-Coronel, Castro e Lemos, Comandante do Batalhão, numa atitude de coragem, ordenou o desembarque da força militar, sem quaisquer outros procedimentos. 
Da amurada consegui ver o meu pai – o Ti Porfírio, como amavelmente lhe chamavam os amigos e conhecidos lá do bairro – que estava no cais, na zona do desembarque, porque, como era Conferente Marítimo, tinha autorização para estar naquele local reservado e por força do seu trabalho tinha conseguido saber que o barco era aquele, quando chegava e dera a notícia à família e lá estavam também a minha mãe – a D. Venina, a minha avó, Maria de Jesus (que quase diariamente, com um grupo de amigas iam rezar por mim na Igreja de S. João da Praça, e eu lhe dizia, na brincadeira, para dia sim, dia não rezar também pelos outros camaradas), o meu tio Armando, a minha tia Bernardete, as minhas primas Helena e Paula e a namorada de então, a Ana. 

O Batalhão seguiu para o Ralis, onde foi feita a desmobilização. Onde se deram os últimos abraços, bem difíceis por sinal, àqueles que connosco privaram diariamente em mais de dois anos, e com os quais vivemos em comum momentos muito complicados – foram a minha família – e estarão sempre dentro do meu coração, mantidos naquele lugar onde guardamos as coisas importantes que nos aconteceram na vida. Vieram promessas de encontros e reencontros… mas a companhia só reuniu passados 25 anos após a nossa chegada. É claro que alguns de nós nos fomos encontrando, fui tendo contactos com o Capitão Pires, os Alferes Farinha e Parente (enquanto ele esteve por Lisboa, felizmente, anos mais tarde, voltou para a sua linda cidade – Viana do Castelo), os Furriéis Soares e Gonçalves (este quando vinha de férias do Canadá, para onde emigrou e é hoje proprietário de um excelente restaurante, em Otava), o Salsa dos "dilagramas" (que estava no Trânsito da PSP), o Sousa dos morteiros 81, o enfermeiro Pires, o Graciano, o Professor Doutor Rui Coelho, o excelente médico, que nos encheu de orgulho por ter sido o pioneiro da fertilização in vitro, no nosso país e que via, com regularidade, no Estádio da Luz, nos jogos do Glorioso e outros mais. 

No dia da chegada, fui jantar com a família a um restaurante situado junto do Coliseu dos Recreios, que decorreu com muita alegria e sem quaisquer perguntas sobre a comissão, aliás eles sempre respeitaram o meu ritmo de falar sobre aquela guerra. 
Os primeiros dias de vida civil foram estranhos… e como dizia aquele milícia que ganhara o prémio Governador, para visitar a metrópole "Txi alfero aquilo é manga de coluna sem escolta" e "pessoal lá manga de esperto, faz tabanca sobre tabanca", referindo-se aos carros e às casas, era de facto tudo muito estranho… parecia que me faltava qualquer coisa e, no entanto, não descortinava o que era. 

Passeei pelo meu bairro, Rua da Regueira, Largo da Palmeira, Rua de S. Pedro, Largo de S. Rafael (onde se encontra uma parte da muralha mourisca), Rua da Adiça, onde ficava a casa da minha avó, Rua de S. João da Praça, onde morava o meu amigo de infância, João Carlos, que iria regressar depois do 25 de Abril, da comissão em Moçambique, passei junto ao meu Grupo de Escuteiros (o Grupo 48 do CNE- não mais voltaria aos escuteiros, depois de tantas noites de mato, não sentia necessidade de voltar a acampar tão cedo) e dirigi-me ao café "Flor da Sé", ali defronte para a Catedral, com a igreja de Sto. António a seu lado e a Madalena mais abaixo, onde paravam os meus amigos, subi lentamente até ao Castelo de S. Jorge, passando pelo Miradouro de Sta. Luzia, onde vivi em pequeno. 

Já no Castelo deliciei-me com a vista e com aqueles lugares, onde em jovem passeava com os amigos e com as colegas de escola e onde roubei os primeiros beijos a algumas namoradas. Ainda por lá andavam os elementos da Legião Portuguesa, que uns anos antes me tinham detido (ilegalmente) pelos graves crimes de "atirar azeitonas às miúdas" e ainda "de ser o proprietário de um gira-discos portátil, com o qual estávamos a ouvir música em grupo". 
Percorri, durante o dia as ruas da minha cidade, para me identificar novamente com os sabores, barulhos e cheiros desta Lisboa, ainda um lugar de exílio, como dizia da Pátria, o poeta Daniel Filipe (que eu apreciava muito e por tal facto dei o seu nome ao meu filho, nascido em Agosto de 1979). 

Perder-me no meio da multidão, sem medos, com descanso e sem obrigações. Fui ao longo do tempo perdendo a tentação de me atirar para o chão cada vez que ouvia um "rater" de uma viatura ou de uma mota ou ainda um foguete das festas populares e de sentir um baque no coração, de cada vez que a porta do frigorífico lá de casa era fechada com mais força. 

"Há sempre a lembrança 
De um olhar a sangrar 
De um soldado perdido 
Em terras do Ultramar 
Por obrigação 
Aquela missão 
Combater na selva sem saber porquê e sentir o inferno a matar alguém e quem regressou guarda sensação que lutou numa guerra sem razão... 
sem razão... 
sem razão... 
Há sempre a palavra 
A palavra "nação" 

(Aquele Inverno-Música dos Delfins) 

Nos primeiros tempos, enquanto não arranjava trabalho, envolvi-me num Grupo de Teatro Amador, do Lusitano Clube, mais tarde, ajudando a fundar a GOTA – Grupo Oficina de Teatro Amador, com sede na R. de S. Mamede ao Caldas. 
Na noite do 24 para o 25 de Abril, eu estive numa discoteca com o Ex-Alferes Farinha e umas amigas e regressei a casa pela madrugada, passando pelo Terreiro do Paço, onde, certamente, as forças revoltosas estavam a chegar, mas não dei por nada, tendo sido acordado pelas 8h30, exactamente pelo meu amigo Farinha, que me disse para me levantar e vir para rua porque estava a decorrer uma revolução. 

O 25 de Abril abriu-me o peito de esperança e alento para a reconstrução de uma nação livre e democrática, terminando com a Guerra Colonial. Foram tempos de aprendizagem política e de grande intervenção popular, que me abriram o apetite para viver intensamente aquele novo fenómeno 

Em Abril de 1975, ingressei na PJ e voltei a pegar em armas, embora agora o inimigo fosse outro – a criminalidade violenta e organizada. E, pasme-se, participei em acções e operações, em que tivemos de recorrer a tácticas aprendidas na Guerra Colonial. De facto os colegas mais velhos, embora fossem excelentes polícias, não estavam habituados a cenas de tiros, especialmente quando lhes eram dirigidos. 
A geração que entrou, após 25 de Abril, que tinha feito a Guerra Colonial, foi importantíssima para estancar a violência que se instalou a seguir e embora, como é costume, sem os meios e equipamentos necessários – tínhamos de recorrer a armas apreendidas, porque a PJ não possuía armas de 9 mm – até sermos equipados com armas mais modernas. Estive envolvido em diversas trocas de tiros e mantive em meu poder uma Kalashnikov, no modelo AKM, mais moderna que as AK-47 da Guiné (que eu próprio apreendi a um grupo violento, que praticava assaltos à mão armada e violações na área de Lisboa, em Fevereiro de 1979). 

Quando em Janeiro de 2001, aceitei um cargo de Direcção, deixei a arma na minha antiga Secção. Durante todos estes anos poucas vezes falei abertamente do que tinha passado na Guiné, a não ser com colegas que estiveram ou no mesmo teatro de guerra, ou em situação semelhante em Angola ou Moçambique. 

No princípio de ter regressado as perguntas eram as que eu entendia não responder: 
Quantos pretos mataste? 
Comeste lá muitas pretas? 

Depois, com o 25 de Abril, parecia que os combatentes eram lepra e era politicamente incorrecto falar-se da Guerra Colonial, estigmatizados como os que mantiveram o regime (Fosca-se!!!!). 
Devíamos ter fugido todos para França, etc., era o que diziam, os heróis eram os outros… 

Posteriormente foram surgindo alguns livros sobre a guerra, muitos romanceados e outros que, tendo boa apresentação e qualidade, contudo, iniciavam com uma visão de derrocada militar, quer na Guiné, quer em Moçambique. Foram depois surgindo algumas obras mais técnicas, com visão estratégica sobre os factos acontecidos e deixando um pouco à consideração do leitor uma evolução do que poderia ter sucedido. 

A companhia voltou a reunir-se, 25 anos após a chegada, num almoço no Regimento de Infantaria n.º 2, em Abrantes, donde partíramos, em Dezembro de 1971. Foi um reencontro emocionante, com muitas lágrimas à mistura e vivido também intensamente pelas famílias. Depois deste primeiro encontro, realizamos todos os anos um convívio, normalmente no mês de Maio, com grande afluência de elementos. 

A Tabanca Grande veio preencher a lacuna de podermos hoje, decorridos 34 anos do fim da Guerra de, afastados alguns fantasmas, falarmos com camaradas que tocam e cantam a mesma canção, embora, por vezes, o tom e o ritmo possam ser diferentes, mas isso é mesmo o efeito do respeito que temos de ter pela opinião dos outros. 
Acreditei que, efectivamente, um dia, a Guiné seria independente, era o rumo da história no seu movimento inexorável, mas senti uma grande tristeza quando tive conhecimento que muitos dos que combateram a nosso lado, seja por interesse monetário, seja por terem acreditado serem portugueses, parte da nossa Pátria, foram eliminados. O nosso país, infelizmente, não soube merecê-los e o inimigo, talvez tenha perdido a possibilidade de unir, verdadeiramente, as tribos da sua nação. Um dia terá de se fazer justiça, de honrar os seus nomes. 

Consegui ultrapassar bem e deixar para trás a vida de combatente, mas reconheço que muita da minha personalidade foi "reformatada", pelo tempo que passei na Guiné (que muitos apelidavam do nosso Vietname), no território cuja fama nas fileiras militares portuguesas causava um arrepio e era o último sítio que alguém queria ter como local de mobilização, quer pelo clima insalubre, quer pela intensidade da guerra que ali existia, ficando na ideia de quem estava na Metrópole, que era a província de onde mais provavelmente se podia regressar na posição horizontal. 

Sinto orgulho de ter estado ao lado de tantos e tantos homens de grande carácter, generosidade e coragem, capazes de arriscar a vida para salvar a do camarada a seu lado, de viverem em condições incríveis e de conseguirem manter um elevado nível de moral combatente. 
Talvez, bem lá no fundo, esteja ainda "apanhado" por aquele "clima".

 
O Luís Dias nos dias de hoje. Largo do Carmo, Agosto de 2005

Termino com o agradecimento a António Lobo Antunes, quando em relação aos combatentes disse: "Que o país os beije antes de os deitar fora, e lhes peça desculpa" e um abraço ao António Graça Abreu, Joaquim Mexia Alves, António Santos, Coronel Amaro Bernardo e tantos outros que escreveram a sua posição sobre se a guerra na Guiné estava militarmente perdida, como eu os compreendo! 

Um abraço a todos os Tertulianos 
Luís Dias 
Ex-Alf. Mil. da C.CAÇ 3491/BCAÇ 3872 
Guiné 71-74
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Notas: 

1. fixação do texto e sublinhados de vb;