1. O Cherno Baldé nasceu na antiga província portuguesa da Guiné, em Fajonquito, na zona leste, junto à fronteira com o Senegal, há cerca de 50 anos, numa sociedade sem escrita, sendo educado na cultura do seu povo, um povo de pastores, fulas, islamizados, tendo como vizinhos, pouco amistosos, os mandingas...
Aos cinco/seis anos, em 1965, viu pela primeira vez homens brancos, armados e equipados para a guerra, que se instalaram em Cambajú onde o pai era empregado de uma casa comercial... A primeira visão foi de terror... Mas a irrestível curiosidade infantil veio ao de cima: a descobertas das diferenças, dos cheiros dos corpos, dos comportamentos sociais...
Hoje ele pertence ao mesmo mundo desses homens brancos, aprendeu a sua língua, o português, formou-se na antiga União Soviética como engenheiro, faz uma pós-graduação em Lisboa na área da gestão. No seu gabinete de trabalho, no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, em Bissau onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento, há dossiês com palavrões como Segurança, Ambiente, Gestão de Estaleiros, Auditoria, Análise de Projectos, Gestão de Contratos, Formação de Formadores, Fiscalização de Obras de Conservação de Estradas, etc., que eram completamente inteligíveis para ele em 1965... Com a chegada dos homens brancos, passou o ser Chico, Jubi, Chico...
O texto que a seguir se publica (o nº 3 das suas crónicas, em que ele descreve a maneira como o Chico viu e viveu a chegada dos primeiros homens brancos à sua aldeia, é absolutamete fantástica, é uma peça de antologia etnográfica, de descoberta do outro, o estrangeiro, que provoca terror e fascínio... Nunca tinha lido nada parecido, da autoria de um guineense, sobre nós, homens brancos... Deliciado, já li o texto três ou quatro vezes seguidas...
Obrigado, Chico, obrigado Cherno, obrigado meu amigo e irmãoinho... És um caso sério de talento literário. Os meus, os nossos parabéns. A nossa Tabanca Grande fica mais rica, contigo. Faz uma boa viagem de regresso a a casa. Obrigado, djarama, kanibambo... LG
PS - Não te esqueças, que combinámos tratar-nos por tu... Era assim que os romanos se tratavam entre si. É assim que se tratam os camaradas e, por tabela, os amigos da Guiné. Foi distracção tua, já corrigi. Aqui somos todos primeiros entre iguais [em latim, primi inter pares], além de pertencermos todos à única raça humana que eu conheço (e que os zoólogos conhecem), a espécie Homo Sapiens Sapiens.
Nota de L.G.:
(*) Vd. postes anteriores:
24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo
19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão
18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...
Aos cinco/seis anos, em 1965, viu pela primeira vez homens brancos, armados e equipados para a guerra, que se instalaram em Cambajú onde o pai era empregado de uma casa comercial... A primeira visão foi de terror... Mas a irrestível curiosidade infantil veio ao de cima: a descobertas das diferenças, dos cheiros dos corpos, dos comportamentos sociais...
Hoje ele pertence ao mesmo mundo desses homens brancos, aprendeu a sua língua, o português, formou-se na antiga União Soviética como engenheiro, faz uma pós-graduação em Lisboa na área da gestão. No seu gabinete de trabalho, no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, em Bissau onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento, há dossiês com palavrões como Segurança, Ambiente, Gestão de Estaleiros, Auditoria, Análise de Projectos, Gestão de Contratos, Formação de Formadores, Fiscalização de Obras de Conservação de Estradas, etc., que eram completamente inteligíveis para ele em 1965... Com a chegada dos homens brancos, passou o ser Chico, Jubi, Chico...
O texto que a seguir se publica (o nº 3 das suas crónicas, em que ele descreve a maneira como o Chico viu e viveu a chegada dos primeiros homens brancos à sua aldeia, é absolutamete fantástica, é uma peça de antologia etnográfica, de descoberta do outro, o estrangeiro, que provoca terror e fascínio... Nunca tinha lido nada parecido, da autoria de um guineense, sobre nós, homens brancos... Deliciado, já li o texto três ou quatro vezes seguidas...
Obrigado, Chico, obrigado Cherno, obrigado meu amigo e irmãoinho... És um caso sério de talento literário. Os meus, os nossos parabéns. A nossa Tabanca Grande fica mais rica, contigo. Faz uma boa viagem de regresso a a casa. Obrigado, djarama, kanibambo... LG
PS - Não te esqueças, que combinámos tratar-nos por tu... Era assim que os romanos se tratavam entre si. É assim que se tratam os camaradas e, por tabela, os amigos da Guiné. Foi distracção tua, já corrigi. Aqui somos todos primeiros entre iguais [em latim, primi inter pares], além de pertencermos todos à única raça humana que eu conheço (e que os zoólogos conhecem), a espécie Homo Sapiens Sapiens.
2. Eis uma mensagem do nosso amigo Cherno Baldé, que está em Moçambique, em viagem de serviço (»):
Amigo Luís,
Não tenho palavras para manifestar a minha gratidão pelo trabalho voluntarioso e desinteressado que estás a desenvolver para reunir pedaços de memórias espalhados por este mundo fora. Memórias que certamente nos unem a todos, independentemente de tudo o resto.
No dia em que descobri o Blogue da Tabanca Grande fiquei tão emocionado que, quase, não consegui pregar olho, porque a máquina do tempo dentro da minha cabeça activou-se e começou a vasculhar nos escombros do passado de forma desordenada. Foi como se tivesse reencontrado todos os meus amigos.
Muito obrigado pela confiança, a fidelidade no tratamento do material e também pela sinceridade das tuas palavras cheias de sabedoria. Vou encarar a vossa reacção positiva e o comentário simpático do Manuel Maia como sinais de encorajamento para prosseguir nas crónicas, esperando e rogando a Deus e a todos que as lerem, vejam nelas uma simples tentativa de descrição de factos na justa medida em que a minha memória falível e a minha capacidade intelectual bastante limitada forem capazes de os conservar e transmitir.
As opiniões e pontos de vista nele contidos só me engajam a mim e de forma alguma devem ser conotados com o país, o grupo étnico ou a raça a que pertenço.
Neste preciso momento encontro-me em Maputo (antiga Lourenco Marques), Moçambique, em missão de serviço e estou vislumbrado com a beleza da cidade. Aqui fez-se trabalho pensando no futuro e este já está a chegar.
A ti e a todos os teus colaboradores um grande KANIMAMBO.
Um forte abraço,
Cherno AB - Chico
3. Memórias do Chico, menino e moço (3) > Os homens brancos
Amigo Luís,
Não tenho palavras para manifestar a minha gratidão pelo trabalho voluntarioso e desinteressado que estás a desenvolver para reunir pedaços de memórias espalhados por este mundo fora. Memórias que certamente nos unem a todos, independentemente de tudo o resto.
No dia em que descobri o Blogue da Tabanca Grande fiquei tão emocionado que, quase, não consegui pregar olho, porque a máquina do tempo dentro da minha cabeça activou-se e começou a vasculhar nos escombros do passado de forma desordenada. Foi como se tivesse reencontrado todos os meus amigos.
Muito obrigado pela confiança, a fidelidade no tratamento do material e também pela sinceridade das tuas palavras cheias de sabedoria. Vou encarar a vossa reacção positiva e o comentário simpático do Manuel Maia como sinais de encorajamento para prosseguir nas crónicas, esperando e rogando a Deus e a todos que as lerem, vejam nelas uma simples tentativa de descrição de factos na justa medida em que a minha memória falível e a minha capacidade intelectual bastante limitada forem capazes de os conservar e transmitir.
As opiniões e pontos de vista nele contidos só me engajam a mim e de forma alguma devem ser conotados com o país, o grupo étnico ou a raça a que pertenço.
Neste preciso momento encontro-me em Maputo (antiga Lourenco Marques), Moçambique, em missão de serviço e estou vislumbrado com a beleza da cidade. Aqui fez-se trabalho pensando no futuro e este já está a chegar.
A ti e a todos os teus colaboradores um grande KANIMAMBO.
Um forte abraço,
Cherno AB - Chico
3. Memórias do Chico, menino e moço (3) > Os homens brancos
por Cherno Baldé (*)
No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterroriza as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área.
Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo.
Quando chegaram, estávamos a jogar no largo da zona comercial que também fazia de paragem para as carroças que traziam mercadorias. Foi o barulho dos motores que nos alertou, como habitualmente, corremos atrás dos veículos, e foi nessa altura é que reparamos no insólito. As pessoas que estavam sentadas em cima dos veículos, todos vestidos com o mesmo tipo de tecido, um chapéu que se estendia de trás para a frente da mesma cor na cabeça e uma arma entre as pernas, completamente imóveis, não eram pessoas normais, como estávamos habituados a ver. Eram brancos, meu Deus do céu, tão branquinhos que se podia ver o sangue vermelho rubro a correr nas veias.
Não foi preciso dizer a ninguém, não houve nenhuma concertação entre nós. A nossa primeira reacção foi fugir, fugir dali com todo os pés. Eu fui directamente ao quarto da minha mãe que nesse momento se encontrava na cozinha, meti-me debaixo da cama, no mesmo sítio em que costumava esconder-me sempre que quisesse estar a salvo dos perseguidores, quando fazia das minhas. Não me lembro quanto tempo estive ali escondido, o certo é que o céu não tinha desabado sobre mim, sinal claro de que afinal não era o fim do mundo. Aliás, era o prenúncio de um novo mundo para mim ao qual, mais tarde, por força da minha educação e formação, viria a pertencer para sempre.
Passado o susto, agora era a curiosidade que tinha ganhado terreno. Não se falava de outra coisa na aldeia e seus arredores, houve mesmo pessoas que regressaram dos seus lugares de trabalho para assistir à vinda das pessoas de cor branca. Em todos, a curiosidade de ver aqueles seres estranhos suplantava o questionamento sobre as razões da sua presença. Queríamos ver e entender cada gesto, cada olhar, cada palavra desses seres de olhos azuis ou mesmo verdes que, entre nós, eram conhecidos só de alguns animais dotados de poderes especiais como os gatos que tinham sete vidas ou os eternos camaleões que tinham a capacidade de adquirir as cores de sua preferência.
Não admira que as pessoas tivessem medo deles, afinal de contas, o que eram eles, diabos ou feiticeiros? De certeza que não eram pessoas normais. Isto, nós iríamos compreender mais tarde. No dia seguinte, o meu amigo e colega, Samba, veio a minha casa para as brincadeiras habituais, falámos do acontecimento de ontem e fiquei a saber que tudo não passara mesmo de um susto injustificado pois, aqueles sujeitos eram soldados portugueses vindos directamente de Portugal, o que queria dizer nossos amigos e aliados.
Segundo Samba, “Eles vinham proteger-nos dos roubos e outras maldades que os terroristas, encabeçados pelos mandingas, nossos vizinhos e preguiçosos natos que, invejando a nossa posição e riquezas, queriam tirar-nos tudo”. “Alguns dos nossos colegas já tinham feito amigos entre os brancos recém-chegados e em troca lhes tinham oferecido latas de conserva de peixe muito saborosas com o azeite a escorrer pelos dedos quando as comiam”, disse-me ele.
Decidimos fazer o mesmo e fomos, sem medo, até o sítio onde estavam alojados. Quando chegamos junto deles, notámos que o acampamento estava cercado de arame farpado por todos os lados excepto num sitio por onde todos entravam e saíam. Estas circunstâncias não agradaram a minha natureza de felino livre e mandrião, arrepiava-me só a ideia de estar fechado num sítio donde não se podia sair livremente, a maior parte deles estava de tronco nu, só tinham no corpo uns calções curtos que quase deixavam ver as nádegas.
Que falta de vergonha, pensei comigo, pessoas adultas com as nádegas de fora. Todos tinham na cabeça aqueles chapéus estranhos que traziam no primeiro dia e que tinham uma ponta redonda pela frente a cobrir o fronte e descaíam para trás em forma de dois rabos curtos. Estavam todos ocupados, isoladamente ou em pequenos grupos, alguns limpando suas armas, outros lavando roupa interior ou colocando tendas de campanha.
Houve duas coisas que saltaram logo a minha vista: Eram todos bastante jovens, fisicamente robustos e bem nutridos, todos apresentando uma pelugem de cor preta e/ou acastanhada no peito.
Era um espectáculo ainda mais incaracterístico do que a primeira vez que os vira, e de mais a mais, havia um cheiro esquisito e forte que, certamente, estaria relacionado com aquela gente estranha. Mais tarde vim a saber que se tratava do cheiro de alho que eles utilizavam abundantemente na sua alimentação. Não pude avançar mais.
Sem prevenir o meu amigo que avançava para dentro da cerca, parecendo alheio a tudo, pensando certamente, no pão e nas conservas que nos esperavam, dei meia volta e pus-me ao largo. Contudo, ninguém pode fugir do seu destino e estava destinado que a nossa geração entraria lá dentro e faria amigos entre esses brancos de origem e modos estranhos e, sobretudo, ficaria para sempre ligada a esta gente de hábitos libertinos, ao gosto inesquecível da sua sopa, da sua batata, do bacalhau e grão-de-bico e a sua civilização através da aculturação que viria a sofrer por meio da escola.
Passado o tempo da surpresa e da incompreensão, acomodámo-nos perfeitamente dentro do acampamento. Fazíamos pequenos trabalhos de limpeza e em contrapartida tínhamos direito à sobremesa do amigo. Cada um tinha o seu amigo de quem esperava que lhe trouxesse as sobras do prato igual a um cachorrinho de casa. Eu não tinha conseguido arranjar um amigo de imediato, na verdade, o medo inicial não tinha permitido muita ousadia da minha parte. Felizmente, tinha umas irmãs muito giras que não precisaram se deslocar ao acampamento. Devo dizer que esses jovens soldados portugueses eram muito atrevidos e mal-educados não se coibindo de entrar nos recintos das nossas moranças (casas) para irem atrás de uma rapariga da forma mais descarada que havia, agarrando nos seios e nos traseiros, mesmo à frente dos pais.
Os velhos da aldeia, em vez de os corrigirem daquela falta de educação, riam-se e deixavam-nos levar avante a sua insolência. “Na sua terra, certamente, não sabem o que é a vergonha”, diziam eles, senão como é que se podia entender que um adulto andasse, quase, todo nu em pleno dia, e corresse atrás de rapariguinhas que, ainda por cima, não lhes eram prometidas.
E foi assim que a coberto das minhas irmãs mais velhas que tinham amigos que vinham a nossa casa, tive acesso facilitado ao acampamento e também a possibilidade de me aproximar dos brancos e pouco a pouco habituar-me ao seu cheiro peculiar de alho moído e aceitar a sua presença no meu espírito ainda assustado.
No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterroriza as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área.
Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo.
Quando chegaram, estávamos a jogar no largo da zona comercial que também fazia de paragem para as carroças que traziam mercadorias. Foi o barulho dos motores que nos alertou, como habitualmente, corremos atrás dos veículos, e foi nessa altura é que reparamos no insólito. As pessoas que estavam sentadas em cima dos veículos, todos vestidos com o mesmo tipo de tecido, um chapéu que se estendia de trás para a frente da mesma cor na cabeça e uma arma entre as pernas, completamente imóveis, não eram pessoas normais, como estávamos habituados a ver. Eram brancos, meu Deus do céu, tão branquinhos que se podia ver o sangue vermelho rubro a correr nas veias.
Não foi preciso dizer a ninguém, não houve nenhuma concertação entre nós. A nossa primeira reacção foi fugir, fugir dali com todo os pés. Eu fui directamente ao quarto da minha mãe que nesse momento se encontrava na cozinha, meti-me debaixo da cama, no mesmo sítio em que costumava esconder-me sempre que quisesse estar a salvo dos perseguidores, quando fazia das minhas. Não me lembro quanto tempo estive ali escondido, o certo é que o céu não tinha desabado sobre mim, sinal claro de que afinal não era o fim do mundo. Aliás, era o prenúncio de um novo mundo para mim ao qual, mais tarde, por força da minha educação e formação, viria a pertencer para sempre.
Passado o susto, agora era a curiosidade que tinha ganhado terreno. Não se falava de outra coisa na aldeia e seus arredores, houve mesmo pessoas que regressaram dos seus lugares de trabalho para assistir à vinda das pessoas de cor branca. Em todos, a curiosidade de ver aqueles seres estranhos suplantava o questionamento sobre as razões da sua presença. Queríamos ver e entender cada gesto, cada olhar, cada palavra desses seres de olhos azuis ou mesmo verdes que, entre nós, eram conhecidos só de alguns animais dotados de poderes especiais como os gatos que tinham sete vidas ou os eternos camaleões que tinham a capacidade de adquirir as cores de sua preferência.
Não admira que as pessoas tivessem medo deles, afinal de contas, o que eram eles, diabos ou feiticeiros? De certeza que não eram pessoas normais. Isto, nós iríamos compreender mais tarde. No dia seguinte, o meu amigo e colega, Samba, veio a minha casa para as brincadeiras habituais, falámos do acontecimento de ontem e fiquei a saber que tudo não passara mesmo de um susto injustificado pois, aqueles sujeitos eram soldados portugueses vindos directamente de Portugal, o que queria dizer nossos amigos e aliados.
Segundo Samba, “Eles vinham proteger-nos dos roubos e outras maldades que os terroristas, encabeçados pelos mandingas, nossos vizinhos e preguiçosos natos que, invejando a nossa posição e riquezas, queriam tirar-nos tudo”. “Alguns dos nossos colegas já tinham feito amigos entre os brancos recém-chegados e em troca lhes tinham oferecido latas de conserva de peixe muito saborosas com o azeite a escorrer pelos dedos quando as comiam”, disse-me ele.
Decidimos fazer o mesmo e fomos, sem medo, até o sítio onde estavam alojados. Quando chegamos junto deles, notámos que o acampamento estava cercado de arame farpado por todos os lados excepto num sitio por onde todos entravam e saíam. Estas circunstâncias não agradaram a minha natureza de felino livre e mandrião, arrepiava-me só a ideia de estar fechado num sítio donde não se podia sair livremente, a maior parte deles estava de tronco nu, só tinham no corpo uns calções curtos que quase deixavam ver as nádegas.
Que falta de vergonha, pensei comigo, pessoas adultas com as nádegas de fora. Todos tinham na cabeça aqueles chapéus estranhos que traziam no primeiro dia e que tinham uma ponta redonda pela frente a cobrir o fronte e descaíam para trás em forma de dois rabos curtos. Estavam todos ocupados, isoladamente ou em pequenos grupos, alguns limpando suas armas, outros lavando roupa interior ou colocando tendas de campanha.
Houve duas coisas que saltaram logo a minha vista: Eram todos bastante jovens, fisicamente robustos e bem nutridos, todos apresentando uma pelugem de cor preta e/ou acastanhada no peito.
Era um espectáculo ainda mais incaracterístico do que a primeira vez que os vira, e de mais a mais, havia um cheiro esquisito e forte que, certamente, estaria relacionado com aquela gente estranha. Mais tarde vim a saber que se tratava do cheiro de alho que eles utilizavam abundantemente na sua alimentação. Não pude avançar mais.
Sem prevenir o meu amigo que avançava para dentro da cerca, parecendo alheio a tudo, pensando certamente, no pão e nas conservas que nos esperavam, dei meia volta e pus-me ao largo. Contudo, ninguém pode fugir do seu destino e estava destinado que a nossa geração entraria lá dentro e faria amigos entre esses brancos de origem e modos estranhos e, sobretudo, ficaria para sempre ligada a esta gente de hábitos libertinos, ao gosto inesquecível da sua sopa, da sua batata, do bacalhau e grão-de-bico e a sua civilização através da aculturação que viria a sofrer por meio da escola.
Passado o tempo da surpresa e da incompreensão, acomodámo-nos perfeitamente dentro do acampamento. Fazíamos pequenos trabalhos de limpeza e em contrapartida tínhamos direito à sobremesa do amigo. Cada um tinha o seu amigo de quem esperava que lhe trouxesse as sobras do prato igual a um cachorrinho de casa. Eu não tinha conseguido arranjar um amigo de imediato, na verdade, o medo inicial não tinha permitido muita ousadia da minha parte. Felizmente, tinha umas irmãs muito giras que não precisaram se deslocar ao acampamento. Devo dizer que esses jovens soldados portugueses eram muito atrevidos e mal-educados não se coibindo de entrar nos recintos das nossas moranças (casas) para irem atrás de uma rapariga da forma mais descarada que havia, agarrando nos seios e nos traseiros, mesmo à frente dos pais.
Os velhos da aldeia, em vez de os corrigirem daquela falta de educação, riam-se e deixavam-nos levar avante a sua insolência. “Na sua terra, certamente, não sabem o que é a vergonha”, diziam eles, senão como é que se podia entender que um adulto andasse, quase, todo nu em pleno dia, e corresse atrás de rapariguinhas que, ainda por cima, não lhes eram prometidas.
E foi assim que a coberto das minhas irmãs mais velhas que tinham amigos que vinham a nossa casa, tive acesso facilitado ao acampamento e também a possibilidade de me aproximar dos brancos e pouco a pouco habituar-me ao seu cheiro peculiar de alho moído e aceitar a sua presença no meu espírito ainda assustado.
Esse cheiro, foi para mim, o primeiro sinal da diferença entre o campo onde habitavam, em estado puro, a nossa gente, todos falando a mesma língua e os mesmos costumes com o mesmo odor de terra com mistura de calor e bosta de vaca e o ambiente urbano onde viviam pessoas vindas de outras partes e se misturavam cheiros de origens diferentes, como o do alho que veio com os soldados portugueses e o cheiro que resultava da mistura da urina e excrementos de porco que só vim a sentir quando mudamos para a localidade de Fajonquito e que estava relacionado com a presença de porcos domésticos, animal que até aquela data não conhecia.
Fotos: Arquivo
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(*) Vd. postes anteriores:
24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo
19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão
18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...