quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4865: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (4): Abel, o nosso Cabo Maqueiro

Mais um episódio de Gavetas da Memória de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


O cabo maqueiro

Naquele dia a manhã corria monótona e sempre igual às de tantos outros dias. Apenas o cozinheiro e o ajudante andavam de um lado para o outro atarefados com a preparação do almoço. O aquartelamento parecia deserto. As duas viaturas, o jeep e o velho Unimog, jaziam adormecidas arrumadas a um canto do telheiro de chapas de zinco. Reinava um silêncio pesado como a chapa de ouro do sol que tudo cobria.

Ainda era cedo para ir buscar água à bolanha e os soldados escondiam-se por aqui e por ali, onde houvesse uma sombra, a jogar às cartas, a dormitar ou a deambular pela aldeia, entrando nalguma casa comercial onde sempre apareciam novidades ou alguma bajuda jeitosa e sorridente para meter conversa de meia pataca.

O malandro do Furriel Coutinho também já se tinha desenfiado a pretexto de ir verificar a cerca de arame farpado lá para os lados do caminho que ia dar à pista de aviação e ninguém mais soube dele.

Dos outros dois furriéis, um estava de cama com paludismo e o restante fazia-lhe uma carinhosa (?) companhia. (Sempre suspeitámos que aquela amizade era talvez mais do que apenas isso. Pelo menos da fama não se livravam, embora o assunto nem fosse assim muito escandaloso e curiosamente bem tolerado naquele aglomerado de homens isolados do resto do mundo).

De modo que, como acontecia quase sempre, sem ter nada que fazer, nem nada com que me entreter, fui até a enfermaria ver o que é que o cabo maqueiro tinha por lá de novo.

O nosso cabo maqueiro, que aqui fazia as vezes de enfermeiro, era um rapaz muito metódico, alegre e falador. A sua presença era sempre motivo de divertimento para os colegas e de um fascínio estranho para os nativos que a ele recorriam para a possível cura das mais diversas maleitas. A todos atendia prontamente com a mesma coragem e tenacidade, quer se tratasse de curar uma dor de cabeça, como cozer um braço rasgado pela poderosa dentada da mandíbula de um burro enraivecido.

A enfermaria, pomposamente assim designada não passava de uma pequena divisão nas traseiras do refeitório dos soldados, onde mal cabia uma mesa, duas cadeiras e uma cama de ferro a servir de marquesa para os ocasionais pacientes que tanto podiam ser os militares do destacamento como os inúmeros civis que todas as manhãs, mulheres sobretudo, faziam fila com os filhos ao colo ou a reboque pela mão, na esperança de serem curados pelo doutor da tropa.

Lembro-me que uma vez, quando na companhia do Chefe de Posto de Pirada, o senhor Barbosa, um simpático velhote com tantos anos de África que mais parecia africano, fazíamos uma ronda pelas tabancas ao sul de Pirada, surgiram umas mulheres que, a chorar, lhe pediam que fosse acudir a um pobre velho que estava prestes a morrer pois já nem se mexia.

O nosso cabo lá pegou no saco dos medicamentos que trazia sempre consigo e resignado, mas sempre galhofando, dirigiu-se com as mulheres para o meio de uma das palhotas mais afastadas, enquanto eu e o Miguel, o condutor do jeep, ficávamos rodeados pela população que se ia aglomerando diante do nosso grupo composto também pelo imponente régulo da aldeia e pelo chefe de Posto, o velho e pacífico Barbosa.

Entretanto tentávamos perceber e deslindar a teia de peripécias e complicações inevitáveis sempre que o chefe de Posto queria proceder a mais um recenseamento dos jovens nativos desta região, pois como sempre, quase ninguém sabia a verdadeira idade que tinha. Regulam-se pelas fases da Lua, pelas colheitas e outros marcos que balizavam as suas vidas e não pelo nosso calendário, claro está. O velho Barbosa pacientemente, com a cabeça apoiada numa das mãos lá ia paulatinamente preenchendo os extensos mapas que a Administração lhe mandava e, que na verdade, só ele entendia.

Mal tínhamos chegado à tabanca, logo tinham aparecido cadeiras e bancos para todos, bem como uma tosca mesa que serviria de secretária. A miudagem, curiosa e irrequieta, espreitava morrendo de curiosidade por nos tocar, fugindo espavoridos quando esboçávamos a mais pequena intenção de os agarrar.

Os nitidamente mais velhos, adolescentes quase adultos, comprimiam-se receosos, num dos cantos do largo principal da aldeia, pois bem sabiam que a nossa presença só lhes poderia dizer respeito. A Administração todos os anos vinha arrebanhar os jovens que estivessem mais ou menos na idade do serviço militar e isso para eles era uma verdadeira tragédia a que no entanto se submetiam resignadamente. O branco é que mandava e o preto tinha apenas que obedecer.

Mas voltemos ao nosso cabo maqueiro, que por sinal tinha o nome de Abel Preto. O que ocasionava situações caricatas quando chamávamos por ele, usando o último nome e ele se encontrava, como de costume, na sua função, rodeados por nativos que, inocentemente, não se apercebiam que estávamos apenas a gozar com a cara deles.

Eis senão quando, surge o nosso cabo maqueiro rodeado por uma pequena multidão de mulheres velhas e novas que o traziam quase ao colo com demonstrações de grande regozijo e veneração, dançando e cantando, saudando-o efusivamente como a um milagroso homem santo. Mais atrás vinha uma jovem amparando um velhote sorridente que muito desembaraçadamente gesticulava e falava sem cessar.

O que tinha acontecido?

Muito simplesmente isto: perante um suposto enigma médico, para ele e para os seus escassíssimos conhecimentos de medicina, o nosso cabo maqueiro, optou por usar todos os medicamentos que tinha que nem eram assim tantos, resumiam-se a umas aspirinas e pomadas para alguma dor ou entorse. Podiam não ser totalmente eficazes mas mal também não fariam. Depois de despir o velhote aplicou-lhe uma valente esfrega de pomada analgésica pelas costas de cima a baixo, deixando o doente mais bem barrado que um frango pronto a entrar no forno. A seguir aplicou-lhe duas aspirinas pela goela abaixo com uma pouca de água. E, ou porque o remédio era mesmo bom, ou por que o paciente nunca tinha tido contacto com as medicinas dos brancos e estava portanto cem por cento receptivo a essas panaceias, o que de facto sucedeu é que ao fim de poucos minutos começava a dar sinais de já se poder mexer e em pouco menos de meia hora levantou-se são como um pêro, beijando as mãos do seu benfeitor, para grande espanto dele e, também de todos os assistentes, que logo ali o consideraram um verdadeiro homem santo.

A notícia espalhou-se num abrir e fechar de olhos e de todos os lados acorria gente para testemunhar a maravilha e querer também beneficiar dos milagrosos dons curativos daquele doutor que tinha vindo com a tropa. E todos traziam algo para lhe oferecer, ovos, laranjas, mandioca, nozes de cola e até galinhas vivas, pois tamanha benesse teria de ser recompensada.

Naquele fim de tarde o bom do nosso maqueiro quase que viu esgotar-se o stock de medicamentos que tinha improvisado quando lhe disse para vir comigo naquele passeio de acção psicológica para cairmos no agrado das populações.

Nos restantes dias viu-se aflito para poder contentar toda a clientela que não o largava em qualquer tabanca onde aparecêssemos.

Ganhou uma reputação tal que, creio ter posto em perigo a continuidade dos curandeiros de aldeia que, não acharam graça nenhuma a tais acontecimentos.
E nós, os que assistíamos a mais uma das prodigiosas façanhas do nosso bom cabo maqueiro apenas tivemos que paulatinamente ir dando vazão aquelas provisões que surgiam de todos os lados e que já não cabiam no jeep da Administração.


Durante vários dias os nossos pequenos-almoços foram ovos cozidos e laranjas! E para o almoço ou jantar, frango de churrasco!

Planta de Pirada

Pirada > Primeira cozinha

O bom do senhor Barbosa, Chefe de Posto de Pirada na intrincada tarefa de fazer o recenseamento civil

Recenseamento civil no regulado de Propana. O Régulo Serifo Embaló, o Chefe de Posto de Pirada, senhor Barbosa e eu, Alferes Geraldes, como convidado
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4843: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (3): Os Cipaios

Guiné 63/74 - P4864: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (14): "A gastronomia guineense em 1969/71 e na actualidade"

1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a sua 14ª estória:

Camaradas,

Ao vasculhar os meus apontamentos dei com um texto, que me fez lembrar os sítios e gastronomia que na época, 1969/71, existia em Bissau.

Só de lê-lo faz-me crescer a água na boca!

Como profissional de hotelaria, não poderia deixar de tecer alguns comentários à deliciosa e variada gastronomia guineense nos dias de hoje.

Gastronomia esta que recomendo principalmente aos apreciadores de bons gostos e paladares africanos.

"A GASTRONOMIA GUINEENSE EM TEMPO DE GUERRA"

Em Bissau, local onde só estive de passagem,
esporadicamente, e quando fui hospitalizado em sequência de um ferimento, despertou-me a atenção para o roteiro gastronómico, ou melhor dizendo, locais onde se comesse bem.

A gastronomia da Guiné, na altura, não se podia dizer que despertava o melhor sentido do sabor aos que procuravam uma lauta ou gostosa refeição.

Os melhores restaurantes da época em Bissau, estavam condicionados ao abastecimento de produtos, para a confecção dos típicos pratos guineenses. Resumindo-se basicamente à oferta das célebres ostras, frango à guinéu, piche-pache de ostras, moqueca de peixe e chabéu de galinha.

Para complementarem a sua oferta na Ementa ou Carta, sugeriam pratos de origem portuguesa, onde poderíamos encontrar sabores em conformidade com as nossas raízes.

O restaurante “SOLAR DOS 10”, um dos mais conhecidos, senão o mais famoso, tinha uma Carta onde sobressaíam as lulas grelhadas com piri-piri, e o famoso bife à Solar dos 10.

No “SOLMAR”, além das ostras, serviam um bom bitoque e omoletes de gambas que eram um regalo.

No “PELICANO”, o ex-líbris, era a francesinha que, para a época, era agradável.

Na estrada, entre o QG e Bissau, a seguir à entrada do Pilão, do lado esquerdo, havia um restaurante pequeno que servia um Piche-Pache de Ostras e um Chabéu de Galinha, que era de comer e chorar por mais.

Junto ao Forte de Amura, existia uma tasquinha que servia uns pastéis de bacalhau e vinho verde, que eram um primor.
A Moqueca de Peixe, para os apreciadores, encontrava-se nos restaurantes dos naturais da Guiné, localizados na zona do Pilão.

O Frango à Guineense, que consistia num frango previamente temperado com sal e limão e depois grelhado, com muito piri-piri, coisa comum em todos os restaurantes.

Na época a que me refiro, proliferava o mercado negro de géneros alimentícios em Bissau, o que condicionava a boa gastronomia e a elevava para preços demasiado altos, pouco acessíveis à fraca bolsa dos militares.

"A GASTRONOMIA GUINEENSE ACTUAL"

A actual gastronomia tradicional guineense é caracterizada por paladares intensos e apimentados, onde o limão, a malagueta e o jindungo são condimentos indispensáveis.

O arroz (bianda), é a base principal da alimentação popular, ao qual depois de cozinhado se adiciona o mafé, nome dado aos caldos geralmente feitos com peixe, marisco, galinha ou carne.

O chabéu e o óleo de palma são gorduras vegetais de eleição utilizados por todos os guineenses. A mancarra é outra gordura oleaginosa empregue frequentemente em molhos.

Os legumes mais conhecidos são a baquitche, a candja e o djagatú, muito utilizados para acompanhar o arroz e o mafé.

Saborear o caldo mancarra de chabéu, galinha de terra à Cafreal, bica grelhada, futi, sigá, acompanhados de vinhos de palma, vinho de cajú, refresco de fole, veledé, cabaceira, tambarina, mandiple e miséria, entre outros, são autênticos prazeres gastronómicos da Guiné.

Há ainda uma riqueza alimentar natural naquele país que é constituída pelo famoso marisco e peixe da sua costa marítima.

Toda esta excelente e deliciosa cozinha guineense, hoje, pode-se encontrar em qualquer restaurante da Guiné, bem como em Portugal, em alguns estabelecimentos nas zonas onde se concentram as habitações dos naturais daquela terra.

Para os mais interessados nesta específica gastronomia, recomendo o livro Guiné-Bissau, TERA SABI.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Imagens: Wikipédia, a enciclopédia livre (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P4863: Agenda cultural (24): A História de Cristina, por Mikael Levin, no CCB, de 31/8 a 8/11 (Carlos Schwarz, 'Pepito' / Luís Graça)

Cristina's History / A história de Cristina > Uma exposição do fotógrafo Mikael Levin, primo do Pepito, patente no Museu Colecção Berardo / Centro Cultural de Belém, em Lisboa, de 31 de Agosto a 8 de Novembro de 2009.

Imagens da exposição, que nos foram gentilmente enviadas pelo Pepito e que fazem parte do catálogo da exposição: de cima para baixo: (i) Algures, na cidade de Zgierz, na Polónia central, donde era originário o bisavô materno do Pepito (e trisavô da sua filha Cristina), Isuchaar Szwarc, morto nas vésperas da II Guerra Mundial (foto de 2005, sem título); (ii) A casa da avó materna da Cristina, em Lisboa, cidade onde nasceu em 1915, filha de um engenheiro de minas polaco, judeu, Samuel Szwarc, formado em Paris, na École Nationale des Mines, e que se fixou em Portugal com a I Guerra Mundial; a Clara Schwarz viveu em Bissau desde 1947 até 1966, tendo sido professora no Liceu Honório Barreto (foto de 2004, sem título); (iii) Um recanto da cidade de Bissau, onde nasceu a Cristina, em 1973, filha de Carlos Schwarz e de Isabel Levy Ribeiro, ambos engenheiros agrónomos, co-fundadores da AD-Acção para o Desenvolvimento e membros da nossa Tabanca Grande (foto de 2003, sem título).

Fotos: © Mikael Levin (com a devina vénia...)

1. Mensagem do nosso amigo Pepito, co-fundador e actual director executivo da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, e que está em Portugal a passar férias na sua casa de São Martinho do Porto (estivémos juntos no dia 15, para mais uma memorável tarde convívio entre as nossas duas famílias) (*):

Caros(as) Amigos(as):

Tenho o prazer de vos convidar a participar no próximo dia 31 de Agosto (2ª feira) pelas 19h30 no Centro Cultural de Belém (Museu Colecção Berardo) à inauguração da Exposição CRISTINA’S HISTORY, da autoria do meu primo MIKAEL LEVIN.

Trata-se da história da minha filha mais velha, Cristina Silva (Pepas), desde a Polónia, Portugal e Guiné-Bissau.

Isuchaar, o trisavô da Cristina, deixa a Polónia durante a Primeira Guerra Mundial. A avó Clara nasceu em Lisboa e foi em 1947 para a Guiné, tendo a Cristina nascido em 1973 (**). O fotógrafo Mikael Levin (nascido em 1954, em Nova York) fez o quadro fotográfico da peregrinação desta parte da sua família.

Mais informaçáo disponível na página de Mikael Levin

A exposição terminará no dia 8 de Novembro de 2009.

Um abraço

Carlos Schwarz
(Pepito)

São Martinho do Porto > 15 de Agosto de 2009 > Imagens da família Schwarz, em férias: em cima, a Clara, a jovem senhora de 94 anos, a sua neta Catarina (irmã da Cristina), a Isabel Levy Ribeiroe o seú marido, Carlos Silva Schwarz, Pepito para os amigos... Nesse dia, almoçámos uma deliciosa cachupa, confeccionada pela Isabel, que é de nacionalidade portuguesa, bem com os filhos (há ainda o Ivan, de férias no Egipto)

Fotos: © Luís Graça (2009). Direitos reservados

2. Comentário de L.G.:

Infelizmente, para meu desgosto, não poderei estar presente na inauguração da exposição, no dia 31 de Agosto, por me encontrar ainda de férias, no Norte. Mas de certo que haverá gente do nosso blogue, nomeadamente a malta da área metropolitana de Lisboa, que quererá (e poderá) estar presente, aceitando o convite pessoal do nosso querido amigo Pepito. e partilhando com ele o privilégio de conhecer esta saga de quatro gerações que vai da segunda metade do Século XIX até aos nossos dias, e que passa pela Polónia, Portugal e Guiné-Bissau. Uma história de reconstrução de memória(s), de procura de raízes, de busca de identidade, um exemplo de capacidade de adaptação, de tenacidade, de coragem,

Segundo li na sua página pessoal, o Mikael Levin, primo da Cristina e do Pepito, nasceu em 1954, em Nova Iorque. Tem a dupla nacionalidade francesa e americana. Cresceu em França e nos Estados Unidos da América, mas também viveu em Israel.

Como ele próprio se apresenta, Mikael Levin é um fotógrafo cujo enfoque principal são "as questões de tempo e lugar de identidade e memória". Está representado em importantes colecções de grandes museus dos EUA e da Europa, tais como: Whitney Museum of American Art, Metropolitan Museum of Art, International Center of Photography, Museum of Modern Art, em Nova Iorque; o Centre Pompidou e a Bibliothèque Nationale, em Paris... E ainda em: o Museu de Israel (Jerusalém), o Moderna Muset (Estocolmo), o Victoria and Albert Museum (Londres) e, por fim, o Museu Judaico de Berlim.

A História de Cristina (em inglês, Cristina's History) é a história de 4 gerações de Schwarz. "Conheci Cristina da Silva Schwarz na Guiné-Bissau em 2003" - conta o autor, na sua página. Ele e Cristina têm,afinal, em comum um antepassado judeu, um homem estudioso e culto, que viveu em Zgierz, na Polónia central. Ao longo da sua vida, Isuchaar Szwarc "viu sua pequena cidade medieval transformada pela industrialização". Julgo que morreu na véspera da II Guerra Mundial, quando o terror nazi já alastrava pela Europa. Ele e grande da sua família não sobreviveram ao holocausto.

Samuel, o filho mais velho de Isuchaar, instalara-se em Lisboa com a I Guerra Mundial. Tinha-se casado com uma jovem russa, de Odessa (hoje, na Ucrânia). Samuel Schwarz (1880-1953) (foto à esquerda, cortesia de Inácio Steinhardt) será um engenheiro de minas, de sucesso, mas também ficará conhecido pela sua erudição, e pelo seu interesse pela história e cultura dos judeus sefarditas (que viviam na Península Ibérica). Foi ele que identificou (e salvou do abandmno e esquecimento) a comunidade cripto-judaica de Belmonte (***).

Foi também ele quem descobriu, comprou e doou ao Estado Português a antiga sinagoga de Tomar... (e a que os tomarenses e os demais portugueses, infelizmente, não parecem dar a devida importância, contrariamente ao que se passa com a sinagoga de Castelo de Vide, cujo notável núcleo museológico acabo de visitar, esta semana).

A filha (única) de Samuel, Clara Schwarz, casada com o advogado e escritor, de origem caboverdiana, Artur Augusto Silva (****), fixou-se em Bissau em 1947. "Lá, ela e o marido tiveram um papel de destaque no movimento anti-colonial", diz-nos o fotógrafo... Formada em letras pela Universidade de Lisboa, Clara Schwarz pertenceu ao núcleo dos fundadores e dos primeiros professores do Liceu Honório Barreto, ao tempo do Governador-Geral da Guiné, Sarmento Rodrigues (1946/49), que tinha duas filhas que também foram colegas (se bem percebi...) da Clara.

Por ela e por outros professores portugueses passou a formação da elite guineense e, portanto, de boa parte dos dirigentes do PAIGC. Clara foi professora de português. Disse-me há dias que "foi o melhor tempo" da sua vida... O Pepito, o mais novo de três filhos, todos rapazes, foi o único que nasceu na Guiné-Bissau.

Foto à esquerda: o antigo liceu Honório Barreto, hoje Liceu Nacional Kwame N'Krumah (cortesia do bogue com o mesmo nome).

Por sua vez, "desde a independência da Guiné-Bissau, Carlos, seu filho mais novo, tem dedicado a sua vida ao desenvolvimento agrícola deste país empobrecido", diz-nos o fotógrafo Mikael Levin... Cristina, filha de Carlos (Pepito, para todo o mundo e não só os amigos), nasceu em Bissau, em 1973. É portuguesa, casada, tem uma filha, é bióloga, com trabalho de investigação na Guiné-Bissau.

Castelo Vide > 21 de Agosto de 2009 > Sinagoga Museu > Vista parcial do painel com os nomes dos castelo-videnses, vítimas da Santa Inquisição. Não se sabe a data da sua construção. No início do Séc. XIV já havia uma judiaria em Castelo de Vide. O edifício foi adaptado para residência no Séc XVII. Foi reconstruído na sua traça primitiva em 1972. Recentemente foi criado o Núcleo Museológico da Sinagoga de Castelo Vide, que deve muito ao trabalho da arquitecta e arqueóloga Susana Bicho. É hoje uma das principais turísticas daquela bela terra do Alto Alentejo. Parabéns ao município e à comunidade de Castelo de Vide pelo belíssimo trabalho feito de preservação e divulgação da memória das suas gentes.

Fotos: © Luís Graça (2009). Direitos reservados

São Martinho do Porto > 15 de Agosto de 2009 > A Joana Graça e a Clara Schwarz, divertidíssimas, a praticar o 'seu' russo... Uma tarde divertidíssima, a que não faltou a música klezmer (género musical cultivada pelos judeus das regiões balcânicas desde o Séc. XV, através do violino do João Graça (do grupo musical Melech Mechaya)

Vídeo (4' 04'' ) : © Luís Graça (2009). Direitos reservados

Acrescenta o autor:

"Eu sempre tinha ouvido falar deste ramo bem sucedido da minha família. Ocorreu-me que as suas vidas eram a personificação da crença positivista da modernidade em matéria de mobilidade e de progresso. As famílias judias são muitas vezes caracterizadas por padrões de errância e migração, padrões de vida que mais tarde vieram a caracterizar a população mundial em geral"...

Embora as imagens do fotógrafo sejam específicas, a sua intenção "é ir além das identificações estreitas de uma determinada comunidade. É a tensão entre o local eo global que me interessa. A condição de multiplicidade, de deambulação e de exílio, tal como mostra esta história, sugere alguns princípios para uma fundamentação alternativa de identidade cultural, com base em padrões comuns de experiência"...

Sobre a exposição, diz-nos o autor que "é apresentada como uma instalação composta por três projecções digitais (Zgierz, Lisboa, Guiné-Bissau). Nas salas sobre a Polónia e a Guiné-Bissau, dois projectores estão montados, de costas um para o outro, sobre um pivô central. As imagens de vídeo giram em torno da sala (como as vigas de uma casa de luz), com alongamento e flexão nas paredes à medida que são distorcidas pela forma da sala. Na sala de Lisboa, três projectores de vídeo projectam as imagens em paredes alternadas. Uma voz off narra a história. O ciclo de cada sala dura aproximadamente 15 minutos e consiste em cerca de 60 imagens".

Há um catálogo da exposição, com 160 imagens a preto e branco e texto em Francês, Inglês e Português, composto por três partes (Zgierz, Lisboa, Guiné-Bissau). Autores do texto: Jean-François Chevrier, historiador de arte e curador independente; Jonathan Boyarin, professor de estudos judaicos modernos; e Carlos Schwarz da Silva, primo do Mikael Levin. (O notável texto do Pepito, A sombra do pau, já foi publicado no nosso blogue) (*****).

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Notas de L.G.:

(*) Último poste desta série > 19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4836: Agenda cultural (23): Exposição evocativa da participação dos jovens do Seixal, Lourinhã, na guerra colonial (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2977: Recortes de imprensa (6): a cidadã portuguesa, Cristina Silva, expulsa da Embaixada de Portugal em Bissau no 10 de Junho

(***) Sobre Samuel Schwarz, há uma nota biográfica na página pessoal do antigo jornalista português, correspondente, em Israel, de vários jornais, da rádios, da RTP e da agência noticiosa ANOP (hoje, Lusa), Inácio Steinhardt (n. 1933, Lisboa, de origem judaica, a viver em Israel desde 1976), que tomo a liberdade de transcrever parcialmente, com a devida vénia e as minhas saudações bloguísticas ao autor (de quem ainda me lembro perfeitamente):

Completam-se este ano [, 2005,] 90 anos desde a chegada a Portugal do engenheiro judeu polaco Samuel Schwarz.

Foi Schwarz quem descobriu e revelou a todo o mundo judaico a existência de uma comunidade secreta cripto-judaica, em Belmonte.

Nascido em Zgierg, na Polónia, em 1880, Samuel Schwarz era filho de um erudito hebraísta, que tomou parte como delegado, no 1º. Congresso Sionista, convocado por Teodor Herzl.

Com a idade de 18 anos, Samuel deixou a casa dos pais para ir estudar engenharia mineira em Paris. Trabalhou depois na Espanha, na Suíça, na Costa do Marfim e na Rússia, onde conheceu sua futura esposa e se casou.

No princípio da 1.ª guerra mundial, o casal foi viver para Orense, em Espanha, e em 1915 estabeleceram-se definitivamente em Portugal.

O seu primeiro trabalho profissional foi nas minas de estanho de Belmonte. Aí, quando comprava aprovisionamentos para o seu escritório, um comerciante local aconselhou-o confidencialmente a que deixasse de comprar na loja de um seu concorrente.
- Basta que lhe diga que ele é judeu.

Vindo da Polónia, onde existia uma vida judaica pujante, para Portugal, onde a comunidade judaica reconhecida não excedia algumas centenas de membros, a confidência do comerciante de Belmonte causou-lhe obviamente enorme surpresa.
O problema imediato foi que, tanto como os vizinhos cristãos apontavam a dedo os habitantes "cristãos-novos" de Belmonte, estes escondiam as suas práticas religiosas e negavam veementemente serem judeus.

Schwarz necessitou de muita paciência, muitos conhecimentos da liturgia judaica, e de muito poder de persuasão, para ser reconhecido pelos cristãos-novos de Belmonte como seu correligionário.

Revelou então a sua descoberta em inúmeros artigos e entrevistas na imprensa judaica de todo o Mundo, que, por sua vez, deram lugar a visitas de individualidades importantes e novos relatos em livros e jornais. Excelente poliglota, Schwarz dominava nove línguas.

A sua principal obra "Cristãos-Novos em Portugal no Século XX" foi publicada em 1925, como separata da revista "Arqueologia e História", da Associação dos Arqueólogos Portugueses, de que era membro.

Este livro é considerado ainda hoje um clássico e fonte primária de todos os investigadores da história dos cripto-judeus em Portugal moderno.(...)

Samuel Schwarz foi também um investigador emérito da cultura judaica em Portugal. Entre os trabalhos que publicou, encontra-se a revelação de um documento hebraico, até então inédito, sobre a conquista de Lisboa aos Mouros, vista pelos habitantes judeus de dentro da cidade.

Devem-se-lhe também estudos importantes sobre a localização das judiarias medievais de Lisboa, e uma história da Moderna Comunidade Israelita de Lisboa.

Foi Samuel Schwarz que identificou em Tomar um edifício, que servia de armazém de batatas, e anteriormente de prisão, como tendo sido originalmente uma sinagoga do século XV.

Schwarz adquiriu e recuperou o edifício a suas custas, reuniu nele a maioria das inscrições hebraicas encontradas em território português. Ofereceu-o depois para o acervo cultural português, sob o nome de Museu Abraão Zacuto.

Actualmente a "Sinagoga de Tomar" é um importante atractivo turístico da cidade.

Samuel Schwarz faleceu em Lisboa em 1953.

Este ano foi inaugurado em Belmonte - cuja comunidade cripto-judaica regressou entretanto ao judaísmo normativo - um Museu Judaico, que esclarece aos turistas e visitantes nacionais a história incrível daquela comunidade.

Lamentavelmente, os responsáveis por aquele espaço museológico parece terem esquecido dedicar um sector do museu à figura e história de Samuel Schwarz, a cuja descoberta e obra de investigação Belmonte ficou a dever a divulgação no mundo da sua comunidade judaica.

É uma lacuna imperdoável, que os responsáveis certamente quererão reparar, na altura em que se comemora o 80.º aniversário da chegada de Samuel Schwarz a Belmonte.


In: Blogue Ao Correr da Pena > 31 de Agosto de 2005 > Samuel Schwarz

(****) Vd. postes de:

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!

20 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)

(****) Vd. poste de 31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: Histórias de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)

É um texto que eu conselho vivamente a ler e reler, em especial aos amigos da Guiné e do povo guineense, e a todos os homens de boa vontade... Aqui vai apenas a última parte:

(...) 4. RENASCER SEMPRE

Em 1948, um ano antes de eu nascer, o meu pai [, Artur Augusto da Silva,] regressava à Guiné-Bissau, onde vivera em Farim a sua infância e onde, tal como os meus avós que lá haviam aportado no final do século XIX, se prendeu pelos encantos e tranquilidade destas paragens. Pressionado pela perseguição política da Ditadura de Salazar e desiludido com a derrota do Movimento de Unidade Democrática [MUD], procura em África aquela paz de consciência que o mundo europeu não lhe podia dar.

Com a minha mãe Clara [Schwarz] e meus irmãos Henrique e João, volta a nascer, entusiasmado com esta terra e suas gentes, tal como a família dos meus avós maternos renasceram do Gueto de Varsóvia e dos campos de concentração nazis. Saem da Polónia para Portugal para tudo começar de novo.

Já em 1966, a polícia política de Salazar prende-o no aeroporto de Lisboa acusando-o de ser membro do Partido que lutava pela independência da Guiné e Cabo verde, o PAIGC. Liberta-o cinco meses depois, impedindo-o de regressar a Bissau e obrigando-o a recomeçar uma nova vida.

No dia 24 de Setembro de 1973, em casa dos nossos camaradas caboverdianos Manuela e Sabino somos acometidos por uma alegria enorme ao ouvir na rádio BBC a notícia da declaração da Independência da Guiné-Bissau. Meio ano depois, no final da tarde do dia 25 de Abril de 1974, a Isabel e eu estávamos no cerco ao Quartel do Carmo, testemunhando a queda de 48 anos de fascismo e de quase 500 de colonialismo.

Um ano depois estamos, entusiasmados, em Bissau a começar a nossa vida. Primeiro com a Cristina, a nossa primeira filha, e logo a seguir com o Ivan, nascido em 1975, e a Catarina em 1980. Muitos anos depois, mais exactamente 18, o país é abalado por um violento conflito politico-militar. Os senegaleses, invasores, ocupam, pilham e destroem a nossa casa no bairro de Quelele. Somos obrigados a refugiarmo-nos em Lisboa. Quando 11 meses depois regressamos, não existe pedra sobre pedra das nossas memórias: fotografias, filmes, livros, recordações de toda a vida, haviam desaparecido.

Recomeçámos tudo mais uma vez, menos por convicção, mais por tradição. Hoje as nossas duas netas, Sara e Clara, sabem que desistir é perder e recomeçar é vencer.

(...)

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4862: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (5): Como se vivia no abrigo da ponte de Uaque



1. Mais um episódio da série do Rui Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67, enviado em mensagem com data de 21 de Agosto de 2009:





Novembro de 1966.
O abrigo de Uaque.
Reviver o homem das cavernas trocando a moca pela G3.


Ali pelo menos aumentei os meus dotes de cultura geral, pois fiquei a saber que:

- Os porcos nadam e de que maneira;

- que com 20 anos pode-se comer tudo e de tudo que tudo engorda (portanto não mata) e que atirando uma granada ofensiva para um rio (passe a selvajaria) os peixes numa fracção de segundo e num raio de 10 metros aparecem todos a boiar de barriga para o ar acabando ali o seu reinado.



Das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

Foi então aqui no abrigo de Uaque a 5-6 quilómetros de Mansoa e na estrada que ligava aquela a Bissau, um pouco depois do carreiro para Jugudul, que eu vivi das páginas mais interessantes e palpitantes de toda a minha vida na Guiné. Não por ser um sítio maravilhoso, pacífico ou acomodativo, antes pelo contrário, no que diz respeito principalmente aos dois últimos predicados, mas sobretudo pelo insólito da situação.

O abrigo, construído recentemente, em pedra ligada por uma massa espécie de barro escuro, o tal barro que os indígenas usavam na construção das suas moranças, de planta quadrada, tinha seteiras em todos os seus 4 lados o que nos dava a possibilidade de defesa em todos os ângulos. Interiormente, outro quadrado em parede, paralelo ao exterior, formando assim um corredor em quadrado de circuito fechado. Era então aqui no corredor em forma de galeria que tomávamos posições em caso de ataque inimigo. Este corredor servia de tudo: arrecadação de munições, víveres, dormitório, etc. Era a nossa casa.

As paredes do abrigo ficavam metade abaixo do nível do solo (portanto enterrado) cerca de 1,5 m. Visto do lado de fora o abrigo tinha sensivelmente aí uma altura de 1,5m também. Logo as seteiras estavam um pouco acima do nível do solo visto do exterior e à altura adequada do lado de dentro. Estávamos assim protegidos quer pela frente quer pelas costas, quer ainda por cima, pois o dito corredor estava coberto de espessa camada do mesmo material usado nas paredes ou parecido e tal como de um túnel se tratasse. Cada cama estava colocada junto a uma seteira para que a nossa reacção, em caso de ataque inimigo à noite (o mais provável), fosse a mais rápida possível. O número de camas estava dividido pelos quatro lados do abrigo.

No vão deixado pelo quadrado interior em parede, e aqui já a descoberto, ficava a cozinha ou espécie disso: 4 caibros ao alto sustinham uma cobertura em chapa de bidão (esta dava para tudo) por causa da chuva e que cobria então os tachos e as panelas que cozinhavam ao sabor das chamas da lenha, o comer da malta. Mais ao lado, uma mesa comprida de madeira e de construção rudimentar e com bancos corridos um de cada lado e em todo o comprimento da mesa, também em madeira e feitos também de forma tosca à boa maneira da tropa nos seus vinte anos.

Tudo isto dava um ar de guerra e ao jeito do far-west a que o tipicismo e a fisionomia natural da terra africana completava num enquadramento de belo significado.

A lenha que se ia apanhando um pouco por todo lado era empilhada no dito vão interior e devido à sua grande quantidade, ocupava, em alta pilha, mais de metade da área. De lenha para cozinhar estávamos bem fornecidos só que da outra lenha, era só aguardar…

Num do vértices do abrigo e do lado da ponte, portanto da estrada também, e para o lado de Mansoa, destacava-se, numa posição acima aí 1-1,5 metros do tecto do abrigo, uma guarita em jeito de pequena torre mas também de espessas paredes onde permanentemente ficava um homem, o homem que zelava pela vida dos camaradas, mantendo uma atenta vigilância e um ouvido muito apurado principalmente durante a noite: o sentinela. Este posto de sentinela era feito durante a noite normalmente por um milícia indígena.

Uma vez ao meio da noite subi para ver se ele estava tranquilo a dormir, mas não, de olho bem vivo varria com este todo o terreno circundante. Good, pensei eu.
Uma tosca mas segura escada também de madeira fazia o acesso a tal poleiro.
Ali estávamos e ali passávamos dias e dias naquele local um tanto inóspito, vivendo como ciganos acampados algures no mato.

O ambiente era de guerra pura, só guerra e sempre a guerra, pois dentro do abrigo respirava-se pólvora e só pólvora para além de um ar saturado de uma mistura de tudo. O volume do ar no abrigo não era grande e aquele também não corria. Só das seteiras é que se sentia algum ar fresco a entrar. Junte-se a isto o cheiro dos cozinhados(?), das drogas usadas para afugentar os malfadados dos mosquitos, também de alguns cheiros orgânicos, naturalmente, e assim vivíamos em ar interior muito adverso principalmente quando dormíamos. Por todo o lado, no dito túnel, só se viam cunhetes e mais cunhetes, - tropeçávamos neles - espingardas aqui e acolá, granadas de mão, de bazooka e de morteiro nem sempre bem acomodadas, um pouco de ao Deus dará.

Estávamos atolados em munições ou seja armados até aos dentes, e por aqui… O radiotelagrafista também tinha lugar ao seu posto privado. Parecia um escritório, só que depois de um terramoto.

Assim, em tais condições, julgávamos também que muito dificilmente o inimigo levaria a melhor pois estávamos numa autêntica fortaleza e o armamento que nos equipava dava-nos a maior garantia para além de contarmos com um rádio que periodicamente comunicava com Mansoa, e portanto seria fácil pedirmos reforços também. Estes podiam era demorar, estávamos conscientes disso.

A guarnição, (uma Secção reforçada) compunha-se de 10 homens: eu que era o comandante daquele destacamento, de um radiotelegrafista, de um bazookeiro na circunstância o destemido e voluntarioso Chaves que me avisou logo: - Furriel, se eles aparecerem eu vou lá para fora com a bazooka, aqui dentro não estou a fazer nada - , um homem do morteiro, respectivos municiadores e os restantes atiradores. Tínhamos lá medicamentos para as primeiras impressões: pensos, tinturas (a inevitável presença do 1214!), garrotes, ligaduras, etc. O Vizela pôs anti-alérgico na cabeça rachada de uma velha indígena! Dizendo-lhe que ia ficar boa!… e a pobre confiante e a agradecer com sorriso largo a mostrar uma cremalheira já muito desfalcada. O anti-alérgico dava para tudo, dizia ele. Os indígenas passavam por lá a socorrerem-se de qualquer ferimento mas a partir do episódio da velha, o Vizela ficou impedido de fazer curativos (conhecimentos clínicos a mais). A nossa iluminação era feita através de garrafas vazias de cerveja cheias de petróleo e uma tira de gaze a funcionar como pavio. Este era o mesmo tipo de iluminação que era usado exteriormente. Fora do abrigo havia uma cerca em arame farpado e a toda a volta daquele. Esta cerca ficava a uns 30-40 metros do abrigo. Nos dois pontos que atravessava a estrada Mansoa-Bissau, a cerca era substituída por cavalos de frisa que eram desviados sempre ao alvorecer para dar passagem à passagem eventual de viaturas e também ao pessoal indígena que fazia a sua vida necessitando de passar naquele ponto da estrada.

À noite e aquando da altura de se acenderem os exóticos candeeiros pendurados a espaços regulares na cerca, colocavam-se novamente os cavalo de frisa impedindo a passagem de pessoas ou viaturas pela estrada e garantindo assim uma protecção em todo o redor do abrigo. O arame farpado ficava assim em circuito fechado (mais ou menos).

Entre os soldados havia um que cozinhava muito bem, fazendo, e dentro dos condicionalismos existentes, uns pratos bem saborosos.

De manhã tomávamos café com leite com casqueiro, este preparado em torradas(?), principalmente quando ele ficava duro (o que era sempre). Por vezes calhava às outras refeições, frango e até leitão(!), pois os soldados metiam-se pelo mato dentro um tanto ou quanto arriscadamente, diga-se de passagem, e compravam (?) aos nativos aqui e ali a habitarem, os referidos animais.

Ainda me recordo de um belo dia em que o Barrumas saca de cada bolso do camuflado, qual ilusionista, um assustado frango. Diz-me ele orgulhoso e atirando os frangos ao ar. - Sabe quanto custou cada um, meu Furriel? Cinco coroas! - O Barrumas quando contava as façanhas dele até nem gaguejava.

Duma outra vez eis que aparece um porco (?) de focinho bastante comprido, à frente de um pequeno grupo de soldados e amarrado por uma corda e a dar bastante trabalho ao seu condutor. - Custou 30 paus, Furriel. Eles queriam um bocado mais mas fizemos-lhes ver que era 30 paus ou… de graça. Eles optaram pela primeira oferta.

Foi uma risota com o porco, pois este a dada altura soltou-se e tão cedo não deu descanso à malta, pois fugia e deambulava em todas as direcções. Foi um jogo do gato e do rato. A certa altura ele mete-se numa profunda e extensa poça de água e alguém grita: - Lá vai o nosso porco - mas qual não é o nosso espanto, que o porco nada com surpreendente destreza, atravessa o charco e volta à desenfreada correria. - Alto, temos porco outra vez - disse mais que um, de imediato. Após alguns segundos de expectativa e surpresa por o porco nadar, volta a perseguição. A nossa vingança não se fez esperar muito, pois volvidas algumas horas o porco assava numa comprida travessa de engelhado e oxidado alumínio, num improvisado mas eficiente(?) forno. O forno propriamente dito era nem mais nem menos que um bidão de chapa, outrora de óleo ou de qualquer combustível, aqui e ali meio enferrujado, embutido num pequeno combro mesmo junto ao abrigo. Este forno haveria de assar(?) muita coisa dali em diante e que nos iria saber às mil maravilhas. Talvez o cheiro ainda do óleo…

O habilidoso cozinheiro temperava aquilo cá com um jeito! Bem, também se não fosse os temperos esconderem muita coisa, muita coisa por certo ficaria por comer, apesar da fome.

De dia matávamos o tempo indo para o rio ali perto - um afluente do rio Mansoa -, cuja ponte feita com tábuas de madeira grossas e largas dispostas ao través justificava a presença do abrigo e militares ali perto. Nadávamos ou simplesmente saboreávamos da frescura proporcionada pela presença da água do rio. De vez em quando e para quebrar a rotina, levava uma granada e atirava-a à água. Breves segundos após a granada explodir apareciam à superfície diversos peixes a boiar de barriga para o ar. Coitados dos peixes, como se eles tivessem alguma coisa a ver com a guerra…

Agora me recordo de como por vezes nos arriscávamos a sermos cercados sem possibilidades de defesa, pois, se ao princípio nos preveníamos levando as G3 connosco, a partir de certa altura a malta e à boa maneira do Zé português prescindiu de tal empecilho, a ponto de estarmos ali uns poucos sem qualquer arma a acompanhar-nos. Era a tal predisposição para o comodismo e descontracção!... Coisas do diabo, e que só atentávamos nelas depois de acontecer alguma coisa. O que vale é que o inimigo não sonhava com tanto à-vontade da nossa parte e… fez o favor de nunca aparecer.

Acontece que uma vez até tremi dos pés à cabeça pois, ao chegar ao abrigo vindo do rio, verifiquei que não havia lá viv’alma pois uns fiados nos outros, deu em o abrigo ficar completamente abandonado. O abrigo até podia mudar de dono. Toda a malta estava portanto a banhos e longe do abrigo. Os que estavam mais perto era os que estavam na ponte e mesmo assim esta ficava a uma centena de metros do abrigo.

Uma imprevidência - no meio de tantas outras - que nos podia custar bem caro.

À noite, depois de jantarmos, jogávamos às cartas na grande mesa do tacho até o cansaço tomar conta de nós.

Tomávamos banho(?) com um dispositivo de chuveiro soldado a um latão e este pendurado num pau apoiado transversalmente em dois prumos também de madeira.

Enchíamos o latão numa poça de água estagnada ali ao pé - a mesma água que já tinha feito num sei quantos banhos! - pendurávamos então o latão outra vez e abríamos o dispositivo de chuveiro para a água jorrar. A água portanto era sempre a mesma (circuito fechado) e só se chovesse é que se alterava alguma coisa, e interrogava-me eu como é que nós estamos a tomar banho se a água até era cada vez mais suja. Valia pelo efeito psicológico e sabia bem a água a cair no corpo, este sempre muito acalorado. Acresce dizer que este exótico (e o que não era ali exótico?) chuveiro ficava na retaguarda do abrigo e aí a uns vinte metros afastado deste.

Bom, falta falar verdadeiramente da nossa missão ali e o porquê dum abrigo - eu diria fortaleza ou forte ou mina ou até bunker - ali instalado.

Corria o boato e ainda mais a avaliar pelos precedentes, pois já tinham sido vários os pontões por aquela zona a irem pelos ares pelas mãos dos turras neutralizando assim o trânsito de pessoas e carros e que a ponte de Uaque estava também ameaçada de destruição. Esta ponte, de grande importância na ligação Bissau-Mansoa, uma das principais artérias no norte da Guiné, com um razoável movimento de viaturas sobretudo e já se vê, militares. Este tráfego ia-se tornando cada vez mais arriscado pois a actividade terrorista na zona vinha gradualmente acentuando-se. E lembrar que eu, o Baião e o Martins aquando da nossa ida para férias na metrópole, alugamos um Volkswagen (o vulgo carocha) em Bissau a um Sargento e fizemos os três o trajecto Bissau-Mansoa e depois Mansoa-Bissau por causa de um documento qualquer que faltava - o Comandante Operacional em Mansoa até mudou de cor quando soube que tínhamos feito isto e não nos queria deixar sair de Mansoa. E eu que tinha acabado de tirar a carta militar e peguei num carro pela primeira vez…. O que vale a estrada Bissau-Mansoa era praticamente uma enorme recta. A ponte ficava e como já disse, a cerca de 5-6 quilómetros da concorridíssima Mansoa. Mansoa era muito populacional e com muito efectivo militar. Era sede de Batalhão, tinha uma Companhia operacional para além de por vezes também estarem por ali Companhias ou militares isolados em trânsito ou colunas para reabastecimento de quase todas as unidades militares no Oio: Bissorã, Cutia, Mansabá, Olossato e os diversos destacamentos: Encheia, Braia, Maqué.

Mansoa situava-se também num ponto estratégico quer geograficamente quer por estar servida de uma boa estrada para a capital Bissau e ser marginada por um dos maiores e importantes rios da Guiné: o rio Mansoa. Era também, ao que me pareceu, a porta de entrada para todo o norte da Guiné. Por aqui já se pode ver qual o interesse do inimigo em fazer ir pelos ares a ponte em Uaque. Sendo assim, havia a imperiosa necessidade de preservar a existência daquela e assim só com um efectivo militar de presença e vigilância permanente isso poderia ser garantido. A cerca de 100 metros da ponte e para o lado de Bissau e do lado esquerdo da estrada naquela direcção também, construiu-se então um seguro abrigo com um efectivo de 10-12 homens armados de Bazooka, morteiro 60 e todos com a sua G3. Como atrás disse, além de fazerem segurança à ponte, os militares ali presentes - parte deles - patrulhavam de vez em quando os terrenos limítrofes que até dava para trazer (ou pilhar?) frangos e outros animais de criação.

Para além do isolamento, pois estávamos ali como sós no mundo, nada se divisava que denunciasse a existência humana, e as privações, já se vê, eram muitas.

Tínhamos à noite a habitual rotineira e impiedosa visita de milhares de mosquitos. Uma vez o rio ali perto cuja água praticamente sem corrente - esta existia em função das marés (lembra-se que a maior parte dos rios na Guiné são extensões do mar) - e a existência de bolanhas mais ou menos alagadas a toda a volta do abrigo, tudo isto originava a proliferação de mosquitos que com a sua sede sanguinária viam ali em nós pasto a considerar. A vingança dos peixes se calhar…

À noite dava-se uma autêntica invasão e por mais que nos cuidássemos eles faziam-se sempre sentir através das suas desesperantes picadas. Ali o grande problema a seguir à guerra era a praga dos mosquitos. Uma das soluções para dormirmos sem esta indesejável companhia, era de ao deitarmo-nos agitar fortemente uma peça de roupa que estivéssemos a despir na ocasião e sem deixar de agitá-la ao mesmo tempo abríamos uma nesga do mosquiteiro até então hermeticamente fechado, e entrarmos em habilidade qual contorcionista e na máxima rapidez para dentro da cama, e logo sem demora fechar a nesga aberta. Apesar de tudo de todo o esforço e cautela, e para nossa grande arrelia não é que entravam sempre connosco 2 ou 3 daqueles clientes! Estes faziam-se ouvir logo após a nossa quietude para prepararmo-nos para dormir. Que raiva! Filhos da puta! era o que mais se ouvia aqui e ali naquelas alturas.
Havia então quem não se importasse com a presença de 2 ou 3 mosquitos no seu habitat, mas os mais impacientes não desarmavam enquanto o ambiente debaixo do mosquiteiro não ficasse limpo, e então davam-se ao trabalho de tentar liquidá-los espalmando-os entre as mãos. Quem não soubesse do que se tratava julgava que aquilo seria de malucos ou de então de algum intróito para uma peça de ópera. Bate aqui, bate acolá, era uma sinfonia de palmas quase ritmada e um pouco por todo o abrigo. Entretanto num, chegou a entrar um pirilampo que fez com que o hospedeiro dissesse: - Este filho da p… como não me via bem foi buscar uma lanterna.

Tínhamos connosco o Lion Brand, que era um produto de cor verde e em forma de espiral e que ia queimando como o morrão de um cigarro e cujo fumo era fortemente insecticida, mas isto ali pouco funcionava, a não ser deixar um cheiro pestilento naquele corredor quadrado do abrigo. Havia quem dissesse que ali o Lion Brand se calhar até os alimentava.

Colocávamos uns poucos a espaços regulares (2 metros) pendurados nas paredes interiores do abrigo mesmo junto às camas. Portanto ficavam a arder uma boa quantidade deles ao mesmo tempo. Uma unidade de Lion Brand dava em princípio para um quarto de dimensões normais e ali, colocados aos montes, parecia nada adiantar. Portanto a protecção única e válida ali, era ter o mosquiteiro muito bem fechadinho e preso por baixo do colchão e não encostar qualquer parte do corpo ao mosquiteiro pois se havia o azar de durante o sono deixar um braço ou um pé encostado ao mosquiteiro o desgraçado tinha muito que contar e coçar depois. O inimigo, na circunstância, atacava mesmo do lado de fora do mosquiteiro.

Esta guarnição esteve cerca de 3 semanas em Uaque. Acresce dizer que durante a minha estada no abrigo de Uaque nunca fomos atacados ou sequer vítimas de qualquer flagelação ou até dado por qualquer presença inimiga nas imediações. Os mosquitos é que nos davam cabo do toutiço e nos punha a tocar harpa (coça, coça) durante muito tempo.

P.S. - Hoje Uaque, ver fotos seguintes (reproduzidas com a devida vénia do site do Hotel Rural de Uaque”, tem um empreendimento turístico com base em bonitos bungalows com boa piscina e tudo. Como os tempos mudam! Neste caso para muito melhor, penso eu, e ainda bem.



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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4656: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (4): CCAÇ 816, Operação faísca em Cansambo

Guiné 63/74 - P4861: Cartas (Carlos Geraldes) (3): 1.ª Fase - Agosto e Setembro de 1964

1. Terceiro e último poste da 1.ª Fase - Bissau da série "Cartas" de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.

1.ª Fase: Bissau

Bissau, 06 Ago. 1964
Nos últimos três dias não estivemos em Bissau. Fomos para mais uma perigosa operação.
O perigo é a minha profissão, como dizia o outro, mas acho que por aqui o perigo é ainda um bocado difícil de encontrar. Por enquanto corre tudo relativamente bem, sem sobressaltos. Esperemos que assim continue.

Nesta carta, como noutras anteriores, é evidente a preocupação de aligeirar a imagem da guerra, de mascarar a realidade, para não atormentar a família que lá longe na Metrópole, seguia angustiada as notícias que chegavam dos vários teatros da guerra colonial

Desta vez fomos para os lados de Catió e Bedanda, perto da fronteira Sul. Fomos e viemos a bordo de um contratorpedeiro, o “Vouga”. Ficámos assim a conhecer uma série de oficiais da Marinha, extraordinariamente simpáticos. Ficámos todos entusiasmados com o nível de educação, camaradagem e cultura destes indivíduos. Trataram-nos muitíssimo bem, principalmente quando no regresso do mato aparecemos todos sujos e esfarrapados. Não se pouparam a esforços, arranjando-nos banho, roupas lavadas e comidas quentes, apesar de já passarem das duas horas da madrugada.

A operação tinha o nome de código, “Broca”. Participaram, além de nós, várias Companhias de Infantaria, dois Destacamentos de Fuzileiros, dois Pelotões de Pára-quedistas, comandados por um amigo dos tempos da Universidade, o Mascarenhas. E ainda a Aviação, peças de Artilharia e, é claro, também a Marinha, com os barcos para o transporte de todo aquele pessoal.

A zona era território dominado pelo inimigo e há mais de um ano que ninguém se atrevia a ir lá. Os turras, segundo se constava, tinham até campos de treino. A missão da nossa Companhia era bater a mata a noroeste da estrada que vai para Catió e depois limpar essa estrada. Não encontrámos resistência armada limitando-nos a destruir todas as tabancas que por ali existiam e que davam o sustento necessário ao inimigo, matando todo o gado, estragando as plantações de bananeiras e fazendo prisioneiros aqueles que não fugiam e se entregavam pois, caso contrário, eram mortos pelos nossos soldados que, desta vez, se comportaram com um sangue frio extraordinário e não dispararam um único tiro a mais.

Quem na realidade defrontou propriamente o inimigo foram os fuzileiros que tiveram cinco feridos e um morto. Como resposta mataram uma quantidade de turras, apreenderam muito material e creio que por uns tempos aquela zona ficará controlada pelas nossas tropas. A estrada que tínhamos de percorrer estava toda semeada de enormes árvores abatidas e, de não passar lá ninguém, tinha capim com quase 3 metros de altura. Agora ficou totalmente desimpedida.

Estivemos naquela zona dois dias (segunda e terça) e nunca vi mato tão cerrado como aquele. Autêntica floresta virgem. De segunda para terça-feira, dormimos metidos em buracos, à chuva, comidos pelos mosquitos. Quando chegámos, às 6 horas da tarde de terça-feira, a Catió, demos um enorme suspiro de alívio. Ao tirar a mochila de cima dos ombros até me senti flutuar. Regressámos depois ao “Vouga” em lanchas de desembarque e ia enjoando pois o mar estava picado e continuava a chover. O transbordo foi uma coisa de loucos. As ondas tanto levantavam a LDM acima do convés do “Vouga” como nos precipitavam num abismo profundo quase até à quilha. Tínhamos que calcular o momento certo para saltar para bordo, arremessando primeiro as armas e as bagagens, para depois saltarmos nós próprios de qualquer maneira fechando os olhos ao perigo, numa confusão indescritível.

Chegados a Bissau às 13H30 da tarde do dia seguinte e, depois de lavados e vestidos de novo, corremos até à Baixa, para comer frangos de churrasco e beber muita cerveja. E à hora do jantar regressámos à Messe dos Oficiais para de novo encher o estômago, tal era a fome que sentíamos depois de dois dias alimentados apenas a rações de combate.

No dia seguinte convidámos os oficiais do “Vouga” para uma jantarada, numa modesta retribuição pela forma magnífica como sempre nos têm tratado. No final acabámos todos a ouvir fados. Sim, porque aqui também se ouvem fados e dos mais castiços.
Juntou-se um grupo de sargentos e alferes, mais ou menos todos de Lisboa e foi uma noite de fados em cheio, até às cinco da madrugada a beber vinho e a comer anchovas (à falta de melhor) com queijo e pão. Garanto que ninguém ficou bêbado, mas fiquei um pouco farto de fados…

Os da Marinha gostaram tanto do convívio que agora são eles que nos querem convidar para bordo do “Vouga” para outra confraternização.
Se entrássemos nesse ritmo o resto da comissão até que nem seria nada desagradável. Mas em Dezembro já se vão embora, deixando estes mares.


Bissau, 22 de Ago.1964
A operação “Crato” demorou dois dias, 18 e 19 de Agosto. Choveu forte e sem parar.
Embarcámos na madrugada de terça-feira, às 04H00 num barquito de guerra que atravessou o rio Geba para sul e nos foi colocar na outra margem junto à região de Tite (acima de Bolama), zona de forte implantação dos turras, apesar de estar assim tão perto de Bissau. Às 06H00 e às 07H00 desembarcaram primeiro os fuzileiros enquanto do navio metralhavam a margem com balas tracejantes (era bonito, parecia fogo de artifício). Por volta das 08H00 desembarcámos nós na praia, tal como os aliados fizeram no dia D, na Normandia, com água pela cintura e com os pés a enterrarem-se no lodo. Mal chegávamos a terra firme, dispersávamos e corríamos a abrigarmo-nos atrás das árvores e nas depressões do terreno mais propícias. Mas não houve novidade alguma, pois também lá não havia os terroristas que, segundo as Informações, era costume estarem sempre por ali alvejando qualquer embarcação que se aproximasse. O local chama-se Jabadá (Mafra no código da operação) e forma nessa zona uma espécie de promontório conhecido precisamente por Ponta de Jabadá.

Começamos então a penetrar para o interior, em manobra conjunta com mais quatro Companhias que vinham de sul e, com dois destacamentos de fuzileiros (o equivalente a duas Companhias de Infantaria) que progrediam paralelamente a nós. Por volta das 04H00 da tarde chegámos à tabanca que era o nosso primeiro objectivo, pois era lá que supostamente se refugiava um antigo grupo de turras. Fizemos o envolvimento (a mim calhou-me o lado esquerdo) e, depois de termos disparado dois ou três tiros de bazooka como medida dissuasora, avançámos em pequenos grupos isolados. Mas não havia ninguém em toda a aldeia, tudo deserto, apenas porcos e galinhas que esvoaçavam assustadas. Cabras presas a estacas berravam desalmadamente. Os soldados atravessaram rapidamente as leiras à volta das palhotas, derrubando as cercas para mais facilmente poderem passar. Houve ainda quem chegasse a ser atacado por um enxame de abelhas, deixado ali, talvez de propósito, mas conseguiram evitá-las a tempo.

Não se tocou em nada e atravessando a aldeia chegámos a um descampado mesmo na margem da bolanha onde resolvemos acampar para passar a noite que se aproximava rapidamente (às 18 horas já é escuro). Formámos um círculo, aí com cem ou cento e cinquenta metros de diâmetro, e preparámo-nos para ali nos acomodarmos o melhor possível. Eu, o capitão e quase todo o grupo de comando reunimo-nos no centro, junto de uma árvore bem grossa. Escusado será dizer que estávamos ainda todos encharcados e não podíamos alimentar esperanças de secar a roupa durante a noite, pois a chuva continuava a cair.

Foi a maior noite da minha vida.

Cansados e cheios de frio, mesmo assim, quando já cabeceávamos de sono, os malditos mosquitos não nos deixavam dormir atacando-nos como loucos furiosos, entrando pelos ouvidos, nariz e boca! Nessa noite ninguém dormiu. E quase ia havendo uma desgraça, pois uma manada de vacas que por ali andava à solta, resolveu passar por cima de nós, procurando certamente o habitual local onde se recolhia à noite nas cercanias da aldeia. Inacreditavelmente ninguém entrou em pânico e eu lá andei a fazer de cow-boy à força (sem cavalo) a assobiar baixinho para encaminhar as vacas o melhor que podia para fora do nosso acampamento. Houve ainda quem não resistisse a efectuar alguns tiros à toa, pretendendo ver alguns vultos suspeitos a rondar as palhotas. Provavelmente alguém que, a coberto da noite se arriscava a regressar à aldeia para recolher algumas coisas que não tinha podido levar na precipitação da fuga que, com certeza, antecedera a nossa chegada.

De manhã foi a destruição total da tabanca, deitando-se fogo a tudo, cortando as bananeiras e abatendo as perto de cem vacas, a tiro de G-3. As cabras e os porcos eram mortos mesmo à cacetada.

O resto do dia foi preenchido com o percurso de regresso ao ponto de partida. Encontrámos as Companhias que vieram do Sul e fez-se então uma grande batida a toda aquela zona. Soubemos depois que os nativos daquela região tinham ido entregar-se à protecção da guarnição de Tite, prometendo não auxiliar mais os bandidos, como eles chamam aos turras, tal o medo que esta concentração de tropas lhes causou.

O reembarque nas LDM’s é que foi demoradamente trágico, com toda a gente impaciente por regressar, mas sem encontrar maneira de sair dali. A maré tinha subido de tal modo, que só podíamos alcançar as lanchas com água pelo pescoço, pois as margens cobertas pela densa vegetação do mangal não permitiam a suficiente aproximação. Alguns de nós tiveram mesmo de ir a nado.
E chovia sempre sem parar.

Regressámos a Bissau às 18H30 de quarta-feira, cansadíssimos (mais do que da outra vez), apesar de a operação ter durado menos tempo e ter tido menos perigos que as anteriores.
Tomei banho e o sabão até custava a fazer espuma. Jantei mesmo sem fazer a barba e caí na cama como um pedregulho de meia tonelada.


Bissau, 27 Ago. 1964
São nove horas da noite e vou ainda aproveitar para vos escrever, pois amanhã de manhã fecham as malas do Correio.
Já passaram quase quatro meses.
Sei que dentro em pouco direi que já passaram seis, depois dez… e, finalmente começarei a contar os meses que faltarão.

A guerra continua na mesma, fria e tensa. Não acredito que tenha alguma coisa de comum comigo. Apenas sei que a experiência que estou a viver será útil talvez para quando for velho ter muitas histórias de aventuras e guerreiros antigos para contar aos meus netos se os chegar a ter.
Ando um bocado falho de memória. Talvez seja da humidade que fez criar bolor no meu cérebro. Sabiam que aqui a percentagem de humidade do ar ronda os 96%?
As chuvas caem agora com mais intensidade e sempre que saio para o mato é rara a vez que não regresso todo encharcado, da cabeça aos pés. Mas mesmo assim, ainda não me constipei.


Bissau, 08 Set. 1964
Na tarde de quarta-feira partimos para mais uma operação. Esta chamava-se operação "Dedal" e dela só regressámos no domingo seguinte no final do dia. Vim todo picado pelos mosquitos e tive de tomar dois comprimidos para a comichão que me fizeram muito sono.

A operação realizou-se de novo na outra margem do rio Gêba, mas agora mais para o interior, numa península defronte de Porto Gole. Como de costume, foram connosco várias Companhias. A missão consistia em fazer uma batida a mais completa possível naquela zona, destruir todas as povoações e tentar capturar o maior número de elementos inimigos e material que encontrássemos. Tínhamos uma lista com mais de cinquenta nomes que, caso fossem feitos prisioneiros, nem era preciso interrogar, podiam ser logo abatidos ali mesmo no local.

Desta vez a minha Companhia dividiu-se e cada Pelotão (ou Grupo de Combate, como lhe chamam agora, por ter mais uma Secção de armas pesadas, com um morteiro de 60 mm e uma bazooka do tempo da Maria-Caxuxa) progredia sozinho por sua conta e risco. A mim calhou-me a ala direita e tive mais sorte que os outros, pois desloquei-me muito menos e passei quase dois dias inteiros estacionado num local perto da margem do rio para impedir a fuga daqueles que, querendo escapar às nossas tropas, procurariam refúgio mais a Sul. A noite de quarta para quinta-feira foi dormida a bordo do navio que nos transportou. Desembarcámos às 09H00 da manhã de quinta-feira e logo depois cada qual foi para seu lado.

A primeira povoação que encontrámos estava abandonada, pois já nos tinham pressentido na noite anterior e tinham fugido. Queimámos tudo e matámos todo o gado que havia. Mais adiante encontrámos duas cabanas escondidas numa zona de mato mais cerrado e com indícios de servir para ponto de reunião ou para aquartelamento de algum pequeno grupo armado. Numa delas estava uma granada de mão colocada tão à vista que deu logo para desconfiar. Mandei que todos se afastassem e disse ao furriel especialista em minas e armadilhas que fosse investigar. Era de facto uma armadilha um pouco tosca mas para a qual teríamos de tomar muita atenção, pois a cavilha de segurança da granada estava presa a um fio que no outro extremo ia prender-se a um tronco espetado no chão da cabana. Assim se qualquer um de nós descuidadamente a agarrasse e levantasse do chão ela rebentaria imediatamente causando-nos graves danos certamente. Com o credo na boca rebuscámos tudo, o mais cuidadosamente possível e encontrámos, nas redondezas, uma caixa de madeira com mais de duzentas munições variadas e ainda três granadas de tipo desconhecido. Na caixa estavam pintadas várias palavras e indicações que pareciam ser russas ou checas.
Com a febril sensação de quem está na pista da arca do tesouro dali para a frente esquadrinhámos palmo a palmo toda a mata à medida que progredíamos. Mas com muito pouco proveito com grande pena nossa. Só mais à frente, noutra povoação abandonada, é que se encontrou uma velha carabina de carregar pela boca, o vulgar canhangulo deitado fora por alguém que não se queria comprometer, pela certa.

Quando chegou a noite (de quinta para sexta-feira) preparámo-nos para dormir uma noite mais descansada, na orla da mata que limitava a imensa bolanha que tínhamos vindo a rodear. No meio da escuridão tentando não dar a perceber a nossa presença, improvisámos o melhor que podíamos os locais para passar a noite. Mas um dos soldados, inadvertidamente, encostou-se a um pequeno montículo julgando ter achado ali um óptimo travesseiro mas que mais não era do que um morro de bagabaga, formigueiro repleto de furiosos insectos que, perante o perigo iminente de uma invasão por um ser estranho, atacaram inesperadamente o intruso com todas as forças das suas mandíbulas. Quando todos nós já deslizávamos nas asas de Morfeu, acordámos de repente com uma barafunda e uma gritaria tais que mais parecia que o acampamento tinha sido atacado por inimigos sanguinários que a coberto da escuridão nos queriam degolar.

Quando consegui vislumbrar com a pouca luz que o reflexo da bolanha deixava chegar até nós, o corpo do soldado que desesperadamente se esfregava no chão arrancando toda a roupa para se poder ver livre daqueles furiosos insectos, não sabia se havia de rir ou ter um ataque de fúria perante aquela cena caricata que deitava abaixo todas as medidas de segurança que procurámos ter para não denunciarmos a nossa presença. Com vontade de lhe partir a cabeça à coronhada para o fazer calar, mesmo assim lá consegui acalmar os ânimos e aos poucos restabeleceu-se o silêncio. Dali para a frente a sorte estava lançada, só poderíamos beneficiar dela se o inimigo assim o permitisse.
Mais ninguém conseguiu voltar a dormir naquela noite, esquadrinhando as sombras reflectidas nas águas da bolanha, com medo de tudo e de nada.

Na manhã seguinte continuámos a progressão conforme estava planeado e no meio de um caminho largo e com aspecto de ser muito movimentado deparámos com uma pistola de fabrico checo ainda com quatro balas no carregador. Certamente mais uma que foi abandonada na precipitação da fuga. Foi talvez o nosso mais valioso achado, a que o capitão chamou logo seu…
Continuando sempre em ligação rádio com o comando da Companhia, acabei por me instalar num sítio à margem do rio Corubal (um afluente do Gêba), local onde aguardei até ao reembarque no domingo de manhã. Fiquei ali, portanto, também a proteger a retirada. Como não dormia há duas noites já adormecia de pé, encostado às árvores. Mas nessa noite dormi bem, pois até tivemos tempo para fazer camas com troncos cruzados, cobertos de capim e, com as capas impermeáveis (que desta vez não nos esquecêramos de levar) improvisar uns toldos para nos abrigar da chuva. Fizemos fogueiras e assámos galinhas que, temperadas com os caldos das sopas instantâneas das rações de combate, ficaram uma delícia. Os mosquitos, miraculosamente, resolveram não aparecer nessa noite e dormimos regaladamente, sem nos lembrarmos do inimigo, como se estivéssemos no Paraíso.

O sábado passou-se ali, parados sempre no mesmo sítio, enquanto aqueles que tinham ido pelo lado esquerdo, faziam batidas ao Norte para empurrarem os turras, se os houvesse, para o nosso lado. Felizmente não demos pela presença de ninguém. Eu, também, tinha sempre o cuidado de mandar acender fogueiras para lhes assinalar a nossa presença e lhes dizer que era escusado virem por este lado…
Parece que me perceberam e não tive qualquer problema.

Os restantes pelotões foram chegando nos dias seguintes mais ou menos estafados e com mil histórias para contar, mas também de mãos a abanar. Apenas o último, encontrou uma Mauser e algumas munições diversas. E como também tinham encontrado, num acampamento abandonado, um grande barracão coberto de folhas de zinco, aproveitaram e carregaram esse material que ainda estava em bom estado, depois de destruírem todo o resto. Foi uma sensação curiosa e ao mesmo tempo hilariante, vê-los chegar, em fila indiana, carregando, cada soldado, uma folha de zinco à cabeça, como laboriosas formiguinhas a acartar mantimentos para o ninho.

Este último dia foi porém o mais movimentado e atrapalhado de todos.
Como de costume, pela manhã chegou a LDM dos fuzileiros que trazia de Bissau os abastecimentos. O oficial que a comandava, o Tenente Silva, meu conhecido de anteriores passeios náuticos, veio logo ter comigo todo entusiasmado com uma ideia que tinha tido. Pouco antes de atracar avistara umas vacas a vaguear junto à margem, bem perto dali.
E a ideia era a seguinte: se pudesse meter algumas daquelas vacas dentro da LDM, podia levá-las para Bissau, onde, vendidas para a Messe, dariam de certeza bom lucro. Só que precisava que eu lhe emprestasse alguns homens, dois no mínimo, para o ajudar a metê-las dentro da LDM.

Embora eu estivesse alertado para não me movimentar fora das áreas que me estavam estipuladas no plano de acção, ingenuamente acreditei que nada de mal poderia acontecer e cedi dois homens que se ofereceram como voluntários, o José Figueiredo, de alcunha o Braga-1 e o Alberto Carlos, o Braga-2.
Só que, como sempre acontece, o que pode correr mal, acaba sempre por correr mal.

Quando a LDM encostou no local onde tinham sido vistas as vacas, em vez de vacas, do meio do capim, levantaram-se de súbito dois supostos turras que desataram a fugir. Os nossos bravos soldadinhos vão logo a correr atrás deles, como loucos. Acontece que por acaso, estava mesmo a passar por ali um avião T6 que patrulhava a zona e detectou um movimento no solo que lhe pareceu suspeito. Tendo rapidamente entrado em contacto com a base, certificou-se que naquela zona não era previsto estar a nossa tropa, portanto só poderia ser o inimigo e, sem hesitar dispara dois rockets sobre o alvo.

Resultado: o inimigo desapareceu como fumo, deixando os meus dois soldados deitados no capim a gemer, feridos com estilhaços nas pernas.

Guardei sempre em meu poder uma cópia do relatório oficial desta operação que se tornou de bastante utilidade quando, muitos anos mais tarde, um desses soldados se lembrou de requerer do Exército uma pensão por ferimentos em combate. O que só conseguiu graças à existência daquele documento, única prova que restou para comprovar o acontecido. Nem no hospital de Bissau havia qualquer registo. Bom e, no relatório também não apareciam as vacas, felizmente

Depois foi a grande confusão. O capitão da nossa Companhia, alertado pela rádio, não sabia de nada e não compreendia como é que poderiam estar soldados dele naquela zona. Todos berravam, pedindo socorro para os feridos, os altos comandos exigiam relatórios e toda a gente julgava estar a ser submetida a uma grande ofensiva inimiga, indignada também pela incompetência da aviação que não sabia distinguir as nossas tropas, do IN.
Mas só eu e o oficial da Marinha sabíamos o que de facto se tinha passado por causa de duas vacas.

Quando as coisas se acalmaram e os feridos foram levados finalmente para o hospital de Bissau, ainda conseguimos esboçar um sorriso de alívio depois de tamanho susto. Os feridos não tinham sido atingidos com gravidade e o pior foi-se esvanecendo.
Mas o capitão preveniu-me logo: os altos comandos nunca poderiam vir a saber a verdade senão a confusão iria ser muito pior.

Desde aí, entre mim e o Tenente Silva, estabeleceu-se uma longa amizade, nascida de uma cumplicidade num delito, embora fortuito, do qual nos sentíamos igualmente culpados, sem no entanto sabermos quem era o mais culpado dos dois.

Apesar de pertencermos a ramos diferentes das Forças Armadas e, na Guiné nunca mais nos termos encontrado, mantivemos contacto por escrito durante largos anos, até que lhe perdi o rasto depois dele ter emigrado para França

Falta ainda referir que, na noite anterior, os fuzileiros tinham feito uma emboscada na outra margem do rio Corubal e tinham apanhado uma metralhadora pesada, duas metralhadoras ligeiras, várias espingardas e pistolas. Parece que um grupo terrorista, pressentindo que havia barcos no rio, passou de Uána Porto para a outra margem para os flagelar de mais perto. Mas foram cair direitinhos na armadilha que os fuzileiros tinham armado.

Chegados a Bissau, no domingo à tarde, talvez até por isso, estava o cais cheio de gente para nos ver chegar. Foi um espectáculo inédito (quase surrealista) apreciar o nosso desfile que mais parecia uma parada de vagabundos sujos e famintos, sem qualquer ponta de brio militar. Mas até o Brigadeiro, Comandante Militar, apareceu para nos cumprimentar! Tudo fogo-de-vista, claro, para encher os olhos do Zé Pagode, pois no dia seguinte, surgiram no nosso aquartelamento uns capitães de outras unidades dizendo que tinham ordens para levar as tais chapas de zinco. Refilámos de tal maneira que foram constrangidos a retirar ordeiramente.
Existem sempre os eternos figurões que aproveitam todas as oportunidades para tentar enfiar o barrete ao próximo. Então aqui na tropa é demais. É ver quem mais se pode aproveitar.

O tempo continua de chuva, embora sejam só aguaceiros espaçados.
É a altura dos tornados que provocam quase sempre estragos no porto de mar, afundando umas lanchas e avariando outras.

Comprei um rádio a pilhas. É um Sony com ondas médias e curtas que, por 1.450$00, me vai ajudar a passar o tempo entre as guerras.


Bissau, 15 Set.1964
Não tenho saído para o mato pois o Cardoso é que o tem feito, com o meu Pelotão. Coisas do nosso Capitão que, é para o Cardoso se ir treinando…
Só no outro dia é que saí para ir prender, por ordem do Administrador do Concelho de Bissau, um sujeito que seria um agente terrorista, escondido aqui numa tabanca perto. Creio que a tarefa dele era angariar adeptos e depois enviá-los para o mato.

Meteu-me pena, pois ele não nos esperava, quando entrámos rapidamente pela aldeia dentro. Ficou a tremer e só teve tempo de gaguejar qualquer coisa que, creio ter sido uma despedida para os outros.
Como vêem até isto nos obrigam a fazer, papéis de Pide! Não tive dificuldade nenhuma com ele, pois nem reagiu. E fui eu lá, com um jeep e uma camioneta carregada com 14 homens armados para trazermos mais um borrego para a matança! Geralmente são raros que sobrevivem aos interrogatórios. É sempre a teoria do mais um, menos um…
Só queria ver isto acabado!


Bissau, 23 Set. 1964
Chegámos no “Vouga”, ontem à noite. Tudo ainda me parece um pesadelo que desejaria não ter vivido. A operação “Tornado”, como se chamava, foi terrível. A região era a pior que já vi, toda semeada de bolhanhas, completamente alagada pela chuva que tem caído incessantemente. Não era terra nem água mas sim uma enorme região mergulhada em lama líquida. Uma lama viscosa que, nos prendia como tenazes. Quando algum de nós mergulhava até à cintura, eram precisos três a puxá-lo para ao fim de muitos esforços o arrancarem de lá sem botas e com as calças em farrapos.

Localização: zona Sul, entre Cacine e a fronteira com a República da Guiné.
Saímos daqui no nosso habitual contratorpedeiro “Vouga”. É o único navio grande que está cá, tendo chegado agora um outro que, o vem substituir, a fragata “Diogo Gomes”.

Chegámos diante da famigerada Ilha de Como, ao fim da tarde. Pelas nove da noite passámos para lanchas de desembarque. O Carvalho na mais pequena, a LDP 101 e eu e o Castro, o capitão e o grupo de comando da Companhia, na maior a LDM 202.
Subimos o rio Cumbijã e desembarcámos finalmente em terra, pelas seis da manhã do dia seguinte. Se é que aquilo se podia chamar terra. Era só água, lodo e o entrelaçado dos ramos do mangal que delimitava as margens. Atravessada essa primeira barreira, estendia-se à nossa frente um enorme arrozal, tendo como pano de fundo um formidável maciço de palmeiras e mato cerrado. Dispersámo-nos o mais possível e fomos avançando com todas as cautelas.

Desta vez foram alguns grupos pequenos que nos atacaram com tiros inofensivos, fugindo sempre quando tentávamos apanhá-los.
Já a uns 200 metros da mata ouvimos as primeiras rajadas de pistola-metralhadora, de um grupo de cinco ou seis que deviam estar empoleirados no cimo das palmeiras. Sempre o mais abaixados possível e fazendo fogo de vez em quando, para nos protegermos, lá nos fomos aproximando cada vez mais. Mandámos duas ou três granadas de morteiro e uma rebentou mesmo na orla das árvores. Após meia hora de tiroteio e vendo talvez que a nossa manobra de envolvimento os pudesse vir a dominar, fugiram e nunca mais ouvimos as famosas rajadas de pistola-metralhadora, a tão característica PPSH, a costureira, pois faz um matraquear que lembra uma máquina de costura.

Depois deste primeiro incidente, continuámos a progressão atravessando a mata até encontrarmos uma estrada. Uns metros mais à frente fomos novamente alvejados por vários tiros que nem soubemos de onde vieram. Ninguém ficou ferido mas como não respondemos, tornaram a fugir, deixando-nos o caminho livre. A táctica deles foi sempre a de utilizar grupos pequenos de 5 ou 7 que, rapidamente se deslocam para qualquer lado, flagelando e fazendo parar Companhias inteiras. Como não os conseguimos ver, fogem sempre que lhes apetece. São extraordinariamente ágeis, pois por duas vezes, dois grupos deles (alguns até já usam farda camuflada) iam tropeçando nas nossas posições, mas logo que davam por isso, desapareciam com tal rapidez que pareciam eclipsar-se. Mesmo assim creio que matámos alguns.

Esta operação durou três dias, sábado, domingo e segunda-feira. O último dia foi o pior, pois choveu sempre, ininterruptamente. Actuaram mais de 900 homens e a missão que nos coube consistia em formar uma linha de cerco à volta de uma mata onde se acoitava o inimigo. Ali parados, enrolados nas capas impermeáveis que nos abrigavam da chuva que não parava de cair, por volta do meio-dia já tiritávamos de frio. Mas o pior, o que mais custou, foi o lodo e os pântanos intermináveis que tivemos de atravessar, sem qualquer esperança de amparo, sem qualquer protecção, receando a morte que nunca se faz anunciar.
Como consolo valeu-nos a habitual e sempre simpática recepção que tivemos no regresso, quando embarcámos no “Vouga”, por parte dos nossos já conhecidos companheiros destas lutas, os oficiais, os sargentos e os marinheiros daquele barco de guerra.

Tendo regressado na terça-feira à noite, bastante cansado, isso não me impediu no entanto de, após um rápido banho, fazer a barba e vestir a roupa civil, ir com os outros a um restaurante da cidade, o “Tropical”, comer a tradicional omeleta de camarão, o bife com batatas fritas e um ovo estrelado, tudo regado com a bela cerveja Sagres com que todos, Exército e Marinha, nos habituámos a confraternizar, cimentando amizades, tentando esquecer os horrores e os malefícios desta guerra.
Desta vez, quando caí na cama, parecia o rochedo de Gibraltar desabando no mar.
Descansámos dois dias, de licença e, só hoje é que fui ao Quartel ver como é que paravam as modas…

Comprei uns chinelos para a mãe e já os mandei pelo Correio. Oxalá goste! Ultimamente tem havido muita falta de aviões, de maneira que não sei quando é que receberão a encomenda.
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Nota de CV:

Vd. postes da série Cartas de:

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo
e
21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4848: Cartas (Carlos Geraldes) (2): 1.ª Fase - Maio a Julho de 1964