Meu caro António Rosinha
Antes de mais, a minha sincera afirmação sobre a completa ausência de animosidade entre nós que nem nos conhecemos, mas que tendo nascido na mesma forja histórica, muitas coisas comuns teremos e tais coisas teremos de colocar como fonte de convergência e não as outras que parecem nos separar.
Fartos de divergências deveríamos estar todos nesta longa e inclinada plataforma onde nascemos e onde esperamos morrer, ainda que com certezas seguras quanto ao fim, mas sem qualquer sobre o modo e o lugar e o tempo exactos.
E que não tivéssemos nascido aqui, os dois ou um apenas e outro noutro lugar qualquer do planeta, calhando, aqui mesmo ao lado, em Castela, com quem, pensam alguns de lá e de cá, nunca acertámos verdadeiramente as contas da separação.
Na verdade, tenho para mim que o desejo de ser feliz como foste em Angola, é comum a toda a humanidade, ainda que, em cada lugar, cada povo escolha caminhos lógicos e emparelhados na realidade que lhes deixaram avós.
Entre nós, portanto, não há grandes motivos para divergências tão importantes que possam obstar ao abraço virtual aqui, mas possível em qualquer lugar em que possamos encontrar-nos.
Não acredito que... acredites tu a sério, que em algumas coisas que disseste (e disseste poucas), eu não concorde contigo.
Sobre a barbárie, por exemplo, que foi aquela bagunça que sugeres e que não se exerceu e prejudicou só a brancos e ao seu País de origem mas sobretudo a negros e ao futuro da sua terra.
Sobre o espantoso drama de mais de setecentos mil cidadãos radicados e organizados em famílias, em cidades, em estruturas económicas e culturais crescentes e que de um momento para o outro se viram sem nada. Sem nada mesmo, além da capacidade de respirar, muitos mais desejando que mesmo isso terminasse face ao caos e à falta de futuro e de esperança em que se viram num instante.
Sobre a facilidade com que aquela gente ficou de se matar e destruir; sobre os massacres que cada facção, cada partido, cada grupo étnico (todos eles) perpetuou contra outros grupos, sem piedade e, muitas vezes mais parecendo que apenas por raiva.
E esta minha opinião não é de agora, embora hoje possa estar mais organizada e fundamentada. De facto, foi assim que a discuti em locais onde ela se discutia (mesmo em Luanda) e por isso, também me causei os meus próprios prejuízos, vistos de aqui, hoje, seguramente bem menos lamentáveis que os teus.
Não volto de novo à questão da falta absoluta que fez àquela terra, quem dela sabia muito, na agricultura e nas pescas, na indústria que finalmente começava a tomar alento, nos serviços, na cultura nova que não suprimindo a tradicional, se impunha como necessidade de desenvolvimento, na organização administrativa.
Assisti eu a muitas promessas, a muitas experiências de outra gente que se instalou sob a asa da solidariedade mas que de solidariedade muito poucos tinham como motivo, e mesmo os que tinham, de nada sabiam sobre a terra e nisso esbanjaram meios e esperanças.
E isto são factos que são indiscutíveis como factos, podendo apenas discutir-se as causas que os impôs, a história que os justificou e as perspectivas de modelos alternativos que pudesse dar-lhe outras feições e consequências.
Não julgas tu, nessa afirmação que fazes de que "passaste apenas por Angola, para trazer retornados e pouco mais".
De facto também vi morrer gente branca e gente preta, sendo que os matadores eram todos pretos e, nessa altura, mataram um ou outro branco e muitos milhares de pretos. De facto conheci gente que morreu, gente que matou, gente que morreu por ter matado, sempre ou quase sempre, numa sanha feroz e inqualificável.
Retornados eram para mim gente, seres humanos que construíam Angola como podiam, e se não construíam melhor era porque os seus dirigentes continuavam a ter uma perspectiva colonial e velha, não permitissem o verdadeiro desenvolvimento que a terra poderia ter.
E ajudei a tirar alguns das mãos dos movimentos, algumas vezes em condições dramáticas e de grande risco.
Há uma coisa, portanto, em que discordamos. Dizes que pontos de vista não discutes e... eu penso que é isso mesmo que se pode discutir, mais que os próprios factos em si próprios. Como dizes e eu concordo, cada um de nós tem o direito à sua opinião. Mas ter direito a opinião não quer dizer, ter direito a que discorde alguém e que, discordando, dê replica, sobretudo se o fizer de modo civilizado, melhor ainda, também fundamentando razões.
Os factos, são factos em si próprios, os cadáveres nos passeios de Luanda, a vida boa que portugueses levavam naquela cidade estupenda, o tal feijão com seu cozinhado e panelas, a vida nocturna repleta de casinos improvisados na Ilha e em sítios que já nem sei explicar onde eram mas vi, onde se ganhavam e perdiam somas avultadas numa noite, obrigando noivas viagens que eu sei e tu também, os cabarés, provavelmente ilegais onde a prostituição atingia níveis nunca imaginados aqui.
Ninguém poderá dizer-me que nas noites quentes de Luanda, bebendo a minha cerveja nos terraços dos hotéis, charlando com colegas noite dentro, não ouvíamos os tiros nos bairros da cidade ou que tais tiros eram apenas brincadeirinhas de gente com os copos disparando para o ar.
Pode dizer-se que essa não era a Luanda que vivia e desejava a grande maioria dos seus habitantes, gente de trabalho e de progresso, com famílias e amigos, com convívio são, e na maioria dos casos, provavelmente até capazes de aceitar alguma outra forma de organização social que melhorasse a vida de todos e desse mais igualdade.
Em relação à tua dificuldade de distinguir entre Salazar, Amilcar Cabral, Lúcio Lara, Manuel de Argel, Savimbi, Agostinha Neto, nada posso dizer porque esses são os óculos que conseguiste no penoso processo que te obrigaram a seguir.
Contudo posso dizer-te pelo menos uma ou duas coisas que os distinguem. Por exemplo, Salazar foi o homem que nunca quis universidades em Angola e quando as teve de aceitar eram "Estudos Gerais" e os outros foram gente que teve de vir para Lisboa para estudar na universidade. Por exemplo, Salazar foi o homem que nunca admitiu negociação e os outros foram os que sempre a propuseram antes da luta armada.
Um outro exemplo que nunca vi aqui tratado como a mim me parece que deve ser, que é o da falta de dirigentes brancos locais, capazes de organizar-se para reivindicar de Salazar mais autonomia e outra organização política e administrativa que lhes atribuísse um papel mais activo no processo de desenvolvimento.
Com uma ou outra excepção que não faz a Primavera, sempre se limitaram a ir vivendo no estatuto que era determinado em Lisboa e, com isso, não formaram os seus técnicos, os seus dirigentes, os líderes que poderiam mais tarde defender a sua visão das coisas, alternativas e, quem sabe, melhor futuro para todos.
Sofreram as terríveis consequências da selvajaria desatada no Norte em 61, aceitaram entrada de capitais estrangeiros que iam dividindo o bolo entre si, e acabaram em fuga dramática de 75, perdendo tudo e recusando perder também a vida.
De resto, também acho que apesar das dificuldades que as condições que o 25 de Abril criou para o desfecho da chamada descolonização, muita gente podia com outra atitude, garantir menos drama e mais dignidade na saída e mesmo evitar algumas das consequências que acabaram por desabar.
Não acredito (e isso é a minha opinião que pode ser rebatida) que tivesse sido possível comandar o principal do processo porque esse era já um prato forte só acessível aos patrões de CIA's e de KGB's.
E hoje?
Sabemos que no decurso do regresso, e nos anos que se lhe seguiram, os Governos portugueses cometeram erros graves face às conveniências nacionais dos dois Países. Erros de tal modo graves que obstaram até há muito pouco tempo relações mais concretas e convenientes para as partes. Em nosso lugar (se é justo dizer assim) tem-se instalado uma "cambada" de falsos cooperantes de todos os lugares do mundo, a maior parte apenas no objectivo do domínio estratégico politico e comercial muito do agrado da globalização do mercado.
Como na canção do Xico Buarque "Ai esta terra ainda há-de tornar-se um império colonial", é Angola ou angolanos que compram em Portugal, investem e comandam aqui importantes sectores da economia portuguesa. Esta facto, pelo menos para os que vêm no capitalismo e no mercado o deus do mundo, não deveria causar calafrios, já que, pensando como pensam, sabem muito bem que a internacionalização da economia terá sempre de levar a outras invasões, ainda que com armas aparentemente menos castigadoras. Naturalmente que, aceitando isso, e se nos reclamamos não racistas, não iremos opor-nos agora a que o tal capital estrangeiro venha de mãos negras.
Por mim, verdadeiro bota de elástico, tenho que dizer que sim, que é assustador tudo isso, porque, erradamente, talvez, acho que quem domina a economia... domina o resto e o resto é que me parece o mais importante, sejam brancas ou negras as carteira que investem.
E pronto, aqui me declaro farto do tema que em postes vários já trouxe, apenas com diferenças nas formas e nas vias de abordagem mas dando sempre no mesmo.
Mudarei de tema, se for capaz.
Por mim, não mais, senão o abraço.
José Brás
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5696: Controvérsias (61): Ser ou não ser (português), eis a questão (José Brás)
Vd. último poste da série de 17 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5665: (Ex) citações (50): Comentário ao texto de José Belo no Poste 5660 (José Brás)
Um outro exemplo que nunca vi aqui tratado como a mim me parece que deve ser, que é o da falta de dirigentes brancos locais, capazes de organizar-se para reivindicar de Salazar mais autonomia e outra organização política e administrativa que lhes atribuísse um papel mais activo no processo de desenvolvimento.
Com uma ou outra excepção que não faz a Primavera, sempre se limitaram a ir vivendo no estatuto que era determinado em Lisboa e, com isso, não formaram os seus técnicos, os seus dirigentes, os líderes que poderiam mais tarde defender a sua visão das coisas, alternativas e, quem sabe, melhor futuro para todos.
Sofreram as terríveis consequências da selvajaria desatada no Norte em 61, aceitaram entrada de capitais estrangeiros que iam dividindo o bolo entre si, e acabaram em fuga dramática de 75, perdendo tudo e recusando perder também a vida.
De resto, também acho que apesar das dificuldades que as condições que o 25 de Abril criou para o desfecho da chamada descolonização, muita gente podia com outra atitude, garantir menos drama e mais dignidade na saída e mesmo evitar algumas das consequências que acabaram por desabar.
Não acredito (e isso é a minha opinião que pode ser rebatida) que tivesse sido possível comandar o principal do processo porque esse era já um prato forte só acessível aos patrões de CIA's e de KGB's.
E hoje?
Sabemos que no decurso do regresso, e nos anos que se lhe seguiram, os Governos portugueses cometeram erros graves face às conveniências nacionais dos dois Países. Erros de tal modo graves que obstaram até há muito pouco tempo relações mais concretas e convenientes para as partes. Em nosso lugar (se é justo dizer assim) tem-se instalado uma "cambada" de falsos cooperantes de todos os lugares do mundo, a maior parte apenas no objectivo do domínio estratégico politico e comercial muito do agrado da globalização do mercado.
Como na canção do Xico Buarque "Ai esta terra ainda há-de tornar-se um império colonial", é Angola ou angolanos que compram em Portugal, investem e comandam aqui importantes sectores da economia portuguesa. Esta facto, pelo menos para os que vêm no capitalismo e no mercado o deus do mundo, não deveria causar calafrios, já que, pensando como pensam, sabem muito bem que a internacionalização da economia terá sempre de levar a outras invasões, ainda que com armas aparentemente menos castigadoras. Naturalmente que, aceitando isso, e se nos reclamamos não racistas, não iremos opor-nos agora a que o tal capital estrangeiro venha de mãos negras.
Por mim, verdadeiro bota de elástico, tenho que dizer que sim, que é assustador tudo isso, porque, erradamente, talvez, acho que quem domina a economia... domina o resto e o resto é que me parece o mais importante, sejam brancas ou negras as carteira que investem.
E pronto, aqui me declaro farto do tema que em postes vários já trouxe, apenas com diferenças nas formas e nas vias de abordagem mas dando sempre no mesmo.
Mudarei de tema, se for capaz.
Por mim, não mais, senão o abraço.
José Brás
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5696: Controvérsias (61): Ser ou não ser (português), eis a questão (José Brás)
Vd. último poste da série de 17 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5665: (Ex) citações (50): Comentário ao texto de José Belo no Poste 5660 (José Brás)