quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5644: Blogoterapia (138): Detecção de minas por picagem (Manuel Marinho)

1. Mensagem de Manuel Marinho* (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), com data de 11 de Janeiro de 2010:

Caro Carlos Vinhal.
Envio-te este texto, como sempre deixo ao teu critério a sua validade.


DETECÇÃO DE MINAS / PICAGENS

O treino dado aos soldados, já numa fase adiantada quando era já um dado adquirido a ida para a Guerra Colonial, era uma ficção, estou convencido que se houvesse treino adequado, se possível dado por militares que já tivessem passado pela guerra, ter-se-iam minorado algumas situações desagradáveis.

Assim e nas condições em que a maioria foi preparada para a guerra, é caso para dizer que todos nós fomos HERÓIS.

Lembro-me de andar uma manhã para percorrer 1km na detecção de minas de fragmentação dissimuladas no terreno compostas de fumo e serrim(?) e quase nunca detectadas, que rebentavam quando o recruta passava, accionada por um cordel, nas mãos do instrutor que assustavam quando detonadas e eram levadas muito a sério.

Picagem em terreno firme. A viatura rebenta-minas vem atrás
Foto: © Jorge Teixeira (Portojo) (2009). Direitos reservados.



Nema- Farim

No caso concreto das minas, havia os Sapadores incorporados no Batalhão que as retiravam quando solicitados para o efeito, e que minavam os trilhos por onde passava o IN, mas quem fazia as picagens, na maioria das vezes, eram os atiradores, do 1.º e 2.º GComb/1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 sediados em Nema até aos ataques a Guidaje, (quando saímos de Nema para Binta), pelo menos no nosso caso era assim, embora os Sapadores fizessem algumas acções de patrulhamento em conjunto com os nossos GComb.

As minas eram o terror que acompanhava o soldado operacional em toda a comissão, de tal modo que a tarefa de picador**, era sempre recebida com desagrado.
O factor psicológico de pisar uma mina era de tal ordem, que havia camaradas que pediam que se algo de mal acontecesse preferiam que acabassem com eles, a ter de voltar amputados.

Quando fomos (já a sério) em treino operacional de Nema até ao corredor de Lamel para as futuras protecções descontínuas às colunas vindas de Jumbembem, Cuntima e Canjambari, para irem a Farim fazer os abastecimentos, ficámos com a sensação de não termos feito bem os trabalhos de casa.

Seguíamos os elementos da 14.ª Companhia que seguiam na frente da coluna e o andamento foi tão normal que nos interrogamos como era feita a picagem.
Quando nos mandaram parar e ficar a emboscar até as colunas passarem, na ida para Farim e depois voltarem, perguntei a um elemento da 14.ª se tinha havido picagem, pois tinha sido rápida a marcha, ele sorriu e disse-me:

- As picagens são feitas mais com os olhos, se fosse como nos ensinaram nunca mais a coluna passava, vocês vão aprender isso rapidamente.

Depois nas repetidas idas ao mato para fazermos as protecções descontínuas às colunas, tínhamos de fazer a respectiva picagem até ao local onde ficávamos, até as mesmas regressarem de Farim.
Nessas picagens eram escolhidos um conjunto de cerca de 6 elementos para o trabalho de picagem do solo, 3 de cada lado na picada de modo a cobrir os espaços onde as viaturas passavam, e de facto com o hábito aprendemos a ler onde pôr os pés.
Devo dizer que era uma tarefa que nenhum de nós gostava, e das vezes em que era eu um dos eleitos, não deixava de resmungar e a minha má disposição era evidente, de nada valia andar com a HK-21 porque o alferes mandava trocar a arma com outro camarada.

Numa dessas vezes ia concentrado olhando e picando o solo, eis que ouço o toc da pica ao bater em algo, paro de imediato, e algo temeroso exclamo:

- Mina!

Com a nossa malta toda parada, avança o alferes mais um furriel, verificam a possibilidade de tirarem a mina, depois se a memória não me atraiçoa foi o furriel que com a faca de mato retirou cautelosamente a terra em volta de um pequeno objecto de forma circular enterrado no solo, não havia espoleta e depressa se deu conta que a mina era uma lata de ração de combate virada ao contrário.

Esta descoberta valeu-me, um elogio da parte do alferes que me disse em tom trocista:

- Estás a ver porque te coloco mais vezes na picagem, porque só os bons são capazes até de detectar latas!

Noutra altura um dos meus camaradas de GComb já farto de ser escolhido para a picagem, e como forma de mostrar o seu descontentamento pegou na vareta da picagem colocou-a ao ombro e avança em frente em passo acelerado perante os nossos apelos para que parasse. Lá o conseguimos acalmar, em abono da verdade devo dizer que foi um excelente operacional, mas estas atitudes eram um escape para a forte actividade operacional que havia, mas que foi compensada pela actividade pouco visível do IN devido a constante vigilância nossa no sector, com bastantes noites passadas no mato.

Depois com o aparecimento de minas anti-pica, (rebentavam ao contacto da pica) as Berliets com os sacos cheios de areia, colocados na dianteira das viaturas, sobre os seus rodados fizeram muitas as vezes de picadores, salvando muitos camaradas da morte e da mutilação.

Já agora uma palavra de apreço aos nossos camaradas condutores, que apenas com uma perna dentro da viatura para a condução da mesma, a outra ia da parte de fora, no sentido de minimizar os danos físicos se acontecia o rebentamento, quando eram projectados, havia-os na minha Companhia, mas sei que a partir de certa altura era uma prática bastante usual em toda a Guiné.
Uma palavra de sentida homenagem a todos os camaradas que voltaram para a sua Pátria destroçados por engenhos explosivos, e que me continuam a dar lições de vida, no seu dia a dia, esses são os meus Heróis.

Um grande abraço
Manuel Marinho

Mina AP (antipessoal) de petardo único e detonador, feita em madeira.
Foto: © Raul Albino (2009). Direitos reservados


Mina anticarro detectada por um pica da CART 2732 no Bironque, estrada Mansabá-Farim.

Efeitos de uma mina anticarro numa GMC ao serviço da CART 2732
Fotos: © Carlos Vinhal (2009). Direitos reservados

__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5501: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (12): Vamos ajudar camaradas em dificuldades (Manuel Marinho)

(**) 30 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4760: Pensamento do dia (17): Recordando as Picas (Jorge Teixeira/Portojo)

Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5477: Blogoterapia (137): Palavra de honra que não consigo entender (José Brás)

Guiné 63/74 - P5643: Memória dos lugares (68): Os militares eram uns tipos do caraças (Torcato Mendonça, CART 2339, Mansambo, 1968/69)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Fotos Falantes I  Foto 3 > Um alfero fula...




...  e a sua morança (Fotos Falantes, Foto 2)




... um bando de militares > Fotos Falantes II > Foto i2


... outro bando > Fotos Falantes II > Foto i5

... a famosa MG 42 > Fotos Falantes II > Foto i13


... o militar tem boina de cor e emblema esquisito > Foto Falane I, Foto 19...



.... Foto Falante I > Foto 14



... o célebre Seco Camará, picador e guia das NT, natural do Xime, mandinga (morto, mais tarde, à roquetada, em 26 de Novembro de 197o, a caminho da Ponta do Inglês) > Fotos Falantes I, Foto 15...




... em passeio turístico, armados com material do PAIGC. Até um RPG 2, que descaramento!  > Fotos Falantes II, Foto 9


Fotos: © Torcato Mendonça (2010). Direitos reservados


Caro Luís e Vinhal
(se o endereço não for este, o do Luís Graça,  avança o do Vinhal)

A titulo meramente informativo ou talvez não.
Sem titulo.
Os militares eram uns tipos do caraças.
Havia-os  de várias espécies e formatos.
Vocês sabem tão bem ou melhor do que eu.
Sabem pois.
Eu disso,  sei pouco.
Vidas...

Isto a propósito da MG...
Os militares que não eram pára-quedistas ou fuzileiros,
também usavam a dita metralhadora.
Vide Fotos Falantes II - Foto i5, i2, i13
e um bando de militares,
pouco regulares
em atavio
e armamento
- vide Fotos Falantes II
- Foto 9 (em passeio turístico),
armados com material do PAIGC.
Até um RPG 2, que descaramento.

Em Fotos Falantes I, Foto 19,
o militar tem boina de cor e emblema esquisito;
ou na 14;
o Seco na 15;
o Braimadico (Op Lança Afiada) na 9;
um alfero fula na 3
e sua morança na 2.

Ainda nas Fotos Falantes III,
Fotos 58 e 59
a HK
e uma Santinha Protectora de mosquitos e outras alimárias...

Seriam militares de Tropa Normal...
E o que é isso????
Que atavio...

Dizem
que o coordenador (?) daquele grupo
gostaria de ter uma BOFORS...
Enviem-lhe uma porra,
dá jeito aos gajos, porra.
Agora já é tarde.
Se fosse há 40 anos....
a guerra que aqueles militares, os das fotos, faziam
era pouco ortodoxa...
Melhor dizendo,  uma merda...
Mas se davam um passo atrás
era para tomar balanço...
E vai para a frente com mais força...
para trás nunca,
como dizem no Alentejo:
para trás mija a burra...ió...

Eu abraço-vos,  T M

[Torcato Mendonça]

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5642: Falando da Psico na Guiné e na sua componente política (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 11 de Janeiro de 2010:

Carlos,
Hoje envio um texto que não sei se cabe em alguma das rubricas existentes.
Trata-se de uma abordagem à componente política da guerra que, entre nós, foi comummente designada de "psico".
Sobre essa matéria afiguram-se-me muitas dúvidas e interrogações que derivam da minha experiência e venho partilhar no blogue.
Pode acontecer, até, que alguns conhecedores possam esclarecer sobre o assunto.

Para ti e para a Tabanca Grande, vai um grande abraço
José Dinis


Relativamente à "Psico"

A guerra de África, para além da belicidade implícita, também se desenvolvia na vertente política. De facto, uma preocupação das autoridades portuguesas concentrava-se na preservação das populações à influência das actividades dos movimentos emancipalistas, preocupação que, agora, apreciada à distância de 30/40 anos por estudiosos estrangeiros, atingiu objectivos muito satisfatórios.

De facto, quer em Angola, quer em Moçambique, durante o período da guerra, assistiu-se a crescendos económicos e sociais absolutamente notáveis. Desenvolveram-se infraestruturas, expandiu-se a Administração Pública, o ensino, a rede assistencial. A par disso, também as actividades privadas, da agricultura à industria, do comércio aos serviços, conheceram forte incremento, do que resultou um exponencial crescimento da mão de obra, alguma dela já com requisitos de especialização. Concomitantemente, aumentou a produção de riqueza. Por outro lado, cresciam e modernizavam-se os agregados populacionais e, é importante acentuar, harmonizavam-se as comunidades multi-raciais.

Na Guiné, porém, região de aparente parcos recursos, para além da exploração agrícola e do corte florestal, não se registou especial desenvolvimento em outras actividades, com excepção para o comércio animado pelo fluxo migratório de militares. Socialmente também não se notaram grandes progressos. O território também não foi apetrechado com equipamentos de monta, além de registar um tremendo deficit na capacidade para produzir energia.

Com estas condicionantes, a política designada "Por uma Guiné melhor", que o General Spínola promoveu como objectivo maior na preservação da fidelidade das populações ao interesse português, consubstanciava-se no proteccionismo daquelas, em áreas tão importantes como o suporte alimentar, a prestação de cuidados médicos e medicamentosos e, não menos importante, no incremento do prestígio das autoridades tradicionais, pela via da realização de congressos do povo, e o regular patrocínio de visitas religiosas a Meca.

Qualquer uma destas acções, isoladamente, se não seguissem uma política integrada, pouco valor teriam para o objectivo mais importante de cimentar a união do território pela fidelização dos povos, mais a mais, considerando a multiplicidade de raças naquele mosaico regional. No entanto, parece que não foram criados mecanismos dinamizadores e consecutivos para aqueles propósitos.

Para a prossecução desses objectivos, e na ausência de anteriores estruturas civis, passaria a caber à tropa um importante papel no suprimento daquelas necessidades, competindo-lhe a prestação assistencial às populações, bem como o fornecimento de alimentos, quando o clima de guerra era impeditivo das normais actividades de agricultura e pastorícia. Para além disso, devia ser feito algum esforço na área do ensino, condição essencial para a ligação dos povos autóctones à potência dominadora. Em boa verdade, não tenho a certeza de que essas políticas tenham sido bem organizadas, e que a tropa, nomeadamente a de quadrícula, tenha sido suficientemente sensibilizada e mobilizada para o efeito.

Devemos ter em conta que, naqueles tempos, era escassa a informação. Na Guiné não havia jornais, havia uma estação de rádio, não havia televisão. As populações, como a tropa, tinham, assim, como único veículo informativo, a audição de programas rediofónicos, sendo que as populações atendiam mais às emissões do Senegal e outros países limítrofes, enquanto a tropa ouvia o Pifas. Eram fracos e de reduzida audiência os serviços noticiosos, e praticamente nulos os de informação.

Assim sendo, e porque as autoridades portuguesas deviam conhecer a dificuldade, parece-me que a forma de a suprir, teria sido através da emissão de directivas de doutrina, informação e acçao, difundidas para as unidades militares, que empreenderiam as desejadas e coordenadas acções em todas as frentes. Essa forma de coordenação, teria que ser, posteriormente, devidamente fiscalizada na forma como teria sido concretizada, para os necessários ajustes, sempre que necessários.

Ora, do meu periscópio, tais medidas não aconteceram, e o programa "Por uma Guiné melhor" coxeou em vez de andar. Digo do meu periscópio, que é do meu ponto de vista, na medida em que na zona leste por onde andei, não vi, para além dos cuidados de enfermagem, e da tímida e discutível acção dos reordenamentos, qualquer obrigação ou estímulo relativamente à convivência e melhoria de condição das populações locais e autoridades tradicionais, por força de acções concertadas pela presença militar. Desta letargia resultou uma grande ineficácia na promoção da política de integração e fomento que seria desejável para o território.

De facto, na minha Companhia, a CCaç 2679, não tenho conhecimento que tenha sido lida ou discutida qualquer directiva sobre a matéria em apreço; também não aconteceu qualquer reflexão relativamente ao relacionamento com as populações; nem sequer a preocupação de fazer funcionar uma escola onde fossem ministrados conhecimentos primários para ler, escrever e contar, tanto para a tropa que deles carecesse, como para os jovens locais, sempre curiosos e com vontade de assimilar conhecimento, do que resultou uma vivência de costas voltadas, e a percepção, para os mobilizados, de que a "psico" constituía um mecanismo protector dos pretos e punitivo para os brancos, denegrindo-se nas bases a concepção política.

A confirmar-se a incongruência, isto é, que a estranha ausência da minha Companhia a integrar uma política comum a todo o território, com vista à promoção social, desenvolvimento económico e apoio à actividade da população, não foi prática isolada, antes o retrato extensivo à maioria das unidades militares, somos obrigados a concluir que o General Spínola, e, eventualmente, a sua entourage, comportou-se como um demagogo inane, referindo-se mais para os orgãos metropolitanos, do que preocupado em executar localmente, promovendo a sua imagem, talvez com outros objectivos.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5614: História da CCAÇ 2679 (32): Reflexões sobre Tabassi e o mau relacionamento com o Trapinhos (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P5641: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (3): O nosso Cabo Enfermeiro José Botas

1. Mensagem do nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), com data de 8 de Janeiro de 2010:

Caro amigo e camarada de armas.
A partir de agora, se não virem inconveniente vou enviando uma série de apontamentos, uns mais sérios e outros mais cómicos, no fim o que de real se passou no dia a dia de uma Companhia.

Também tive a oferta de umas folhas de um jornal dos Aguias Negras de 1964, com artigos com interesse e que mais tarde irão seguir.


Notas soltas da CART 643 (3)

O nosso Cabo Enfermeiro José Botas


Um militar que era considerado por todos. Quem não se lembra do 1.º Cabo Enfermeiro José Botas, natural de Coimbra, moço sempre alegre e bem disposto, dando ânimo a todos os que recorriam ao posto de socorros? Infelizmente já não se encontra entre nós, faleceu vai para 15 anos.

O Botas durante a sua comissão, pode-se dizer, foi um mártir, por diversas vezes sofreu ferimentos em emboscadas, sempre com estilhaços de granada de mão, que iam fatalmente ter com ele e sempre nas costas que eram a prova.

Mas a história que vou contar nada tem a ver com o IN.

Em certa altura aterrou um Dornier 27 em Bissorã com um médico dentista, mais a sua cadeira tradicional e o seu ajudante, para passar revista às dentuças do pessoal.

Claro que o Botas, como era o Cabo Enfermeiro e o serviço do Médico seria executado no posto, disse logo em voz alta aos camaradas que já se encontravam em fila:

- Rapaziada eu sou o primeiro, porque ser 1.º Cabo Enfermeiro é um posto.

O Médico mandou avançar e eis que lá vai o Botas, mas como tinha na frente três dentes em avançado estado de cárie, o médico não esteve com meias medidas e sacou-lhe logo os respectivos.

A debandada foi repentina e de tal ordem que a fila desfez-se quase por completo. A risada foi geral e durante bastante tempo os companheiros diziam no gozo:

- Ó Botas como és um posto, não queres ser o primeiro outra vez?

O Botas depois de passar à disponibilidade sofreu bastante, nunca foi reconhecido como deficiente nas diversas Juntas Militares a que recorreu, processo conduzido pelo sempre grande amigo Sargento Bajouco, vivia miseravelmente com a mãe muito velhinha, porque a sua coluna não o deixava trabalhar.
Mais tarde eu e o Bajouco ainda o ajudámos económicamente, e num encontro da Associação de Amizade do Bart 645 todos se prontificaram a ajudá-lo, mas em vão, porque a morte entretanto o levou.

Até um dia grande amigo.
Rogerio Cardoso
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5630: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (2): O César e o Capitão Silveira

Guiné 63/74 - P5640: Canjadude, a chegada de um periquito (1): De Lisboa a Gabú (José Corceiro)

1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 10 de Janeiro de 2010:

Caro Luís Graça, Carlos Vinhal e Colaboradores, Boa Tarde
Envio este trabalho caso queiram postar.
O título pode ser CANJADUDE, A CHEGADA DE UM PERIQUITO, este ou outro que achem adequado. Logo que tenha a palavra-chave Canjadude tudo OK.

Boa semana de trabalho, um abraço para vocês e para todos os tertulianos. Haja saúde.
José Corceiro


INTRODUÇÃO

O que escrevi sobre o passado, praticamente foi transcrito dos apontamentos que tenho da época, alterei alguns tempos verbais, algum discurso e adequei alguma adjectivação, de forma a torná-los contextualizados; excluí passagens para não tornar o documento tão maçudo. Já passaram mais de 40 anos desde que escrevi os apontamentos, que serviram de apoio e referência para escrever este artigo. Os apontamentos têm estado arrumados e esquecidos, sem justificação alguma, a não ser desinteresse. Após o meu regresso, excluindo, 3 ou 4 meses, após a minha vinda, que mantive correspondência regular com alguns amigos, que continuaram na Guiné e um telefonema feito há 30 anos, não tive mais contactos (não os tinha) com camaradas do meu tempo embora não tenha havido razão e motivação para este comportamento. Ainda não há um mês é que acidentalmente, na “Net”, descobri o José Martins.


CANJADUDE, A CHEGADA DE UM PERIQUITO (1)

Somos obra moldada por diversas condicionantes, meio sócio-económico, família, ambiente, amigos, experiências… e hereditariedade. Porém, acho que o meu Genoma humano, não trouxe mapeado o código belicista, eu tenho os 46 cromossomas, sendo um emparelhamento XY, como todo homem tem, mas predicados armíferos e destreza militar, não me cativam, não nasci para ser combatente guerreiro, embora saiba que todos somos por natureza animais selvagens à nascença. Mesmo assim, fui parar a uma guerra e não sei onde nem como, arranjei forças para levar a minha missão até ao fim, ainda que não tivesse tido necessidade de disparar uma arma no teatro de guerra.


Uma das necessidades primárias dos seres vivos é a sobrevivência

Contrariando o psíquico e o somático consegui força e aprumo para chegar a bom porto e estar agora aqui.
Estava a meio da especialidade de transmissões, BC 5, quando recebo a notícia (08-02-1969) a dizer que no dia 4 de Fevereiro de 1969, o meu tio, Francisco Vaz Silva, irmão da minha mãe, praticamente com a minha idade, tombou em combate em Angola, Zala, BCAV 2854/CCAV 2431. O meu tio veio de França, voluntariamente, para cumprir o serviço militar. Da minha terra tombaram dois mancebos em combate no Ultramar, meu tio foi o primeiro. Era tio, amigo e companheiro, fomos criados juntos, até andámos na mesma escola, brincámos à xoina e ao pião.

Em 2 de Maio 1969, recebi a reconfortante notícia que estava mobilizado, rendição individual, para a Província da Guiné.
Fui para a minha terra, gozar os 10 dias da praxe devido à mobilização. Por recear que a minha família viesse a saber, não tive coragem de contar, a quem quer que fosse, que estava mobilizado para o Ultramar, pode não ter sido a melhor opção, eu é que estava no palco, e ponderando, pareceu-me a mais razoável. Tinha a família toda de luto e destroçada. A minha avó passado meia dúzia de meses faleceu, relativamente nova, com menos idade do que eu tenho agora, tendo contribuído a morte do filho para esse fim. O meu avô, sentia uma certa culpa por ter incentivado o filho a regressar de França, para cumprir o serviço militar, ainda que, para tentar ocultar e minimizar o seu sofrimento, dissesse que ele tinha morrido em defesa da Pátria.

O funeral, do meu tio, só se realizou em 23 de Junho de 1969, já eu estava na Guiné. Passaram mais de quatro meses, após a sua morte até se realizar o funeral, sem que entidade alguma tivesse tido a amabilidade de dar uma justificação para esta dilação de tempo, embora tenha havido esforços do lado da família, para obter informações; a família continuava a sofrer em lume brando!

Campa de meu tio na sua terra natal, Vale de Espinho, Sabugal.

Em 24 de Maio 1969, por volta do meio-dia, deixo o Porto de Lisboa no N/M Niassa, rumo à Guiné. Foi emocionante e comovente, ver aquela moldura humana de familiares e amigos a despedirem-se. No cais, eram uns com lenços nas mãos a acenar, outros com lenços nos olhos, no nariz, na boca, outros deitavam as mãos à cabeça, enquanto outros apertavam a barriga, cada familiar e amigo expressava queixume e desespero com o sentimento de gesto diferenciado. Um quadro impressionante que me fez cogitar e questionei-me:

- Será, que é a atitude mais acertada, eu empenhar-me a defender a Pátria e a Bandeira neste caso?

- Será, que têm razão os que desertam, como fizeram alguns da minha terra?

Fiquei confuso, ao ver tanto rosto carregado de tristeza, fisionomias que transpiravam sofrimento e mágoa e, pensava:

- Não será esta expressão de dor uma manifestação de revolta colectiva amordaçada, e estão aqui os familiares a despedir-se dos seus ente queridos, como que a implorar, alertar e sensibilizar, os responsáveis do País, para ver o que estão a fazer à "mocidade"…?

- Se a minha família soubesse que eu estava de partida, também estariam aqui com este pranto? Estas e outras dúvidas apoderaram-se do meu pensamento…
Fiquei esmagado, senti-me qual neutrão, quando se dá a explosão da bomba atómica, insignificante!

Como era rendição individual, no barco, não tinha laços de proximidade com ninguém. Não havia conhecidos. Fui escalado para ficar responsável, por um grupo de dez homens para juntamente com dois, irmos buscar a alimentação à hora das refeições. Após a distribuição da mesma, cada um arranjava o melhor local onde podia comer, era no chão, nas escadas, onde houvesse um buraquinho, era a lei do desenrasca, mais parecíamos uns indigentes. Quanto a dormir e higiene, o mínimo que se podia dizer é que eram condições desumanas, era uma promiscuidade!

Antes de passar pelo Funchal, segundo dia de viagem, comecei a enjoar, era o conflito do meu sistema nervoso para-simpático com o simpático, estava instalada a guerrilha, durou até à Guiné.

Dia 29 de Maio 1969, por volta das 21.00 horas, cheguei ao Porto de Pidjiguiti em Bissau, só desembarquei dia 30. Levaram-me para o DGA, onde logo que cheguei, quis a minha fada madrinha que encontrasse, por mero acaso um amigo, tínhamos estudado juntos. Não me deixou mais. Escrevi, e pedi desculpa aos meus Pais pelo que tinha acontecido, assim como a outras pessoas a quem devia esclarecer e informei que estava tudo bem. Nestes três ou quatro dias, que estive em Bissau, tinha que estar presente na parte da manhã para responder à chamada e saber se havia transporte para o meu destino. O meu amigo, arranjou-me lugar para dormir, sossegadamente, senão tinha que dormir ou numa viatura ou no chão, servindo a bagagem de cabeceira, como muitos estavam a fazer, aparecendo quase todos cheios de edemas das picadas dos mosquitos, eram aos milhares e não resistiam à tentação de uma sugadela de sangue fresquinho de periquito.

Nestes dias, praticamente, não dei despesa ao Exército, só os transportes, do DGA para Bissau e regresso. Para descomprimir e fazer uma purgação de exultação, assim como libertar energias negativas, o meu amigo e outro amigo dele, levaram-me a ver, e não só, umas lavadeiras, numa bolanha, relativamente perto do DGA, não sei bem o local exacto, quando se ia de Bissau para lá, era lado direito.

Sou por natureza bucólico, encanta-me o campo, a paisagem a floresta, fiquei surpreendido, havia contraste com o espaço árido entre o DGA e Bissau. Além disso, foi agradável ver as lavadeiras, algumas completamente nuas, uma mais atrevida e desinibida, vendo o nosso olhar maroto e malicioso, aveludado de concupiscência, dirigiu-se ao meu amigo nestes termos:

- Bu mamé é puta, sinon bu cá tinha nascido.

Não sei se será algum provérbio guineense, mas foi oportuno, nunca o esqueci. Para o meu íntimo, estes momentos a que vinha assistindo, já eram reveladores do fosso cultural entre nativos e metropolitanos, começava-me a aliciar a idiossincrasia e a genuidade do povo guinéu, despido de formalismos e preconceitos; para mim era pureza, esplendor natural, como que um ode à criação. Logo ali, se iniciou mais um despertar, por um lado a intuição, por outro o raciocínio, comecei a ficar sobressaltado e a entender que era outra cultura, outra forma de ser e estar na vida, eles estavam no seu habitat. Só havia que aceitar e respeitar eu estava desintegrado, sou invasor!

A descontracção, um pouco libertina com o meu amigo e amigos dele, coisas de mocidade, mas nada demais, foi salutar, foram pequenos nadas mas muito tonificantes e reconfortantes para o meu ego, deram-me um certo alento e ânimo, os pólos das baterias ficaram desequilibrados. No organismo vivo, tem que haver desequilíbrio para haver reacção química. Equilíbrio é morte, é parar. Assim, o meu sistema nervoso, para-simpático e simpático anuíram em assinaram um armistício. O conflito não levava a nada estava-me a descompensar e depauperar.

Dia 3 de Junho 1969, informaram-me que tinha sido colocado na CCaç 5 em Canjadude e nesse dia deixei Bissau, estrada rio Geba, rumo Bambadinca numa LDG, onde iam militares e civis como sardinha em lata. Além da massa humana, havia muita mercadoria e os civis levavam de tudo, desde alfaias agrícolas, produtos alimentares, pilões, gaiolas com galinhas e pintos, todo o tipo de animais, que confusão, até cabras iam. Sol abrasador, sombra ou lugar para sentar não havia, isto tornou-se fatigante, se ao menos houvesse um mínimo de conforto, para quem gosta de Natureza como eu, isto era um mimo, pois a paisagem parecia-me deslumbrante, só que nestas condições maçantes, não havia serenidade e predisposição para apreciar e desfrutar o meio circundante. O Geba era bastante largo e o barco deslocava-se na parte central. As margens estavam praticamente ladeadas, em toda a sua extensão, por arvoredo compacto, pareciam ser matas virgens encantadoras, eram, para mim, matas onde a pata do homem nunca tinha posto a mão, familiar, para os meus olhos, só as palmeiras, de espaço a espaço viam-se habitações.

Numa altura do percurso, começo a notar uma movimentação algo precipitada nos militares de protecção e segurança da LDG, posicionam-se em locais estratégicos, com armas apontadas para as margens, o rio era mais estreito e sinuoso. Eu conversava com o meu imaginário e o olho de soslaio, sempre atento a divisar onde me poderia escudar, não fosse o diabo tece-las, e, ia pensando:

- Será que vou ser já baptizado sem me darem a oportunidade de aprender a saltar nos galhos, pois sou periquito, tenham dó de mim, porra… deixem-me debicar alguma mancarra.

O meu pensamento, em turbilhão, viajava pelo etéreo e comecei a magicar tácticas de guerrilha e a compreender o quão fácil seria para a tropa inimiga disparar um roquete das margens e provocar uma tragédia, ou quiçá afundar isto tudo, caso tivessem a sorte para eles e azar para nós, de acertar num ponto crítico mais fragilizado; não era guerra de guerrilha?! Felizmente cheguei a Bambadinca sem que nada de maior acontecesse.

Estive dois dias em Bambadinca, (nunca mais lá passei) tive que dormir no chão, ainda não estava habituado, tinha que zelar pelos meus haveres, não viesse algum abutre mais atrevido e pensasse que aquilo estava abandonado, foi tarefa complicada, não estava integrado em nenhuma estrutura. Como alimentação, quando cheguei, deram-me uma ração de combate sem pão, no dia seguinte o comer pouco melhorou, não havia comércio onde comprar, tive que passar fome. Um militar, não sei posto, devia estar aquartelado em Bambadinca, só sei que se chamava, Azevedo, repartiu alimento do pouco que tinha comigo.


Uma das necessidades primárias dos seres vivos é a manutenção

Ao longo de toda a comissão na Guiné, o dilema e busílis da questão, para mim, foi sempre a alimentação, o meu físico ressentiu-se, tive momentos delicados, ainda que me empenhasse para minimizar o problema sem que os outros percebessem; não sentia apelativo pelo comer militar! Confesso que sou adepto da teoria comer para viver e não viver para comer, porém, aprecio os comeres mais simples, não sou esquisito nem difícil com alimentação, sou exigente sim na higiene e estado de conservação, não há um alimento que eu possa dizer não gosto, sou omnívoro completo, não me repugna por exemplo comer carne de equídeo crua, sem sal, mas temperada com vinho ou limão e alho. Já o fiz muitas vezes, na minha juventude, quando os guardas-fiscais, na minha terra, matavam algum cavalo ao perseguirem os contrabandistas. Não encontro pois, razão para toda esta repugnância à alimentação militar à época. Continua a ser intrigante, quando faço viagens ao passado e psico-analiso esse período e me vem à mente esse passado, difícil, em que existia um conflito, entre o meu psíquico e somático, com o comer militar, pondo em risco a minha manutenção, desafiando uma das necessidades primárias dos seres vivos. Tinha alimento na mesa, precisava do comer, mas não conseguia comer. Sei que são muito complexas as sinapses, nos canais infindáveis, do subconsciente com o consciente mas eu tentava compensar através da sugestão, mas os resultados foram pouco palpáveis. Acho que o comer, não era bom, mas não seria assim tão mau, pois os outros militares comiam!?

Dia 5 de Junho, saí de Bambadinca em coluna militar rumo a Bafatá, é dia de Corpo Deus, logo, Quinta-feira e feriado nacional. Durante a viagem foi sempre a cair água da grossa, a cântaros, até os cães bebiam em pé, cheguei a Bafatá, parecia um pinto, todo repassado e encharcado, até ao tutano dos ossinhos, felizmente está calor. Mais uma ração de combate, só que aqui, há onde comer fora e lá me orientei, dormir, mais uma noite no chão e ao relento.

De manhã, por volta das 6.00 horas, dia 6 de Junho 1969, sem me darem nada para comer deixei Bafatá (não voltei aqui mais) em coluna militar, rumo Nova Lamego “Gabu”. Chegado a Nova Lamego apresentei-me e encaminharam-me para uma Delegação da CCAÇ 5, onde fui recebido pelo 1.º cabo Camilo Amaro (Natural de Murça), boa pessoa, que representa a Companhia em Nova Lamego e disse-me, que em Bissau também há uma Delegação da Companhia, com um furriel e um condutor, para tratar de assuntos da mesma, mormente dos frescos alimentícios. As instalações da Delegação aqui, são simpáticas e funcionais, são fora do quartel, separados por uma rua, é uma vivenda integrada no conjunto das outras habitações, não se pode, dentro do contexto, exigir mais. A habitação, dá acesso, pelo seu interior ou por um corredor lateral exterior, a um quintal a tardoz, onde há muitas lagartixas, que sobretudo quando está calor, o sol incide nos seus corpos e o sangue aquece, digladiam-se afincada e competitivamente para alcançar a presa, essencialmente insectos ou alguma migalha que esteja ao alcance; já os machos, distinguem-se das fêmeas, pela diferença melânica (pigmento na pele, melanina), envolvem-se em confrontos e lutas fratricidas pelas conquistas das fêmeas e domínio territorial.

Para todos um Abraço.
José Corceiro

(continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5592: Memória dos lugares (64): Civis e militares em Canjadude (José Corceiro)

Guiné 63/74 - P5639: Dossiê Guileje / Gadamael (22): Construção dos abrigos, minas AP tipo Claymore, viaturas blindadas BRDM 2, as NT, o PAIGC, o nosso blogue... (Nuno Rubim)






Viatura blindada BRDM-2, utilizada pelo PAIGC em meados de 1973 no sul da Guiné: Desenho e especificações... Cortesia de Nuno Rubim (2009)


1. O Nuno Rubim, Cor Art Ref, é  um dos membros mais antigos do nosso blogue. Ele chegou até nós, no último trimestre de 2005,  por mão do Virgínio Briote. Estiveram ambos nos comandos, na Guiné, em 1966. 

O projecto museológico de Guileje acabou por se tornar numa paixão. Além de autor do diorama do quartel de Guileje, o Nuno Rubim foi também um dos oradores do Simpósio Interncional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008). Esteve duas meses na Guiné em missão de serviço, durante a guerra colonial.

É um especialista em museologia militar e em história da artilharia. É neste momento o maior investigador da história militar da guerra colonial na Guiné (1963/74) e, espera-se, que dentro em breve possa publicar, em livro, alguns dos resultados do seu trabalho científico. Congratulamo-nos por já haver editores interessados nesse trabalho (que aparentemente só interessa uma público potencialmente restrito).

Diga-se, só a talhe de foice, que ele já identificou pelos nomes mais de 3 mil guerrilheiros do PAIG, mais de três centenas de acampamentos; e que tem mais de 90 GB de informação, em texto e imagens, sobre a guerra colonial na Guiné, em geral, e sobre a região de Tombali, em particular. É um frequentador assíduo do Arquivo Histórico-Militar, que conhece como ninguém, e tem na Guiné-Bissau  fontes privilegiadas de informação (oral). É casado com a Júlia, guineense, professora, e que é um encanto de pessoa (tive o privilégio, eu e a Alice, de conviver durante uma semana com o casal Rubim, em Bissau e no Cantanhez, no decurso do Simpósio Internacional de Guiledje).

Tenho, pelo Nuno Rubim, um grande admiração, na sua qualidade de  investigador, metódico, rigoroso, crítico, incansável, E uma grande ternura pelo amigo e camarada. É, informalmente, sem nunca me pedir nada em troca (nem sequer o retrato na coluna do lado esquerdo do blogue, ao lado dos nossos editores!), o meu/nosso assessor para as questões técnico-miliatres. Tem, neste domínio, um conhecimento enciclopédico avassalador.

Reconheço que não tem um feitio fácil: não é homem para fazer fretes a ninguém, tem um elevado conceito da artilharia e dos artilheiros, não aparece nos nossos convívios, detesta que o distraiam das tarefas que ele leva, quotidianamente, a peito, que é o seu trabalho de investigação. Estoicamente, todos os dias, com gripe ou sem gripe. Arduamente, como um monge da Alta Idade Média, no seu retiro do Seixal... Donde só sai para ir ao Arquivo ou dar um conferência...

O Nuno reconhece o trabalho único, meritório, do nosso blogue para produção e reprodução da memória da guerra colonial ("Não há ninguém com este repositório colectivo de memórias no mundo, nem os Amercianos com o Vietname, ou os franceses comn a a Argélia"),,,, mas confessa que passa dias e dias sem nos visitar... O que não é grave: tem coisas muito mais importantes para fazer... De tempos a tempo é alertado, por amigos, para postes que lhe possam interessar. E nisso ele tem um enorme sexto sentido, um excepcional faro de rato de biblioteca, a intuição que é própria dos grandes investigadores...



Lisboa > Universidade Nova de Lisboa > Escola Nacional de Saúde Pública > 13 de Julho de 2006 > Visita de cortesia e reunião de trabalho do Pepito (AD - Acção para o Desenvolvimento) - na foto, ao centro - e dois dos amigos que o apoiam no seu Projecto Guiledje: O capitão Zé Neto (à esquerda) e o coronel art ref Nuno Rubim, especialista em história da artilharia (à direita). Os três eram membros da nossa tertúlia. O anfitrião fui eu. 

O Zé Neto , infeleizmente, já não está entre nós. O nosso querido Zé Neto (ex-2º sargento da CART 1613, Guileje, 1967/68, e na altura capitão reformado, com 10 anos de Macau), era o veterano da nossa tertúlia, dotado de uma invejável energia e de uma memória fabulosa. Na altura, eu só  conhecia pessoalmente o Pepito, o dinâmico e entusiástcio fundador e director executivo da AD, embora já tivesse falado ao telefone com o Zé Neto e o Nuno Rubim. E sobre este escrevei, na legenda de uma das fotos que tirei: "Nuno Rubim, ex-capitão da CCAÇ 726, Guileje, 1964/74, um dos oficiais mais condecorados da Guiné (onde fez duas comissões), hoje coronel na reforma e historiador militar. Teve a gentileza de me oferecer um das suas publicações, além de um CD-ROm com os seus trabalhos. Um dia destes prometo falar um pouco mais do currículo académico deste homem que é um poço de estórias e de cultura"...(*)


Foto: © Luís Graça (2006). Direitos reservados.


2. Contrinuando: Mandei-lhe, ao Nuno,  há dias cópias das fotos do Luís Guerreira, ex-Fur Mil da CART 2410, que também passou por Guileje (e Gadamael) (**). E isso foi um pretexto para uma troca de telefonemas e de mails.  Falaámos das viaturas blindadas, de origem soviética, BRDM que o PAIGC estava em condições de começar a utilizar em 1973 nos ataques aos nossos aquartelamentos fronteiriços, da existência (e do estranho cancelamento da produção em série, pela Engenharia) das temíveis minas AP de tipo Claymore (haveria 30 ou 40 à volta de Guileje...), da estranha retirada em 1969 do quartel de Mejo e de outros no corredor de Guileje, por decisão de Spínola, desguarnecendo completamente a defesa da fronteira sul, da impossibilidade de uma vitória militar clássica do PAIGC em 1973 (9 mil homens contra 40 mil), da tábua de salvação que foi para o Amílcar Cabral o aparecimento da artilharia pesada (dado o esgotamento da infantaria, a sangria em homens, provocada pelo prolongamento da guerra), etc., etc.

Falámos ainda da dificuldade, para os leigos, em distinguir, nas fotos, a peça 11,4 e o obus 14 que, em dada altura, guarneceram em simultâneo Guileje: a peça 11,4 tinha um cano mais comprido, e os seu alcance era maior: chegava por exemplo a Kandiafara (base do PAIGC na Guiné-Coancri). O Nuno falou ainda do papel heróico dos nossos artilheiros, completamente expostos - nos seus espaldões, desguarnecidos - contra o tiro traiçoeiro e certeiro dos morteiros... Da desregulação do obus 14, cujas tiros nunca incomodaram os homens do PAIGC que eestva em redor de Guileje... O Nuno manifestou ainda a vontade de falar com o Alf Mil Barros Moura, da CART 2410, bem como com o Fur Mil do Pel Art 15, Luís Paiva (vive em Lamego, e é membro do nosso blogue).

Aproveitou a circunstância  para lhe dizer que já andávamos com saudades dele e dos seus escritos... Prometeu-me vir cá mais vezes "assinar o ponto" ou, como se diz agora, "deixar a dedada"... Para mim é uma honra, um privilégio e um prazer publicar os pequenos/grandes apontamentos do Nuno. Como este, por exemplo, que a seguir se reproduz, com a sua devida autorização. Espero que ele nunca esqueça o endereço da nossa Tabanca Grande, o trajecto, a picada, que vai do seu retiro no Seixal até ao nosso blogue... Também sei que o temos de merecer e acarinhar. Um Alfa Bravo, Capitão Fula!... Do teu amigo e camarada, Luís Graça.


3. Mensagem do Nuno Rubim, de 12 do corrente:

Assunto - Mais noticias da Cart 2410

Caros Luís Graça e Luís Guerreiro

Obrigado pelas fotografias que agora já apresentam resolução suficiente para um melhor estudo da minha parte.

Continuo interessado em saber quando se iniciou a construção dos abrigos em cimento armado [, em Guileje,] que, a meu ver, estará relacionada com o aparecimentos dos Grad e sobretudo dos morteiros de 120 mm.

Em Gadembel os trabalhos começaram logo após a ocupação, Abril de 68. E,  de acordo com os dados que tenho (oficiais) os primeiros bombardeamentos com o 120 iniciaram-se no final de Agosto, mas é assunto ainda em aberto.
Infelizmente não encontrei nada, até agora no AHM [, Arquivo Histórico Militar]. O "processo" do BEng 447 não existe. O Cmdt da altura já faleceu ! ! ! Tenho contactado com  camaradas meus de Engenharia, também sem sucesso.

Julgo que em Guileje a construção terá começado pouco antes de Jun 69, de acordo com o que me disse o camarada José Barros Rocha.

Está também ainda em aberto a problemática da instalação das minas AP tipo Claymore, na periferia do aquartelamento, orientadas para Leste.

Luís, junto te envio cópia de um documento emanado pela 2ª Rep / Com-Chefe Guiné sobre os BRDM 2. Também existem no AHM referências ao modelo 1.

Há uma carta do A. Cabral para o Pedro Pires (Dez 72 ) a "sugerir" a utilização dos blindados nos ataques a alguns dos nossos aquartelamentos fronteiriços  no Sul. Na Net encontrarás farta documentação sobre essas viaturas.

Quanto ao abandono de Guileje,  a minha opinião já está de há bastante tempo formada: face ao manifesto e provado desinteresse sobre a gravidade da situação local (só falta apurar as razões...) do Com-Chefe, o Cor Coutinho e Lima não teve  outra alternativa senão a que tomou. Acrescento até que ainda encontrei mais documentos, inéditos até agora, que de alguma forma reforçam essa tese. (**)

Abraços aos dois camaradas,

Nuno Rubim

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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 14 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1174: Três homens de Guileje: Nuno Rubim, Zé Neto e Pepito (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 12 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5637: Dossiê Guileje / Gadamael (21): Uma especial e pública saudação cordial ao Coronel Coutinho e Lima, a quem pessoalmente ficarei grato até ao final dos meus dias (Luís Paiva, ex-Fur Mil, 15º Pel Art, Guileje, Gadamael e Bula, 1972/74)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5638: Banco do Afecto contra a Solidão (8): Humberto Duarte, ex-Fur Mil Op Esp, BCAÇ 4514/72, 1973/74, trava o seu último combate (Ana Duarte)

1. No passado dia 1 de Janeiro, recebi da Ana Duarte, esposa do nosso Camarada Humberto Duarte, ex-Furriel Miliciano do BCAÇ 4514/72, 1973/74, a seguinte mensagem:
Assunto: Humberto Duarte

Sou a Ana Duarte ou, como costumas chamar-me, Aninhas. Tentei enviar-te um e-mail, pelo site do Luís Graça, mas não tenho a certeza se te foi enviado.
É para te dar conhecimento, e para que tu, por tua vez, dês conhecimento a todos os que conhecem o Humberto Duarte, o Sargento-Mor mais antigo do Exército Português, que o mesmo trava, de momento, a sua última batalha.
Foi-lhe diagnosticado um cancro no pâncreas que, neste momento, já tem ramificações no fígado. De Outubro´até hoje, a evolução da doença tem sido galopante, sendo que a previsão médica no final de Outubro era de muito poucos meses de vida.
Se estou a dar conhecimento da situação é porque sei que o Humberto quer honras militares feitas por Operações Especiais/RANGERS e que tem o desejo que o Filipe e outro (não me lembro o nome), que fizeram o curso de sargentos com ele, em Mafra, tenham conhecimento desta situação.
Também gostávamos de entrar em contacto com o Marcelino da Mata.
Magalhães, ficas assim incumbido da missão de dar conhecimento, não só na Associação, como mesmo no quartel de Lamego e a todos os outros que achares conveniente.
Estou ao lado do Humberto, como sempre estive de há 12 anos para cá. É uma batalha muito dura, ainda mais terrível sabendo qual será o desfecho final.
Desde do início que os dois temos conhecimento de toda a situação e só queremos que haja dignidade até ao fim. No dia 10 de Junho [de 2010] lá estarei em Belém, mas infelizmente já não devo ter companhia.
Não estou a ser pessimista mas realista.

Um abraço e os desejos de um Bom Ano para ti e todos os teus,
Ana
E-mail de contacto: ana.mittermayer@hotmail.com

O RANGER Duarte, ao centro, e, ao lado esquerdo, a sua querida esposa Ana


2. Breves passagens da vida do nosso Camarada Humberto Duarte
O ex-Furriel de Miliciano Operações Especiais/RANGERS Humberto Duarte esteve no C.I.O.E./Lamego, no 4º curso de 1972.
Foi Mobilizado para a Guiné, para onde seguiu integrado no Batalhão de Caçadores 4514, 1973/74.
Tendo sido ferido em combate, foi, muitos anos depois, considerado D.F.A. por stress pós-traumático de guerra, tendo vindo a ser reintegrado nas Forças Armadas em 2002.


O RANGER Duarte (de pé ao centro com uma camisola branca), com o pessoal representativo da A.O.E. (Associação de Operações Especiais), junto ao Monumento aos Combatentes da Guerra do Ultramar, em Belém/Lisboa, num dos últimos 10 de Junho, a que ele nunca faltou, para homenagear os seus Camaradas caídos em combate.


3. Sabendo que tem apenas alguns meses de vida, e vendo a sua saúde a degradar-se dia a dia, pediu-nos que publiquemos, com toda a dignidade, a sua derradeira despedida, enviando um abraço a todos os seus camaradas.
Se alguém quiser entrar em contacto com ele, que o faça o mais rápido possível, porque ele sente que o seu tempo nesta vida está a terminar:
E-mail de contacto: morduarte@hotmail.com

Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Guiné 63/74 - P5637: Dossiê Guileje / Gadamael (21): Uma especial e pública saudação cordial ao Coronel Coutinho e Lima, a quem pessoalmente ficarei grato até ao final dos meus dias (Luís Paiva, ex-Fur Mil, 15º Pel Art, Guileje, Gadamael e Bula, 1972/74)






Fotos do Luís Guerreiro, ex-Fur Mil do 4.º Gr Comb da CART 2410  - Os Dráculas (Gadamael, Ganturé e Guileje, 1968/70) e mais tarde do Pel Caç Nat 65 (Bajocunda e Buruntuma,  1970). Desde 1971  reside em Montreal, no Canadá.

Finalmente publicámos algumas das suas magníficas fotos de Gadamael, Ganturé e Guileje que andaram por aí perdidas (*). Legendas das fotos (de cima para baixo):  Foto 16- Guileje, granadas do obus 14; Foto 15- Coluna 19 Março de1969, obus 14 existente em Guileje;  Foto 12- Cruzamento de Guileje, coluna de Gadamael , transporte obus 11.4, em 19 de Março de1969; Foto 14- Coluna, de Gadamael para Guileje, subida depois do cruzamento,  19 Março de 1969; Foto 17- Guileje, junto ao obus 14, eu e Furriel Mourato (já falecido).

Fotos e legendas: © Luís Guerreiro (2009). Direitos reservados.


1. Comentário, com data de hoje, do Luís Paiva ao poste de 11 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5627: Dossiê Guileje / Gadamael (20): Esclarecimentos sobre a retirada, em 22 de Maio de 1973: Parte II (Coutinho e Lima)


Há dois anos redigi, numa longa exposição, a versão dos acontecimentos em Guileje e Gadamael nos quais fui protagonista em 1973 (**). Conjuntamente com o alferes Luís Pinto dos Santos, que infelizmente já se não encontra entre nós, e com mais dois Furriéis (Queirós e Santos), integrei o Pelotão de Artilharia, com o posto de furriel, tendo sido colocado em Guileje em meados de 1972, aquartelamento do qual retirámos para Gadamael, cerca de 1 ano depois.

De Gadamael fui transferido para Bula já em 1974 e foi neste último aquartelamento que terminei a minha comissão em 3 de Abril desse ano.

Há uma parte das intervenções publicadas no blogue sobre o assunto por pessoas que não viveram directamente os acontecimentos, sendo que algumas reproduzem afirmações lamentáveis. Quanto aos protagonistas dos acontecimentos, constata-se que há divergência de opiniões. Todavia não me parece de todo saudável para ninguém - nem se afigura que daí decorra qualquer vantagem seja para quem for - que as opiniões reflictam um exacerbado pendor hostil e até fundamentalista.

Os acontecimentos são velhos de 37 anos (como já alguém aqui lembrou e muito bem), muitos dos protagonistas já não estão entre nós e muitos outros (hoje, pais e avós) estarão envelhecidos, provavelmente precocemente por um conflito que os desgastou e pela vida (também ela factor natural de dramas e tragédias pelos quais, todos nós, vamos paulatinamente passando).

Seria talvez salutar que se utilizassem os elos de camaradagem que se criaram num tempo difícil das nossas vidas para que as relações de sã camaradagem se sobrepusessem a tudo o mais. Muitos dos que estiveram em Guileje, Gadamael, Guidaje e outros locais complexos (sob o ponto de vista militar) da Guiné e das outras ex-colónias viveram situações extremamente dificeis e perderam amigos e companheiros nessas campanhas que são credores de todo o respeito e merecerão certamente que se ponha uma pedra sobre polémicas que só servem para nos dividir. Eu próprio recordo o Faustino, furriel, e alguns dos homens do nosso Pelotão de Artilharia (um cabo e alguns soldados), falecidos em Gadamael.

Por uma questão de consciência, devo porém terminar esta minha intervenção, que vai mais longa do que inicialmente desejaria, com uma especial e pública saudação cordial ao Sr. Coronel Coutinho e Lima, autor do livro "A Retirada de Guileje" (obra que neste momento estou a ler) que consegui rever ao fim de 37 anos e a quem pessoalmente ficarei grato até ao final dos meus dias.

Aproveito a oportunidade para apresentar cordiais saudações a todos os intervenientes no blogue.

Luís Paiva
Ex-Furriel do 15º Pelart

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Notas de L.G.,

(*) Vd. poste de 26 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5541: Memória dos lugares (61): Mais notícias da Cart 2410 (2) (Luís Guerreiro)

(**) Vd. postes de:

30 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5182: Tabanca Grande (183): Luís Paiva, ex-Fur Mil, Pel Art 15, Guileje e Gadamael (1972/73)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

Guiné 63/74 - P5636: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (8): Como fui parar ao Centro de Escuta

1. Mensagem de Hélder Sousa* (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 11 de Janeiro de 2010:

Caros amigos Editor e Co-Editores
Em anexo envio-vos uma pequena história que tem a ver com a minha ida para o "Centro de Escuta".
Através dela podemos ver como foram diferentes os tempos por mim vividos em 1971 e os que se viviam em 73, a avaliar pelo relato do M. Maia num seu comentário ao artigo do Belarmino sobre o STM.

Como tenho poucas fotos, junto essas duas em trabalhos de radiolocalização.
Numa delas estou a fazer a pesquisa da comunicação do emissor do IN em observação na ocasião e leitura dos elementos obtidos. Na outra estou a fazer a comunicação dos dados para o posto director, trabalhando com a 'chavezinha de morse'.

Um abraço
Hélder Sousa


Hélder Sousa em missão de radiolocalização


HISTÓRIAS EM TEMPO DE GUERRA (8)

COMO FUI PARAR AO “CENTRO DE ESCUTA”


Caros amigos e camaradas,
Já em tempos vos dei a conhecer como ‘fui telegrafista’ ainda antes de a Instituição Militar me indicar para vir a ser TSF, aliás, tendo em conta a excelência do Curso e dos elementos seus constituintes, melhor seria dizer, “Ilustre TSF”.

Também, aquando da minha apresentação na Tabanca, dei conta, de forma resumida é certo, e ao correr da escrita, de qual teria sido o meu desempenho nos diferentes locais e actividades por onde estive destacado.

Pertencendo ao STM, que o nosso camarada Belarmino Sardinha teve a iniciativa de ‘esmiuçar’ em Post relativamente recente, fui, nessa qualidade, enviado para Piche com a missão explícita por indicação do meu Comandante à época, também Comandante do STM, Cap. Oliveira Pinto (infelizmente já falecido) de conseguir do comando da Unidade de Piche, o BCav 2922, a construção de um edifício próprio para a instalação do Posto de Transmissões daquele local, o qual, até àquele momento, funcionava numa viatura especial mas que estava nos planos do Comando enviá-la para outro sítio.

Até aqui, nada de novo em relação ao que já relatei. Acontece ainda que tanto o Cap. Oliveira Pinto, do STM, como o Cap. Cordeiro, Comandante da Companhia de Transmissões, para além do facto curioso de serem cunhados, eram meus contemporâneos do BT (Batalhão de Telegrafistas) em Lisboa, onde fiz a Especialidade de TSF, 2.º Ciclo do CSM e eles estavam, salvo erro, como Tenentes em tirocínio. Havia, naturalmente, um reconhecimento mútuo, até porque essa época ocorreu no último trimestre de 1969, coincidindo com as ‘eleições de 69’…

Então, é preciso que se diga que aquando da nossa apresentação em Bissau (minha e dos outros 6 camaradas TSF que foram então em rendição individual) foi-nos dito que só iríamos para zonas A ou B (não sabíamos o que era, mas explicaram que as zonas C eram as mais perigosas…), daí que o facto de ir para Piche (com a tal missão) fez com que o meu Comandante me chamasse para dizer da importância da missão, da necessidade do seu rápido êxito e que, para compensar essa ida para um tal local C seria, no fim da mesma, contemplado com a colocação provavelmente em Teixeira Pinto ou Bolama.

Das peripécias ocorridas em Piche relacionadas com a missão darei conta posteriormente, importa agora, para chegar ao objectivo do tema de hoje, dizer apenas que cheguei a Piche salvo erro a 10 de Dezembro de 70 e em 1 de Abril de 71 enviei a mensagem “Posto concluído. Solicito autorização ida a Bissau”.

A meio de Abril lá fui, com a tal viagem que nunca se esquece, coluna até Nova Lamego e depois Bafatá, Bambadinca e Xime (com a particularidade de nesta última parte, por ser o mais graduado ‘a bordo’, me terem responsabilizado pela boa entrega de 4 urnas) e depois uma viagem na ‘Bor’ até Bissau, a que já fiz referência em texto anterior.

Ao passar por Bambadinca estive com um dos recentes ‘atabancados’ o Fur Mil TSF Vítor Raposeiro, do curso anterior ao meu, e que me disse que na véspera, 14 de Abril de 71, tinha havido um forte ataque a Catió de que resultou, entre outros, ferimentos no Fur Mil TSF Nélson Batalha.

Regressado a Piche para as tarefas de instalação de equipamento, sobreposição com o meu substituto, etc., voltei finalmente a Bissau com a missão encerrada depois do meio do mês de Maio.

É aqui que entra o meu espanto por aquilo que o nosso ‘bardo do Cantanhez’, Manuel Maia, relata nos comentários que fez ao artigo do Belarmino, em que confessa que esteve quase, por ‘cunha’, a ir parar ao “Centro de Escuta” e só não foi por haver uma ‘cunha mais poderosa’…

Ora bem, para além de também, como ele, me congratular pelo facto de tal não ter ocorrido, pois provavelmente não teria havido inspiração para os magníficos poemas com que já nos brindou, devo dizer que, comigo passou-se praticamente o inverso.

Esclarecendo, digo que o desenvolvimento da “Guerra Electrónica”, com a ‘escuta’ em fonia e grafia das transmissões do IN, bem como acções de radiolocalização, escuta e gravação das emissões das rádios dos países vizinhos (Senegal e Guiné-Conacri), gravação de outras comunicações em francês (ORTF, Voz da América, BBC, etc.), acções de ‘empastelamento’ e controlo do mesmo das emissões do PAIGC, captação de emissões em telex de diversas agências noticiosas, etc., etc., tinha tido o seu grande impulso enquanto estive em Piche.

Por esses tempos os Fur Mil (é claro que só estou a falar destes, porque relativamente ao restante pessoal que dava corpo ao trabalho, não devo adiantar muito por falta de conhecimento de causa directo) Eduardo Pinto e José Fanha, que tinham chegado à Guiné comigo, não foram para o mato e estavam a ter uma vida verdadeiramente difícil nesse desenvolvimento da “Escuta” pois tinham serviço permanente de turnos, do qual saíam para fazer radiolocalização, voltar ao turno da “Escuta”, sair para fazer serviço de Sargento-de-Dia à Unidade, voltar ao turno, etc., etc., mas lá iam aguentando debaixo da ameaça de “vais p’ró mato”.

Como se devem lembrar do que o Belarmino escreveu, nós, STM’s, quando ‘colocados em qualquer quartel ou aquartelamento da Guiné não dependíamos do Comandante do Batalhão, nem de qualquer Comandante de Companhia, éramos ali colocados pelo Agrupamento de Transmissões (quando fui para Piche este Agrupamento ainda não tinha sido criado) e dele ficávamos dependentes, embora sujeitos às normas estabelecidas dentro desse quartel, até sermos substituídos’.

Ora bem, então. Quando terminei a missão e procurei saber junto do meu Comandante qual o destino reservado, se Teixeira Pinto se Bolama, ele, compreensivelmente pouco à vontade, disse-me que me devia apresentar ao Sr. Cap. Cordeiro da Companhia de Transmissões pois estava a fazer falta na “Escuta” e precisavam lá de mim.

Estão a ver a situação?

Por um lado eu ‘vinha do mato, duma tal zona C’, que era um papão para aqueles desgraçados que estavam em Bissau e que de lá não queriam sair. Pelo mesmo lado, eu sabia da ‘qualidade de vida’ que eles tinham em Bissau, na “Escuta”, e sabia da relativa tranquilidade disciplinar que tinha vivido no mato, fora, é claro, das ‘outras coisas’ inerentes à permanência em local sujeito a flagelações, ataques, emboscadas, etc., para além da angústia partilhada com quem tinha tarefas bem mais perigosas. Por outro lado, ainda, tinha a meu favor uma promessa não cumprida, por parte do meu Comandante…

Apesar do meu constante e veemente protesto fui mesmo apresentar-me ao Senhor Capitão Cordeiro (a última vez que o vi era Tenente Coronel mas já lá vão uns bons pares de anos…) sendo que se estabeleceu uma verdadeira conversa surreal.

Vê lá, amigo Maia, as diferenças entre 71 e 73.

O Senhor Capitão diz-me que tenho que ir para a “Escuta”, pois tem pouco pessoal e eu faço lá falta!

Eu respondo-lhe que “quero ir para o mato”, que pertencia ao STM e não à Companhia de Transmissões, que tinham prometido compensar-me com descanso devido ao êxito de minha missão e não com ‘trabalho escravo’.

O Senhor Capitão não se deixa impressionar (obviamente) e diz que tenho que fazer uns testes para poder ir para a “Escuta”.

Respondo-lhe que não vale a pena fazer os testes porque não tenho qualificações e, além disso, “quero ir para o mato”, pertencia ao STM e não à Companhia de Transmissões, que tinham prometido compensar-me com descanso devido ao êxito de minha missão e não com ‘trabalho escravo’.

O Senhor Capitão diz que os testes consistiam essencialmente em saber o que eu sabia de francês e inglês, pois isso era necessário.

Respondi que, quanto a isso, não sabia nada e que “queria ir para o mato”, pertencia ao STM e não à Companhia de Transmissões, que tinham prometido compensar-me com descanso devido ao êxito de minha missão e não com ‘trabalho escravo’.

Sem se perturbar (garanto que já várias vezes ‘visualizei’ a cena e não deixo de gabar a paciência que ele teve) o Senhor Capitão inquiriu:

- Aqui na tua ficha diz que tens a frequência do 2.º ano do Instituto Industrial…
E eu disse:

- É verdade, mas “quero ir para o mato”, pois pertenço ao STM…”

Interrompeu-me e em jeito de consequência do que tinha dito antes adiantou:

- Então, isso quer dizer que, para entrares no Instituto Industrial, tiveste que ter dado francês e inglês…”

- Pois, - disse eu, - mas isso foram só umas noções escolares, não tenho prática” e além disso “quero ir para o mato”.

O Senhor Cap. Cordeiro arrematou:

- Está feito o teste. Vais para a “Escuta”.

Bem, aqui já não me podia recusar, estaria sob alçada disciplinar por desobediência a ordens mas, dadas as circunstâncias envolventes e o facto de comigo não poder resultar a ameaça de ‘vais p’ró mato’, foi possível ‘negociar’ condições para essa ida para a “Escuta”, em que a mais importante foi a de que não haveria serviços à Unidade, só “Centro de Escuta”, o que foi aceite para bem de todos os que os por lá desempenhavam funções.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil TRMS TSF

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5568: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (25): 'Ousemos lutar para ousar vencer' (Hélder Sousa)

Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5296: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (7): Mascotes e animais de estimação e/ou companhia - Os gatos….

Guiné 63/74 - P5635: Agenda cultural (54): Convite para o lançamento do livro O Ninho, de Alexandra Almeida Reis (Manuel Reis)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Reis (ex-Alf Mil da CCAV 8350, (Guileje, 1972/74), com data de 10 de Janeiro de 2009:

Caro Vinhal:
Quero agradecer-te o teu comentário elogioso em meu nome e em nome da minha filha sobre o livro que ela vai lançar no dia 16.
Já agradeci ao Vasco esta brincadeira agradável*.

Aqui vai o convite extensivo a toda a tertúlia que, desde já, agradeço a sua publicação.

Um abraço.
Manuel Reis


CONVITE PARA O LANÇAMENTO DO LIVRO "O NINHO", DE ALEXANDRA ALMEIDA REIS



O lançamento do livro terá lugar no Restaurante Bar Capitão Gancho, em Esmoriz, dia 16 de Janeiro de 2010, pelas 17:00 horas.

Editora - Chiado Editora

Apresentador, Rui Moço


Bar Capitão Gancho
Travessa da Barrinha, 195
Esmoriz

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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5620: Agenda cultural (53): Lançamento do romance O Ninho, de autoria de Alexandra Almeida Reis (Vasco da Gama)

Guiné 63/74 - P5634: Blogues da Nossa Blogosfera (31): Tabanca dos Melros - Ex-Combatentes do Ultramar Português de Gondomar (Jorge Teixeira/Portojo)

O nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo) (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), enviou-nos notícias do segundo encontro de camaradas (primeiro deste ano), da recentemente criada Tabanca dos Melros, ECUS's - Encontro de Ex-Combatentes do Ultramar Português, sediada no Restaurante Choupal do Melros, em Fânzeres, Concelho de Gondomar.

Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, 
Jumbembem, 1969/71

Esta Tabanca foi criada em Dezembro de 2009, impulsionada pela ideia do outro nosso camarada Carlos Silva, advogado, natural de Gondomar, que mesmo vivendo na grande Capital, não esquece o seu concelho natal e os amigos/camaradas que por lá tem.

A referida reunião teve lugar no dia 10 de Janeiro passado e deu origem ao Poste 8* do Blogue desta Tabanca.

No aconchego quente de ambiente e de camaradagem, realizamos o segundo encontro dos Ecu's na bela Tabanca do Choupal dos Melros, do nosso mestre de cerimónias e camarada Gil Neves, a quem pusemos a cabeça à roda, pois não sabia com que contar. Fêz-lhe lembrar tempos antigos quando sobrevoava as bolanhas da Guiné e o famoso slogan da EPA "Nunca se sabe"...

Um aspecto da sala de convívio.

Blogue Tabanca dos Melros que pode ser visitada em http://tabancadosmelros.blogspot.com/

Fotos retiradas da Tabanca do Melros

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2010 do Blogue Tabanca dos Melros > P.8 - 10.1.2010 - A nossa primeira reunião do ano.

Vd. último poste da série de 28 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5556: Blogues da Nossa Blogosfera (30): Do caos ao cosmos, extensão de Reflexos e interferências (Regina Gouveia)