quinta-feira, 8 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6698: José Corceiro na CCAÇ 5 (14): Emissor receptor AN/PRC-10

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 5 - Gatos Pretos, Canjadude, 1969/71), com data de 6 de Julho de 2010:

Camaradas,

Achei piada à foto do Sousa de Castro com o E/R AVP-1, no Convívio da Tabanca Grande.
Esta imagem entusiasmou-me a escrever algo sobre o pai do AVP-1, que é o AN/PRC-10, que têm a mesma gama de frequências e comunicavam muito bem um com o outro.



NOÇÕES DE TRANSMISSÕES DO EMISSOR RECEPTOR AN/PRC-10
De entre os equipamentos de transmissões utilizados no TO de Guerra das ex-Colónias, o mais apropriado para comunicações com os meios aéreos, era sem dúvida o Emissor/Receptor AN/PRC-10.
Vamos então falar um pouco, concretamente, sobre este equipamento de transmissões e as suas virtualidades.
Particularmente já entraram em contacto comigo meia dúzia, de “tertulianos”, da “Tabanca Grande”, para me colocaram questões sobre o E/R (Emissor/Receptor) AN/PRC-10.
Um camarada até me disse que tem dois aparelhos em seu poder, que adquiriu no mercado, mas que não tem o folheto das descrições técnicas nem o de instruções, e perguntou-me se eu o podia ajudar.
Eu respondi-lhe que efectivamente perante o aparelho, não me seria muito difícil lidar com ele e disse-lhe também que tenho a certeza que possuo um livro, sobre transmissões, que contém as descrições técnicas e seu funcionamento, que lho disponibilizaria caso o encontrasse, só que entre os muitos livros que tenho, distribuídos por diversos locais, tem sido difícil localizá-lo e até ao momento não sei onde o livro “atabancou”.

Atendendo ao que ainda me lembro do PRC-10 e apoiando-me em alguns apontamentos que na época registei, quando tirei a especialidade de transmissões, vou tentar em traços gerais dar algumas noções básicas técnicas e teóricas, sobre as potencialidades e funcionamento deste aparelho.

Fotos 1 e 2
O AN/PRC-10 é um equipamento de transmissões portátil, com potencialidades para poder ser instalado num posto de rádio, assim como pode ser montado numa viatura ou num meio aéreo, visto vir equipado com os respectivos acessórios para as diferentes necessidades.
“ O AN/PRC-10 é um emissor receptor móvel, de frequência modelada, praticamente impune às interferências de ruídos parasitas nas suas comunicações, destaca-se a qualidade sonora comparativamente com aparelhos de amplitude modelada.
Foi concebido essencialmente, para comunicações de terra para meios aéreos e vice-versa, tem uma boa qualidade sonora e as ondas de difusão neste meio, terra ar, não têm praticamente obstáculos físicos, aos quais as ondas de frequência modelada são sensíveis.
Para comunicar em terra neste teatro operacional, plano e com arvoredo, o seu alcance é limitado, não só pela potência do equipamento emissor que é fraco em watts (0,9W), mas também devido às características das suas ondas, frequência modelada, cuja propagação é prejudicada por obstáculos físicos; para obstar a esta característica negativa, nos Aquartelamentos, há necessidade de montar um suporte físico, mastro, com altura razoável, com uma antena vertical instalada no topo do mastro, que optimiza a recepção e emissão do AN/PRC-10.
Tem ainda um outro inconveniente nas comunicações, o chamado efeito de captura, isto é, perante dois equipamentos a emitir na mesma frequência para um terceiro equipamento receptor, (central) este selecciona o sinal de maior potência ignorando o mais fraco.” (Descrição que fiz no meu artigo, Poste – 6036).
A gama de frequência do AN/PRC -10, permite-lhe que possa ser sintonizado na faixa de frequência compreendida entre a 38 e 54,9 Mc/s (Megaciclos por segundo) em FM (Frequência Modelada). A emissão é em fonia.
O Emissor e o Receptor são individuais, mas estão dentro do mesmo invólucro que se separa da caixa acondicionadora da Pilha de alimentação, (BA 279U) por dois ganchos-mola laterais.
A Pilha é uma unidade de alimentação complexa, pois tem diversos terminais, (alvéolos) com diferentes valores de tensão, (voltagem) consoante é para alimentar um ou outro componente do equipamento.
A alimentação é normalmente feita pela pilha própria, que tem uma capacidade de armazenamento de energia, que lhe permite debitar corrente por um espaço de tempo muito próximo de 25 horas em funcionamento.
Compreende-se que na função de emissor, as exigências energéticas de intensidade são muito maiores, pelo que o consumo de corrente é bem mais acentuado.

Para tirar o máximo de rendimento na emissão e recepção do equipamento e melhorar a propagação das suas ondas electromagnéticas, a antena neste equipamento tem que ser montada sempre na vertical, cuja difusão, do sinal, é uniforme em todas as direcções. pelo que não precisa de orientação.


Fotos 3, 4 e 5
O alcance de emissão do aparelho depende do tipo de antena utilizada, dos acidentes geográficos e das condições atmosféricas, (humidade relativa, nebulosidade, energia estática de ionização etc.).
É aceitável que em condições, consideradas padrão, com a antena tubular segmentada, (por secções) a maior, as suas emissões se propaguem e sejam captadas com qualidade razoável a uma distância de 8 a 10 km.
Pode acontecer, em condições excepcionais, sem obstáculos, em que até uma nuvem pode servir de espelho reflector e direccionar o sinal na orientação favorável, optimizá-lo, de forma que o alcance da onda electromagnética irradiada pela antena do emissor, possa ser captada por um receptor até cerca de 15 km de distância.
Em Canjadude, em 1971, pode-se testemunhar o seguinte: Durante uma flagelação do inimigo ao Aquartelamento, no dia 21 de Julho de 1971 ao escurecer, o fogo do IN danificou as duas antenas horizontais existentes do AN/GRC-9, que estavam instaladas e suportadas pelos ramos do embondeiro grande, que estava ao lado do campo de futebol e de uma mangueira que estava junto da Parada Alferes Gamboa. (O nome desta Parada, era uma homenagem ao Alferes Augusto Manuel Casimiro Gamboa, que segundo se dizia, já após o término da sua comissão de serviço na Guiné, perdeu a vida numa emboscada do IN, no dia 14 de Dezembro 1967, quando a coluna que o transportava de Canjadude para Nova Lamego sofreu um ataque, em Uelingará, entre Canjadude e Nova Lamego. Contava-se em Canjadude, que foi todo esquartejado no tórax para lhe arrancarem o coração, assim como o despojaram de todos os seus haveres).
Ora, com as antenas danificadas, o Aquartelamento ficou sem transmissões, utilizando o equipamento que era tradicional usar para comunicar com Nova Lamego, pois não tínhamos suporte físico para difundir e captar o sinal hertziano.
Recorreu-se ao PRC-10 que estava no Posto de Rádio, por norma utilizado para comunicar com os meios aéreos, que era servido para a emissão e recepção, por uma antena que estava instalada verticalmente no topo de um mastro com espias, que devia ter para cima de 20m de altura, que por acaso não ficou inutilizado.
Conseguiu-se comunicar com o PRC-10 com Nova Lamego, que dista de Canjadude mais de 20km. As condições de fonia, ainda que com algumas deficiências eram aceitáveis, pelo que a CCAÇ. 5, teve toda a noite comunicações com Nova Lamego.

Foto 6
O equipamento AN/PRC-10 tem três fichas terminais localizadas no painel de comandos para entrada/saída de sinal (de) e para as antenas:
SHORT ANT – Antena Curta que se deve utilizar quando o equipamento está a ser utilizado em caminhada “portátil” pelo operador, tipo mochila, e neste caso deve ser utilizado na base da antena a mola em espiral, para poupar a antena a danos causados no embate contra obstáculos e para a manter na vertical. Com esta antena as emissões dificilmente serão captadas a mais de 4km.
LONG ANT - Antena Comprida segmentada (por secções) feita de cobre, (maior condutibilidade) que devido ao seu comprimento, na ordem dos três metros, quando em movimento deve ser montada numa base elástica, para não se inutilizar ao ir de encontro contra os entraves. Com esta antena as ondas não ultrapassarão os 10km.
AUX ANT - Antena Auxiliar para permitir a localização dos emissores.
NOTA – A antena é o dispositivo físico, que irradia ou capta do espaço a energia transportada sob a forma de ondas electromagnéticas.

NOTA – A antena vertical irradia ondas electromagnéticas em todas as direcções por igual, por isso não há necessidade de orientação, como acontece nas antenas horizontais. Nestas, o plano horizontal definido pela intercepção da antena do emissor, deve formar um rectângulo quando intercepta a antena do receptor. Ou dito de outra maneira, as antenas horizontais de dois postos de rádio, para optimizar a comunicação entre eles, devem ser paralelas e devem ter um determinado comprimento em função da frequência de E/R. Mas isto de orientação, como se pode inferir é teórico, porque obrigaria o posto director a ter tantas antenas quantos os postos satélites, (dirigidos) caso a localização destes não seja em fila (linha).
Os terminais Short e Long Ant, são comuns ao emissor e ao Receptor, por essa razão também quando o equipamento está a emitir não pode receber e vice-versa, por partilharem a mesma antena e outros componentes electrónicos. O interruptor, no microtelefone, serve para fazer a comutação de recepção para emissão, dai a razão porque em transmissões quando se ia terminar a emissão, se dizia, “Escuto” que significava comutar para a recepção o equipamento.

Foto 7
Descrição do painel de comandos:
Na face topo do equipamento temos o painel onde estão localizados os comandos que são:
- Do lado esquerdo temos os três terminais de antena já atrás referenciados;
- POINTER ADJUST – Ajustamento da Referência da Escala; faz deslocar a referência da escala de frequências. Janela para poder ver o ponteiro que indica a escala da frequência.
- TUNNING – Comando de Sintonia; para fixar e fazer procura da frequência do Emissor-Receptor.
- VOL – Comando do Volume; para regular o volume da recepção.
- SQUELCH – Limitador de Ruídos; destinado a eliminar o ruído de fundo.
- AUDIO – Tomada para o Microauscultador;
- POWER – Comutador Geral; - com as posições:
- OFF – Desligado.
- REMOTE – Para o Comando à Distância.

- ON – Ligado.
- CAL & DIAL LITE - Destinado à calibração e iluminação do quadrante.
- DIAL LOCK – Fixador do Comando de Sintonia.
Nota – Tem uma placa destinada à inscrição das frequências de trabalho. (rectângulo definido na superfície do painel de Comandos.)
Nota - O interruptor que comuta da recepção à emissão está localizado no microtelefone.
Para ligar o aparelho depois de já termos colocado a Pilha realizamos as seguintes operações:
- Colocar o comando limitador de ruído – SQUELCH - na posição desligado - OFF.
- Rodar o comando de volume – VOL - para o máximo – todo para a direita.
- Colocar o comutador geral – POWER - em – ON.
- Calibrar a escala de frequência. Este paço serve para verificar se a referência da escala de frequência está correcta.
- Libertar o comando de sintonia – TUNNING – rodando o bloqueador deste – DIAL LOCK – em sentido contrário ao movimento dos ponteiros do relógio.
- Rodar o comando de sintonia –TUNNING - até ao ponto de calibração (indicado a vermelho no mostrador) mais próximo da frequência em que vai trabalhar.
- Colocar o comando de volume – VOL – na posição 10 caso o não tenha feito antes.
- Colocar o comando limitador de ruído – SQUELCH – em desligado – OFF – se o não fez anteriormente.
- Colocar e segurar o comutador – POWER – na posição – CAL & DIAL LITE – e com o microtelefone no ouvido rodar o comando de sintonia até extinguir o silvo que se ouve para um e outro lado do ponto de extinção deste.
- Soltar o comutador geral – POWER – que automaticamente volta à posição – ON.
- Se a referência do mostrador não indicar a frequência de calibração, rodar o ajustamento da referência – POINTER ADJUST – até que este fique rigorosamente sobre o ponto de calibração escolhida.
NOTA – Nunca se deve carregar no comutador de emissão-recepção do microtelefone com o comutador geral na posição – CAL & DIAL LITE.
- Soltar o comando de sintonia – TUNNIG – actuando no fixador do comando de sintonia –DIAL LOCK.
- Rodar o comando de sintonia até a frequência de trabalho ficar debaixo da referência.
- Fixar o comando de sintonia actuando em – DIAL LOCK.
- Afinação do limitador de ruídos:
- Rodar lentamente para a direita o comando limitador de ruídos – SQUELCH – até que deixe de ser ouvido no auscultador do microtelefone o ruído de fundo. Parar logo que o ruído se extinga, pois continuando, a sensibilidade do aparelho é reduzida com prejuízo da recepção. As operações anteriores correspondem à fixação e ajustamento da frequência do emissor e receptor e à ligação de alimentação.
- O aumento do volume de som só é eficaz na recepção rodando o comando do volume para a direita no sentido dos números mais elevados.
- Para emitir premir o interruptor de emissão-recepção do microtelefone e falar no microfone mantendo este afastado dos lábios 5 a 8 cm.
- Para desligar rodar o comutador – POWER – para – OFF.
- Retirar a pilha quando o aparelho estiver inactivo por período prolongado.
A explicação que acabo de fazer é em função do aparelho que conheci, na época em que fui militar do Exército Português, e apoiei-me, como é lógico, nos apontamentos que por acaso ainda possuo, que anotei quando tirei a especialidade de transmissões. Tentei explicar tanto quanto me foi possível com clareza o pouco que ainda sei.

Fotos 1 e 2: AN/PRC -10 com os diversos acessórios.
Foto 3: Operação realizada o dia 26 de Abril 1970 para os lados de Comuda. À frente do operador de transmissões, o Coias, que leva uma antena segmentada na mão, vão três carregadores civis, levando o primeiro o PRC-10 às costas, o segundo leva material diverso e o terceiro leva às costas o rádio Racal que é o aparelho que nos permitia comunicar com o Aquartelamento. Para os civis, estes fretes como carregadores, era uma maneira de poderem ganhar uns míseros centavos para irem vivendo. Já passei por aqui, em operação anterior, com este terreno todo alagado com a água a dar pela cintura.
Foto 4: Eu, a ganhar força, depois de comer a ração de combate e a reflectir para passar a escrito algum acontecimento. À minha frente está uma antena seccionada do PRC-10.
Foto 5: Eu, depois da operação de dois dias à espera das viaturas, que já pediu, para nos transportarem rumo a Canjadude. Logo à minha frente está o Racal e um pouco mais afastado o PRC-10, que tem acoplado a antena de mobilidade no mato (pequena).
Foto 6: Parada Alferes Gamboa, no Aquartelamento de Canjadude. (Na base do mastro onde está içada a Bandeira Nacional, podemos ver um tronco de madeira facetado onde estão inscritas, em sulco, as referências ao Alferes Gamboa). No lado esquerdo podemos ver o abrigo dos graduados. Podemos ver também parte do mastro espiado, que suportava a antena vertical que servia o PRC-10, cuja base estava junto do abrigo de transmissões.
O edifício funcionava como Secretaria e Centro Cripto. Em tempos foi armazém de “Mancarra” (amendoim) da Casa Gouveia.
Foto 7: Face superior do AN/PRC-10 ou Painel de Comandos de Control.

Foto 8: Posto de rádio, novo, de Canjadude. Por cima de secretária estão instalados dois AN/GRC-9 com o respectivo amplificador QR-TA-1-A. Em frente vê-se o comutador telefónico, que deve ser o equipamento BD 72 porque tem 12 linhas para serviço. O PRC-10 consegue-se identificar no lado esquerdo da secretária, (no alçado lateral) dentro duma caixa branca onde está pendurado o microtelefone. 

Foto 9: Novo abrigo de transmissões em Canjadude. Construído atrás da Enfermaria e à frente da Secretaria. O pessoal espera a chegada das entidades locais para a inauguração. Costa, Esteireiro, Vieira, Mateus (africano), e o Baioa em cima do abrigo com cartaz na mão a dar as boas vindas às entidades locais.

Foto 10: A Secção de transmissões no dia da inauguração do segundo posto de rádio de Canjadude. À frente lado esquerdo: Reis, Esteireiro, Albino Conceição, (estes três coexistiram comigo em Canjadude, assim como o meu “periquito” que não consigo identificar), Baioa, Mateus (africano), Vieira; - Atrás lado direito: Furriel Mimoso (com uma cerveja na mão a comemorar a inauguração), Cap. Gil Figueiredo Barros (hoje Coronel na reserva), António Costa, José Marques e Gomes (africano). Como podemos constatar em 1972 já havia 2 africanos na secção de transmissões.

Para todos um abraço e muita saúde.
José Corceiro
1º Cabo TRMS da CCaç 5

Fotos: © José Corceiro (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

29 de Junho de 2010 >
Guiné 63/74 - P6654: José Corceiro na CCAÇ 5 (13): Ritual do Fanado no Aquartelamento de Canjadude

Guiné 63/74 - P6697: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (7): Eu sei quem sou

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 1 de Julho de 2010:

Meus caros camarigos editores
Prosseguindo os escritos da série “20 Anos depois da Guiné, à procura de mim!” 7 que se aproxima do fim.

Um abraço camarigo do
joaquim


DEPOIS DA GUINÉ, À PROCURA DE MIM

20 ANOS DEPOIS (7)

EU SEI QUEM SOU

Os meus pés já não percorrem
os trilhos já tão batidos
tantas vezes já picados
pela ponta
dos nossos medos.
Já não vejo nos olhares
o medo que se faz coragem
quando a raiva de viver
se sobrepõe,
ao momento de morrer.
Já não me dispara o coração
com um ritmo de rajada,
quando aquele som,
surdo e seco,
me diz tão claramente
que vai haver “trovoada”.
Já não me suam os braços,
o pescoço, as mãos,
tudo enfim,
porque secaram os abraços
de quem não chegou,
ao fim.
Sinto-me assim,
como um nada,
algo desenraízado,
olhando tudo em redor,
procurando conhecer,
tudo o que quero esquecer,
que esta terra não é a minha,
ou se é,
não me parece ser.
Já não me estremece o sentir
com o som cavo do morteiro,
apenas me arrepio
com o foguete da festa,
daquele Santo Padroeiro.
Quem é esta gente?
quem é?,
que me olha sem me ver,
que me desdenha e despreza
apenas,
por querer viver.
Será esta a minha gente,
aquela que um dia deixei?,
ou é assim tão somente,
gente que não quer saber,
de me sentir tão diferente,
de ver vazio o meu olhar,
nem quer tentar perceber
tudo o que eu passei,
para não se incomodar.
Devia eu ter morrido?
Não devia ter voltado?
Seria melhor,
pensam eles,
eu por lá ter ficado,
porque assim era mais fácil,
ser rapidamente esquecido,
como morto,
e enterrado,
nessa tão distante guerra,
que não toca este país,
tão longe do seu soldado.
Eu estou bem,
não se incomodem!
Perdoem-me pela ousadia
de ter querido viver,
e mais que tudo,
regressar!
Eu parto já,
numa viagem,
para dentro de mim próprio,
onde me encontrarei,
só comigo,
e com os meus,
que ainda por lá estão,
e mais os que já voltaram,
partindo sempre partindo,
com vontade de voltar,
para novamente partir.
Julgais-me morto,
acabado,
dos vossos afectos,
desprezado,
mas ainda me estou a rir,
de cabeça levantada,
olhando-vos fundo nos olhos,
sem medo e sem vergonha,
como qualquer um de nós,
e grito-vos aos ouvidos:
eu sei quem sou,
e vós?


11.11.91
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6679: Controvérsias (92): A ficção e a guerra (Joaquim Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 18 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6615: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (6): Sem Título 3

Guiné 63/74 - P6696: Tabanca Grande (227): José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913 (Guiné, 1967/69)

Mensagem do nosso camarada e novo amigo José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913,  , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69, com data de 30 de Junho de 2010:

Caros Editores
Venho acompanhando o blogue já há algum tempo e decidi fazer a minha apresentação.

Sou José Ferreira da Silva, fui Furriel Miliciano de Op. Esp. da CART 1689/BART 1913, que esteve na Guiné entre 1967/1969.

Proponho escrever uns textos que possam ser agradáveis, recordando situações vividas na Guiné, sugerindo um nome – “Memórias boas da minha guerra”.

Talvez escreva também outras coisas mais sérias.

Junto as duas fotografias da “ordem” e, desde já, envio o meu primeiro texto – “Bife à Dunane”.

Os meus cumprimentos para todos.
José Ferreira da Silva
(Silva da CART 1689)


************

MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA

1 - BIFE À DUNANE


Para a CART 1689, a ida para as “Termas” de Canquelifá foi, ao contrário do resto da comissão, um período de quatro meses de quase repouso. Constava que “eles” iam mexer com a zona, mas isso só veio a acontecer depois de termos regressado. Já não havia combates por ali há cerca de um ano, o que era uma situação anormal e… agradável.

Entre Canquelifá e Piche havia um destacamento em Dunane. Era um posto segurança avançado, que funcionava a nível de pelotão, reforçado pelos milícias locais, que viviam lá com os familiares. Os patrulhamentos eram pequenos e os serviços eram poucos e bem distribuídos. Além disso, comia-se muito melhor, porque havia fartura de carne. Daí ser chamado “Hotel Dunane”.

Não sei por que razão, eu era presenteado, assiduamente, com um pequeno saco com ovos, que alguém vinha colocar à porta da minha “tabanca privada”. Como eu não os comia, os sacos com os ovos iam-se acumulando.
Resolvi falar com o cozinheiro para saber da possibilidade de fazer um prato especial, que baptizei de “Bife à Dunane” – bife com batatas fritas, ovo a cavalo e picles.

Surgiram, então, algumas dificuldades. Onde fritar tantas batatas? E os ovos?
Começava a duvidar que fosse possível fazer um prato tão sofisticado, mas o cozinheiro, contra o que era habitual, entusiasmou-se. Chamavam-lhe “Madeirense”, mas também era conhecido por “Badalhoco”, que o Serafim Martins Delindro, pasteleiro de profissão, na sua forma especial e acutilante de dizer, corrigia para “Senhor Badalhoco”. Era um pouco barrigudo, meio loiro meio ruivo, sempre com barba de alguns dias, usava um bigode parcialmente queimado pelos cigarros, espetado, excepto no rego do nariz, onde estava colado ao lábio; era difícil saber se seria da cerveja ou do ranho que lhe corria do nariz. Vestia uma camisa encardida, solta por cima dos calções, que se apresentavam abertos à frente, devido à força da barriga e à falta de botões. Calçava umas botas envelhecidas, quase desfeitas pelos pontapés que dava na lenha a arder e nos apetrechos da cozinha.

A frigideira para fritar os ovos foi improvisada com uma chapa com as bordas viradas à força para cima.
Quando lhe entreguei os últimos ovos já estava ele a colocar o óleo na frigideira, que estava assente em cima de uns adobes e a lenha ardia já fortemente por baixo. O “Madeirense”, sob aquele sol escaldante, com a cerveja na mão e o cigarro na outra, transpirava copiosamente.

- Já tá bom, ma Furiel Seilva. – dizia ele - E cuspiu uma “bisga” para dentro da frigideira, a confirmar que o óleo já estava bem quente.

Largou a “bazuca”, chupou a “barona” até aos dedos queimados, deitou-a fora e começou a partir os ovos, um a um, contra a borda da frigideira. Despejava-os imediatamente no óleo, mas, afinal, havia ovos em todas as fases de gestação. Havia alguns ainda bons para comer, outros eram já mais pintainho que ovo e de outros saíam pintainhos que patinhavam no óleo a ferver. O “Madeirense”sacudia-os para fora da frigideira com um graveto que apanhou do chão, gritando:

- Saie dae, filhe da piiiiuta!

E, como a cena se repetia, lamentava-se:

- Ai maezenha, que cuaralhe de sort’a menha!!!

No final ninguém reclamou do cozinheiro ou do cozinhado. Pelo contrário, todos adoraram aquele prato especial confeccionado por um cozinheiro ainda mais especial, que foi muito cumprimentado.

Silva da Cart 1689

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Comentário de CV:

Caro Silva, é caso para dizer que a coisa promete.

Sê bem aparecido nesta Tabanca que a partir de hoje partilharás com os mais de 400 camaradas e amigos que a compõem.

A tua primeira história, para uma série com um título por ti sugerido, é muito engraçada, tendo ainda por cima como interveniente um natural da Madeira.
A minha Companhia tinha como operacionais naturais daquela bonita ilha, pelo que imagino como era para vós estranho o sotaque do vosso mestre de cozinha. Mais difíceis eram de entender, quanto mais afastados fossem do Funchal. Ao tempo dizia-se, do campo.

Já agora permite-me que te diga que enquanto estivemos no BAG-2 (S. Martinho-Funchal), tivemos um óptimo cozinheiro madeirense, o inesquecível Araújo, cuja especialidade eram os bifes de atum, bem melhores que os bifes à Dunane, desculpa lá a imodéstia.

Ficamos, então na expectativa de mais histórias, destas ou mais sérias. Julgo saberes que tens no nosso blogue um camarada de Companhia, o ex-Alf Mil Alberto Branquinho que tem duas séries, uma terminada e outra ainda recente.

Deves utilizar estes marcadores para acederes, respectivamente: às tuas histórias (José Ferreira da Silva e Memórias boas da minha guerra), às do Alberto Branquinho, Não venho falar de mim, Contraponto e aos textos referentes à CART 1689.

Podes também aceder aos mapas das localidades por onde andaste, clicando nos nomes sublinhados e de cor diferente.

Posto isto, recebe um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6626: Tabanca Grande (226): Acácio Correia, ex-Alf Mil, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1973/74)

Guiné 63/74 - P6695: Memória dos lugares (89): Bafatá, Tabatô, Tabaski 2009: Não há preto nem branco, somos todos irmãos, disse a Fátima de Portugal numa cadeia de união... (Catarina Meireles)







Guiné-Bissau > Região de Bissau > Tabatô > 28 de Novembro de 2009 > A cerimónia do Tabaski... em que pela 1ª vez participaram três europeus, não-muçulmanos, duas portuguesas e um espanhol... Uma das portuguesas foi a Catarina Meireles, médica, aqui na foto (a 3ª, a contar de cima), com uma criança mandinga ao colo;  e na 2ª, partilhando a refeição)... Na 1ª foto a contar de cima, temos uma vista geral da assembleia, durante a cerimónia do Tabaski, na aldeia mandinga de Tabatô, a escassos 10 km de Bafatá, na estrada  Bafatá-Gabu. Ainda há dias o Fernando Gouveia andava desesperado para encontrar a localização exacta de Tabatô, que não vem na nossas cartas da época colonial (Será uma povoção de recente implantação ? Ou deslocalizada por causa da guerra colonial ? O João Graça, que passou lá uma noite memorável a tocar com os músicos locais, não me soube esclarecer a data da origem da tabanca; o Fernando, por sua vez, não conseguiu lá ir, quando revisitou Bafatá,  em Abril passado ).

Fotos: © Catarina Meireles (2010). Direitos reservados





Guiné-Bissau > Bissau > Dezembro de 2009 > Na conhecida e conceituada Residencial Coimbra, sita na Av Amílcar Cabral, em pleno centro: da esquerda para a direita, o João, o Mamadu (músico da tabanca mandinga de Tabatô de onde é natural o Kimi Djabaté), o Vitor (cooperante espanhol), a Catarina Meireles (médica, portuguesa, minha antiga aluna na Escola Nacional de Saúde Pública)... Os restantes cinco elementos não sei, de momento, identificá-los. O João Graça, músico e médico, interno de psiquiatria, esteve na Guiné duas semanas, em Dezembro de 2009,  tendo estado mais tempo em Iemberém (onde prestou cuidados de saúde à população local, durante cinco dias), além de Bissau, e visitado ainda a zona leste (Bafatá, Tabatô, Gabu, Contuboel...) e a região do Cacheu (S. Domingos). Em Bissau conheceu a colega Catarina Meireles.


Foto: © João Graça (2009). Direitos reservados


1. A minha amiga e antiga aluna do Curso de Especialização em Saúde Pública, Dra. Catarina Meireles, natural de Vila Verde (a terra dos lenços dos namorados ou, melhor, e segundo as  palavras da Catarina, a terra onde são as raparigas a escolherem os namorados com quem querem casar ou não ...), passou cerca de 3 meses em missão de cooperação na Guiné-Bissau, no último trimestre de  2009. Mais exactamente na Associação Saúde em Português, que está a actuar em Bafatá (Projecto  "Mais Saúde, Melhor Saúde por Bafatá").

Nesse período fomos trocando mails e eu convidei-a inclusive para colaborar no blogue, com alguns apontamentos sobre a sua estadia em Bafatá. Disse-me que estava a escrever o seu diário e que depois decidiria onde e quando publicar...

Em Outubro de 2009, escrevi-lhe o seguinte, em resposta às suas primeiras impressões da Guiné-Bissau (tinha chegado a 5):

 (...) Catarina, você representa uma geração, a do pós-guerra colonial, que está a redescobri África, nas suas misérias e grandezas… Sendo uma mulher de grande sensibilidade sócio-cultural e para mais médica de saúde pública, além de uma grande minhota, gostaria de poder publicar, no nosso blogue colectivo, Luís Graça & Camaradas da Guiné, alguns crónicas suas sobre esta sua 'viagem de imersão' na Guiné-Bissau" (...).

A Catarina respondeu-me, a 8, nestes termos:

(...) Sim, com efeito sou dessa geração. Mais interessante é o que a minha mãe constata: o meu pai escapou do Ultramar mas os 2 filhos estão em África. O meu irmão há dois anos que anda pelos PALOP e não só, como engenheiro civil de obras públicas. Confesso que ele me abriu portas por me alargar o planisférios mental. Sem medo, com confiança... a nossa geração tem se ser feita de cidadãos do mundo. (...)

Entretanto, a 1 de Dezembro manda-me um outro mail em que afirma ter necessidade de partilhar as suas emoções por ter tido o privilégio de assistir à cerimónia do carneiro, com os habitantes de Tabatô... Adorei o texto e disso-lho, na volta do correio, a 2:

Catarina:  Belíssimo texto. Você é uma mulher de grande sensibilidade, sócio-cultural. Esse fim semana foi mesmo ecuménico… Dou-he os parabéns por ter conseguido vencer as barreiras culturais, mentais e religiosas que, muitas vezes, nos impedem de comunicar com o outro… Essa tabanca é do meu tempo, mas nunca convivi com a respectiva população… Fulas ? Mandingas ? …Eu passei por Contuboel (2 meses), e o resto em Bambadinca (20 meses)… Ia com regularidade a Bafatá…


O meu filho João Graça, 25 anos, médico (acaba de entrar para a especialidade de psiquiatria, no Amadora -Sintra) vai estar aí quinze dias…Em princípio, vai trabalhar uma semana e depois vai dar um giro, revisitando alguns sítios por onde eu andei (Contuboel, Bafatá, Bambadinca…). Parte na 6ª feira, à noite… Seria interessante poderem estar juntos (em Bafatá) (...).

 Mais recentemente, e já com novos projectos de cooperação, a 18 de Junho último, a Catarina deu-me o seu OK para publicar, no blogue, o texto sobre o Tabaski, com a seguinte nota:

Este texto foi um impulso de partilha existêncial... de entre vários... Este, por acaso, tive que - por necessidade terapêutica!! - partilhá-lo... é que há coisas grandes demais para caber num só coração, numa só mente.  Deus, obrigado. (Como dizem os guineenses... eheheh)


Talvez a versão rectificada do texto, junto com fotografia, fique melhor... que acha?


Ao dispôr!!


Catarina


PS - Julga que não continuo a colaborar? Nunca parei. Constituí-me co-fundadora duma ONG e hoje mesmo recebi "material" para arrancar com projecto. E do "meu povo", continuo a receber notícias... Por exemplo, o grupo de música de Tabatô foi ao Mali gravar o primeiro CD. Se soubesse como isto representa uma vitória? Emociono-me, só de lembrar!


2. O Tabaski em Tabatô
por Catarina Meireles


No passado fim de semana fui ao Tabaski - cerimónia de imolação do carneiro (por analogia: Páscoa dos Muçulmanos).

Depois de muitas resistências, dúvidas, declinações... lá consegui que me deixassem assistir ao ritual ("eucaristia") numa tabanca perto de Bafatá, de seu nome Tabatô - muito especial, particularmente pela sua forma de vida comunitária, que assenta na música e dança étnicas. São fabulosos!

Fui com mais uma amiga (portuguesa) e um amigo (espanhol). Vestimos roupas típicas, ocupamos as posições indicadas (segundo a ordem social vigente) e imitamos tudo o que nos diziam para fazer...  E não me senti diferente... ao contrário, até me senti mais especial!

No fim do ritual, chamaram-nos (aos 3 brancos) para junto dos Homens Grandes e ajoelhámos em círculo.

Para quê? Para dar graças a Alá por esta dávida - pela primeira vez 3 brancos visitaram aquela tabanca no dia do Tabaski. Era um sinal divino de prosperidade e de vida longa (incluindo para nós!)

As explicações foram reforçadas várias vezes para que percebessemos o quão importante e bem-vinda era a visita dos 3 brancos.

Eu disse...
- Sim, 3 é número sagrado!

Eles rejubilaram com o entendimento do misticismo!

Foi-me pedido que falasse... e falei.  Pedi uma cadeia de união - corrente de mãos dadas. Expliquei como fazer e disse:
- Não há preto, não há branco, somos todos irmãos... daí esta cadeia de união.

E do meu lado esquerdo soou uma voz meiga, dum dos homens que me acolheu nas 3 vezes que fui a essa tabanca:
- Obrigado, Fátima de Portugal!

Catarina Meireles

Bafatá, 1 de Dezembro de 2009

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Nota de L.G.:

Último poste desta série > 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6683: Memória dos lugares (81): Binta, no Rio Cacheu... Quando o meu anfitrião foi o JERO, da CCAÇ 675 (Manuel Joaquim, ex-Fur Mil, CCAÇ 1419, Bissorã e Mansabá, 1965/67)

Guiné 63/74 - P6694: Notas de leitura (126): "Guineense Comando Português", de Amadú Bailo Djaló (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2010:

Queridos amigos,

Na capa do livro do Amadú Djaló, à esquerda com a mão na pistola e olhando-nos sem pestanejar, está o tenente Zacarias Saiegh, que virá a ser fuzilado em finais de 1977 num complô ainda hoje mal contado.

Quando cheguei a Missirá, em 4 de Agosto de 1968, ele era o comandante interino, o furriel mais antigo. Tivemos uma relação bastante tensa mas o respeito mútuo foi sempre mais forte.

A dupla Amadú Djaló – Virgínio Briote é um monumento de camaradagem inesquecível, um testemunho que os historiadores não poderão evitar.
 
Tenhamos orgulho pelo Virgínio e pelo caudal de imagens que o nosso blogue proporcionou a este relato pungente.

Um abraço do
Mário


Amadú Djaló a respirar no espelho de Virgínio Briote

por Beja Santos

“O meu primeiro objectivo foi perceber a escrita manual do Amadú e reescrevê-la para um português perceptível, respeitando o estilo de escrita do autor. Depois foram tardes a ler-lhe os textos, corrigir, acrescentar pormenores, cortar outros, pôr datas, nomes, locais, enquadrar as histórias, telefonar a camaradas, cruzar a informação, reavivar pormenores.

Não se trata de um trabalho exaustivo sobre os nossos anos na Guiné. Nem eu tenho arte nem o Amadú conta a sua história assim. Não há ficção, não se trata de um romance. A maior parte dos textos referem-se a contactos com o PAIGC, a combates com mortos e feridos, de um e outro lado”.

Este livro é um sortilégio, sente-se permanentemente o pulsar de uma cumplicidade de alguém que não renega a identidade ou ilude os diferentes níveis da memória e de um outro que escuta, reelabora, clarifica, adensa a trama. O produto final é brilhante, deixa perceber a intimidade do Eu e a disponibilidade do Outro. Fica-se com orgulho pela obra feita pelo Virgínio Briote, o Outro que garante um relato estuante transformado na árvore da vida.

“Guineense, Comando Português” é uma soberba colectânea de memórias, assegura a visão prismática de um fula que se orgulha das suas origens e que se releva apaziguado, propondo a todos os seus leitores guineenses que façam um esforço de reconciliação. 

Temos os ocasos da formação, a frequência da escola do Alcorão, a frequência de uma escola católica, as idas e vindas à Guiné francesa, os prenúncios da guerra, a incorporação em 1962. As origens da guerra continuam difusas, todos os protagonistas até hoje relatam uma escassa parcela dos acontecimentos: a formação dos partidos, a brutalidade no separar das águas, na decomposição e reorganização do território entre os santuários da guerrilha e as localidades fiéis à bandeira portuguesa, há uma discrição por vezes diáfana no relato dos acontecimentos que, pasme-se, leva o leitor, passados 50 anos, continuar confuso quanto às adesões partidárias, o desmoronar do espaço colonial, as tomadas de posições interétnicas. 

Este emaranhado só é possível pela continuação em propagar mitologias e iludir o rigor dos eventos, tudo por falta de historiografia amassada em documentos probos, testemunhos credíveis, assunção de paradoxos e contradições. Amadú refere-se a um tal Nino Vieira que em Junho de 1961 tinha fugido da prisão de Catió e que tinha sido ajudado por um cabo cipaio, Adulai Duca Djaló, casado com uma irmã de João Bacar Djaló, que se irá revelar como herói português. Só neste instantâneo temos a noção das dificuldades em perceber como se separaram as águas. Aliás, Amadú deixa transparecer o peso da decisão familiar e do poder do clã, determinante em tudo o que aconteceu a partir de 1961 e que continua nebuloso.

Amadú torna-se condutor, vai para o Sul, a experiência não lhe deixou muitas saudades. Segue para Farim, naquele tempo grande parte das estradas ainda eram transitáveis, o PAIGC sentia imensas dificuldades em implantar-se, as autoridades senegalesas mediam a guerrilha com imensa desconfiança. 

Depois da experiência de Farim, Amadú vai colaborar com os comandos do Saraiva, a guerrilha entra em efervescência, as tropas especiais passam a ser requisitadas para os golpes de mão mais espinhosos, caso do Buruntoni ou da região de Madina do Boé, onde Amadú é protagonista de uma calamidade provocada por uma mina anti-carro. 

A mata do Oio, a partir de 1964, abriga santuários que exigem a técnica do bate e foge, tal a capacidade de reacção de uma guerrilha que usa e abusa das asperezas da floresta. Em 65 Amadú regressa ao quartel-general por pouco tempo, outras tropas especiais estão em formação. Depois, Bafatá onde surgiram novas tensões como Sinchã Jobel, acima de Geba. 

Em 1969 dá-se a viragem com a formação dos Comandos Africanos, em Fá Mandinga. A partir daí, é o galopar da narrativa, entre sucessos e desaires, muitas perdas, premonições de adivinhos que Amadú jamais esqueceu, incursões nos santuários de resistência mais renhida como Galo Corubal, a participação na Operação Mar Verde, inúmeras viagens aos Morés, a ida a Cumbamori. 

O Eu e o Outro formam uma dupla espantosa, é um encontro lusófono que toca pelo sopro narrativo, tudo numa atmosfera singela de quem nunca precisa de se pôr em bicos dos pés, mesmo quando a tempestade dos acontecimentos podia facilitar disparos emotivos. Um só exemplo do rigor entre o Eu e o Outro:

“Saí do local onde estavam 4 ou 5 feridos e o corpo de um soldado, para verificar o andamento dos trabalhos das macas e, momentos depois, começaram os rebentamentos [ida a Cumbamori, Senegal].

Foi um inferno. Ao primeiro estoiro ninguém pensou em mais nada senão em escapar dali. Eu corri para a frente, com 7 ou 8 soldados, armados de bazucas e RPG’s, para respondermos ao fogo. Todos dispararam a vez, outros duas vezes depois saíram dos locais, porque a posição deles estava denunciada quando fizeram fogo. Sabíamos isso da instrução.
Fiquei muito satisfeito com eles, porque foi com os disparos que fizeram que travámos a contra-ofensiva do PAIGC e dos páras senegaleses.
O tenente Jamanca estava à minha esquerda, sentado, com as pernas estendidas, encostado a uma pequena árvore, parecia exausto.

– Então, o que se está a passar? Perguntei.

– Amadú, anda cá! Mata-me, não deixes o PAIGC levar-me! Mata-me, Amadú, mata-me!

– Tu não ficas, levamos-te de qualquer forma. Não ficas aqui! Descansa um pouco, Jamanca!”


Amadú vai sendo promovido, a sua folha de serviços é notável. Vai seguidamente para a CCaç 21, percorre a Ponta do Inglês, Paunca, Pirada, Piche, Canquelifá. Estamos a viver o tufão que se estenderá até ao fim da guerra. A ofensiva do PAIGC é brutal, como Amadú descreve: 

“Passámos mais tempo em Canquelifá porque o PAIGC queria mesmo acabar com o quartel e com a tabanca. Os morteiros de 120 eram em número de cinco e, como tínhamos atacado a base de Cumbamori, perto da estrada de Koldá-Ziguinchor, o PAIGC transferiu parte do material do Norte para o Leste. Copá e Canquelifá passaram a ser considerados os primeiros objectivos do PAIGC. Copá veio a ser abandonada e o pessoal que lá estava foi recolhido em Amdalai, perto de Bajocunda, com o nosso apoio e dos paras. Depois de Copá faltava-lhes conquistar Canquelifá”.

Amadú combate há praticamente 11 anos, perdeu família, amigos, inúmeros camaradas. Bateu todos os teatros de operações mais infernais. Deixa antever a evolução dos acontecimentos de 1973 para 1974. E um dia a guerra acaba, espera-o um calvário, a traição dos amigos, a perseguição. Será esse seguramente o material que Virgínio Briote, o diligente e discretíssimo Outro, terá entre mãos.

Venho publicamente expressar o meu júbilo pelo trabalho do Virgínio Briote. A Associação de Comandos incumbiu-o de uma tarefa espinhosa, o Virgínio revelou-se exemplar nesta metamorfose do apagamento em que o Outro deixa o palco iluminado a um Eu cheio de carácter, sereno, à espera que lhe façam justiça depois dos caminhos desavindos da guerra.

Enquanto lia e relia este relato inigualável recordei um retrato de genial artista surrealista, o belga René Magritte, intitulado A Invenção da Vida, datado de 1928. Alguém olha fixamente o espectador, parece pronto a desvelar o vulto encapuçado, a mostrar uma pessoa em corpo inteiro. Não sei porquê lembrei-me deste trabalho monumental do Virgínio, este corpo a corpo com o Amadú em que se inventou, a partir do maço informe dos dados, a vida de um combatente. Obrigado por tudo, Virgínio.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6689: Notas de leitura (125): O Lince de Có, de António Veríssimo (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6693: Convívios (260): Encontro do pessoal da CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72 (Mário Migueis)

1. Mensagem de Mário Migueis da Silva* (ex-Fur Mil de Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 29 de Junho de 2010:

Caro amigo:
Na esperança de que tenhas vindo revigorado de Monte Real, estou a juntar (sem esperar a publicação do meu último escrito do passado dia 20) um mini-artigo inspirado no último encontro da CCaç 2701/Saltinho.

Anexo igualmente duas fotos legendadas para ilustração do texto.
Um grande abraço,
Mário Migueis



“Olha que há coisas bonitas!...”

No passado domingo, dia 7, tive oportunidade de, uma vez mais, confraternizar com os camaradas da CCAÇ 2701, aquela que foi minha anfitriã no Saltinho, de Março/71 a Fevereiro/72, altura em foi substituída pela CCAÇ 3490.

Realizado, desta vez, num hotel da Póvoa de Varzim – a escassos 12km da meu cantinho -, o almoço reuniu mais de duas centenas de pessoas, entre ex-combatentes e respectivos familiares, e terá sido em tudo muito semelhante a tantos outros convívios periódicos de ex-combatentes que, felizmente, continuam a realizar-se por todo o país, dando provas de que o passar dos anos, por mais que force, não consegue fazer esmorecer – antes pelo contrário - os fortíssimos laços de amizade e solidariedade criados entre os nossos militares durante aqueles terríveis dois anos de sofrimento físico e psicológico. Porém, algo me tocou profundamente desta vez, fazendo-me reflectir sobre a verdadeira força, o peso, a dimensão da marca que a guerra colonial deixou em cada um de nós no que concerne a esses sentimentos de amizade, a esses valores de camaradagem e solidariedade.

Na véspera do convívio, fora ao meu sótão de estimação, onde se respira tropa por todos os poros, que é como quem diz por todos os buraquinhos de traças e outros quejandos, à procura de uma cassete gravada no Saltinho durante a noite de Natal de 1971, em que, conjuntamente com o Rui Coelho – 1.º Cabo especialista em criptografia -, fiz uma curta entrevista a cada um dos sentinelas, procurando saber do estado de espírito de cada um naquela noite em que a saudade dos nossos apertava ainda mais que habitualmente. Tinha decidido deixar de ser egoísta e, agindo em conformidade, iria tornar pública aquela espécie de relíquia histórica, há quarenta anos esquecida no fundo de uma das caixas com a etiqueta “Guiné”.

Cheguei a temer que, decorrido tanto tempo, a pobre cassete não estivesse já em bom estado de conservação, mas, incrivelmente, logo que consegui desenrascar um leitor portátil, pude comprovar que a gravação estava perfeita. E lá estava, em primeiro lugar, a entrevista ao Pessoa, de sentinela, no turno das vinte e duas à meia-noite, ao abrigo dos condutores, o primeiro que visitámos.

“Então, senhor Pessoa, como é que se sente nesta noite de Natal? Casado, pai de uma menina, deve sentir imensas saudades, não é verdade?...”

Seguiam-se as entrevistas ao Calceirão - o homem do clarim-, ao Miguel – 1.º Cabo Enfermeiro - e por aí fora. Enfim, tudo nas melhores condições acústicas, incluindo o som da viola do Mário Rui, furriel do 53, que, no abrigo de Transmissões, deliciava os presentes com uma belíssima balada de sua autoria.

Já no salão onde teria lugar o almoço, num aparte entre as animadas conversas que a ocasião oferecia, diz-me o Novo – meu vizinho da Póvoa e responsável pela organização do convívio deste ano – quase ao ouvido:

- Olha que há coisas bonitas! Estão cá a viúva e o casal de filhos do Pessoa, que morreu já lá vão oito anos!

Daí a um minuto, o Novo estava a apresentar-me à família do Joaquim Pessoa. Pude conversar, durante cerca de meia hora, com a Senhora D. Maria Fernanda - assim se chama a viúva do nosso camarada -, interessadíssima nas referências que eu fazia às recordações mais simples que tinha do Pessoa, desde o seu comportamento muito respeitador e responsável até à forma como se exaltava durante os jogos de futebol, especialmente quando as decisões do árbitro não eram do seu agrado.

Inevitavelmente, falei-lhe das palavras do marido que tinha gravadas na cassete que trazia comigo. Chorou de emoção quando prometi que lhe remeteria uma cópia em CD para a Vila de Prado, onde reside. E voltaria a chorar quando o ex-alferes Fernando Mota, no uso da palavra em nome da Companhia, agradeceu a sua presença e a dos restantes familiares, numa atitude que constituía sem dúvida um exemplo a seguir: não deixar morrer a memória dos nossos e da sã camaradagem que tão fortemente os uniu.


Enquanto nos despedíamos, a Senhora D. Maria Fernanda não pôde evitar que mais duas teimosas lágrimas se lhe desprendessem dos olhos, correndo, lestas e envergonhadas, para o pequeno lenço branco que, delicadamente, as aparou junto ao queixo. Tentei ler o conteúdo do seu sentimento, da sua emoção. Como interpretar aquelas lágrimas? Tristeza pela ausência do seu ente querido? Um sentimento de amargura por o não poder ver entre os seus camaradas? Algo mais para além disso?... Confesso que me pareceram lágrimas de uma misteriosa satisfação, como se aquela sua presença entre nós, que lhe permitia partilhar connosco a recordação do marido, lhe suavizasse a dor e lhe desse o ânimo de que carecia para prosseguir a sua caminhada. Tive a sensação de que a senhora, de uma forma instintiva e para seu próprio sossego, sentiu necessidade de se assegurar de que aqueles de quem, durante anos a fio, o marido contara maravilhas não o tinham esquecido e que a sua memória continuava presente nos nossos corações. De qualquer modo, certo é que só algo muito sólido e importante pode despertar tão fortes emoções e sentimentos. E, por detrás de tudo isto, estarão seguramente os laços tão fraternais que caracterizaram e caracterizam a geração de soldados de que fomos, somos e seremos parte.

Esposende, 24 de Junho de 2010
Mário Migueis da Silva
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6682: Convívios (174): Convívio anual de "Os Sobreviventes" - CCAÇ 3490, Saltinho, 1971/74 (Mário Migueis)

Guiné 63/74 - P6692: Blogoterapia (152): É por estas e por outras que eu ainda não lá voltei, nem sei se voltarei (Manuel Amaro, CCAÇ 2615, Nhacra, Aldeia Formosa, Nhala, 1969/71)


Guiné-Bissau > Nhacra > Abril de 2010 >   A antiga enfermaria da CCAÇ 2615, onde o nosso camarada, amigo e vizinho (de Alfragide), Manuel Amaro, trabalhou dois meses como Fur Mil Enf, antes de partir para Aldeia Formosa.

Foto: © Eduardo Campos (2010). Direitos reservados





Monte Real, Leiria  > Palace Hotel > 26 de Junho de 2010 > V Encontro Nacional do Nosso Blogue > Almoço de convívio: o Manuel Amaro ao centro, conversando como o Paulo Santiago (à esquerda) e o Victor Tavares (ainda em convalescença depois de uma delicada operação à coluna).


Foto:© Manuel Carmelita (2010). Direitos reservados (Editada por L.G.)



1. Comentário do Manuel Amaro ao poste de 7 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 – P6685: Histórias do Eduardo Campos (14): O que aconteceu à “minha” Nhacra? 

Não dá para acreditar.


Cheguei a Nhacra em 28 de Outubro de 1969. Distribuimo-nos (CCAÇ 2615), por Nhacra, Cumeré, Safim, João Landim e Dugal.

Ficámos menos de dois meses e seguimos para Quebo.

Aquela enfermaria (?) da foto foi o meu PT (posto de trabalho).

Por estas e por outras, eu ainda não [voltei]  à Guiné.

Provavelmente não irei.

Manuel Amaro

[ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892,
Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/1971]

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Nota de L.G.:

Vd. último poste desta série Blogoterapia > 31 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6506: Blogoterapia (151): Senti que já era o tipo que podia ter uma conversa séria com o velhote (João Santiago)

Guiné 63/74 - P6691: (Ex)citações (84): Um comentário aos... comentários sobre a ficção de Mário Cláudio... Um comentário cool que vem do frio (José Belo)

1. Mensagem do nosso perdido-e-achado, fisicamente distante mas sempre querido, tuga da diáspora,  globetrotter, cidadão do mundo, lapão por adopção, membro da nossa Tabanca Grande (*),  José Belo, com data de 6 de Julho de 2010:

Assunto: Um comentário aos... comentários. (**)

Caro Camarada e Amigo:

" Desmascarar" ficção é... obra que se lhe diga!

Infelizmente alguns dos comentários ao texto de Mário Cláudio pretendem fazê-lo, sem (talvez) se terem apercebido da contradição insolúvel em que caem.

As palavras sensatas de Vasco da Gama no seu poste recolocam o debate dentro de perspectivas... do "viável". Nem "óculos" de focagens intelecto-elitistas, nem outros "óculos" de exclusivismos patriótico-idealistas vêm contribuir para a quadratura do círculo nesta dialéctica literária de... ficção/intenção.

Numa perspectiva, literalmente, a frio (e no frio!), à distância de toda uma Europa, verifico com um misto de alegria e saudade que os Camaradas e Amigos "aquecem" rapidamente com um bom debate! Um grande abraço do J. Belo.

[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 20 de Novembro de 2009 >  Guiné 63/74 - P5307: Da Suécia com saudade (16): É neste caldo de cultura que o nosso blogue é grande (José Belo)

(...) As memórias, relatos e interpretações que continuamente chegam à Tabanca Grande são trazidos por indivíduos de todas as origens sociais, com os mais díspares graus de educação escolar, de todos os locais do país, e que durante o seu serviço militar na Guiné desempenharam todas as possíveis funções dentro da instituição militar.

Os acontecimentos não foram observados por um único par de olhos, mas sim por olhos com diferentes níveis de capacidade de intrepretação e observação, não esquecendo os diferentes níveis de sensibilidades individuais.

É NESTE SOMATÓRIO QUE A TABANCA GRANDE É TÃO RICA!

Se a isto se adicionar o facto destes relatos se terem prolongado ao longo de, pelo menos, uma década, temos como feliz resultado serem estas vivências transmitidas por OBSERVADORES QUE OCUPARAM OS MESMOS LOCAIS NO ESPAÇO MAS NÃO NO TEMPO!

Aquartelamentos, destacamentos, tabancas, tipo de operações, tipo de armamento, zonas mais ou menos perigosas, Altos Comandos, tudo nos é fornecido de modo a vir a ser possível em futuro mais ou menos próximo (espero!) uma compilação única e detalhada do que foi aquela década.

Quanto a mim não será ISTO que é a Tabanca Grande ?

Estocolmo 20 Nov 2009  (...)

(**) Vd. último poste desta série (Ex)citações > 1 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6666: (Ex)citações (66): Dois povos pacíficos, o da Guiné e o de Portugal (Amadu Djaló, nascido em Bafatá, em 10 de Novembro de 1940)

Guiné 63/74 - P6690: O Nosso Livro de Visitas (93): Morais da Silva, de Fá a Gadamael (1970/72): Instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá, adjunto do COP 6, em Mansabá, comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael


1. Por lapso, não chegou a ser convenientemente apresentado, na devida altura, o Cor Art Ref Morais da Silva, nosso leitor, autor de um pequeno estudo estatístico sobre a Guerra de África - O QP e o Comando das Companhias de Combate, já aqui publicado:


Nota enviada, por mail, a pedido do editor L.G., com data de 28/4/2010


(i) Combati em Angola como Alferes (Lucusse e Ninda) e onde frequentei o curso de Comandos;

(ii) Regressei a Lamego onde fui instrutor de tropas Comando;


(iii) Parti para a Guiné em Setembro de 1970;

(iv) Fui instrutor da 1ª Comp Cmds Africana sobre combate de rua (Fá, Setembro/Outubro de 1970;

(v) Fui adjunto do COP 6 em Mansabá (estrada Mansabá-Farim) em Nov/Dez 70 e Janeiro de 71; 

(vi) Avancei no fim de Janeiro de 1971 para o comando da CCaç 2796,  em Gadamael,  quando da morte em combate do seu comandante, meu camarada de curso e amigo Capitão de Infantaria Assunção Silva;

(vii) Fiquei, a meu pedido, no comando desta companhia até ao final da comissão em Outubro de 72.

Regressado à Metrópole...

(viii) Fui Comandante da 1ª Companhia de Alunos da AM [, Academia Militar];

(ix) A partir de 1978, com interrupções para fazer tempo de comando, tempo de guarnição e cursos (no IAEM e EUA),   fui professor, na AM, de Tiro de Artilharia, Táctica de Artilharia, Geometria Descritiva e Investigação Operacional.

(x) A partir de 1991 mantive a cadeira de Inv Oper na AM e passei a colaborar com o Instituto Superior de Gestão onde regi a disciplina até 2005;

(xi) Por algum tempo, regi esta disciplina na Universidade Moderna e na UAL.
Eis, em síntese, a minha vida profissional e académica. Agora pago a promessa de fazer este trabalho, divirto-me a manter o meu site de Inv Operacional, em www.moraissilva.com, (esteve fechado por razões de saúde e começa agora a recuperar "freguesia"), apoio os filhos dos meus amigos e extasio-me a ver crescer um neto de 3 anos.
Morais da Silva


[ Revisão / fixação de texto: L.G.]
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Nota de L.G.:


(*) Vd. poste de  7 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6687: Controvérsias (93): Nunca entendi a querela QP-Milicianos... O fim do serviço militar obrigatório foi um desastre nacional (Morais da Silva, Cor Art Ref)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6689: Notas de leitura (125): O Lince de Có, de António Veríssimo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2010:
Queridos amigos,
Não sei se a poesia popular em torno da guerra colonial é tema interessante para a silly season que se aproxima.
A remexer no livrinho “Lince de Có”, de António Veríssimo, maravilhado pelas espontaneidade daquela “Carta P’rá Família” senti que era urgente pôr à discussão este património silencioso, tantas vezes encarado com suspeição exactamente por se afirmar como poesia popular e nada mais.

Um abraço do
Mário


Qual o nosso dever de memória com os poetas populares da Guiné?

por Beja Santos


Em 17 de Julho de 2004 participei no encontro da CCaç 2402, a que pertenci entre Abril e Julho de 1968.
Em dada altura o António Veríssimo, com ar solene, avançou com o seu peso maciço para mim e disse-me: “Tenho aqui um livro de poesia em que falo da nossa Guiné. São coisas muito simples, a viagem no Uíge, as lembranças dos aerogramas, a morte do meu amigo Amorim, o tempo que passei em ponte do Maké, as minhas saudades, o meu hino aos veteranos de guerra, coisas assim. Espero que goste e depois me dê as suas impressões”.
Fiquei embatucado, disfarcei o embaraço começando a folhear aqueles dotes de poesia popular, a perfeita rima métrica e detive-me num poema muito singelo, afectuoso, sentiu-o quase como padrão da poesia popular de toda a nossa guerra, em qualquer das frentes:



Carta P´rá Família

Boa saúde a todos desejo
E que a vida vos corra bem
Eu não sei se mais vos vejo
Ou se pereço aqui, na terra de ninguém

Estou óptimo graças a Deus
Vou vivendo no meio da guerra
Esperando voltar para os meus
Para a paz da minha terra

Corre carta, corre carta
Sai daqui, vai embora
Leva a meus pais esta farta
Saudade que eu sinto agora

Voa carta, carta voa
Segue sempre em frente
E quando chegares a Lisboa
Vai ter com a minha gente

Segue carta o teu caminho
Leva beijinhos e saudades também
Diz lá no meu cantinho
Que aqui mal! eu estou bem.


Relendo esta poesia popular, questiono se há condições para a inventariar, como ela merece. No caso da literatura, ganho a convicção de que a recolha de depoimentos, artigos, histórias de unidades militares em edições de autor é aventura interminável. É como se houvesse deuses no Olimpo, escritores que ganharam notoriedade e inclusivamente são alvo de estudos literários; e houvesse uma literatura avulsa, de cordel, destinada a amigos, a partilhas entre pequenos grupos ou de devotos ou gente parecida, que acompanhou o nascimento dessas trovas populares. Se embaraçado fiquei quando recebi o “Lince de Có” do bondoso António Veríssimo, embaraçado me sinto quando me dirijo dentro da nossa sala de conversa a quem vive esta preocupação do inventário que faz parte do nosso dever de memória e aqui deixo uma achega para a discussão, incontornável: será que nos compete recolher todos os testemunhos como “Lince de Có”? Teremos condições para o fazer? É assunto do blogue, da pesquisa universitária, até mesmo das universidades seniores? Que se incendeie a conversa sobre a poesia popular em torno da guerra colonial.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6608: Notas de leitura (124): A Guerra de África, 1961-1974, Volume II, por José Freire Antunes (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6688: In Memoriam (47): Manuel Castro Sampaio, ex-1.º Cabo de Transmissões da CCS/BCAÇ 3832, Mansoa, 1971/73 (Filomena Sampaio)

 
1. Lembramos hoje o nosso camarada Manuel Castro Sampaio, ex-1.º Cabo de Transmissões da CCS/BCAÇ 3832, Mansoa, 1971/73, que faleceu em 16 de Fevereito de 2006.

O nosso camarada Sampaio, nascido em Guimarães no dia 25 de Março de 1949, embarcou para a Guiné, integrando o seu Batalhão, no dia 19 de Dezembro de 1970 no navio Carvalho Araújo.
 

Regressou a 6 de Janeiro de 1973, tendo chegado a Lisboa no dia 12. Viagem efectuada no navio Uige.



Manuel Castro Sampaio, ex-1.º Cabo da CCS/BCAÇ 3832, Mansoa 1971/73

2. Em 19 de  Maio de 2009, Filomena Sampaio, viúva do nosso camarada Sampaio, dirige-se pela primeira vez ao nosso Blogue*, tendo a partir dessa data sido uma atenta leitora das muitas coisas que se têm publicado na nossa página. Prova-o os seus constantes comentários e os postes por si assinados, apesar de dizer que não se acha com capacidade para intervir.

É de crer, não fosse a partida precoce do nosso camarada Sampaio para a outra dimensão, o teríamos como tertuliano, colaborante na feitura das nossas memórias, tendo como colaboradora a sua esposa.

Daqui saudamos a nossa amiga Filomena, fazendo votos para que continue a acompanhar-nos, e convidámo-la a mandar para o blogue algum espólio do marido, tal como fotos, passagens de aerogramas, etc. Será uma maneira de perpetuar a sua memória através do nosso sítio.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Maio de 2009 &gt ;Guiné 63/74 - P4375: Provedor do leitor (1): A liberalidade e as estações do nosso calvário (Filomena Sampaio)

Vd. último poste da série de 29 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6653: In Memoriam (46): Luís Zagallo de Matos, herói do Cuor (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6687: Controvérsias (93): Nunca entendi a querela QP-Milicianos... O fim do serviço militar obrigatório foi um desastre nacional (Morais da Silva, Cor Art Ref)



Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, frente ao Convento de Mafra, e onde se integrava o nosso camarada e amigo Paulo Raposo, futuro Alf Mil, CCAÇ 2405 (Mansoa, Galomaro e Dulombi, 1968/70; Comandante: Cap Mil Inf José Miguel Novais Jerónimo).

Para Morais da Silva, o fim do serviço militar obrigatório foi um "desastre nacional".

Fonte: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados


1. Mensagem do Cor Art Ref António Carlos Morais da Silva, com pedido de publicação no blogue:

(i) No Post 6621 (*)  lê-se no [ponto 4]:

“(...) 3.3. A Milicianização da Guerra

Todavia, e não obstante esta factualidade, neste mesmo período existiam nas patentes de combate (Capitães, Tenentes e Alferes), 880 Oficiais das Armas Combatentes (Infantaria, Artilharia e Cavalaria) originários da Academia Militar, entre os quais 759 Capitães.”
Estes valores são referidos como constando da Lista de Antiguidades dos Oficiais QP do Exército de 1 de Janeiro de 1974.

Acontece que este número de 759 capitães está ERRADO (excesso de 179 capitães).

O número correcto é de 580 capitães (76% do valor antes referido),  como indiquei no meu estudo, a páginas 29.

Se dúvidas houver consulte-se a Lista de Antiguidades (LA) de 1974 cuidando de analisar a LA de 1975 como sempre se deve fazer para efeitos de stock (na LA de 1974, referida a 01Jan74, há 146 oficiais referidos como capitães que a LA de 1975 indica terem sido promovidos a Major com data de 01Jan74).

(ii) Ainda do mesmo Post 6621 transcreve-se o seguinte comentário [, ponto 1]:

“Aliás, basta ver a redução drástica do número de capitães do QP que comandaram companhias de combate, acentuado a partir de 1972, conforme os quadros expostos. Onde é que eles estavam nesse período?”Vejamos:

1970: 1100 capitães no stock (pg. 29 do meu estudo)

1970: 475 companhias de combate (reforço) nos 3 TO

1974: 580 capitães no stock (pg. 29 do meu estudo)

1974: 477 companhias de combate (reforço) nos 3 TO

Nestes 2 anos o número de companhias a comandar é praticamente o mesmo mas o stock de capitães, diminuiu 47%.

“Onde é que eles estavam nesse período?” Não estavam porque, simplesmente, o que não existe não pode estar em lugar algum.


(iii) Um derradeiro esclarecimento.

Nunca entendi a querela QP-Milicianos. Considero um desastre nacional o fim do exército de conscrição (miliciano) onde a juventude aprendia a servir e dar-se conta da obrigação de defesa da terra que herdou. Milicianos foram os soldados, sargentos e oficiais que comandei e com quem partilhei a difícil tarefa que a todos coube em África. Afrontá-los seria uma desonra. Diminuí-los seria uma desonestidade.

A bem da decência concluamos que todos e cada um fizeram o melhor que puderam sem nada pedir em troca.

À minoria que deste trilho se afastou, deixemo-la entregue ao seu egoísmo e pequenez.

António Carlos Morais da Silva

Cor Art
6Jul10

[ Revisão / fixação de texto / bold a cores: L.G.]
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 20 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6621: Controvérsias (88): A ruptura do stock de capitães do QP e a milicianização da guerra (A. Teixeira / J. Manuel Matos Dinis / Mário Pinto / Manuel Rebocho)

(**) Último poste desta série > 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6679: Controvérsias (92): A ficção e a guerra (Joaquim Mexia Alves)