quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7297: Notas de leitura (172): África A Vitória Traída, de Luz Cunha, Kaúlza de Arriaga, Bethencourt Rodrigues e Silvino Silvério Marques (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,
Foi bom reler este depoimento do último governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné. O mais importante, parece-me, é o não dito, permitindo toda a ambiguidade de deixar o leitor à mercê da pura arbitrariedade de procurar ver nas entrelinhas. Referir que um plano de Defesa Nacional iria introduzir modificações de vulto no conceito de manobra e não mencionar os seus impactos é, penso eu, falsear a chamada retórica da objectividade, em que o prestigioso militar se estriba.
Não há ninguém que queira escrever sobre o recuo estratégico que estava em marcha na Guiné, naquele segundo trimestre de 1974?

Um abraço do
Mário


A vitória traída: o depoimento do Gen. Bethencourt Rodrigues

Beja Santos

O livro “África, vitória traída” (Editorial Intervenção, 1977), de autoria dos generais Luz Cunha, Kaúlza de Arriaga, Bethencourt Rodrigues e Silvino Silvério Marques, provocou algum furor na época. Viviam-se as sequelas das descolonização, a litigância para encontrar responsáveis pelo que tinha acontecido no termo do Império Colonial continuava a revelar-se como fenómeno político de duração. Já nessa altura os campos argumentavam com argumentos extremados, entre a direita radical e as várias vozes da esquerda, deixando no silêncio um vasto centro.

O que se diz na contracapa esclarece a intenção dos autores: “A vitória era possível. Em Angola estava à vista. A estratégia soviética, porém, atacou em Lisboa. E aqui ganhou o que estava a perder em África”. Os quatro generais (mais propriamente, três deles) procuram relatar os acontecimentos africanos como de uma possível normalidade, até com sucessos no terreno diplomático, na melhoria das condições de vida nos espaços afectados pela guerrilha, a situação de Portugal continental era de franco crescimento e com níveis apreciáveis na melhoria das condições de vida. Creio ser inútil voltar-se a pôr estes argumentos em cima da mesa e rebatê-los, não um a um, mas a partir do envolvimento internacional que se revelou irreversível no tocante à emancipação dos povos. A linguagem sofismada e a manipulação dos dados continua a fazer escola, como aqui já foi analisado, a propósito de um livro pretensamente rigoroso “Em nome da Pátria”, de Brandão Ferreira.

O que é verdadeiramente importante para o nosso blogue é registar como é que o último governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné avaliava a situação, ao nível do primeiro trimestre de 1974. Começando pela situação político-económico-social, Bethencourt Rodrigues destaca: o V Congresso do Povo, o universo escolar (61 000 alunos com 2200 professores) o incremente nas infra-estruturas da saúde e os problemas postos à população pelo abastecimento de arroz e o preço do pão. Embora as relações com o Senegal e a República da Guiné fossem praticamente inexistentes, o afluxo de cidadãos dos países vizinhos aos postos sanitários das localidades de fronteira não parava de crescer (em 1973, foram dadas mais de 60 000 consultas a tais elementos).

Quanto ao PAIGC, o general escreve: “O PAIGC demonstrava uma certa capacidade de comando e de organização. Esta capacidade de comando revelava-se, por exemplo, no adequado balanceamento de meios para a concretização de esforços sobre sucessivos sectores da fronteira e teve evidente expressão na coordenação de uma vintena de flagelações executadas em 20 de Janeiro de 1974”. Refere-se às facilidade oferecidas ao PAIGC pelos países vizinhos, à sua elevada capacidade de manobra podendo usar os cerca de 700 quilómetros de fronteira. Descrevendo o terreno, o general lembra as regiões com densidade de vegetação, apropriadas para o refúgio de guerrilheiros e onde o PAIGC instalou hospitais, escolas, lojas comunitárias e os seus órgãos primários de administração. Ir até este dispositivo inimigo exigia operações de certa envergadura. Mas nem de perto nem de longe o somatório destas zonas de refúgio atingia os dois terços da Guiné que o PAIGC reivindicava como superfície da “área libertada”. Após descrever a actividade militar do PAIGC no segundo semestre de 1973, o autor fala sobre o esforço do inimigo no canto nordeste (região de Canquelifá) e no sul (em especial Jemberém, Gadamael e Bedanda, onde provocou estragos avultados). No nosso dispositivo militar traduzia-se na existência de 225 guarnições militares, sendo 72 ocupadas exclusivamente por tropas do Exército e Armada, 82 por topas do Exército e Armada e unidades de milícias, e 71 só por unidades de milícias. O material de que dispunham as tropas portuguesas era, em alguns casos, qualitativamente inferior ao empregado pelo inimigo. E escreve: “Os meios aéreos também não eram os mais adequados ao tipo de apoio que se pretendia e que se carecia, sobretudo depois do aparecimento dos foguetes Strella”.

Em jeito de conclusão, o antigo Comandante-Chefe da Guiné refere uma vida na região condicionada pela guerra de guerrilhas mas dotada de uma relativa normalidade.

Olhando para o que se passava com o PAIGC, escreve: “O inimigo evoluíra progressiva e significativamente no seu conceito geral de manobra e no seu potencial militar, tanto humano como material, neste dispondo até de superioridade em algumas armas”.

A capacidade de iniciativa do comando das Forças Armadas Portuguesas estava fortemente condicionado. O traço enigmático do seu depoimento fica para o final destas conclusões: “A guerra estava militarmente ganha? Evidentemente que não. A guerra, na Guiné, «estava perdida no campo militar», como se tem afirmado com alguma frequência? Estávamos, na Guiné, «à beira de um desonroso colapso militar», como também se declarou? A situação na Guiné, no 1.º trimestre de 1974, concedia base àquela primeira afirmação ou apontava irremediavelmente para a segunda? Estas «notas», no rigor da sua objectividade, poderão ser, julga-se, elemento de informação útil para quem procure obter resposta a estas questões. Certo é que as guerras sempre foram e continuarão a ser lutas de vontades… e não só das vontades dos combatentes”.

Ou seja, o general não se compromete. O leitor que se entenda com o V Congresso do Povo, o asfaltamento das estradas, o apoio sanitário, o facto de que o PAIGC não controlava dois terços do território nacional e de que a capacidade de manobra do PAIGC aumentava de dia para dia. Claro que a situação militar era grave, tão grave que nesta linguagem praticamente asséptica, o general passa por cão por vinha vindimada: “Era uma situação extremamente exigente para os Comandos e também extremamente exigente e muito dura para as tropas, a requerer em curto prazo a adopção de medidas de âmbito local e no plano da Defesa Nacional, umas em planeamento ou já planeadas e outras em vias de execução”. É lastimável que o distinto general não tenha concretizado quais as medidas do plano de Defesa Nacional, já que elas estavam relacionadas com o pedido de demissão de Spínola que de modo algum aceitara ver abandonadas povoações e quartéis, indefensáveis a prazo com os novos armamentos do PAIGC. E não menos lastimável a que as pessoas que conhecem estes planos não escrevam e revelem que tipos de teatros de operações iríamos ter na Guiné, caso não tenha acontecido o 25 de Abril.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. último poste de 15 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7284: Notas de leitura (170): Fuzileiros – Factos e Feitos na Guerra de África, Crónica dos Feitos da Guiné, de Luís Sanches de Baêna (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7286: Notas de leitura (171): A Malta das Trincheiras, de André Brun (Arménio Estorninho)

Guiné 63774 - P7296: Blogpoesia (87): As consoantes e vogais do nosso livro de estilo (Luís Graça)



Aviso à navegação: Amigos e camaradas, camarigos: Nunca levem a sério os poetas... que são uns fingidores (garante o Fernando Pessoa). Neste acaso, este blogpoema é uma pura diversão. Não tem código postal. Leia-se: não há recados para ninguém. Espero, em todo o caso, que consigam lê-lo e cheguem ao fim... Não quero outra recompensa, senão o reforço da nossa camarigagem, como dirá o Jaquim... Darei por bem gasto o meu tempo, se o conseguir... (LG).




Contra o ponto (.) a vírgula (,)
Contra o ponto de exclamação (!) as reticências (…)
CONTRA OS TíTULOS DE CAIXA ALTA,
o ponto de interrogação (?)


Ou então abram alas, camaradas,
parênteses,
curvos (   )
ou rectos [  ],
e parem só aos sinais de proibição.
E ao Não!,  digam Não!...
E aqui carreguem nos sinais de interjeição:
Ai! ei! ii! oi! ui!
Que, com a vida sem pica, 
a gente fica
sem palavras nem (lo)comoção!

Ao sinal verde, toca a arrancar 
e a marchar
contra os OOO da arrogância,
os UUU da flatulência,
e os RRR do arroto,
mais os ÇÇÇ da doença, 
e, pior, os acen(t)os da demência.
Cuidado, ao final das escadas,
com o cano de esgoto.

War is over, baby,
bela bajuda de mama firme,
tira o chapéu de abas largas 
e atira flores aos que morreram,
em terra, no ar e no mar:
não os deixes morrer duas vezes,
agora de abandono
e de olvido.

Cuidado, camarigo,
trânsfuga,
refractário,
desertor,
prisioneiro,
inimigo,
comissário,
capelão,
comandante,
detractor,
miliciano,
agente duplo,
escriturário, 
artilheiro,
melec,
grumete,
xico,
cadete,
capitão,
crente ou ateu,
tanto faz,
e até tu, Maria Turra,
que no fim da picada,
podes ser cuspido, zás!, 
pela força centrífuga
do silvo da cobra cuspideira
que se mordeu
a si própria.

Quanto ao macaréu,
já não é o que era,
garantiram-me no Xime...
Deixaram assorear o Geba Estreito,
que crime!,
os administradores das águas fluviais
e braços de mar
e canais de irrigação 
da liberdade criativa.
Dizer que o trabalho é bom p'ró preto
não é politicamente correcto.
Corta.
Nem vocês já não se afoitam, pessoal,
de peito feito,
aberto,
contra os jagudis imperiais
do Corubal
que comeram as últimas letras do alfabeto.

Há que pôr os pontos nos ii,
no semáforo intermitente,
arrumar as botas,
brunir os colarinhos,
pensar na vida,
e no povo que está tolo, 
e abrir aspas
entre as falas em crioulo.
Enquanto o corpo está quente.

Até o  barqueiro, coitado,
perdeu o k da kanoa,
varada no tarrafo do Mato Cao.
Sem o til,
que o levaram p’ra Lisboa.

Há agora um fantasma de um quarteleiro
à procura das estrias, frias,
do morteiro...
Triste  samurai,
aquele que não encontra o fio da espada.
E, ai!
do pobre (a)tirador,
aquele que se mata a (a)tirar
o acento circunflexo da bala na câmara.

Encontrei um djubi,
numa escola do mato,
exercitando o seu estilo caligráfico,
em caderno de duas linhas,
de acordo com a norma do acordo
ortográfico.

Resta o  humorista,
o velhaco,
que é sempre o último a perder
os quatros humores,
já no  fundo da pista
onde acabam todas as peugadas:
Sangue, pouco e fraco,
fleuma, de mal a pior,
bílis amarela, q.b.,
e bílis negra, às carradas.
Que o último a morrer,
nem sempre é o que morre melhor.


Que o que faz bem ao braço,
faz mal ao baço.
E não há coração que aguente
a pressão hiperbárica
do pulmão.
O fígado, esse, mesmo de aço 
e de inox,
é um passador crivado
de balas etilicamente correctas.

Não sei o que é que faz mais urticária,
ao tabanqueiro viril,
se a  inveja do pobre em hidratos de carbono
ou a pesporrência do rico em sais minerais.
Resta a gramática da guerra de mil
e troca o passo,
e os seus heróis,
todos diferentes,
todos iguais.

Quanto à vida, baby,
no fundo,  é tudo tretas:
Sangue, suor e lágrimas...
é quando se tem 20 anos,
força nas canetas,
e muito esperma 
para dar e vender.
Agora já se não usam palavras com trema.
Nem eu sei o que farei
com  este poema.

De qualquer modo,
quando eu morrer
por falta de imaginação,
quero que  seja numa cama fofa,
de consoantes e vogais.
Sem travessão.
E mais: 
dispenso a notícia nos jornais.


 Luís Graça

Fonte: Excerto do "Livro de estilo do  membro (viril) da Tabanca Grande
quando  anda em guerras de baixa intensidade (de que Deus nos livre!)" (em preparação)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7295: (Ex)citações (109): Alguns considerandos muito intimistas (José Belo)

1. Mensagem de José Belo (*), ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia, com data de 16 de Novembro de 2010:

Caros Camaradas e Amigos.
(Alguns considerandos muito intimistas sobre um" certo temperamento" que, aparentemente, tem vindo a surgir em algumas das nossas intervenções dos últimos tempos).

A maioria de nós já faz parte desta Tabanca Grande há alguns bons anos. Julgamos conhecermo-nos, pelos contactos sucessivos e quase diários com o blogue. Todos temos o que se pode considerar "umas boas idades", de muitas (boas e más) experiências feitas. A diferentes profissöes, diferentes níveis literários, diferentes áreas geográficas (com as suas pequenas, mas importantes, tradições culturais e de relacionamentos), diferentes, interesses, diferentes ideias políticas ou religiosas, diferentes situações familiares, e, (näo menos importantes nas nossas idades) diferentes situações de saúde... somam-se os nossos "temperamentos" adquiridos nas (quer se queira ou näo) difíceis experiências de uma guerra que tivemos que enfrentar, precisamente, nos nossos anos formativos.

Para quem, como eu, vive tão afastado do "centro geográfico" da nossa Tabanca, torna-se talvez mais fácil sentir que é com demasiada rapidez, facilidade e agressividade, que alguns reagem às opiniões, ou ideias, expressas por outros, sejam elas em postes, ou nos comentários aos mesmos. Aparentemente, a nossa maldição tradicional na dificuldade em aceitar que outros pensem de modo diferente. Por tudo e por nada, recorre-se a bandeiras agressivas, a patriotismos (por certo profundos e sentidos pela maioria de nós) mas que, francamente, não necessitam de ser atirados para a frente numa... guerra santa, mal um de nós tem a infelicidade de dizer alguma "bacorada"!

O nosso querido Portugal tem já uma longa História de patriotas exaltados que continuamente procuram ocupar palcos ecoantes, em vez dos diálogos abrangentes... hoje mais necessários que nunca. Talvez por ler este blogue à distância de toda uma Europa, em temperaturas abaixo dos trinta graus negativos, a mais de mil e quinhentos quilómetros ao norte de Estocolmo, e num verdadeiramente extremo... "Trás-Os-Montes", (onde se anda normalmente dentro de um círculo de 500 quilómetros sem se encontrar uma pessoa ou uma casa), me aperceba melhor como o "rastilho" da paciência de alguns está a tornar-se bastante curto. Ao acompanhar as notícias que vão chegando de Portugal, ou as que por esta Europa rica se referem a nós, compreende-se que os que aí vivem estejam preocupados enervados, irritados, mesmo que para alguns isso seja ainda a um nível menos consciente. Haverá desta situação tão séria, e subjacente a tudo, um reflexo no tal "curto rastilho"? Talvez. Ou... se me desculparem o meu "assuecamento"... serão unicamente reacções resultantes de temperamentos de "Primas Donas em Terceiras Idades avancadas"?

No Natal que täo rapidamente se aproxima... paz na terra aos ...

Um grande abraco amigo do
J.Belo.
Estocolmo/16 Nov/2010.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7176: (In)citações (20): Os verdadeiros filhos da Guiné (Cherno Baldé / José Belo)

Vd. último poste da série de 10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7253: (Ex)citações (108): Transferência de soberania com dignidade ou rendição sem honra nem glória ? Quando se olha para trás, é que se enxerga tudo... (José Gonçalves)

Guiné 63/74 - P7294: Carta aberta a... (5): Professores António de Oliveria Salazar e Marcello Caetano (António Graça de Abreu)


República Popular da China > 2009 > O nosso camarada mais "sínico (mas não "cínico"...) da Tabanca Grande, cruzando o famoso Rio Yangtsé, na província de Sichuan, o maior rio da Ásia com os seus cerca de 6400 km de comprimento...


Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu junto ao obus 14.... Antes estivera em Teixeira Pinto. Terminará a sua comissão em Cufar, no sul, nas vésperas do 25 de Abril de 1974.

A 8 de Abrild e 1974, em Cufar, escreve no seu diário: "De Lisboa a minha mulher continua a dizer-me coisas de espantar. Ao fim deste tempo todo, por exemplo: 'Não contas senão o superficial, a tua vivência aí chega a mim só pela rama'. Como é possível?!... Em vinte e um meses e meio fui três vezes a Portugal,  da Guiné escrevi-lhe trezentas e quarenta e sete (347, tenho tudo numerado!) cartas e aerogramas, desdobrei-me na narrativa, na descrição minuciosa do meu quotidiano e desta guerra, desde os muitos pormenores aparentemente insignificantes aos contextos maiores em que vivo. 'Não contas senão o superficial'. Como é possível ?!..." (in Diário da Guiné..., 2007, p. 211).



Fotos: © António Graça de Abreu (2009). Todos os direitos reservados.


1. Texto que o António Graça Abreu me mandou, com pedido de publicação, em 21 de Maio de 2009... Entretanto, ele seguiu para uma longa visita à China (e à família da sua mulher, que é médica), regressou,  passou-se o verão e, contrariamente ao que eu tinha prometido, a famosa carta aberta aos Senhores Professores António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano não foi metida no correio nem chegou aos seus destinários...

Nunca saberia como pedir desculpa ao António, pessoa e escritor, além de camarada, que eu muito prezo, por este lapso (monumental)... Mas, por outro lado, ele tem todo o direito de estar zangado comigo. Por muito que já tenha incorporado, nestes anos todos,  alguns dos valores, atitudes e comportamentos típicos da milenar cultura chinesa (por ex., dizer de maneira impassível e elegantérrima o quão está zangado comigo), ele também tem uma boa costela nortenha... Na melhor altura sai bordoada. E antes que isso aconteça, eu faço o meu jogo de cintura... E venho aqui, humildemente, em público,  pedir aos deuses para aplacarem  a sua ira...

Uma coisa eu sei: o António (não) é homem de (res)sentimentos...

Por fim mas não menos importante, quem verdadeiramente deve estar zangado comigo é o nosso caro leitor a quem foi negada a possibilidade, neste ano e meio, de ler e fruir este documento de belo recorte literário e de mordaz ironia, sob a forma de carta aberta aos dois políticos que formataram este país e este povo, durante mais de meio século... Não é um documento panfletário, é uma reflexão relativamente serena sobre oportunidades perdidas por e para todos nós...

Mas é também uma carta de confiança no futuro (que bem precisamos dela, nos tempos que correm), de confiança em Portugal, e nos portugueses, de confiança e de ORGULHO na geração, a nossa,  que soube fazer a guerra e a paz: "Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes".

Finalmente,  a carta vai chegar ao seu destino (*)... LG


2. Carta aberta aos Profs. António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano


Introdução


António Graça de Abreu, ex-alferes miliciano na Guiné-Portuguesa, humilde cidadão que teve a ventura de nascer no ano de 1947, durante a longa jornada autocrática de V. Exª., Sr. Presidente do Conselho Dr. António de Oliveira Salazar, e depois de viver extremadamente os últimos anos da ditadura mole e pouco iluminada de V. Exª., Sr. Prof. Marcello Alves Caetano, também Presidente do Conselho, confessa, do fundo das circunvoluções do seu desgastado coração, que anda há um ror de anos com vontade de vos escrever.

A primeira dificuldade, para além da minha inabilidade e ausência de qualidades para me dirigir a tão excelsas e ilustres figuras da nossa História Contemporânea, tem a ver com o embaraço de enviar esta carta para o espaço adequado. Qual o lugar onde hoje se encontram, Excelentíssimos Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano? No fofo azul do Céu, nas agruras amarelas de uma passagem prolongada pelo Purgatório, nos calores vermelhos do Inferno?

Como não sei qual foi o destino que para vós Deus escolheu (dependente por certo de tudo quanto executaram ou mandaram fazer na vossa breve/longa vida terrena), envio esta carta para o blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, na certeza de que terá um molho bem cheio de leitores, gente de excelente qualidade, e que V. Exªs., onde quer que estejam, a irão ler.

Este blogue do Luís Graça na Internet  -- coisa que não existia no tempo de vossas vidas-- é um imenso sucesso de comunicação. São testemunhos de ex-combatentes da guerra na antiga Guiné Portuguesa, trocas de opiniões, entendimentos, desentendimentos, desabafos, uma espécie de terapia colectiva, muitos anos após o regresso dessas paragens quentes e amargas que nos marcaram a todos.

A segunda dificuldade, ao escrever esta carta, prende-se com o modo de vos tratar. “Excelências, Senhores Presidentes do Conselho, Prof. Dr. Salazar, Prof. Dr. Marcello Caetano”? Todas estas denominações vos pertencem, associadas à importância e dignidade dos cargos que, em ditadura, ocuparam ao longo de tantos anos.

Ora, há uns três meses atrás, o António Lobo Antunes, ex-oficial miliciano médico em Angola, 1971/1973, na crónica que assina na revista Visão, escreveu um texto algo zangado com Deus que, no início de 2009, lhe levou dois dos seus melhores amigos. E António Lobo Antunes resolveu tratar Deus por tu. Ele é um pouco, ou muito despassarado, mas enfim…

Eu também tenho as minhas guinadas e manias, mas pairo baixo, a razoável distância do autor de Os Cus de Judas. E os Profs. Salazar e Marcello também não são deuses.

Não me levem a mal por, em bicos de pés no alto do meu banquinho de escritor pequeno e medíocre, (mas com quinze livros publicados), desejar tratar-vos igualmente por tu, com todo o respeito. Mas acho que não sou capaz.


A História

O nosso Portugal é uma das nações mais antigas da Europa. Fechados neste rectângulo, de costas voltadas para Espanha, tínhamos o oceano diante de nós. E, a partir do século XV, antes de quase todos os outros povos, embarcámos na ousadia e na loucura de navegar o mar. Áfricas, Américas, Índia, China, Japão, Austrália, nada do que eram então os grandes mares e as imensas terras desconhecidas parece ter escapado às quilhas das naus, ao calcorrear português, ao entendimento, nem sempre esclarecido, das gentes da pequena pátria lusitana. Demos “novos mundos ao mundo”, é verdade. E fixámo-nos em muitos desses lugares. Fomos ficando. Em meados do século XX ainda estávamos em Macau e Timor, na Índia, em Moçambique e Angola, nas ilhas de S. Tomé e Cabo Verde, na Guiné.

Depois de descobrirmos mais de meio mundo, face à pequenez do Portugal europeu, alimentámos naus e naus carregadas de mitos e sonhos. O bom do padre António Vieira (1608-1697) acreditava ainda num impossível Quinto Império lusitano espalhado pelo mundo e falava de nós como os que “têm a terra portuguesa para nascer e toda a terra para morrer”.

No século XIX construímos a ideia irrealista de um mapa “cor-de-rosa” a unir, sob domínio português, as terras de Angola e Moçambique. Na I Guerra Mundial (1914-1918) enviámos forças expedicionárias para França, para a Flandres, entre outras razões, para mostrar que tínhamos força (não tínhamos!..) e que outras potências europeias seriam mal sucedidas se algo fizessem para se assenhorearem das nossas colónias. Tivemos quinze mil mortos, (corrijam-me se estou enganado!),  bons filhos da terra portuguesa, nessa guerra estúpida e inútil. Como quase todas.

Em 1953, escrevia o general Norton de Matos, em choque aberto com V. Exª., Dr. Salazar, e que mais tarde haveria de se candidatar a Presidente da República pela chamada Oposição: “Que a vossa principal tarefa seja o engrandecimento da Pátria, dignificando-a (…). Não deixais que ninguém toque no território nacional. Conservar intactos os territórios de Aquém e Além-Mar é o vosso principal dever.” (in Norton de Matos, A Nação Una, Lisboa, Ed. Paulino Ferreira e Filhos, 1953).

Tudo isto V. Exª. conhecia, Dr. Salazar e, na linha do pensamento tradicional português e até do de alguns dos vossos opositores, Portugal afirmava-se “uno e indivisível”, estender-se-ia do Minho a Timor, eram “muitas raças, uma só nação”. Uma utopia, um sonho lindo e perigoso, inevitavelmente condenado pelos ventos e avanços da História.

A partir dos anos sessenta do século XX, quase todas as colónias das nações europeias em África transformaram-se em países independentes. Sabemos hoje que muitas dessas independências foram prematuras e constatamos como muitos dos pobres povos dessas terras, libertos do nada meigo jugo colonial, têm sido tratados pelos seus governantes africanos e chefes associados ao tribalismo, à incompetência, à corrupção, ao esmagamento dos mais elementares direitos humanos.

No que a Portugal diz respeito, naquele fatídico ano de 1961, perdíamos a Índia e logo de seguida iniciava-se a luta armada em Angola, com o massacre pela UPA (União dos Povos de Angola) de milhares de portugueses inocentes. O ódio racial era real e antigo, ao contrário do que a propaganda do regime de V. Exª., Dr. Salazar, queria esconder. A tese das “muitas raças, uma só nação” continuava a ser enganosa e iria provocar imensos sofrimentos ao povo português e aos povos de Angola, Guiné e Moçambique.

A Guerra

“Orgulhosamente sós” embarcámos aos milhares, de armas na mão para lutar contra o “terrorismo” em Angola. Em 1963, com o eclodir dos conflitos armados na Guiné e em Moçambique, novos espaços de guerra se abriram para os portugueses. Os chamados Movimentos de Libertação organizavam-se, contavam com poderosos auxílios externos (União Soviética, China, etc.) e Portugal fez um esforço tremendo para combater, com algum êxito, esses guerrilheiros que acreditavam lutar por um futuro melhor para a Pátria deles e queriam pôr fim a quatro séculos de mau colonialismo. O sangue, a dor, a morte passaram a fazer parte do quotidiano de Angola, Guiné e Moçambique.

Sempre na senda de um “passado glorioso”, da exaltação da nossa História, e também por razões económicas -- Angola era, é, talvez o país mais rico de África – V. Exª, Dr. Salazar, insistia na “defesa da Pátria”, e V. Exa., Dr. Marcello Caetano, excelente professor na Faculdade de Direito de Lisboa, não discordava uma linha da política ultramarina seguida por Salazar.

Em 1968, eu não era nada de especial, tinha vinte gloriosos anos, vivera já durante um ano em Hamburgo, na Alemanha e, na Faculdade de Letras de Lisboa, fazia parte da Direcção da Pró-Associação de Estudantes e do Grupo de Poesia e Canção da Faculdade. Muitas vezes eram da nossa responsabilidade as primeiras partes dos espectáculos semi-clandestinos do Zeca Afonso, do Adriano, do Fanhais, do Zé Jorge Letria. Eu dizia poemas do Pessoa, da Sophia, do António Gedeão. Deste último, ainda sei de cor a Lágrima de Preta. Ignoro se V. Exas, Salazar e Marcello, são muito dados a estas coisas da poesia, mas aí vai:

Encontrei uma preta que estava a chorar
Pedi-lhe uma lágrima para analisar,
Recolhi a lágrima com todo o cuidado
Num tubo de ensaio bem esterilizado.
Mandei vir as bases, os ácidos, os sais,
As drogas usadas em casos que tais.
Nem sinais de negro, nem vestígios de ódio,
Água, quase tudo, e cloreto de sódio.


Podem pois adivinhar de que lado político eu me situava. A PIDE já me tinha debaixo de olho e o meu processo na PIDE (podem consultar, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PIDE/DGS, procº. 9175 C7 NT 7555) é muito interessante e equivale às medalhas que, por bem, não ganhei na Guiné Portuguesa.

Os tempos tinham mudado, em finais dos anos sessenta do século passado cada vez mais pessoas e muita juventude, sobretudo a que frequentava as universidades, começava a contestar a vossa autoridade e a justiça das guerras em África.

E o vosso erro foi não terem entendido, para bem de Portugal e dos povos africanos, que a era gloriosa da Pátria portuguesa espalhada pelos quatros cantos do mundo pertencia a uma História de que nos podemos e devemos orgulhar, mas era apenas isso, o passado.

V. Exª., António de Oliveira Salazar e depois, a partir de 1969, V. Exª., Marcello Caetano, descartavam as hipóteses de negociações com os movimentos de libertação. E os conflitos não tinham solução. Não conseguíamos vencer os guerrilheiros em luta, nem éramos vencidos por eles.

O povo português, os povos africanos sofriam barbaridades. Em nome de quê, porquê, para quê? Vocês estavam a adiar o inadiável, o inevitável.

Em 1968, V. Exº., Dr. Salazar nomeia o então brigadeiro António de Spínola para governador e comandante-em-chefe das tropas na Guiné. Spínola, que fora tenente-coronel em Angola, apercebe-se da impossibilidade de se ganhar militarmente a guerra. A questão era política, sempre foi política e ao lançar a estratégia política de Uma Guiné Melhor António de Spínola pretende transformar o “inimigo em nosso amigo”. Consegue alguns resultados e o PAIGC treme. Spínola começa progressivamente a alicerçar a ideia de uma muito maior autonomia para os territórios ultramarinos, uma espécie de federação lusófona, e inicia estranhas negociações com o “inimigo” que, em 1970, se viriam a saldar pelo cruel e cobarde assassínio de três majores portugueses por guerrilheiros do PAIGC.

V. Exª., Dr. Salazar, tinha caído da cadeira de lona no forte de Santo António do Estoril, batido com a cabeça no chão e incapacitado, ainda sem acreditar, terminava o seu longo consulado ditatorial ao leme dos destinos tortos de Portugal.

V. Exª., Dr. Marcello Caetano, era um homem mais aberto e moderno. Mas não acabou com a ditadura, nem com a polícia política, nem com a asfixia da sociedade portuguesa. No que às guerras de África dizia respeito, foi muito mais “continuidade” do que “evolução”. Portugal permanecia num doloroso beco sem saída.

Até que em 1973, de início por razões reivindicativas e corporativistas que tinham a ver com promoções na carreira, um grupo de capitães, oficiais do quadro permanente, todos marcados pela inutilidade, irracionalidade e impossível solução das guerras de África, decide avançar para um golpe militar e depor o regime que governara Portugal a partir de 1926.

V. Exª., Dr. Salazar, desde 1970, dormia o definitivo sono dos injustos na sua campa térrea de Santa Comba Dão. E V. Exª., Dr. Marcello, foi exilado para o Brasil. As guerras de África iam acabar porque o problema tinha solução, era, sempre foi político.

O que veio a seguir já não é da vossa responsabilidade, sois apenas culpados por ter protelado, adiado até ao impossível, uma necessária solução política para os conflitos em África.

A descolonização, como sabem, foi um inenarrável desastre, as tragédias da guerra civil em Angola, os conflitos em Moçambique, os massacres em Timor, o fuzilamento de centenas de militares e civis africanos na Guiné, homens que tinham combatido ao nosso lado ou apoiado as tropas portuguesas, enfim todo um rosário de mágoas, dor e morte que não terminou com a independência desses territórios. Como foi possível, pós independência, que quase todos os mais destacados e heróicos comandantes da guerrilha do PAIGC também tenham sido mortos em lutas intestinas entre eles? Como é possível que hoje, ano de 2009, quase metade das mulheres da Guiné-Bissau estejam ainda sujeitas à excisão do clitóris, uma prática bárbara, atentatória dos mais elementares direitos da mulher, direitos humanos? Como é possível que hoje, 2009, em Bissau não exista uma única livraria?

Mas não foi para me debruçar sobre estes temas que vos escrevi. Vamos falar de nós.

Combatentes

A minha mulher é chinesa [, foto à esquerda], criada na Xangai comunista, República Popular da China, onde nasceu em 1961. Há dois anos atrás, quando resolvi ir buscar o meu diário de guerra na Guiné, mais uns aerogramas da época [, foto à direita], e comecei a passá-los ao computador prevendo uma possível publicação em livro, a minha mulher zangou-se comigo. Via-me sofrer ao reescrever os textos, constatava como aquele diário ainda bulia comigo, houve dias em que, na escrita, algumas lágrimas me rolavam pela face, e ela não gostava. Fala bem português, está em Portugal há 24 anos e disse-me mais ou menos o seguinte:

“Então que prazer estúpido tens em mexer nesses papéis, tu afinal pertenceste a um exército colonial que andou a matar os pobres dos pretos. Não é melhor tentar esquecer tudo isso e dedicar o teu labor a trabalhos mais saudáveis”?!...

Em Julho de 2008 tentei e consegui convencê-la a ir comigo a Fátima, ao segundo encontro dos camaradas da CCaç 4740, com quem estive em Cufar, sul da Guiné, durante dez meses. Fomos à missa (o que raramente acontece!) com muitos dos homens da companhia 4740 e ao almoço com eles e famílias. E a minha mulher entendeu por fim o que une estes antigos militares da Guiné. Compreendeu, em palavras simples, como somos amigos, entendeu a alegria que temos em nos reencontrar, em recordar, em nos sentirmos irmãos.

[ À esquerda, capa do livro do nosso camarada António Graça de Abreu, Diário da Guiné: Lama, Dangue e Água Pura.  Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007.... Em cima, à direita, um original aerograma, escrito em linhas concêntricas, reproduzido no livro].


É isto, senhores Dr. Salazar e Dr. Marcello Caetano, que vos quero dizer, dar-vos a conhecer a evolução das nossas vidas. A guerra marcou-nos a todos, mas somos hoje companheiros fraternos, camaradas de armas recordando um duro passado comum, em terras que não eram as nossas, mas que continuam a exercer sobre nós todos os fascínios. Fomos obrigados a fazer uma guerra, é verdade, mas a grande maioria de nós também sabia fazer a paz, quase todos tiveram a humanidade e a dignidade de sair de cabeça levantada dessa guerra.

Centenas de milhares de homens passaram pelas guerras de África. Quase nove mil combatentes, no melhor dos seus vinte anos, lá perderam a vida. “Malhas que o império tece”, ou melhor, malhas cerzidas por uma política cega, de que vocês os dois foram os principais fautores.

Os meus heróis são os soldados portugueses que tombaram para sempre numa guerra injusta tendo por horizonte as bolanhas, o tarrafo e o verde e vermelho da bandeira portuguesa, os meus heróis são esses guerrilheiros anónimos do PAIGC que caíram no seu campo de luta.

A Guiné

O velho Confúcio, nascido na China antiga no ano de 551 a.C., disse mais ou menos o seguinte: “Se conheces, actua como homem que conhece, se não conheces, reconhece que não conheces. Isso é conhecer”.

Como, apesar dos meus 62 anos, conheço ainda tão pouco, devo confessar-vos, Drs. Salazar e Marcello, que neste blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné tenho aprendido muito sobre o que aconteceu nos onze anos de guerra na Guiné e sobre esta essência tão obtusa de sermos portugueses.

Os testemunhos dos homens que viveram o conflito é sempre e naturalmente plural. Os nossos dois anos de Guiné tiveram cenários e tempos diferentes, as terras fulas de Bafatá e Nova Lamego (Gabú), o chão manjaco, com o Cacheu e Teixeira Pinto (Canchungo), Mansoa e o Morés, no sul, as terras do Tombali e do Cantanhez. Diversos espaços de luta, de excelente, extraordinária camaradagem e também de sofrimento. Ora, a Guiné dos anos 1964, 1967, 1970, 1972 ou 1974 não corresponde exactamente a um mesmo enquadramento logístico e estratégico. A guerra prolongou-se por onze anos. Depois, hoje escrevemos de memória, trinta e tal, quarenta e tal anos transcorridos. E a memória esquece, distorce, obscurece, exalta o entendimento.

Mesmo assim, muitos dos testemunhos dos ex-combatentes neste blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné assumem-se como marcos fundamentais das nossas vidas, imprescindíveis para entender quem fomos e somos.

Recomendo-vos vivamente a leitura do blogue, Profs. Salazar e Marcello.

Transparece, no entanto, em alguns dos textos publicados no blogue, reflexo também de falsas ideias feitas em estratos da sociedade portuguesa, uma constante ideológica de assumir culpas, de lançar culpas para o parceiro do lado, de subestimar as forças militares portuguesas e, lógico, de sobrevalorizar o poder dos guerrilheiros do PAIGC. Política, má política.

Fomos obrigados a combater contra povos pobres que acreditavam lutar por um futuro mais risonho para as suas pátrias. Não fomos militarmente derrotados. Porque, quase sempre fomos bravos, “forte gente” com “fracos reis”, como diria o nosso Camões.

Mas, V. Exª., Dr. Marcello Caetano, com algum fundamento, estava assustado com o que acontecia na Guiné, a partir de Abril de 1973, com os mísseis Strela e com a debandada de Guileje. Em Lisboa, com censura nos jornais, sem liberdade de imprensa, corriam extravagantes boatos. Dizia-se de boca bem aberta, mas à boca calada, que os aquartelamentos portugueses no sul da terra guineense caíam uns após outros. Contava-se que um quartel, a 30 quilómetros de Bissau, havia sido tomado pelo PAIGC, com centenas de mortos. Em Junho de 1973, à noite, às escondidas, em muros da cidade de Coimbra, alguém escrevia : “se tem o seu filho na Guiné, considere-o morto.”

Em V. Exª., Dr. Marcello Caetano, a preocupação crescia. Em Junho de 1973, mandava chamar o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Costa Gomes, recentemente regressado da Guiné e perguntava-lhe:

--A Guiné é defensável e deve ser defendida?
(…) A resposta do General Costa Gomes foi categórica:

-- No estado actual, a Guiné é defensável e deve ser defendida.”

(in Marcello Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1974, pag.180.)


A menos de um ano do 25 de Abril, Costa Gomes considerava a Guiné “defensável”, o que era verdade em termos militares. Sim, mas à custa de tantos sacrifícios!… Quanto ao “deve ser defendida” era a perpetuação da tese política da defesa cega das terras africanas do império.

A Guiné-Bissau tornou-se um país independente a 23 de Setembro de 1974 e logo depois Costa Gomes chegou a Presidente da República portuguesa. As malhas rotas que o império tece.

Conclusão

António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano, Excelências

Espero que tenham lido com atenção esta minha despretensiosa carta. É apenas um desabafo do coração, mas espero que, graças ao fantástico e extra-terreno blogue do Luís Graça, tenha chegado ao vosso mundo.

Nós hoje, somos ainda uns duzentos mil ex-combatentes da Guiné. Sexagenários e septuagenários, jamais esquecemos esses cada vez mais distantes dois anos das nossas vidas. Penso que não combatemos pela Pátria salazarista e marcelista mas por um Portugal e uma Pátria que nos circulava no sangue e no entendimento. Essa Pátria não nos pode ser negada. Era, é a nossa terra, eram, são as nossas gentes.

Com vinte e poucos anos, quase todos nós demos o melhor de nós próprios (às vezes a própria vida) numa guerra que não desejámos. Mas temos orgulho na nossa bandeira e nesse estranhíssimo sortilégio de se nascer português.

Homens, ex-militares da Guiné, somos hoje duzentos mil irmãos.

Saúda-vos, com pouca amizade, o

António Graça de Abreu
____________

Nota de L.G.:

(*) Poste anterior desta nova série > 25 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7034: Carta aberta a... (1): Camarada (de armas) António Lobo Antunes (António Graça de Abreu)

Guiné 63/74 - P7293: Blogoterapia (167): A 2339, a CART 2339 (Torcato Mendonça)

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 14 de Novembro de 2010, dirigida ao seu camarada de Companhia, Carlos Marques Santos:

Carlos Amigo:

Aí te mando um anexo. Não é muito semelhante ao que navegou ciber-espaço fora. Não faz mal. Sabes,  foi melhor assim. Escrever sobre a 2339 deve ser escrita cuidada. Fala-se e não se escreve.


Também não quero fazer comparações. Nada disso. Fomos uma Companhia Independente. Primeiro ligada ao Bart 1904 e depois ao BCaç 2852. Tive estima pelos comandantes. O do 1904 recebeu a Companhia em Évora e o do 2852 veio connosco no regresso.


Um abraço forte e fraterno para todos do T.


A 2339

Carlos,  o Luís Graça diz e eu vou adoptar o sistema. Escrevi demasiado e talvez por isso borregou.
Não sou capaz de repetir. Fiz a escrita com ganas. Talvez fosse melhor.


Vocês, do terceiro, foram render-me a Galomaro, uns dias, longos, depois. O Historial da Companhia é… o que é. Um grupo em Galomaro, um em Candamã…. Desenfiados…

Viemos, cito de cor mas está escrito, de Cansamba (Galomaro), com passagem e briefing em Bambadinca em meados de Agosto. Finalidade: encontrar acampamento IN que atacara Candamã e Áfia. Só regressam quando quando estiver tudo “tratado” – Cor Felgas dixit!

Fomos, descobrimos, fizemos a operação com os Páras e tu com teu Grupo trataram de arrumar contas com os “fugitivos”. Uns viajaram para junto dos deuses e o chefe Mamadu Indjai para o hospital em Conacry. Teria chegado? Deves saber o que fizeste.

Dizia eu, no comentário que navega pelo espaço, que há tropa e tropa. A 2339 estava sempre no embrulho. Tudo bem e habitáamo-nos e nem queixume deve ser feito. Mas:

Leio certos textos e dizem que a tropa estava mal preparada… outros que a instrução era dura… uns celebram com yaaaaa e outros com yeeee. Uns dizem NT e IN e outros turras e tugas… nós se da mata vinha “tuga, tuga” fazíamos fogo e dizíamos filhos de puta. Tudo bem.

A nossa especialidade – tua, minha e da maioria dos graduados da 39 CSM ou COM – foi o que foi. Logo no segundo dia toca a levantar, correr e saltar, um bocado de pão e um tubo de leite e marcha… a noite de Janeiro veio gelada, a fome atormentava, as mãos enregelavam… eu mão direita na gaita e mijava quentinho na esquerda… calculada a metade fazia o inverso. A madrugada chegou geada e o Capitão Comando, tronco nu,  barbeava-se… e nós, salta, corre macaquinho. O dia decoreu e só á noite ao quartel chegamos. Comida? Não! Só dormida.

Foi determinante para a Guiné e os nossos camaradas, soldados da 2339, assim foram instruídos. Antes de dar instrução, já mobilizados creio eu, uns foram para Tancos e outros para Lamego. Recordo o presunto de Lamego, um peixe que nunca tinha comido - truta, a pensão do desenfianço, o galho, a Torre da Igreja e o gozo que aquilo deu enquanto durou…

A 2339 tem muito que contar. O camarada aos bocados nas árvores devia ser na estrada Mansambo/Bambadinca, na zona das emboscadas a seguir à primeira ponte. Está escrito nos Filhos de um Deus Menor. Foi no dia 2 de Abril de 1969.

A nossa zona era boa e Galomaro aqueceu e também assim ficou boa como a merda. A Inteligência Militar não queria acreditar que eles tinham, com a saída de Béli e Madina, o corredor aberto. Nem o Administrador de Bafatá. A 2405 que diga.

Fiz uma ou duas colunas loucas, antes da estrada Mansambo/Xitole estar aberta, por Galomaro, Dulombi, Quirafo (gostava de ter caído numa emboscada do tal hoje Cor Malu… com canhão… em cima da população). Conversávamos, claro, amigavelmente. E íamos até ao Saltinho e Xitole. Uma parvoíce. Coluna com vinte ou trinta carros, civis e uma moto-niveladora da Tecnil… nós trinta? Com mecânicos reforço de arma pesada…

Falas na água… e eu a ser evacuado para Nova Lamego, língua e lábios rebentados, meio grogue da febre… e a enfermeira pára-quedista a injectar e eu sem sentir. Quantos meses sem beber água potável? Uma bebida fresca ou comida… só comida de gente.

Fizemos o que tinha que ser feito. Uns talvez tenham acreditado e pensado estar a defender a Pátria, outros diziam que sim e aguentavam, outros nem sim nem não ou: tenho o dever de defender-me e aos homens que comando e, para isso, sou pago… outros…

Não guardo rancor e compreendo o IN, lutavam por algo que acreditavam. Tem isso muita força. Pena nem sempre resultar. Se lutavam com a lealdade possível, tudo bem. Não esqueço certos acontecimentos e não perdoo. Eles também não e têm mais problemas do que eu. Para mim há a Espécie Humana. Só! E do outro lado…?

Vê tu, Amigo,  que tenho saudades. Sou homem de paz, muita paz mas…

A 2339 é, isso sim, uma saudade e algo que sinto e não consigo descrever, uma parte de minha vida, uma parte de mim. Ela, a 2339, e todos os que nos rodeavam milícias, picadores… etc.

Só fui a dois Encontros. Do primeiro vim tão amarrotado mas feliz por ver aquela gente. Ao outro porque pensei não voltar a ver os meus camaradas. Erro meu e um dia ainda apareço.

Carlos,  deixa-me abraçá-los fraternamente a todos, os de cá e os de lá, a estes Tertulianos e, sem problemas aos que outrora me, nos, combateram. Ainda ao Povo das Tabancas, em especial… a certas gentes de que guardo para mim.

Isto é um teclar até ao infinito… não cabe,  vai em anexo. És o culpado de eu escrever e de ter entrado neste Espaço (blogue) de afectos, de sensibilidades diversas e de pluralidade de homens e mulheres que sentem a amizade.

Oxalá.

Um abraço Fraterno.
Faço CC e vai para os Editores.
Abraço a todos do Torcato
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7248: Ser solidário (94): Tenho tanta pena do que acontece e louvo o trabalho da Catarina Furtado (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7260: Blogoterapia (166): Virar as costas sem se despedir (José Eduardo Alves)

Guiné 63/74 - P7292: Blogpoesia (86): Grito de protesto (Manuel Maia)

1. Mensagem de Manuel Maia (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74), com data de  12 de Novembro de 2010:

Caro Carlos,
Aqui vão cinco sextilhas que se entenderes editar colocarás onde achares mais adequado.


GRITO DE PROTESTO

Daqui vos grito amigos, camaradas,
das noites não dormidas nas picadas,
dos medos, da insegura permanência...
É tempo d`outro tempo ser imposto
àqueles que cuspiram nosso rosto,
negando-nos direito à assistência...


É tempo de dizer já chega, basta,
suster azar, travar sorte madrasta,
forçar poder com duro manifesto...
Servimos o país com dignidade,
à pátria demos nossa mocidade,
mer`cemos tratamento mais honesto...


Acesso aos militares hospitais,
reformas aos sessenta, nem um mais,
sem cortes, sequer penalizações...
Passado o meio cento, pouco falta,
p`ra quem sofreu na pele como a malta,
é bom que não tenhamos ilusões...


Exija-se às "mil" associações,
de combatentes, ligas, em funções,
intervenção na esfera do poder...
Se fomos dita carne p`ra canhão,
respeitem veteranos que cá estão,
vivendo, mas cansados de sofrer...


Foi geração sofrida, a dessa guerra,
d`Angola, Moçambique e de "nho terra",
a merecer velhice repousada...
Sejamos inflexíveis na exigência,
forcemos o poder a ter decência,
p`ra respeitar-nos antes de mais nada...


abraço
manuelmaia
__________

Notas de CV:

(*) Poste de 11 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7263: Blogpoesia (85): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (8) (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P7291: Estórias avulsas (100): A mina, que seriam duas (António Branquinho)

1. Mensagem de António Branquinho, ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 63, Fá e Missirá, 1969/71, com data de 20 de Setembro de 2010:

Caro Carlos Vinhal
Caso assim o entendam, em anexo, envio um texto e fotografias com vista a uma possível publicação no Blog.

Um abraço
António Branquinho


A MINA, QUE SERIAM DUAS

Missirá, pelas 6 da manhã, preparação e início de mais uma operação de rotina.

António Branquinho > Enxalé em 1971

O Pelotão tinha sido “convocado” para proceder a uma operação de reconhecimento e patrulhamento, conjuntamente com outros dois grupos de combate. Tínhamos ainda como objectivo, desactivar uma mina anti-pessoal, detectada há já muito tempo.

Durante o percurso íamos passando por locais paradisíacos, com palmeiras, mangueiros, outras árvores exóticas e pequenos cursos de água. Se não houvesse guerra e tivesse dinheiro, não me importava de construir uma vivenda num daqueles locais. Maldita guerra!

Ia eu nestas cogitações, quando me dá uma valente dor de barriga. Desta situação avisei o Jorge Cabral, como comandante do Pel Caç Nat 63, informando-o que iria sair do trilho para fazer uma necessidade fisiológica. Estava eu, a preparar-me para baixar as calças, quando se ouve um violento estrondo. De imediato, ponho-me a correr em direcção à cabeça da coluna, ainda com as calças em baixo. Sabendo da existência da tal mina, corri de imediato ao encontro do Jorge Cabral, pensando que a mesma tinha sido accionada pelos elementos da frente. Por sua vez o Jorge Cabral pensou, que eu ao sair do trilho teria accionado outra mina. Encontrámo-nos ao meio do percurso, em direcções opostas, ficando ambos estupefactos e felizes por estarmos sãos e salvos.

Como seria de esperar, gerou-se uma certa confusão. Após a acalmia das “tropas” e de se averiguar a situação, constatou-se que tinha rebentado uma mina (reforçada com granada de canhão sem recuo), na retaguarda da coluna. Tendo esta provocando dois mortos e vários feridos, uns graves e outros leves.

Perante esta situação, via rádio, pediu-se a evacuação dos elementos atingidos pelos estilhaços da mina. De imediato procedeu-se à organização da segurança a prestar aos meios aéreos.

Bambadinca > À porta do Depósito de Géneros, com o 1.º Cabo Injai, do Pel Caç Nat 63.

Há já cerca de duas horas, que os grupos de combate estavam devidamente instalados, quando se ouviu o som característico dos helicópteros. Eram dois. Voando em círculos, aterraram numa clareira. Do seu interior saíram duas enfermeiras pára-quedistas para se inteirarem da situação. Verificaram que além dos feridos havia dois mortos, recusaram de imediato o transporte destes, levariam só os feridos. Comunicaram esta decisão aos pilotos, com a qual eles concordaram. Ao aperceber-me daquela decisão, pedi-lhes para que transportassem também os mortos. Mantiveram a sua posição, dizendo:

- Não levamos os mortos!.

Perante as suas atitudes drásticas, quanto ao meu pedido “passei-me”. De modo, bastante drástico e enervado, empunhei a G3 em riste, puxei a culatra atrás e vociferei:

- Levais os mortos ou… dou-vos um tiro nos c….!

Como seria óbvio, eu não daria nenhum tiro, era só “ronco”. Uma coisa é certa – levaram também os mortos.

Em consequência de todas estas peripécias, não mais me lembrei da dor de barriga. Lembrei-me sim, ao regressarmos a Missirá de beber não sei quantas “bazucas” para matar a sede.

Missirá > 1971 > A criança é filho de um soldado do Pelotão

Enxalé > 1971 > À esquerda o Fur Mil Pires do Pel Caç Nat 63. Eu à direita. Dos outros não me lembro os seus nomes.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7029: Tabanca Grande (246): António Branquinho, ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71)

Vd. último poste da série de 13 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7278: Estórias avulsas (99): Flora e Fauna de Galomaro (António Tavares)

Guiné 63/74 - P7290: (De) Caras (7): Titina Silá poderá ter sido morta por forças do Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 8 (Comandante Alcindo Ferreira da Silva)




1. Mensagem de Alcindo Ferreira da Silva, um camarada nosso, comandante da Marinha, professor, especialista de ensino à distância, com obra publicada:

Data: 15 de Novembro de 2010 21:54
Assunto: Blog Luís Graça e Camaradas da Guiné

Caros senhores

Um amigo chamou-me a atenção para a uma notícia sobre a morte da guerrilheira Titina Salá [, foto à direita,] em 30 de Janeiro de 1973 no decorrer de um encontro com botes de fuzileiros no rio Cacheu publicada no vosso blog. (*)

Como me encontrava por esses lados na data referida, a curiosidade levou-me a consultar os meus arquivos dessa época.

Na altura encontravam-se sediados em Ganturé dois Destacamentos de Fuzileiros Especiais. O DFE8 e o DFE12, pelo que a ter acontecido esse encontro teria de ser com estas unidades.

Consultando os arquivos e notas que guardo, não encontro qualquer referência a contacto com o IN no dia 30 de Janeiro.

No entanto nos dias 31 de Janeiro e 1 de Fevereiro, durante o decorrer da Acção Salisburia há referências que podem ter  alguma coisa a ver com o acontecimento relatado.

No dia 31 pelas 1630 duas parelhas de botes do DFE8 interceptaram e atacaram um bote de borracha com 8 elementos armados perto da clareira do Jagali. O pessoal que seguia no bote lançou-se ao rio e, ao mesmo tempo, a parelha de botes que seguia à frente foi atacada da margem sul do rio Cacheu. Os botes reagiram e com a protecção da segunda parelha recolheu-se o bote abandonado e retirou para fora da clareira pedindo e regulando o fogo de obus enquanto eram flagelados com fogo de morteiro. 

A LFG Sagitário chegou ao local cerca de 20 minutos depois e bateu com fogo as duas margens do rio. O pessoal dos botes desembarcou de seguida, mas foi mandado retirar porque eram poucos homens e tinham esgotado quase todas as munições.

No relatório da operação referem-se baixas prováveis no IN. Uns dias depois receberam-se notícias de teria morrido nesse recontro várias pessoas entre as quais um cubano de nome Alexandre, instrutor/mecânico de Armamento que se dirigiria para o Morés.

No dia 1 de Fevereiro, na mesma zona num patrulhamento ofensivo realizado pelos DFE8 e DFE12 foram detectadas marcas da presença de muito pessoal e capturado material diverso e uma canoa de 6 metros abandonados .

Se a morte de Titina Salá se verificou realmente no dia 30 de Janeiro numa acção dos fuzileiros isso só poderia ter acontecido num disparo sobre qualquer movimento suspeito na margem, acções essas que, por serem muito frequentes, não eram registadas.

Com os melhores cumprimentos
Alcindo Ferreira da Silva




Guiné > Região do Cacheu > Rio Cacheu > Ganturé-Bigene > "NRP Sagitário: 20-12-71. Feliz Natal".O fotógrafo estava lá... 

Uma foto muito feliz do Cmdt A. Rodrigues da Costa, gentilmente disponibilizada pelo ex-1º Tenente RN Manuel Lema Santos, que esteve connosco na Tabanca Grande até há poucos meses, e que é webmaster do sítio Reserva Naval.

Foto: © Manuel Lema Santos  (2006) (com a devida vénia ao Cmdt A. Rodrigues da Costa). Direitos reservados.


2. Comentário de L.G.:

Caro comandante Alcindo Ferreira da Silva (se é que o posso tratar assim), caro camarada, ex-combatente da Guiné, caro colega das lides pedagógicas: Estou-lhe grato pelos esclarecimentos que, de pronto, nos quis prestar. 

Qualquer dos cenários sobre a morte da Titina Silá que nos apresentam,  são verosímeis:   (i) a 30 de Janeiro de 1973, vítima de disparos efectuados sobre a margem sul do rio; (ii) 31 de Janeiro, por volta das 16h30, quando os dois botes do DFE 8 interceptam um bote do PAIGC com 8 elementos armados...

É possível a partir daqui apurar mais pormenores. O meu muito obrigado. Em nome da nossa Tabanca Grande. E do direito que todos temos, portugueses e guineenses, à informação e ao conhecimento, objectivo,  sobre a realidade (histórica) da guerra da Guiné (1961/74). 

Espero que apareçam mais antigos camaradas da Marinha que nos possam adiantar mais esclarecimentos sobre as circunstâncias da morte desta importante dirigente do PAIGC, ainda hoje envolta na penumbra da lenda. No fundo, o que ficará para a posteridade (se deixarmos morrer todas as testemunhas deste acontecimento, de um lado e do outro)  é a letra da canção, é o mito, é a construção social da heroína: " “Titina na riu di Farim, Titina nada i tchiga na metadi i fasi força pa iangasa kanua tuga odjale i kunsa lança bumba…” (...)

3. Comentário, a este poste,  do Nelsom Herbert, com data de 16/11/2010:

(...) A versão do ataque de 31 de Janeiro pelo destacamento de fuzileiros não difere da contada pelos guerrilheiros sobreviventes que acompanhavam na altura Titina Sila... Surpreendidos pelo fogo intenso dos fuzileiros, os ocupantes do bote ou canoa tiveram que se atirar ao rio... alguns feridos, caso da Titina Sila... que terá ainda chegado viva, mas gravemente ferida às margens do rio...

V
a-se ver que a data foi mesmo 31 de Janeiro..."instead of" [em vez de]  30 de Janeiro ! (...)

________________

Nota de L.G.:


(*) Vd. poste de 14 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7281: (De) Caras (6): Titina Silá (1943-1973), morta duas vezes, pelos fuzos e pelo esquecimento... (Nelson Herbert / Luís Graça)