segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7508: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (20): Jorge Picado, o nosso querido capitão ilhavense

1. Mensagem do nosso querido camarigo Jorge Picado (para quem essa época do ano está inevitavelmente associada à perda, em 26 de Novembro de 2007, da companheira de uma vida, mãe dos seus filhos e avó dos seus netos) (*) 

Data: 21 de Dezembro de 2010 15:50

Assunto: Natal da Tabanca Grande

Nesta quadra natalícia em que mais um ano chega ao fim e um novo se aproxima, não quero deixar de me dirigir a todos os meus companheiros de Tabanca, pois a minha "ausência" poderia significar esquecimento.


Se não o fizesse, quero que saibam que não seria esse (esquecimento) o motivo, pois que desde que aderi a este espaço, não mais deixei de vos ter sempre presentes, no pensamento, tal como aqueles com quem partilhei os dois anos de Guiné. 

Porém eu sou como sou e "burro velho já não muda", como também é costume dizer-se, e há duas épocas no ano que não são muito do meu agrado. Uma é precisamente esta. A outra é a da Páscoa. Não me perguntem qual a razão, já que não saberei explicar.

Assim, a todos os CAMARIGO(A)S desta TABANCA GRANDE e àqueles das OUTRAS TABANCAS que se foram multiplicando e que não tenham ainda aderido à sombra do POILÃO-MOR, bem como suas Famílias, daqui desta Terra de ex-marinheiros onde o "fiel amigo" reinava e agora se importa, desejo-vos UMAS FELIZES CONSOADAS, com muita Saúde, Paz, Amor e um ANO de 2011, a que não chamo de novo, pois todos já sabemos que vai ser mesmo velho, talvez como nos inícios do passado Séc.XX, para não recuar mais, mas como dizia, um 2011 sem mais PEC´s, pelo menos e muita SAÚDE, para o enfrentar.

Abraços, do tamanho do Mansoa ao Cacheu, de um dos mais velhos

Jorge Picado
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Notas de L.G.



(*) Maria José de Senos da Fonseca Picado (1938-2007) foi a co-fundadora e dirigente da CASCI (Centro de Acção Social do Concelho de Ílhavo), uma notável obra de solidariedade, com mais de 300 funcionários que benefica muitas centenas de cidadões e suas famílias (900 utentes) não só de Ilhavo como de concelhos limítrofes. Faleceu, nova,  aos 69 anos, em 26 de Novembro de 2007. Era carinhosamente conhecidacomo a Dona Zeca.
Sucedeu-lhe na presidência da direcção o seu irmão Senos da Fonseca. 


Segundo informação do Diário de Aveiro, no final de 2007 as valências do CASCI espalhavam-se pelas seguintes localidades (i) Costa Nova (Centro de Infância com creche, jardim-de-infância e ATL, Departamento de Educação Social, Centro de Reabilitação e Formação Profissional para pessoas com deficiência e Centro de Apoio Ocupacional para pessoas com deficiências graves), (ii) Barra (Centro de Infância com creche, jardim-de-infância e ATL), Colónia Agrícola (Centro de Reabilitação e Formação Profissional da Gafanha para pessoas deficientes) e (iii) Ílhavo (Centro de Infância com jardim infantil, ATL e escola de educação especial, Residencial para pessoas da 3.ª Idade e Residencial para crianças e jovens portadores de deficiência grave).


Deixou viúvo o nosso camarada e amigo Jorge Manuel Simões Picado. Os seus filhos Ana Constança, Jorge Manuel, João e José Senos da Fonseca Picado já existiam quando o pai, engenheiro agrónomo, foi chamado para a Guiné, com 32 anos (se nãp erro)  como comandante operacional. [Foto acima, a amorosa casa da família, na Costa Nova] (L.G.) (**)

(**) Último poste desta série > 

 25 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7502: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (19): José Barros Rocha, de Penafiel, ex- Alf Mil, CART 2419 (Mansoa, 1979/70)

   

Guiné 63/74 – P7507: Parabéns a você (193): José Pedro Neves (ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 4745 (Editores)


1. Completa hoje o seu 59º Aniversário o nosso Camarada José Pedro Neves, que foi Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 4745/73 - Águias de Binta,
Binta, 1973/74:
O pedro Neves com o seu jovial e amigo pai na festa da Natal RANGER em Fátima
O Pedro Neves na festa Anual da Associação de Operações Especiais, com a sua inseparável esposa Ana
Fotos: © Magalhães Ribeiro (2010). Direitos reservados.
2. Em nome do nosso Camarada Luís Graça, colaboradores deste blogue e demais elementos desta tertúlia “tabancal” desejo, que no festejo de mais este aniversário, sejas muito feliz junto da tua querida família e que esta data se repita por muitos, bons e férteis anos, plenos de saúde, felicidade e alegria.
Que por muitos mais e boas décadas, este "aquartelamento" de Camaradas & Amigos te possa enviar mensagens idênticas a esta e às que hoje lerás no “cantinho” reservado aos comentários.Estes são os sinceros e melhores desejos destes teus Amigos e Camaradas, com um grande abraço
fraterno.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

20 de Dezembro de 2010 >
Guiné 63/74 – P7476: Parabéns a você (192): José Casimiro Carvalho (ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAV 8350 (Miguel Pessoa & Editores)

domingo, 26 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7506: Tabanca Grande (256): João Bonifácio de volta ao Canadá, desiludido com Portugal

1. Mensagem do nosso camarada João Bonifácio* (ex-Fur Mil SAM, CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2010:

Olá Amigos da Tabanca.
Em primeiro lugar desejo a todos um Feliz Natal com as vossas famílias e um Ano 2011 com SAÚDE, já que como sabem, a partir de agora é só Ski Alpino.

Cá estou de novo, depois de uma longa ausência.

Como todos sabem, ou pelo menos alguns que visitam a Tabanca para saber das novas, eu consegui sobreviver a esta entrada brutal que fiz em Portugal, ainda no inverno passado.

Não vou aqui falar de Portugal, pois todos vós sabeis muito mais do que eu, em especial se levarem em conta que vivi no estrangeiro 37 anos, mais propriamente no Canadá, um país digno e que prima pela sua maneira de estar no mundo, onde os seus cidadãos são tratados como humanos. Enfim, a verdade é que desde 2007 e com a aproximação da minha reforma, eu comecei a sonhar, que talvez não fosse má ideia regressar ao meu país de origem, em especial pelo seu clima ameno e tropical, onde apesar da humidade, os invernos seriam toleráveis. A verdade é que o sonho bem depressa se começou a transformar no maior pesadelo da minha vida, e nisto e em termos de comparação, a minha estadia na Guiné, até se pode dizer que foram umas férias de 21 meses.

A escritura da casa não foi em Janeiro mas só em fins Maio e isso me obrigou a aceitar o favor de uns cunhados, com quem partilhei a vida durante 3 meses e meio. Nesta altura, todos já compreenderam que esta situação e intolerável para qualquer humano. Com toda a boa vontade possível, a verdade é que eu comecei a sentir muita ansiedade e os nervos começaram a transformar o meu dia-a-dia num inferno autêntico. Em Julho mudei para a minha casa, mas o estrago estava feito. A esposa começou a sentir os efeitos de tudo o que se tinha passado, e por duas vezes tive que visitar os serviços de urgência do hospital Garcia da Horta em Almada. Na segunda visita eu achei que já chegava de sofrimento, pois é fácil tomar decisões quando se passam 8 horas num serviço que não funciona e onde tudo falta, até a higiene, para não falar da falta de pessoal e os modos como tudo se mexe à volta dos doentes.

Foi ali que eu jurei e prometi a minha esposa que iríamos regressar ao Canadá. A verdade é que nos não podemos criticar o que existe, pois muita gente acha e me tem dito que o Hospital é excelente. Contudo, ao fim de 37 anos, nos estávamos habituados a outros “standards”, e por isso sentimos que a adaptação de minha esposa iria ser muito complicada. Este Natal ira ser, assim o espero, o primeiro e o ultimo que aqui passamos. Portugal, e nem falo da crise económica, pois irei sair bem derrotado, é um país onde é urgente que os hábitos e os modos de governar dos políticos tem de ser alterados. É flagrante o modo como toda a gente pode ver quanto mal eles fazem ao povo em geral com as suas leis protectoras dos grandes interesses económicos, mas ninguém pode fazer nada para resolver ou pelo menos minimizar os problemas.

Tudo junto, podemos apenas acreditar que também este pesadelo se ira resolver, como o meu. Portugal, é sem duvida nenhuma um país com uma localização previligiada, mas muita coisa terá de ser alterada, se deseja ser reconhecido como um grande pais de turismo. Para mim seria bom, pois poderei sugerir o meu país aos amigos que deixei no Canada. Mas para isso o Governo terá de resolver o problema da segurança dos seus cidadãos. De momento, Portugal é um país sem lei, e onde todos nós vivemos com medo de podermos passear a noite.

Meus amigos, esta foi a experiência da minha vida, com muitos efeitos negativos, mas também meia dúzia de positivos. Apesar da sua modernidade, e de tanto se falar em TGV’s, Portugal e os portugueses precisam de um bom sistema de saúde onde os impostos que se pagam sustentem o mesmo sistema. Precisamos que os preços de roubo dos combustíveis suportem o custo das portagens, e os portugueses não paguem por terem de se movimentar. Terão de olhar o futuro com outra motivação, olhando para os jovens de hoje como os governantes de amanhã. Tratarem com dignidade os idosos, que em Portugal e de um modo geral, são seres descartáveis, tanto pelo sistema social como pelas bases estruturais familiares.

Amigos, eu levo o meu coração muito ferido pelo que aqui tive oportunidade de assistir. Eu sei que nada poderei fazer para mudar as coisas, mas tenho a firme certeza, de que pelo menos, a minha vida ou o que dela eu poderei ter, será muito mais feliz no pais que em 1974 me acolheu com um emocionante “Welcome to Canada”.

Deixo-os com os meus votos e desejos de que tudo vos corra pelo melhor, a nível pessoal e familiar e por favor SEJAM MUITO FELIZES.

Um dia eu voltarei aqui para lhes dar conta da minha camaradagem para com todos vós.

Um GRANDE ABRAÇO aos que continuam a trabalhar neste Blogue.

BOAS FESTAS CAMARADAS e ATÉ UM DIA...

João G Bonifácio
Ex-Fur Mil do SAM
CCAÇ 2402 Guiné, 68/70
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Nota do Editor

(*) Vd. poste de 2 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6093: Tabanca Grande (209): Regressei a Portugal depois de 36 de ausência, mas encontrei a mesma burocracia (João Bonifácio)

Vd. último poste da série de 19 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7473: Tabanca Grande (255): António Clemente (CCAÇ 764, Aldeia Formosa, Colibuía, Cumbijã, 1965/66), apresentado pelo seu camarigo de Tavira, Mário Fitas

Guiné 63/74 - P7505: Blogoterapia (170): A Casa da Praia (Torcato Mendonça)

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 21 de Dezembro de 2010:

Caros Editores
Vai direito ao Carlos Vinhal, ao Blogue certamente e se apanhar o Luís Graça que a ciática, estúpida dor, o deixe de atormentar.

Por isso, pelos meus tormentos do passado, sentei-me e escrevi. Devia ter revisto melhor Mas é Natal e lembrei-me de algo que me atormentou e, porque não, de algo que me foi querido e no Natal seguinte de mim desapareceu.

Vamos perdendo e ganhando neste passar pela vida.

Um Bom Natal para Vocês, para a Familiar e para Todos, crentes ou não desde que sejam Homens de Boa Vontade, de Dádiva e Amor ao Próximo.

Fazem disto o que entenderem é vosso e vosso também é um abração que vos envio,
Torcato


A Casa da Praia

O copo rolava entre os dedos, atravessado pelo olhar a perder - se logo ali ou a projectar-se longe, muito longe, de onde só parte dele voltara.

Para lá voa o pensamento e isso tornava o olhar amortecido, baço, amarrotado.

Buscava o quê e porquê? Por nada? Por uma desejada aquietação, uma adaptação a esta nova realidade diferente e incómoda.

Por estranho que lhe parecesse era o seu mundo. O mundo do seu viver de outrora. Certamente não tinha ficado estático, certa e naturalmente avançara, como na canção - …pulara e avançara como bola… ele não. Por isso ali estava, parado, preso ao breve momento, ao rolar do copo, aos mil pensamentos a irem e virem, tentando aos poucos, sair daquele torpor e caminhar por um novo trilho. Qual?

-Dás-me um cigarro?

Sobressaltou-se e olhou-a. Cabelos negros caídos, olhar amendoado, sorriso leve a sair de uma boca de desejo.

Mal esboçou o gesto de se levantar. Viu-a sentar e sorrir em espera do pedido feito.

- Dá duas ou três fumaças antes. Não gosto do sabor a gasolina do “Zippo”.

Falaram um pouco e pediu para ele a acompanhar à casa da praia.

Já no carro olhava a imensa planície, a charneca, as árvores e, até sobre isso fazia comparações, até nisso estabelecia a diferença com as bolanhas.

- Dá-me outro cigarro e diz-me porque vais tão calado. Estás sempre ausente. De quando em vez pareces desaparecer. Estás diferente, tão diferente

- Observo só e já vejo o mar. Não vale a pena fumares a esta velocidade.

A aldeia apareceu ao fim da recta, numa visão de quietude, casas brancas ladearem a estrada que, aos poucos, se tornara rua.

Sentiu um pouco de frio ao descerem do carro. O cheiro da brisa marítima e o som ritmado da ondulação forte adocicavam o ambiente e acalmavam-no.
Enlaçou-a pela cintura e sentiu o ligeiro estremecer.

- Tens frio?

- Um pouco. Vamos já a casa e depois ao café. Deves querer comer perceves. Tenho uma proposta a fazer-te: porque não passas uns dias aqui, na casa da praia? Fazia-te bem. Pensavas, estavas junto ao mar, eu vinha cá uma ou outra vez. Depois do Natal claro.

Nada disse e nem quis entrar. De facto, talvez ali se encontrasse melhor com ele. Depois do Natal, claro. Este ano iria passá-lo com a família.
O ano anterior passara-o com outra família, o pessoal da CART 2339. Recordava os rostos de seus camaradas, expressões de alheamento ao que se passava em redor, pensamentos a irem para junto de seus familiares. Faziam, mesmo assim, tentativas de ali fazerem Natal. Apareceu bacalhau, talvez liofilizado, batatas e outras imitações para enganarem mentes e paladares.

Natal a quarenta graus, mas era Natal.

Recordava-se de se sentir mais atento, besta militar que era e, por isso mesmo, atento a um possível ataque a Mansambo. Eles estavam logo ali e nada tinham a ver com o Natal ou com a vida deles.

Outrora ou agora era ilha, era um homem só, um sujeito, quer lá ou cá, deslocado, em grande parte, de si.

Houve jantar e alegria em Mansambo, meninos sem prendas, meninos homens de rostos fechados em sorrisos forçados, ali e, todos eles iam muito mais para além, para junto de outros que amavam e a brutalidade imposta não apagara.

Esses outros, estando nesse além para onde parte deles ia, certamente neles pensavam e, porque não, alguma lágrima furtiva pelas caras rolara.
Eles não. A maioria, quase a totalidade, secara as lágrimas há muito. Natal no mato, na mata, naquele lugar erguido por eles e transformado em aquartelamento, em lugar de viver, de lutar. Lugar a muito e a nada dizer.

Sentiu o leve toque dela e disse-lhe de pronto.

- Aceito. Depois do Natal venho até cá uns dias Só. Eu e o ruído do mar podemos encontrar um caminho. Espero que não o das caravelas.

- Pensas voltar? É isso que queres? Ainda?

- Irei pensar e certamente encontrar-me melhor. Percebes?

Porque não vamos á procura de perceves ou de uma sapateira…?

Hoje, quarenta anos depois, recorda ainda quanto foi difícil adaptar-se à vida civil… tanto tempo, tantos Natais depois de só um por lá passado.

Quase Natal de 2010
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Notas do Editor:

(*) Vd. poste de 14 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7435: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (26): Siga a Marinha (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 26 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7503: Blogoterapia (169): Para quando um Soldado Deconhecido das últimas guerras de África? (José Belo)

Guiné 63/74 - P7504: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (7): O primeiro dia no Cuor

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2010:

Malta,
Foi um dos dias mais tumultuosos da viagem. É melhor suspendermos a narrativa em Missirá, tenho muitas responsabilidades com a viagem que vou fazer a Mato de Cão e Chicri. Em Mato de Cão vou recolher imagens do que resta do destacamento. E Chicri, asseguro-vos, continua a ser um dos lugares mais belos do mundo.
Tudo isso será contado amanhã, tenho responsabilidades com quem calcorreou estas paragens ou ali viveu.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (7)

Beja Santos

O primeiro dia no Cuor

1. Ainda não são sete da manhã, o Tangomau põe-se de sentinela a olhar o sereno, parece algodão em rama muito fino, uma evaporação por cima de Bambadinca e das bolanhas da Ponta Nova e Finete. Antes que cheguem Calilo e Iaguba, convém pôr alguma ordem nos apontamentos dos primeiros dias de viagem. Gente de todas as idades, muitas vezes anunciando-se com cantilenas, descem do Bairro Joli para a fonte de Ponta Nova, para baixo vão lampeiros e coleantes, para cima não dissimulam o peso da água em contentores por vezes desmesurados. O Tangomau interroga-se se deve voltar ao HM 241, quando regressar a Bissau, o que viu na noite da chegada e durante as andanças entre Bissalanca e Bandim justificam, sopesados os argumentos, que não, há um limite para observar as ruinas, os escombros ou até aquele cego desdém ao património colonial. Escreve no caderninho: não voltar, não voltar também ao Mercado Central, recusar uma visita a Bafatá. Pelo contrário, tudo fazer para percorrer a estrada entre Amedalai e Moricanhe. E mais anotou: só para abraçar estes queridos amigos, valeu a pena, o Madjo Baldé, o Djiné, o Zé Finete, o Sadjo, o Mamadu; o ter encontrado Dungo Queta, o guarda-costas do Jorge Cabral, que prometeu entregar a lista dos soldados. Na véspera, o homem grande, Fodé Dahaba, foi categórico: “Amanhã vamos para o Cuor, primeiro vamos a Madina de Gambiel, depois Cancumba e depois Missirá. Ficas a saber que Missirá te prepara uma recepção. No regresso vamos a Mato de Cão e Chicri. Mas se ficarem coisas para ver, não te preocupes, voltamos lá”. O Tangomau replicou, quase indignado, que havia muito mais coisas para ver: Então Finete? Então Malandim? Então Gambaná? Então Canturé? E Gã Gémeos? E as novas tabancas de Sansão e Maná? O homem grande encolheu os ombros, por esta é que ele não estava à espera.

Abudu (Abudurramane Serifo Soncó) em casa do Tangomau, durante uma sessão de preparativos para a viagem. O dia vai-lhe ser dedicado. Ele vai para Lisboa em 1996, na esperança de amealhar uns tostões para educar os filhos. Abandonou a profissão de professor e atirou-se à construção civil em Portugal. Tudo foi bem até aos enfartes do miocárdio. Que ele fique a saber que o carro de combate que leva Fodé, Mamadu Djau, Sadjo Seidi, Madjo Baldé e o Tangomau, entre outros, se encaminha para o interior do Cuor recordando as suas saudades da terra natal. Dentro em breve o Tangomau vai beijar Mama Mané, a sua mãe octogenária, que fugiu espavorida de Missirá, depois do ataque de 19 de Março de 1969.


2. Chegam os meus acompanhantes, nova grande surpresa: Dauda Seidi, que foi soldado milícia em Missirá, e que vive agora em Cambessé, perto do Xitole, vem abraçar-me, vai seguir connosco para o Cuor. Seguimos para as compras, o Tangomau foi estupidamente aldrabado no talhante, deram-lhe carne de vaca podre. No dia seguinte ele irá perorar e imprecar em frente do farsante: “Rachid, que o Profeta à porta do paraíso te obrigue a comer durante um ano a carne que me vendeste!”. A viagem segue o seguinte itinerário: contornando Bantajã, segue-se para a bolanha de Finete; na estrada de Bissau, vira-se à direita, como se fôssemos para Canturé, vira-se então à esquerda e caminha-se já com os grilos estridentes na velha estrada de Gambaná, como se fôssemos para Cancumba. Nova guinada à esquerda, o Tangomau está desorientado e por duas razões: o carro de combate de Fodé vai praticamente com as rodas da esquerda no ar, se ele não morrer de acidente, é fatal como o destino que nunca mais morrerá de acidente; e o que se chama Gambiel vai dar origem a muita discussão, toda esta peregrinação sinuosa anda à volta do rio de Biassa, segue para Sancorlã, o que eles chamam Gambiel é pura fantasia, entrámos nas florestas de algumas das madeiras mais exóticas do mundo, é uma atmosfera de grande aridez, é uma paisagem familiar, fazia parte dos 16 itinerários que o Tangomau traçara para chegar a Mato de Cão. Este era um dos calvários da época seca, sofria-se bastante à ida ou à volta, quando se apanhava a fornalha do sol. O Tangomau gritou até que todos se calassem mesmo os habitantes da localidade: isto não é Madina de Gambiel, é Madina de Biassa!

É aqui que o Geba separa Bambadinca do Cuor. O Tangomau ainda insistiu em cambar para a bolanha de Finete, fazê-la a pé como nos bons velhos tempos de viatura avariada em que toda a gente carregava a comida e as munições à cabeça. Só que o trilho se transformou numa estreita linha de passagem, para quem tem a coluna num oito não é viagem recomendável. Entendeu-se, pois, que se devia aproveitar o alcatrão até perto de Canturé e depois aproveitar as velhas estradas. Começava a peregrinação da rota nostálgica, o Cuor de Finete, o Cuor de Canturé, o Geba em Mato de Cão, o regresso à Jerusalém Celeste, Missirá


3. Primeira discussão do dia com o homem grande Fodé Dahaba. Se ele quer sessão de cumprimentos em Canturé e evento social em Finete, depois só há tempo para ir a Missirá e Cancumba. Ele interpela porque é que se vai a Cancumba, é facto que há lá uma tabanca, mas qual é a importância de Cancumba? Sem perder as estribeiras, o Tangomau recordou-lhe que era dali que vinha a água, sem aquela fonte era como viver num lugar ermo do Sahara, era igualmente dali que vinha o fogo das flagelações, por ali passávamos em patrulhas de nomadização ou num dos percursos de acesso a Mato de Cão. Dada a explicação, desfeitos alguns equívocos, seguiu-se para Madina de Biassa. O que jamais se esquecerá é o encontro com outro soldado milícia, Mamadu Mané. Houve grandes alegrias, o reconhecimento não foi difícil, o Mamadu mantém o ar acriançado. A fotografia era inescapável, guarda estilhaços na região frontal e no pescoço. Não é deficiente das Forças Armadas, não tem direito a tratamentos. O Tangomau tinha a garganta seca: é injustiça demais que este combatente viva com a saúde abalada e nós a ignorá-lo. Ei-lo aqui, para nossa vergonha.

Madina de Biassa é uma das povoações novas do Cuor. Aqui chegou a haver três quartéis durante a guerra: Finete, Missirá e Mato de Cão; o PAIGC acantonava-se em Cabuca, Madina Belel e Banir – eram estas as forças em presença, como soe dizer-se. Com a independência, brotaram Malandim, Mato de Cão, Saliquinhé, Chicri, Gãbaná, Maná, Sansão e Madina de Gambiel. Mas o Tangomau tem de voltar à Guiné pois desconfia que há ainda muito mais vida para pesquisar dentro do Cuor.


4. De Madina de Bissa a peregrinação rumou para Camcumba. A paisagem mudou. Houve um projecto italiano e a fonte está disciplinada. A nova tabanca custou a vida de muitas palmeiras, Cancumba não era assim. O Tangomau não parava de meditar sobre aqueles dois quilómetros que separavam Cancumba de Missirá, os bidões a rolarem pela estrada quando as viaturas estavam avariadas. A tabanca é harmoniosa, fez-se uma breve paragem para saudar os habitantes, ala morena que se faz tarde, agora vamos a correr para Missirá.

Recorre-se a um lugar-comum para dizer que o que se viu há 40 anos foi mudado pela natureza ou pela mão do homem. As recordações de há 40 anos desorientam o visitante. Onde ele se sentiu melhor é naquela estrada que outrora ligava Bissau a Bafatá. É uma laterite muito especial, cheia de terreno pedregoso, faz parte do Cuor árido, mais árido do que aquilo só Cabuca, Madina e Belel. E no entanto o Tangomau extasiou-se com aquela natureza selvagem, a zanguizarra dos grilos em Novembro, as borboletas multicolores, os pássaros, até os macacos. Talvez a delirar, o Tangomau entendeu tudo como uma recepção triunfal, 40 anos depois.


5. Para não entrar imediatamente em pranto, o Tangomau, logo à chegada a Missirá pediu para ir ver o túmulo do irmão, o régulo Bacari Soncó, um irmão profundamente amado e admirado. Aqui se ajoelhou, rodeado dos Soncó, dos Indjai, dos Mané. Deus sabe o que ele deve à dedicação deste homem integro e valoroso. Depois, antes que o homem grande Fodé Dahaba subisse ao púlpito e fizesse novo discurso, vagabundeou pela velha Missirá, a inexistente, onde ele viveu 17 meses a fio.

Os mandingas são sepultados de muitas maneiras. Gosto muito deste cemitério coberto, Bacari tem terra em cima e aguarda a companhia de outros familiares. Deus misericordioso tenha compaixão deste homem bom, meu dedicado companheiro de armas.

Na deambulação, o Tangomau confirmou aquilo que toda a gente sabe: com o velho se faz o novo, basta olhar para aquelas chapas. Aqui, começaram a escorrer algumas lágrimas tímidas, aqui situava-se o seu abrigo, mais à frente a casa do padre, Lânsane Soncó e mais à frente o balneário, um pouco à esquerda, fora desta imagem, um espaço a que se chamava o refeitório que tinha ao lado o armazém de víveres. Mudam-se os tempos, mudam-se as finalidades.


Aqui está o comité de recepção: de pé, a partir da esquerda, Inderissa Soncó, Sana Mané, Ansumane Indjai, Cali Soncó, Braima Mané. De joelhos, à esquerda, Lamine Mané e Iusso Soncó. O Tangomau estava a jogar em casa, estas eram as crianças do seu tempo, uns usaram Mauser, outros sofreram os efeitos das flagelações e dos ataques, outros ajudaram na cozinha ou dela beneficiaram. Lamine lembrava-se do Natal de 1968, recebera prendas. Foi um momento extraordinário, evitámos falar nos nossos queridos mortos, não houve amargor pelas muitas privações porque continuam a passar. A seguir, Fodé Dahaba tomou conta da banda, os Dahaba aqui também pontificam. Aliás, o Fodé tem família em toda a parte. Depois houve discursos, foram entregues petições, o Tangomau comoveu-se quando apareceu Mama Mané, a mãe de Abudu. O passado tornou-se presente, havia que explicar àquela octogenária que o filho não deve viajar, aquelas paragens não são boas para quem já teve dois enfartes do miocárdio.


Mama Mané panejada como se estivesse em cerimónia. Só perguntava pelo filho, irrompemos num choro miudinho, uma mulher grande recompõe-se rapidamente, Mama Mané vem da linhagem real, os reis não devem chorar em público.

Aqui se interrompe a viagem, leitor e narrador têm direito a uma pausa. A viagem é quase interminável, vamos prosseguir amanhã, mesmo que se esteja a meio do dia. E, meu Deus, daqui ainda se vai partir para dois lugares santos: Mato de Cão e Chicri.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota do editor:
 
Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7462: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (6): Bambadinca, recordações da casa dos mortos

Guiné 63/74 - P7503: Blogoterapia (169): Para quando um Soldado Deconhecido das últimas guerras de África? (José Belo)

1. Mensagem de José Belo (*), ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia, com data de 17 de Dezembro de 2010:

Caros Camaradas e Amigos. 
Nas Festas que se aproximam, junto aos nossos familiares e amigos num calor de profundos sentimentos feito, há sempre algum doloroso minuto em que, involuntariamente, o nosso pensamento voa em recordações de camaradas que, como nós partiram, mas... não voltaram.

Ao olhar a fotografia tirada por Mário Beja Santos (publicada no blogue) da sepultura de um Soldado de Portugal, veio à memória o poema: "O menino de sua Mãe".

Jovem de vinte anos, usado e abusado em guerras não suas, decididas pelos que, com criminosa soberba subestimaram os maremotos da História.

Quem seria este jovem? Mas, e principalmente... QUEM PODERIA TER VINDO A SER? Para nós, os que sobrevivendo voltámos... a família, os amigos, o futuro....a vida! 

Este jovem camarada, nem morto teve possibilidade(económica?!) de voltar. Esquecido num miserável canto de tabanca perdida  é uma ferida aberta que nos deverá fazer parar e meditar.

A tão repetida frase "Do Minho a Timor" que tanto nos enche de orgulhos vários, marca uma rota semeada em todo o seu tão longo percurso por campas de soldados e marinheiros de Portugal... algures... esquecidas? 

A participação Nacional na primeira Guerra Mundial não foi aceite por todos os grupos políticos de então. As divisões foram longas e profundas. Mas um Soldado desconhecido caído na Flandres, e outro em África, estão hoje sepultados no Mosteiro da Batalha.

Quando haverá coragem política, (ou não será antes PATRIOTISMO sem mais adjectivos), para, no mesmo Mosteiro, lado a lado com os Camaradas de então, dar sepultura a um Soldado Desconhecido das últimas guerras de África?

Controversial para alguns vivos? Mas não será antes honrar os mortos do que se trata? 

Um abraço amigo.
J.Belo
Kíruna/Dez.2010.


O Menino de Sua Mãe

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino de sua mãe.»

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe

Fernando Pessoa
__________

Notas do Editor:

(*) Vd. poste de 18 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7465: (Ex)citações (121): A política dos povos é algo demasiadamente importante para ser entregue a militares (José Belo)
Vd. último poste da série de 30 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7362: Blogoterapia (168): Por que somos Camarigos, isto é, camaradas + amigos (Joaquim Mexia Alves)

sábado, 25 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7502: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (19): José Barros Rocha, de Penafiel, ex- Alf Mil, CART 2419 (Mansoa, 1979/70)

Região de Tombali > Guileje > 1969 CART 2410, Os Dráculas (Junho de 1969; Março de 1970) > Alf Mil José Barros Rocha, reformado da actividade bancário, natural de Penafiel, se não erro... [,foto à esquerda].

1. Notícias de um camarada José Barros Rocha (não confundir com o com popular José Rocha, ex-Alf  Mil da CCS/ BBCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, amigo do António Pimentel, nosso amigo também, membro da Tabanca de Matosinhos, mas que ainda não se inscreveu na Tabanca Grande: estranha contradição, quem pertence à Tabanca Pequena deveria passar automaticamente a pertencer à Tabanca Grande, mas não: as regras são diferentes, a filosofia organizativa também é um bocado diferente...).  

Estamos a falar de um camarigo do Norte, um homem que na Guiné esteve no sul, e eu eu conheci por ocasião do Simpósio Internacional de Guiledje... membro da nossa Tabanca Grande desde Fevereiro de 2007. Foi ele quem nos alertou para batalha de Sangonhá. (LH)


De: José Rocha

Data: 24 de Dezembro de 2010 14:12

«Então, Luís:
Que raio de de maleita essa - ciática - te havia de apoquentar e numa altura destas!!!....
Só quero desejar-te as mais rápidas melhoras e que consigas uma noite de Consoada o mais tranquila possível na companhia dos que de ti estão e são mais próximos.

As tuas melhoras!
Feliz NATAL!

Aquele abraço "camarigo"!
José Rocha


P.S. - Os votos de melhoras são extensivos a todos os "camarigos" que neste momento se encontrem menos bem.

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Nota de L.G.:


ÚItimo poste da série > 25 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7499: Agostinho Gaspar, de Leiria ( 3ª CCAÇ / BCCAÇ 4162, Mansoa, 1972/74)

Guiné 63/74 - P7501: Notas de leitura (180): Poemas, de Vasco Cabral (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2010:

Malta,

A Guiné-Bissau possui um conjunto de poetas que merecem a nossa atenção. É o caso de Amílcar Cabral, Vasco Cabral, Hélder Proença, Agnelo Regalla, José Carlos Schwarz (**), entre outros.

Existe, aliás, uma antologia “Antologia Poética da Guiné-Bissau” (Editorial Inquérito, 1990) que a seu tempo se fará referência e que tem um convidativo prefácio do escritor Manuel Ferreira.
Hoje faz-se exclusivamente menção ao trabalho poético de Vasco Cabral, um poeta declaradamente marcado pela cultura portuguesa.

Um abraço do
Mário


A luta é a minha primavera

Beja Santos

Vasco Cabral (Farim/1926, Bissau/2005) fez a sua formação profissional e ideológica em Portugal. Em 1944, aderiu às organizações africanas que em Portugal militavam em prol da afirmação do homem africano, nos balbucios dos movimentos de libertação; em 1948, passou a trabalhar em estreita colaboração com Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Mário de Andrade; conhece os cárceres entre 1951 e 1959; a partir de 1962, passou a ocupar cargos importantes no PAIGC (foi membro do Comité Central, do Secretariado-Geral e do Conselho Superior de Luta e entre 1981 e 1993 foi secretário permanente do Partido) tendo ocupado várias vezes cargos ministeriais.

Em 1981, publicou em Portugal a sua obra poética com o título “A Luta é a minha Primavera”. Foi presidente da UNAE – União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. A edição que aqui se refere é de 1999, edição trilingue (português, francês e romeno) da responsabilidade da União Latina (organização que congrega os povos de língua românica e que se destina à promoção da ideia de uma comunidade cultural latina). As ilustrações são de Sá Nogueira, indiscutivelmente um dos maiores artistas plásticos portugueses do último quartel do século XX.

Vasco Cabral foi um poeta que cultivou, na linha da sua formação cultural, o militantismo neo-realista, mesmo numa linha de liberdade estrófica e melódica. À semelhança de um Carlos Oliveira, de um Manuel da Fonseca ou de um José Gomes Ferreira, vemo-lo a poetar sobre as crianças abandonadas, os pedintes, os artistas de circo, os temas da saudade e da fraternidade são recorrentes, bem como as trovas afectivas. O seu leque de preocupações líricas abarca as histórias de encantar, as recordações de infância, os encontros de namorados, a determinação do combatente, a luta pela melhoria das condições dos oprimidos, a resistência na prisão, o hino à esperança e, com uma importância determinante, a exaltação pela independência e a determinação contra o colonialismo. Vejamos alguns desses poemas:

A luta é a minha primavera

a luta
é a minha
primavera

sinfonia de vida
o grito estridente dos rios
a gargalhada das fontes

o cantar das pedras
e das rochas
o suor das estrelas!

a linha harmoniosa dum cisne!


O último adeus de um combatente

Naquela tarde em que eu parti e tu ficaste
sentimos, fundo, os dois a mágoa da saudade.
Por ver-te as lágrimas sangraram de verdade
sofri na alma um amargor quando choraste.

Ao despedir-me eu trouxe a dor que tu levaste!
Nem só teu amor me traz a felicidade.
Quando parti foi por amar a Humanidade.
Sim! Foi por isso que eu parti e tu ficaste!

Mas se pensares que eu não parti e a mim te deste
será a dor e a tristeza de perder-me
unicamente um pesadelo que tiveste.

Mas se jamais do teu amor posso esquecer-me
e se fui eu aquele a quem tu mais quiseste
que eu conserve em ti a esperança de rever-me!


A Luta

A luta é a minha Primavera
Sinfonia de vida:
o grito estridente dos rios
a gargalhada das fontes
o cantar das pedras e das rochas
o suor das estrelas!
a linha harmoniosa de um cisne!


O passado e o presente

Qua foi o teu destino, meu povo!
Ó terra dolorosa da miséria!
Senti na minha carne a tua carne retalhada.
Correu da minha boca o teu sangue derramado. Vivi a tua morte.
lenta e trágica e os teus heróis de gritos silenciosos
perdidos nos passos do medo.
Sofri nas entranhas os punhais da traição
e o chicote
e o imposto
e a palmatoada.

Mas eu sabia que isso ia acabar
eu sabia que um destino novo é o que a vontade quer
e cavalguei o meu sonho na espada de esperança
e como D. Quixote bati-me com moinhos e loucuras.
Mas não foi em vão.
Hoje, qual é o teu destino, meu povo?
Das raízes das dores nasceu a madrugada
e a chuva da certeza já floriu o capim novo.
Agora, meu povo, o teu destino é este:
criar Humanidade!


PS - Este livro passa a pertencer à biblioteca do blogue, tal como os outros aqui recenseados, estando disponíveis para consulta e leitura no gabinete de trabalho do nosso editor Luís Graça, em Lisboa, à falta da futura sede da nossa Tabanca Grande... Contacto: + 315 21 721 21 93.
__________

Notas do Editor

(*) Vd. poste de 20 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7479: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (5): Dia 23 de Novembro de 2010

Vd. último poste da série de 19 de Dezembro de 2010 Guiné 63/74 - P7470: Notas de leitura (179): A Luta Pelo Poder na Guiné-Bissau, de Álvaro Nóbrega (Mário Beja Santos)

(**) José Carlos Schwarz (1949-1977), além de poeta, grande músico, compositor e intérprete, não tem qualquer relação de parentesco, apesar do seu apelido,  como o nosso Carlos Schwarz, mais conhecido por Pepito. Morto em acidente de automóvel, em Cuba, aos 27 anos, é hoje um mito da história da cultura guineense.

Podem ouvir-se aqui algumas das músicas deste artista maior da Guiné musical,  na interpretaçao do grupo Cobiana DJazz, que de ele foi um dos fundadores, juntamente com outro grande artista, ainda vivo Aliu Barri, hoje agricultor em Buba. (Obrigatório ler esta entrevista, de 2007, com Aliu Barri, para de se perceber o doloroso parto da verdadeira e autêntica música da Guiné-Bissau, e das enormes dificuldades de se ser música naquela terra).

Ver também um poste sobre as origens (alemães) do "jovem rebelde" Zé Carlos Schwarz e o nascimento de um dos  primeiros grandes de música crioula, na Guiné-Bissua, o Cobiana Djazz.: Lamparam III > 11 de  Dezembro de 2006 > José Carlos Schwarz, elementos escolhidos (da autoria presumível de Norberto Tavares de Carvalho, "O Cote", com uma nota notável do editor, o nosso amigo Leopoldo Amado).

Guiné 63/74 - P7500: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (18): Agostinho Gaspar, de Leiria ( 3ª CCAÇ / BCCAÇ 4162, Mansoa, 1972/74)





1. Mensagem de, ontem, do nosso camarigo Agostinho Gaspar (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74), residente em Leiria, e membro da Tabanca Grande e da Tabanca do Centro; na foto em cima, é o primeiro à esquerda, em Mansoa,Natal de 1973... (Presumo que os restantes camaradas sejam todos rapaziada da ferrugem, (termo do nosso calão de caserna aqui usado sem qualquer desprimor para os nossos especialistas mecânicos auto-rodas que fizeram milagres com as notas latas velhas como, por exemplo, as GMC; tenho muito respeito por eles...). (LG)


Foto: © Agostinho Gaspar (2010). Todos os direitos reservados.

Data: 24 de Dezembro de 2010 15:24

Assunto: Boas Festas

Caramigos e tertulianos,

Desejo-vos um Feliz Natal e Boas Festas.

Agostinho Gaspar
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Nota de L.G.:

Último poste da série > 25 de Dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7499: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (17): Um gesto de grande nobreza: O António Paiva visitou, ontem, no Hospital de Santa Maria, o Rui Ferreira

1. Bonita e singela mensagem do  António Paiva que muito me sensibilizou:


Data: 24 de Dezembro de 2010 21:36
Assunto: Doença

 Caro Luís Graça;


Desejo-te um Feliz Natal, assim como para toda a família.


Já estive com o Rui [, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa]... Quero mandar mensagem para saír no blogue, se possível amanhã.



Ele está bem, estavam lá a mulher e as duas filhas.


Diz-me se posso mandar para ti, ainda não jantei, conforme tu resposta farei depois de jantar.Tirei fotografia, mas estou mesmo na sucata, muito tremida.

Um abraço
António Paiva
ex-Soldado Condutor no HM 241  [, foto à esquerda]
Bissau, 1968/70


2. Comentário de L.G.:


Foi um gesto de grande nobreza, da  tua parte, o passares pelo hospital para visitares um camarada que nos pregou um valente susto, mas que nem sequer é, tanto quanto sei, uma pessoa das tuas relações íntimas... Manda a foto, quando puderes. Força para ti, que bem precisas, neste dia em que mais sentimos a solidão... Daqui da Madalena, V.N. Gaia, vai um xicoração para ti. Almoçaremos na minha escola um dia destes. Que o ano de 2011 traga mais serenidade e esperança à tua vida. L.G.


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Nota de L.G.:


Último poste da série > 25 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7498: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (16): Um receita energética para os entrevados, by-passados, disrítmicos ou algo incapacitados tabanqueiros... (Vitor Junqueiro)

Guiné 63/74 - P7498: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (16): Um receita energética para os entrevados, by-passados, disrítmicos ou algo incapacitados tabanqueiros... (Vítor Junqueira)

1. Do nosso querido camarigo Vitor Junqueira (*), médico, com data de ontem, comentando os infortúnios que têm atingido as nossas tropas, ou melhor, alguns de nós, e exortando-nos a encher o peito de ar e (a)levantar o moral

Olá,  rapaziada do meu tempo;

Hoje não é dia para cultivar pessimismos. Todos de pé, já. Os coxos estão dispensados! Tenham presente que a mente comanda o corpo e,  como tal,  não deis confiança à doença e ... tende cuidado com os médicos que, na nossa idade, parecem obcecados em livrar-nos dos últimos pecaditos. 


A todos, em particular aos entrevados, by-passados, disrítmicos ou algo incapacitados desejo rápida recuperação.



Bom Natal e excelente Ano Novo.
Abraço forte e carregado de amizade do,
Vitor Junqueira

E tu, Vitinho Tavares? Desde que foste à recauchutagem mais ninguém te agarra! Então agora que tens os ossos todos numerados até estavas capaz de te alistares novamente no teu saudoso BCP 12. Estou certo? Tenho a certeza que sim, pois eu ainda lá voltava!

Paulinho Santiago: tem juízo,  rapaz! Nesta quadra, cuidado com os doces e as carnes, jovens (querias!). Boas caminhadas para o próximo ano e caso metas o papel, cá te espero para uma de longo curso. Ab

Carlitos (Vinhal), então como é que é, meu? Andas meio foxtrot por causa de porras do Blog? Nada o justifica, meu querido amigo. Deixa-os pousar qu' a gente vai-se a eles. Por acaso até ando com vontade de fazer uma prosa em que os editores são parte interessada, só estou à espera de vontade.



Arriba, camarada e se eu puder dar uma mãozinha nalguma coisa, é só dizer. Ab e bom Natal
VJ

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Nota de L.G.:

Último poste desta série > 25 de Dezembro de 2010 > 2010 Guiné 63/74 - P7497: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (15): Que o Natal seja sempre que um camarigo quiser ! (Editores)


(*) Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, membro da nossa Tabanca Grande, organizador do nosso II Encontro Nacional (Pombal, 2007).


Autor do blogue  "Kurt" - Amizade, Viagens, Aventura e muito mais!... ("O Blog onde se ligam amigos e companheiros de viagem para 'curtir' o que a vida tem de melhor. Porque só temos uma, há que aproveitá-la!"). Um blogue andarilho...onde também colabora o nosso Paulo Santiago, de Águeda.

Guiné 63/74 - P7497: O Mural do Pai Natal da Nossa Tabanca Grande (15): Que o Natal seja sempre que um camarigo quiser ! (Editores)


© Miguel Pessoa (2010)




1. Camaradas, amigos, camarigos: Eu, que não gosto de me armar em valente, embora seja uma alma sensível, mas também não tenho a lágrima fácil, fiquei comovido até às lágrimas, com as muitas dezenas e dezenas de mensagens que tenho recebido a desejar as nossas melhoras,  colectivas e individuais... Verdadeiras mensagens da melhor camarigagem de que nós, às vezes, somos capazes.


Na quadra a que eu chamo de grande stresse natalício, em que praticamente é proibido abrir o computador, houve gente que conseguiu arranjar um bocadinho de tempo, roubado à família e aos amigos mais íntimos, para emprestar o seu ombro amigo àqueles de nós que, na Tabanca Grande, estavam a precisar de uma palavrinha de atenção, consolo, esperança, ânimo... Enfim, aquilo a que nós chamamos a nossa blogoterapia...

Na ausência, em "estúdio",  do Vinhal (que "vive e sofre" com o que o aqui se passa, 24 horas por dia!!!), o Mural do Pai Natal da Tabanca Grande está uma m..., uma confusão dos diabos... Eu nunca poderei pôr isto tudo em ordem,  arrumadinho como só ele pode e sabe fazer... e tem feitio todos os anos... Mesmo assim, não quero deixar de postar, por estes dias,  no nosso mural, algumas das palavras bonitas e sobretudo sentidas que nos têm escrito, tanto velhinhos como piriquitos... 

Não tenho mais notícias do Rui Ferreira cujo estado de saúde espero esteja a evoluir favoravelmente, e que era o tabanqueiro que mais nos preocupava este Natal... Mas o Paulo Santiago e o Carlos Santos, os nossos dois bons gigantes (mais o Victor Barata, também seu amigo e vizinho), estão atentos... O António Paiva, espero bem,  deve ter encontrado um porto de abrigo neste Natal. O Carlos, por sua vez,  já lhe senti um pouco mais de ânimo num mail particular que me mandou a chamar-me madraceiro, ontem às 10h da manhã, e que eu tomo a liberdade de reproduzir aqui...

Luís: Estás então em Gaia a passar o Natal? Na cama? Não tens vergonha? As melhoras, rápidas e definitivas.... Acerca dos teus sábios provérbios, mando esta máxima, à troca, que recebi hoje do Carlos Cordeiro: "As coisas são como são em virtude de serem assim mesmo"... É muito profunda, não achas?

Vou fechar o estabelecimento e vou ver a minha velhota. Até logo. Deixa-te de malandrar e levanta-te para comeres as batatas. Um abraço para ti e um beijinho à Alice. Dá cumprimentos nossos à tua família de Gaia. Boas Festas. Carlos






© Miguel Pessoa (2010)




2. Eu, próprio, consegui ontem ao fim da tarde escrever as quadras natalícias de que estou incumbido todos os os anos... É o meu pequeno, modestíssimo, contributo para que a noite da Consoada da Madalena seja, todos os anos, um momento bonito de amor e amizade entre sete famílias que, putos incluídos, este ano juntou duas mesas com vinte e tal pessoas, incluindo dois "tabanqueiros" da nossa Tabanca Grande, eu e o João Graça mais o seu violino... 


Tirando a ciática, espero que o vosso Natal tenha sido tão ou mais lindo que o meu... Agora vou-me levantar por que é preciso comer a "roupa velha"...  Em meu nome, e do resto da equipa que faz este blogue o melhor que pode e sabe  (Carlos Vinhal, Eduardo Magalhães Ribeiro, Virgínio Briote e... Miguel Pessoa!), a continuação das boas festas de Natal... o tal Natal que é sempre quando um camarigo quiser. 


As quadras, de sete sílbas, foram o que que se pôde arranjar este ano... São dedicadas aos morcões dos meus cunhados Gusto e Nitas, que eu considero há muito como meus irmãos de verdade (são, além disso, os donos da "clínica da Madalena", onde eu estou em convalescença por estes dias...):

No Natal da Madalena,
Foi-se a musa de sabática,
Tenham pena, muita pena,
Está o poeta c’o a ciática

Está o poeta c’o a ciática,
Mas temos o cavaquinho,
Revolve-se a problemática,
E chama-se o Joãozinho.

E chama-se o Joãozinho,
Tiago, Pedro, Tia Nita,
E logo num instantinho,
Forma-se um grupo catita.

Forma-se um grupo catita,
Do jazz à gente fadista,
E até a Joana imita
A bela Júlia florista.

A bela Júlia florista
Via caras, mas não c’roas,
Pois é, ó economista,
Lá sem  guita não há… broas,

Lá sem guita não há… broas,
Mas ó da casa, ó patrão,
Tantas coisas e tão boas,
Vão p’ró rol da gratidão.

Vão p’ró rol da gratidão,
Vão p’ró deve e p’ró haver,
Calam fundo no coração,
Dão sentido ao viver.

Dão sentido ao viver
Destas nossas sete famílias,
Uma história p’ra escrever,
Tão bonita, sem quezílias.

Tão bonita, sem quezílias,
Palavras não são despesa,
Marias e até Emílias
Ficam bem à nossa mesa.

Ficam bem à nossa mesa,
Os nossos anfitriões,
Amizade e gentileza,
Disso são os campeões.

Disso são uns campeões
Um exemplo de beleza,
Muito pouco comilões,
Ficam bem em qualquer mesa.

Ficam bem em qualquer mesa,
Com linho, seda ou papel,
É sempre a mesma nobreza,
Jingle bell, jingle bell.

Jingle bell, jingle bell,
Que o jantar nem estava mau,
Muitos doces com papel,
Nem faltou o bacalhau.
 
Nem faltou o bacalhau,
Que já foi mais fiel amigo,
Anda com cara de pau,
Estando agora em perigo.

Estando agora em perigo,
Nas mãos dos noruegueses,
Quiçá até inimigo,
À mesa dos portugueses,

À mesa dos portugueses,
Pai Natal da Madalena,
Tens crianças, teus fregueses,
Trazes prendas e uma rena.

Trazes prendas e uma rena
Meu querido Pai Natal,
Cá na nossa Madalena,
Não faltou o essencial.


Luís Graça, 24/12/2010


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Nota de L.G.:

Último poste da série > 24 de Dezembro de 2010 >