segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9334: Notas de leitura (321): Prática e Utensilagem Agrícolas na Guiné, por F. Rogado Quitino (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
O trabalho de Fernando Rogado Quintino bem merecia ser reeditado, é de uma grande beleza gráfica e tirando um punhado de alterações, sobretudo à escala demográfica, mantém-se irrepreensível. O António Estácio, nas suas investigações, encontrou cinco chineses degradados na Guiné, em 1902, dedicaram-se à pesca e à orizicultura, de acordo com vários trabalhos, deram um excelente contributo para o florescimento da cultura de arroz em toda a região Sul. As fotografias são muito comoventes, está confirmado o contributo chinês para a orizicultura guineense. O António Estácio continua à procura de outros nomes, é infatigável e tem uma paciência chinesa…

Um abraço do
Mário


Práticas e utensilagem agrícolas na Guiné

Contributo chinês para a orizicultura guineense

Beja Santos

“Práticas e utensilagem agrícolas na Guiné”, por F. Rogado Quintino, com belíssimos desenhos de Fernando Galhano, é um livro incontornável para o estudo das práticas agrícolas de ontem e hoje (edição da Junta de Investigações do Ultramar, 1971).

Para o autor, tratava-se de responder ao desafio de preencher a grave lacuna de na vasta bibliografia relacionada com a Guiné não haver um tratamento desenvolvido quanto às práticas agrícolas e um reportório minimamente rigoroso de utensílios e alfaias. Falando das populações, Rogado Quintino refere que na época as regiões mais povoadas se situavam no litoral entre a ria de Cacheu e o estuário do Geba. As regiões menos populosas do litoral eram as da margem direita da ria de Cacheu, ao norte, e as das duas margens da ria de Cacine, ao sul. Para se entender a agricultura guineense é fundamental perceber o regime das precipitações, como ele observa: “Nas zonas tropicais, a partir de 10º de um e de outro lado do Equador, as actividades agrícolas têm de estar subordinadas ao regime das precipitações. Fora do período das chuvas, nada ou quase nada se pode fazer em matéria de lavoura. A cultura do arroz tem a primazia, é a base alimentar do guineense. É uma tarefa penosa em extremo, obriga o agricultor a enfrentar duríssimas situações, com horas consecutivas na água e no lodo".

Por vezes a narrativa de Rogado Quintino tem laivos poéticos quando diz que as chuvas comandam todas as tarefas e determinados sinais considerados infalíveis anunciam a sua aproximação: aves migradoras (caso do flamingo) a presença de certos insectos, o rebentar das folhas da cabaceira; as chuvas começam a cair primeiro no Sul, em Cacine, progridem paulatinamente para o Norte e acabam sempre em Cacine.

O seu estudo abarca quatro áreas: das gentes e da sua estruturação. Dos solos e do seu tratamento; das práticas agrícolas; da utensilagem e da sua confecção. Primeiro, aborda a natureza da população, como se define a unidade cultural dos grupos, qual é a estrutura social na economia rural, enuncia as produções agrícolas e como se processa o auto-abastecimento das populações rurais, esquematizando as populações agrícolas e o seu calendário. Segundo, aqueles agricultores nunca ouviram falar nem em física nem em química, nem em azoto, ácido fosfórico ou potassa mas sabem distinguir pela cor, pelo tacto, pelo sabor, todos os solos. Explica como os solos virgens, invadidos pela água das marés, quando podem receber obras de barragem para retenção das águas (ouriques) são aproveitados para a orizicultura. Estas barragens são construídas em esteiros em que o volume e pressão das águas não exigem trabalhos de grande monta. Fala do arado e explica que o arado balanta é usado também pelos grupos Papel, Manjaco, Felupe e Bijagó. Os grupos arabizados, em vez do arado balanta, usam uma espécie de arado-enxada. No que toca à prática agrícola, Rogado Quintino começa por apresentar as culturas de quintal e as culturas de lugar. E depois espraia-se sobre as culturas de arroz, sorgo, milho (incluindo o milho preto), mandioca, fundo, feijão, mancarra, batata-doce, inhame, candje, baguiche, jagatu, manfafe e abóbora. Quanto à utensilagem, Rogado Quintino não deixa de observar que as alfais que se usam na agricultura são porventura as mesmas que se conhecem há milénios na região.

O nosso confrade António Estácio teve a amabilidade de me enviar a comunicação que apresentou na V Semana Cultural da China, que se realizou em Janeiro de 2002. Estácio é natural da Guiné, fez o curso de regente agrícola e viveu em Macau de 1972 e 1998. Andou à procura da presença de chineses na comunidade guineense e foi bem-sucedido. Segundo ele, um punhado de cidadãos chineses prestaram um valioso contributo no desenvolvimento da cultura do arroz na Guiné, com destaque para a região de Catió. Tudo começou quando a chalupa “D. Carlos I” lançou ferro no porto de Bolama, em Agosto de 1902, desembarcando alguns macaístas que haviam sido julgados pelo crime de homicídio e de jogo clandestino e condenados a penas de degredo da Guiné. António Estácio fez a leitura dos boletins oficiais da Guiné portuguesa e localizou dois desses cidadãos chineses: Liá-Sengue terá falecido em Novembro de 1905 em Cacine, e em Abril de 1906, também em Cacine, Leano-Seng. Estácio alerta para vários erros dizendo que Liá-Sengue corresponde o nome de Li Seng ou Lee Seng enquanto que o de Leano Seng corresponde a Leong Seng. Na continuação das suas investigações, Estácio confirmou junto de um seu antigo colega que o seu avô Weng Tak Seng tinha ido para a Guiné no início do século XX e que o pai deste seu antigo colega se chamara Boaventura Wentacem António Silva. Weng Tak Seng veio a falecer em Bolama, acometido de febre-amarela.

Depois da I Grande Guerra a produção de arroz deu um grande salto na Guiné. Vários autores referem o papel dos chineses ligados à pesca e à agricultura, associando os seus nomes à produção de arroz em Tombali e Catió e aparecem dois nomes proeminentes Lai San, cultivador de uma ponta perto de Catió e Kat Chan, também residente em Catió. A concluir, Estácio dá como comprovado que um grupo de cidadãos chineses idos de Macau chegou à Guiné no início do século XX, refere precisamente 5 nomes e mostra imagens das campas desses antigos degradados de alguns dos seus descendentes. Uma pequena maravilha! Esta separata que o António Estácio tão gentilmente me ofereceu ficará na posse do blogue.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9319: Notas de leitura (320): Anjos na Guerra, de Susana Torrão (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9333: Parabéns a você (364): Manuel Vaz, ex-Alf Mil da CCAÇ 798 (Guiné, 1965/67)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9318: Parabéns a você (363): Paulo Santiago, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 53 (Guiné, 1970/72)

domingo, 8 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9332: Blogoterapia (196): Lembras-te? (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado*, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 6 de Janeiro de 2012:

Caro Carlos, Luís e restante Tabanca Grande
Faz anos que tínhamos chegado a Bissau. O Batalhão ficou alojado no Cumeré onde fez o treino operacional.
Os Condutores foram para Bissau tirar um curso sobre Berliet e condução em todo terreno. As Berliet Tramagal eram diferentes das que até aí tinha conduzido durante a instrução. Os seis rodados em linha, bem como outras alterações nestes modelos criados especialmente para as nossas picadas, necessitaram de instrução. Também nos foi ministrado cursos de manutenção das mesmas.
Mais um mês estaríamos a caminho de Galomaro, Saltinho, Canculim e Dulombi.

Um abraço
Juvenal Amado




LEMBRAS-TE?

O estampido abafado pelo grito.
Lembras-te do cheiro que tinha a morte?
Da surpresa no olhar do moribundo,
o que fazer para esquecer o seu olhar?
Lembras-te como o sangue sai em esguichos
e que os sulcos de suor da face desaparecem com as lágrimas?
Lembras-te do cheiro a podre da água na picada,
do aspecto irreal das coisas através das ondas de calor.
Lembras-te dos abutres cheirando a carniça
e o teu terror em mudar os pés?
Lembras-te das saídas dos morteiros e dos RPG?
O tilintar das garrafas no arame farpado,
das sombras que dançavam no teu olhar cansado.
Lembras-te de destravar a arma desejando que fosse engano?

Lembras-te de estar no café e assustares-te com barulho de um escape?
Quase te atiraste para debaixo da mesa.
Lembras-te de olhar em volta e ver os sorrisos de quem não esteve lá?
Lembras-te…?

Lisboa, 18 de Dezembro de 1971 > Embarque do BCAÇ 3872 no navio Angra do Heroísmo
Fotos: © Sousa Apontador de Morteiro 81 do Dulombi
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9261: Estórias do Juvenal Amado (40): O meu compadre Aljustrel

Vd. último poste da série de 31 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9294: Blogoterapia (195): Ano Novo de 1970 em Empada (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P9331: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (28): A guerra em Dunane

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 6 de Janeiro de 2012:

Amigo Vinhal
Junto mais uma história, para as "Memórias boas da minha guerra".
As fotos foram tiradas lá no "resort" de Dunane. Escolhe o que julgares mais adequado.

Um abraço do
Silva da Cart 1689



Memórias boas da minha guerra (28)

A guerra em Dunane


Dunane era um destacamento sob a responsabilidade da Companhia instalada em Canquelifá.

Estávamos em 1968. A Companhia, em final de comissão, foi transferida para Canquelifá, deixando um pelotão aquartelado em Dunane. Em poucos dias deu para entender que estavam a gozar o merecido descanso do guerreiro. Não havia suspeita de guerra, os serviços eram poucos e o tempo ia-se gastando da melhor forma.

Dormia-se muito, bebia-se bastante e brincava-se com o relax da situação. Havia tempo e mais que tempo para colocar a escrita em dia e ainda foram inventadas algumas distracções: uns joguitos de futebol, uns jogos à malha e outros às cartas e lá se ia aproximando o fim da comissão. Acrescentemos que este laxismo tinha os seus pontos altos numa ou noutra bebedeira inerente a algum aniversário ou alguma outra data que a tropa julgasse dever assinalar.

A quebrar esta situação quase idílica, veio uma ordem para se fazer um simulacro de ataque nocturno, para testar se tudo estava bem e, ao mesmo tempo, manter aquela qualidade guerreira que tanto caracterizou a prestigiada Companhia. Falava-se que esta zona iria piorar devido à subida dos turras de Madina de Boé e à intenção do PAIGC isolar o “bico” nordeste da Guiné. Pelo menos, foi disto com que nos alarmou o Alferes “Maluco”, agora investido na categoria de chefe máximo da Tabanca e das Operações Militares, que ficou excitadíssimo com tanta responsabilidade.

Pois, nesse dia, o Areosa festejou o seu aniversário e fez questão de ter como convidados, os principais “esponjas” de Dunane. E, numa de gajo porreiro, foi também convidado o Furriel Semedo.

Comeram uma churrascada de frango que estava um mimo. Carregadinho de piri-piri, funcionou como uma chama ardente difícil de dominar. A hora do simulacro (22h00) aproximou-se rapidamente mas os convidados ainda tiveram a oportunidade de desfrutar do espectáculo proporcionado pelo Areosa. Então, não é que o gajo se lembrou de cuspir fogo como se estivesse num circo!!! Bebia goladas de petróleo e soprava para cima, ao mesmo tempo que lhe chegava o archote a arder. 

Porém, como a tabanca era baixinha, acontece que ele cuspiu o petróleo contra o tecto de palha (capim). Aquilo começou a arder e o Areosa, mais os convidados, tiveram que sair da tabanca a rastejar. A gritar, enquanto tossiam, tossiam, tentaram alertar toda a gente para o que se estava a passar. E, num ápice, o incêndio foi debelado. Todavia, o grupo da festa privada causou alguma apreensão, porque quase ninguém se segurava de pé. Foi do fumo, da aflição ou da bebida? – Eram as dúvidas que circulavam.

Quando o Alferes, armado até aos dentes, de óculos escuros, apito na mão, e sob o olhar divertido dos miúdos da tabanca, filhos dos miliíias, foi para o meio do aquartelamento dar início ao simulacro de ataque, já estava toda a gente nos seus postos de defesa, salvo alguns dos afectados pela festa do Areosa, que não atinavam com o caminho. Deles, apenas o Furriel Semedo assegurou logo a sua posição. Meteu-se no pequeno fosso do Morteiro, inactivo há mais de um ano, e toca a dar azo à sua destreza na utilização desta arma. Era um viciado por tiro instintivo de G3 e de morteiro (60, de preferência).

O Comandante do destacamento circulava apressadamente com a potente lanterna acesa (tipo holofote) e de forma bem visível entre os vários abrigos, incentivando os seus homens para uma concludente resposta ao inimigo. Até parecia um herói americano de banda desenhada, a comandar de peito aberto às balas. Logo ele, que era sobejamente conhecido por medricas.

Os tiros não foram muitos, até porque ninguém desejava perder tempo depois, a repor o stock. O Furriel Semedo já mandara umas granadas e estava a aproximar-se o alvo, a julgar pela explosão no embondeiro a uns 400 metros. E para realçar as suas capacidades já demonstradas desde a Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas e do Monte das Meadas, nos Rangers de Lamego, vira-se para norte e grita:
- Oh Felgueiras, vai buscar uma terrina e segura-a que eu vou lá meter uma granada dentro.

O Felgueiras (um dos “afectados” pelo aniversário), ria-se muito e dizia para o Joaquim Faquista, de Fafe:
- Vai, vai buscar a terrina a ver se ele é mesmo capaz.
- Estais bonitos, estais!!! Estais com uma carga bonita! Vou o caralho, é que eu vou – respondeu o Faquista, talvez chateado por não ter sido convidado para a churrascada.

Como esta discussão se prolongou uns quantos minutos, o Simões puxa o tubo do morteiro mais para a vertical, por forma a aproximar a mira para uma pequena árvore (mangueira?) visível a menos de 200 metros, já perto do recinto do futebol, e diz para o Chiribita meter mais uma granada no morteiro.

Logo que despoletou a carga, notou-se que não fora normal, dado o reduzido som produzido. Percebeu-se que parte das cargas não tinha despoletado. Logo de seguida, ouve-se o rebentamento junto ao muro do abrigo do Felgueiras. O Faquista, aflito, acelera dali a gritar:
- Foooddaa-se, os gajos estão doudos!

O Felgueiras manteve-se do outro lado do abrigo (a uns 5 ou 6 metros do rebentamento) e grita para o Faquista:
- Estás a ver, ó morcom, como ele é capaz! Porque é que não foste lá pôr a terrina???

Silva da Cart 1689

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9306: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (27): Bolos de bacalhau à moda de Catió

Guiné 63/74 - P9330: In Memoriam (103): Maria Manuela Flores França, ex-Cap Enf.ª Paraquedista (Maria Arminda Santos)

1. Mensagem da nossa camarada Maria Arminda Santos (ex-Ten Enf.ª Pára-quedista, 1961-1970), com da ta de 6 de Janeiro de 2012:

Camaradas e amigos.
Luís Graça e Carlos Vinhal.
No dia do seu falecimento que ocorreu no passado dia 27 de dezembro*, a minha colega Rosa Serra enviou a notícia para vós, Especialistas da BA 12 e Associações de Paraquedistas de Setúbal e Tejo Norte.
Realmente o acontecimento, apanhou-nos nesse dia com muitos afazeres e entre ambas tentámos avisar o maior número de camaradas e ainda, com o facto de nos terem dado a hora errada do funeral, que nos obrigou a uma ocupação redobrada, para as correcções.



A Manuela Flores França, pertenceu aos cursos de 1962/63.

Entrou em 1962 para frequentar o 2º. Curso de Paraquedismo para enfermeiras, mas tendo feito uma fractura, durante a instrução, transitou e terminou no 3º Curso.
Ingressou na classe de Sargentos e passou à reforma, no posto de Capitão.

Foi a primeira das enfermeiras paraquedistas, a fazer a "Queda Livre"- Abertura Manual.

Era uma belíssima profissional, amiga e alegre. Pela sua maneira de ser e estar na vida, criava um ambiente agradável, a todos que com ela conviviam.
Acompanhei os seus cursos e mias tarde estivemos juntas nos Açores, Guiné e Moçambique.
Passou pelas três frentes da "Guerra", e a Guiné foi a que mais a marcou.

Terminou o seu trabalho no Hospital da Força Aérea, passando por vários serviços, em especial no Bloco Operatório.

Com o seu desaparecimento, todas nós sentimos que perdemos uma amiga e o "Grupo" pela lei da vida, vai assim diminuindo.

Com o desaparecimento da Manuela, muitas histórias da sua passagem pelas terras africanas em especial as da Guiné, ficaram por contar.

Uma das que apelidaram como "ANJOS CAÍDOS DO CÉU", fez inversão de marcha, deixou-nos fisicamente e partiu !.. mas ficará para sempre nos nossos corações.

Mª. Arminda Santos
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9316: In Memoriam (102): Maria Manuela Flores França, ex-Cap Enf.ª Paraquedista, falecida a 26 de Dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9329: Memórias da CCAÇ 798 (Manuel Vaz) (5): Uma perspectiva a partir de Gadamael Porto - 65/67 - V Parte - Defesa do aquartelamento

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Vaz (ex-Alf Mil da CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67), com data de 5 de Janeiro de 2012:

Camarada Carlos Vinhal:
Quero agradecer em meu nome e da minha mulher os votos de Bom Ano Novo que retribuo para ti e família.
Igualmente agradeço a listagem que enviaste dos camaradas tertulianos que, com certeza, me vai ser útil.
Posto isto, vou enviar-te, para publicação no Blogue, a V Parte da minha participação, subordinada ao tema: "Defesa do Aquartelamento".

Com os meus cumprimentos
Manuel Vaz


MEMÓRIAS DA CCAÇ 798 (5)

De 63 a 73, uma década de Guerra na Fronteira Sul da Guiné

Uma Perspectiva a Partir de Gadamael Porto - 65/67 (V Parte)

Defesa do Aquartelamento

O Aquartelamento de Gadamael Porto nasceu à volta de dois edifícios de construção europeia, colocados diametralmente opostos, relativamente ao último troço da estrada que ligava ao Porto, a uma distância um do outro, da ordem dos 300 metros. (13) O troço referido da estrada tinha um declive que não era acompanhado pelos terrenos que o ladeavam, particularmente do lado direito, quando virados para o rio. Esta situação colocava alguns problemas, na drenagem das águas, na localização e na construção de abrigos, paióis e, em geral, na segurança do aquartelamento. Apesar disso, é perfeitamente compreensível que os responsáveis militares decidissem por aquela localização. A urgência da situação não permitia hesitações, dado que o PAIGC iniciou de imediato as suas investidas, flagelando, emboscando, procurando evitar, ou pelo menos dificultar, a instalação da CART 494 que acabou por sofrer mesmo um ataque em força.
Nestas circunstâncias, as primeiras defesas do aquartelamento surgiram à volta dos edifícios inicialmente existentes, enquanto outros eram construídos.

A CCAÇ 798 substituiu a CART 494 a partir de 08/MAI/65. Desde início que a Companhia assumiu a defesa do Aquartelamento como a terceira grande tarefa em que se iria empenhar. Quando não havia operações, descarga ou colunas de reabastecimento, o pessoal disponível trabalhava nos abrigos e paliçada.

Um dos abrigos em renovação, junto do fundo da Pista de Aviação e que servia também de proteção ao Pessoal das Transmissões

Embora a situação militar de início, fosse de alguma tensão, com o tempo melhorou, o que conduziu à apresentação de nativos que pretendiam viver em Gadamael. Entretanto, no aquartelamento novas construções tinham sido edificadas, e a Seção Auto necessitava de mais espaço para ampliar a oficina e o parque auto, como referi na comunicação anterior.

Colocada a necessidade de aumentar o perímetro do Aquartelamento, havia que equacionar fundamentalmente dois aspetos: localização das “moranças” para os nativos e a segurança do aquartelamento. Analisada a situação, verificou-se que os aspetos referidos convergiam na mesma solução: alargar o aquartelamento do lado esquerdo, quando virados para o rio.

Para o reforço da segurança deviam ser cumpridos três objetivos: eliminar os ângulos mortos; impedir o tiro direto para o interior do aquartelamento; localizar os abrigos de maneira a cruzar o fogo das metralhadoras. Assim, do lado esquerdo criava-se um novo abrigo, protegido por uma árvore e enterrado pelo exterior, onde seria instalada uma Metralhadora Brauning 12,7 mm que batia todo o flanco que o IN tinha utilizado no ataque ao aquartelamento.

Construção do primeiro abrigo enterrado, em Gadamael (vista exterior). Ocupava o vértice do Aquartelamento (agora em forma de pentágono) virado para Sangonhá

Do lado contrário, para anular a elevação do terreno, dava-se um novo alinhamento à paliçada, elevando-se a sua altura e construindo-se um abrigo a condizer. (fig. seguinte)

Fase final da construção do abrigo, no lado direito do Aquartelamento (vista exterior)

Na entrada do aquartelamento, vindo de Ganturé, tinha de se evitar que o IN pudesse repetir o que aconteceu no ataque anterior, em que foi empurrando, até próximo do arame farpado, uma Metralhadora 12,7 mm blindada e com rodas, com a possibilidade de varrer o edifício da Messe de Oficiais, do Comando, das Transmissões e da Enfermaria. Aqui, a defesa do aquartelamento tinha ainda que transmitir uma mensagem dissuasora: - construiu-se um abrigo encimado por uma torre de vigilância e a entrada era feita em curva/contracurva, para evitar o tiro direto.

Croqui da entrada principal do Aquartelamento, virada para a fronteira

Sabíamos que, com a fronteira a poucos quilómetros, o IN poderia saber quase tudo o que queria sobre as nossas defesas. Então procurava-se transmitir a ideia de uma grande fortificação, já que, quanto a armamento, era mais fácil escondê-lo.
A propósito de armamento, para além da Metralhadora Brauning referida, o Aquartelamento apenas dispunha do armamento orgânico dos dois Grupos de Combate, ou seja, o equipamento individual acrescido de uma Metralhadora, um Lança-Granadas e um Morteiro 60 por cada grupo. O Morteiro 81 da Companhia estava instalado em Ganturé, mais próximo da fronteira.

Construção do abrigo da entrada principal do Aquartelamento (vista exterior)

Diga-se de passagem que as noites passadas em Gadamael, quando os dois Grupos de Combate (o terceiro estava em Ganturé) partiam para operações no “corredor de Guiledge” eram de alguma apreensão: defender o Aquartelamento com armamento muito limitado e um grupo reduzido, de cozinheiros, mecânicos e pouco mais... causava alguns calafrios.
No entanto, o empenhamento nos trabalhos de defesa do Aquartelamento era notório para quem entrasse em Gadamael.

Outro aspeto da construção do abrigo anterior (vista interior)

Um dia, uma alta patente militar, Brigadeiro se não me engano, em trânsito pela zona, aterrou na pista sem se fazer anunciar e ao visitar informalmente o Aquartelamento, foi tecendo algumas considerações. Das observações feitas deixou-nos a impressão que achava excessiva a atenção que dávamos ao aquartelamento.
Restava-nos o “conforto” vindo da parte do IN: - quando um grupo do PAIGC, falava com habitantes de uma tabanca da República da Guiné, junto à fronteira, alguém perguntou se não pensavam atacar Gadamael. A resposta foi: “Gadamael ?! ... Manga de chatice !...” (14)

Identificação das camadas sobrepostas, nos tetos dos abrigos, depois de construídos. O cascalho com cimento servia para nivelar a superfície dos troncos de cobertura.

Apesar da construção dos abrigos ser feita com robustez, pode perguntar-se, à luz do que aconteceu, anos mais tarde, se reuniam as condições de segurança necessárias para resistir aos ataques da artilharia do PAIGC. Claro que não. Na altura, o IN ainda não utilizava artilharia e os ataques às posições das NT eram feitas com armas de tiro direto, RPG e Morteiro 60.

O Aquartelamento de Gadamael, com o perímetro deixado pela CCAÇ 798, deve-se ter mantido até ao reordenamento da população e talvez da instalação do primeiro Obus, no tempo da CART 2410. (10)

(continua)

(13) – Ver fotografias da II Parte
(14) – Informações recolhidas pela CCAÇ 798
(15)- Deixo aqui uma sugestão aos camaradas da CART 2410 e Companhias seguintes para, na hipótese de não haver uma fotografia aérea, indicarem a localização, quer do(s) Obus(es), quer do reordenamento da população, face ao “corpo do Aquartelamento primitivo”.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9193: Memórias da CCAÇ 798 (Manuel Vaz) (4): Uma perspectiva a partir de Gadamael Porto - 65/67 - IV Parte - Movimento de cargas e descargas em Gadamael Porto

sábado, 7 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9328: O Nosso Livro de Visitas (120): Anabela Pires, em vias de ir para Iemberém, no Cantanhez, trabalhar como voluntário na AD - Acção para o Desenvolvimento, procura cartas da região de Tombali e elogia o nosso blogue




Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez >2010 >  Vídeo 4' 41'' > 

"Pedro Mesquita, cineasta português, e a sua equipa têm estado a recolher imagens para um filme cujo título provisório é Os Donos do Chão. Imagens muito bonitas e que nos prendem do princípio ao fim. 

"Hoje apresentamos o primeiro vídeo com imagem de Pedro Mesquita e Edição - Micael Espinha/Roughcut, com a realização e imagem - Pedro Mesquita; Argumento - José Marques; Produção - Pedro Mesquita, José Marques, Catarina Schwarz, Joana Roque de Pinho; Música - João Bernardo; Apoios : AD, IUCN, IBAP". 

Fonte: Vídeo e legenda: Cortesia de AD - Acção para o Desenvolvimento (2012). 
Vd. YouTube > ADBissau



1. Mensagem de Anabela Pires (*), com data de 19/9/2011

Olá, Luís!

Desculpe antes demais o tratamento informal mas visitando frequentemente o blogue Luís Graça e camaradas da Guiné, conhecendo a Alice e estando a pensar partir para a Guiné-Bissau em Janeiro [de 2012], onde vou trabalhar com a AD [- Acção para o Desenvolvimento], quase me sinto como membro da Tabanca Grande. 

Realmente o Mundo é Pequeno mas a vossa Tabanca... é Grande! Certamente a Alice já lhe contou como fui ter ao blogue e como descobri que o seu fundador é casado com a Alice Carneiro! Bom, tudo começou por eu andar à procura de cartas/mapas da Guiné-Bissau. Situar-me geograficamente é sempre um ponto de partida. 

Descobri as antigas cartas militares e depois fui descobrindo no blogue muitas matérias interessantes para quem não conhecendo o país vai para lá. Entretanto descobri que o José Eduardo Oliveira (JERO) é amigo da minha irmã [, Margarida Pires,] que vive em Alcobaça. Já conheci o Pepito e a Isabel e estou encantada por ir trabalhar com eles. Espero ter capacidade de adaptação e poder retribuir tudo o que vou aprender.

Irei para Iemberém [, Cantanhez], se Deus quiser, dia 6 de Janeiro. Se a Alice quiser mandar alguma coisa para a Alicinha pois que me diga. Falarei com ela pelo telefone.

Tentei adquirir as cartas contactando várias instituições mas só consegui comprar a Carta da Província da Guiné, Ministério do Ultramar, Junta de Investigações do Ultramar, Centro de Geografia do Ultramar, 1961, 1:500.000, na Biblioteca Nacional.

Gostaria muito de levar também comigo: 

(i) Carta de Bedanda, Norte-C-28, XXI-2-c (Província da Guiné), Ministério do Ultramar, Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar, 1956, 1:25.000; 

(ii) Carta de Cacine, Norte-C-28, XXI-2-b (Província da Guiné), Ministério do Ultramar, Junta de Investigações do Ultramar, 1960, 1:25.000;

(iii) Carta de Guileje, Norte-C-28, XXII-1-c (Província da Guiné), Ministério do Ultramar, Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar, 1956, 1:25.000; 

(iv)Carta de Cacoca, Norte-C-28, XXII-1-a (Província da Guiné), Ministério do Ultramar, Junta de Investigações do Ultramar, 1960, 1:25.000;

(v) caso exista, a Carta de Cassumba, que deve ser a Norte-C-28, XXI-2-a.

À excepção da 5, já vi todas no vosso blogue e gostaria de saber se mas podem vender ou ceder. Penso levá-las impressas mas a Biblioteca Nacional mandou-me em CD e agora vou a qualquer sítio para imprimir. Quero pô-las no meu futuro gabinete ou no meu quarto ou lá onde for!

Não tenho o e-mail da Alice e por isso tomei a liberdade de lhe escrever directamente. Parabéns pelo Blogue e por conseguir gerir as diferentes sensibilidades dos seus membros. Tornei-me numa visitante frequente e se em Iemberém a ligação à Internet o permitir penso continuar.

Desde já muito obrigada pelo tempo dispensado para ler o meu e-mail e pela resposta que me possa dar.

Um abraço para toda a família
Anabela Pires

2. Comentário de L.G.: 

Anabela: Terei muito gosto em enviar-lhe as cinco cartas que nos pede (no formato original, em suporte digital...) [e todas as demais da região de Tombali]. 

Agradeço-lhe as simpatiquíssimas referências que faz ao nosso blogue, que já vai a caminho dos  8 anos de existência, com alguns altos e baixos... Fica desde já convidada a integrar a nossa Tabanca Grande, sentando-se debaixo do nosso secular, frondoso, mágico, generoso, fraterno poilão (**)... 

A Alice entrará depois em contacto consigo (***). 

Um beijinho. Luís Graça

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Notas do editor


(*) Vd, poste de 7 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9325: Ser solidário (119): Anabela Pires: A caminho de Iemberém como voluntária da “AD” (JERO)


(**) Último poste da série > 14 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9199: O Nosso Livro de Visitas (119): João Gabriel Sacôto Martins Fernandes, ex-Alf Mil da CCAÇ 617/BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66)


(***) A Anabela Pires, nascida em Moçambique,  reformou-se recentemente da administração pública. Era técnica superiora,  com formação em serviço social e sociologia, nos serviços regionais no Ministério da Agricultura.  As suas competências e experiência serão seguramente úteis para a equipa da AD, responsável no Cantanhez pelo projeto do ecoturismo. 


E a propósito do Cantanhez, vejam e ouçam as belíssimas imagens do Pedro Mesquita bem  como a sublime música do João Bernardo no vídeo que apresentamos acima, com a devida vénia aos nossos amigos da AD. Parabéns ao realizador Pedro Mesquista e sua equipa. Queremos ver em breve o documentário Os Donos do Chão...

Guiné 63/74 - P9327: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (20): O plágio

1. Em mensagem do dia 5 de Janeiro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias.



HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (20)

Plágio

Todos sabemos o que significa plágio; direi apenas que é bem mais grave, mais recriminável que a “cábula”, o tema que recentemente tratei. Direi ainda que a cábula é jocosa (quase) é frequentemente divertida; o plágio é normalmente praticado com mais anos em cima do autor; é assunto mais sério; é doloso; o autor pode (e deve) ser judicialmente incriminado... mas isto são contas doutro rosário!

Após a revolução dita dos cravos o país entrou em convulsão endémica atingindo o auge logo no chamado “verão quente” de 1975.
As escolas, em geral, não fugiram à regra; o ensino foi “pretensamente” reformulado... em cima dos joelhos... até mesmo nas Universidades. O curso de Filologia Germânica não deixou de seguir as mesmas pegadas; sofreu uma “reforma” que, como noutros casos, constou apenas da redução do número de cadeiras; o objectivo era simplificar ou facilitar para formar à pressa sem que os alunos tivessem de queimar muito as pestanas para concluir os cursos.
Anos mais tarde, consta até que um agente técnico de Engenharia passou a ser engenheiro fazendo exames ao domingo e três cadeiras... com o mesmo examinador... mas esta história é outra... não é das nossas relações!

Antes de 1972 eu tinha feito algumas “cadeiras”, enquanto permaneci no Colégio Militar. Naquele ano comecei a trabalhar na vida civil. Em 1974, quinze dias antes da bronca (leia-se revolução dos cravos) mudei de ramo; estas mudanças tiveram consequências bicudas nos meus estudos. Recomecei no ano lectivo de 1975/76.

Para reiniciar passei pela Reitoria e perguntei:
- Quantas cadeiras tem agora o curso de Germânicas?
- Vinte e quatro! Foi a resposta na ponta da língua.
- Eu já fiz 25! – Curso concluído!
- Não é bem assim! Falta-lhe uma cadeira em seminário! É essencial!
- Quais são as cadeiras que podemos fazer em seminário?

Citaram várias; uma delas era História do Cristianismo.
- Já fiz essa, em Coimbra!
- Mas não a fez em grupo! A situação mantém-se!

Fazer mais uma cadeira... era só mais uma! Eu até já tinha sido engenheiro de pontes...!
As aulas já tinham começado e eu não conhecia ninguém com quem pudesse formar equipa para preparar o tal exame – que era obrigatório.
Encontrei uma ex-colega de Oliveira de Azeméis e de Coimbra, Maria do Céu Sousa e Silva, nome a que, por casamento, já tinha acrescentado “Castro Lopes”; ela estava a preparar o exame (o tal em seminário) sobre a Revolução Industrial.
A Maria do Céu houve por bem interromper o curso para estar perto do marido (casadinhos de fresco) enquanto ele prestava serviço militar obrigatório na Marinha. Acabada a tropa dele, ela voltou à Universidade.

Os grupos podiam ter de três a cinco elementos; no grupo dela eram apenas três (duas moças eram jovens e solteiras); pedimos à professora – e ela autorizou – que eu entrasse naquele grupo com o estatuto de trabalhador estudante – coisa importante!
Sempre que me era possível – naquela época, a vida nas empresas era febril, alucinante – eu ia comparecendo e assistia a uma ou outra aula. Com a frequência permissível reunia com as prestantes colegas de grupo em que, por especial favor e com a sua cara boa vontade, eu me tinha encaixado.

Numa das primeiras aulas a que assisti tomei conhecimento do modo suigéneris como cada grupo iria ser avaliado.
O grupo apresentava o seu trabalho; entregava uma cópia à professora e outra a cada um dos restantes grupos; marcava-se a data em que os eruditos autores iam ser ouvidos (examinados). Cada aluno, vestindo a capa de examinador, colocava objecções e/ou dúvidas e formulava perguntas; os examinandos respondiam, prestando os esclarecimentos cabais e necessários, ou como tal considerados.
Cada grupo de “examinadores” decidia a nota a atribuir ao trabalho em discussão; ao grupo examinado era atribuída a especial nota grotesca de “apto” ou “não apto”; esta apreciação era extensiva a cada elemento do grupo. Obtinha-se a nota final por maioria simples (50% + 1). Em caso de empate, à professora, qual rainha de Inglaterra que reina mas não manda, cabia o supremo poder decisório de desempatar.

Fiquei desapontado, pasmado, quando me apercebi que só havia notas de “sim” ou “sopas” e como elas iriam ser atribuídas; exprimi o meu veemente desacordo mais ou menos nos seguintes termos:
- Que se considere que as notas de zero a vinte já pouco significam nos tempos que correm, eu concordo.
- Que se pretenda praticar escalas de 1 a 10 ou de 1 a 5 como já acontece em muitas escolas secundárias e até em algumas Faculdades, é pura aberração.
Que se pretenda “legislar” que o aluno não pode ter zero (nota eliminada) só porque assinou a folha é estupidez no seu mais alto expoente; e se não assinar!?... Também não pode ter zero porque essa nota já não “consta” dos alfarrábios.
No entanto, mais abstronso que tudo isto é pretender atribuir, na última cadeira do curso a nota “apto” ou “não apto”. Não pretendo ofender o burro... Caso contrário diria que é burrice pura!

Neste ponto fui interrompido por uma colega que diziam ser MRPP (meninos rabinos que pintam paredes):
- Oh colega! Isso já foi discutido no início do ano! Agora não podemos voltar atrás!
- Pode-se voltar atrás (e deve-se voltar) sempre que nos apercebermos que errámos; é mais fácil defender o erro que reconhecê-lo! O futuro mostrará, por certo, o lamaçal para onde nos deixámos arrastar.
Ao que disse anteriormente só pretendo acrescentar três pontos:
1 – Ao contrário de muitos de vós eu estou a tentar concluir um curso que “devo”... aos meus pais pela sua coragem inaudita e pelos imensos sacrifícios que, deliberadamente enfrentaram para me proporcionar a possibilidade de estudar; penso que, em princípio, não o utilizarei eu proveito próprio, pois exerço já um cargo cimeiro numa empresa onde me sinto bem e sei que os patrões estão satisfeitos com o meu desempenho.
2 – Se um dia me aparecerem dois candidatos a um emprego (um cota dez na escala de zero a vinte e outro classificado desconexadamente com nota “apto” – (a nota do “sim ou “sopas”) podem ter a certeza que, mesmo de olhos fechados, eu escolherei o candidato do 1º caso; e tenho a certeza que a ilustre colega que tão denodadamente, tão acerrimamente defende este desconjuntado sistema, se tiver de proceder à mesma escolha, na hora da verdade, ela será sem dúvida, da minha opinião.
3 – Numa época em que os povos mais evoluídos optaram por notas de zero a cem será que nos dicionários existem reais palavrões para classificar esta brutal decisão?
Eu prefiro afirmar que não os conheço... para não ter de os utilizar porque seriam obscenidades tais que fariam corar as faces de um qualquer jumento inocente.

É verdade que fiz o sermão aos peixes! Não houve mais discussão! E nada foi alterado!
A professora não se pronunciou. Era muito jovem – creio que seria o 1º ano que lecionava – e talvez tivesse também ideias um tanto revolucionárias.

Começaram a aparecer os primeiros trabalhos de grupo para serem avaliados. Se bem me lembro, o primeiro foi mesmo do grupo da colega MRPP. Todos os primeiros trabalhos foram considerados aptos. Só me lembro de um cujos autores foram classificados de “não aptos”.

E o trabalho do meu grupo?

Nas variegadas reuniões que tivemos (frequentemente em casa da colega Micéu, porque ela tinha dois filhos; o mais novo com apenas 3 anos e que não frequentava o pré-escolar – coisa rara ou ainda inexistente) quase sempre houve acordo sobre os textos apresentados. Apenas recordo duas situações discutidas com mais calor: num caso houve desacordo e noutro houve apenas sugestão de alteração de forma (imperativa).

O primeiro caso ocorreu quando uma colega (das mais novas) escreveu que tinha lido algures (e pretendia incluir no texto colectivo) que, durante a Revolução Industrial em Inglaterra, havia patrões que admitiam crianças de 3 anos para trabalhar nas suas fábricas.

Protestei veementemente! A moça defendia que tinha lido e citava obra e autor. Retorqui:
- Os maiores disparates e/ou baboseiras podem aparecer em qualquer livro de autor menos coerente ou mais distraído; a opinião pública influencia os autores menos cuidadosos ou mais ingénuos. Numa época em que se pretende deliberadamente molestar os criadores de postos de trabalho que, tal como hoje, eram os – “causadores” de todos os males – qualquer autor é bem visto se conseguir denegrir a imagem deste sector da sociedade, mesmo que através de disparates. Nós temos de discernir e atingir o que terá “naturalmente” acontecido e o que poderá ter sido tomado por base em tal descalabro. Não podemos confundir deliberadamente “inchaço com gordura”.

Depois de avanços e recuos dirigi-me à colega Micéu, mãe duma criança de 3 anos e ali presente:
- Entendes que alguém consegue que o teu filho trabalhe, produza para ser remunerado mesmo que mal, numa qualquer oficina?
- Claro que não! Absolutamente impossível! – Foi a resposta.

O que terá acontecido foi o seguinte:
- Uma qualquer mãe extremosa solicitou ao bom do patrão que a autorizasse a trazer a criança para a oficina porque não tinha com quem a deixar e “ela é bem comportada e não prejudicará” o trabalho de ninguém. A certa altura a criança estava saturada; a mãe deu-lhe uma vassoura para “varrer a oficina”; a criança “brincou” com os resíduos, empurrando-os dum lado para o outro.

Eis que um inoportuno escrevinhador passou por ali e poderá ter perguntado à criança:
- Que estás a fazer aqui, minha menina?
- Estou a varrer! Terá respondido inocentemente a bebé.
Assim, o escrevedor, provavelmente mal-intencionado, conseguiu um “belo tema” para sua obra.

Logo se decidiu que aquela tolice não constaria do nosso trabalho. Boa decisão! Devemos ser sempre imparciais ou... procurar sê-lo!

Àcerca dum texto meu sobre o “Emile” de Rousseau, aconselharam-me a “desempolar” o tema porque o estilo não se enquadrava no texto geral. Sem alterar o conteúdo (isso não estava em causa) lá “desenfatuei” o que tinha escrito.


Caro leitor! Está surpreendido porque ainda ninguém plagiou? Então aí vai!

Um grupo de 4 moças apresentou as necessárias cópias do seu trabalho; lembro-me que foi dos mais acaloradamente discutidos; as autoras foram advertidas pelos muitos erros ortográficos e sintáticos.
Elas defenderam-se, atribuindo a “culpa” ao dactilógrafo e elas não tiveram tempo de reler e corrigir o que tinham “bem” escrito. Ainda não tinha chegado a era da informática e a fotocópia ainda era um luxo de má qualidade e de custo elevado.
A discussão continuou acesa mas o trabalho foi aprovado não sei já com que percentagem de votos a favor e elas foram consideradas “aptas”.

Dois ou três dias mais tarde, estabeleceu-se a confusão! Que grande balbúrdia! Autêntico regabofe!
Umas colegas que trabalhavam no Algarve enviaram o seu douto comentário escrito e formularam uma série de perguntas absolutamente pertinentes. Afirmavam e demonstravam claramente que o trabalho em causa era um constante plágio (elas diziam cópia) quase de fio a pavio. E citavam:
- No parágrafo tal da página tal as autoras afirmam categoricamente... e transcreviam o citado parágrafo.

Elas continuavam: - o autor fulano na obra e página tal e tal diz... e concluíam que até a tradução estava falseada e os erros ortográficos e sintáticos eram assíduos.
Citaram uma chusma de parágrafos plagiados e quase sempre mal traduzidos e com erros.

Alguém perguntou à professora se era ainda possível recuperar e anular a nossa decisão anterior. A professora respondeu que tal era absolutamente impossível porque as notas já haviam sido escrituradas nos cadastros individuais. Nada se podia fazer para repor a legalidade. Talvez pretendesse defender-se do erro coletivo!

Chegou a minha vez de reentrar na contenda, atacar o sistema, tentando desancar os seus defensores:
- Temos de concluir, doa a quem doer, que somos acusados de ter cometido uma tremenda injustiça e a culpa não pode ser atribuída ao “sistema”. Já sabíamos que tal decisão não poderia conduzir-nos a bom porto. Cada macaco no seu galho! A professora na sua cátedra, deve defendê-la e respeitá-la; nós nos nossos assentos devemos ser alunos até ao fim.
Por outro aldo, perante a avaliação elaborada pelas colegas do Algarve, somos obrigados a concluir que elas conhecem a fundo esta matéria; elas detectaram com grande pormenor o que, nem nós, nem a professora, conseguimos denunciar. Somos levados a concluir que nenhum de nós tem condições para aquilatar os conhecimentos que elas irão exibir no trabalho que apresentarão dentro de dias. Perante isto e tendo em conta que elas já provaram que são excelentes conhecedoras da matéria, proponho que o seu trabalho seja considerado apto sem qualquer discussão. É a maneira de reconhecermos que elas já são na verdade “doutoras” no assunto em causa. Eu recuso-me a atribuir-lhes nota doutra maneira,... por incapacidade minha.

A proposta foi aprovada por unanimidade, incluindo a professora.
A colega MRPP, logo que viu o seu trabalho aprovado, nunca mais apareceu nas aulas.
De seguida a professora lamentou profundamente o que tinha acontecido e garantiu que tal não mais se repetiria – nunca!
As fraudulentas, (plagiadoras) porém, foram (já tinham sido) consideradas “aptas” e não havia (?) maneira “legal” de corrigir aquela bestial monstruosidade. Era mais um acontecimento excêntrico, estupendo (estúpido) do PREC (processo revolucionário em curso)... no seu auge!

Lisboa, 04 de Janeiro de 2012
Belmiro Tavares
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9258: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (19): Recordações de um colega cego

Guiné 63/74 - P9326: Memórias de Manuel Joaquim (2): Manhã maculada


1. Mensagem de Manuel Joaquim* (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 5 de Janeiro de 2012:

Meus caros amigos e camaradas,
Aqui vai uma coisinha que ainda vive na minha memória. Se acharem que vale a pena

Um grande abraço
Manuel Joaquim



MEMÓRIAS DE MANUEL JOAQUIM - 2

MANHÃ MACULADA

Introdução

Os primeiros dois meses e meio de comissão passou-os, a minha CCaç 1419, em Bissau. Rondas, serviços de guarda, ações de vigilância na área do aeroporto, uma ou outra escolta a batelões de abastecimento nas suas deslocações pelo rio Cacheu ou pelos canais do sul da Guiné. Uma maravilha comparando com o que acontecia às duas outras Companhias operacionais do Bcaç 1857 (1420 e 1421), a primeira em Fulacunda e a segunda em Mansabá/K3. Cheiros de guerra a sério também tivemos mas poucas vezes e foram só cheirinhos. Saíamos para Mansoa onde, enquadrados por tropas já veteranas, participámos em ações de reconhecimento. Houve contactos com o IN mas de fraca intensidade e sem vítimas visíveis de qualquer dos lados, exceto uma vez, no início de outubro de 1965, dois meses depois da chegada à Guiné. Mas, “aburguesados” em Bissau, estas participações causavam-nos algum nervosismo. Coisas de “periquitos”.


Manhã maculada

E mais uma vez, náufragos inseguros num “mar” quase desconhecido, massas de sombras embrulhadas em silêncio e medos indefinidos, lá vamos a caminho de Mansoa. As viaturas, estrada fora roncando, vão rompendo o negrume espesso daquela noite chuvosa e trovejante.
Espera-nos um grupo de “velhinhos”, prontos para nos apoiar e instruir em mais uma das nossas idas à guerra. Havia algum exibicionismo da sua parte. Ao nosso ar encolhido, tímido e ansioso contrapunham uma pose desinibida, à gingão, fardas desbotadas com falha de botões e/ou rasgada, botas cambadas, manuseio fácil e displicente da G3, pose madura e superior mas apaziguadora para estes “periquitos” de camuflado novo de cores vivas, idos de Bissau.
E é nesta pose ostensivamente protetora que nos juntam ao seu grupo para os acompanharmos numa ação de vigilância, de segurança e de reconhecimento.

Na escuridão da noite os relâmpagos próximos dão cabo da nossa, já de si difícil, perceção visual. A progressão faz-se de mãos nas costas ou no ombro do camarada da frente. Ouvem-se sons dos toques entre capacetes e armas devidos a cortes frequentes na coluna que obrigam a fortes acelerações e a choques inesperados ... ... ...

Amanhece. As sombras começam a dissipar-se e as formas da natureza envolvente tornam-se rapidamente mais nítidas. Acariciados pelo resplandecer matutino e pelos golpes de luz entre os intervalos da chuva, somos embalados pelo cantar das aves e interpelados pelos novos sons da floresta. Um ribeiro bem cheio é atravessado. A exemplo dos de mais baixa estatura, preparo-me para o atravessar elevando os braços e segurando a arma e o capacete com os cigarros dentro. Ao chegar a minha vez vejo-me com água pelos olhos. De braços no ar lá vou avançando, qual canguru aos saltos para a frente, tentando respirar na parte alta do salto. Há um matulão atrás de mim que deve ter perdido a paciência e, não sei como, dei por mim a pairar sobre a água e a aterrar na margem, sob risadas surdas e gozonas! Mas que culpa tenho eu do meu 1,63 m?

Avançamos. A paisagem inebria, uma mescla de aromas densos e acres evola-se da terra molhada, a folhagem verde do capim brilha nas gotas de água que a salpicam e que refletem, faiscando, os raios do sol. Há qualquer coisa de sagrado naquele ambiente que uma fila de homens armados ofende. Repetem-se momentos onde se chocam sensações opostas de sofrimento e de gozo, de ansiedade e de paz ... ... ...

E, de repente ...! Um grito lancinante de mulher corta os ares, seguido de rajadas de G3 e de alguns tiros de som diferente. Houve contacto com o IN, um encontro inesperado para os dois lados. Segue-se um silêncio interrogativo e de preocupação nas hostes “periquitas”. Ouvem-se ruídos de vozes lá para a frente da coluna.... (Ah, aquele grito de mulher, aquele grito de dor, de impotência, de desespero e aviso (... ...)! Ah, aquele grito que nunca mais me sairá dos ouvidos, que ecoou na selva ao momento da aurora, seguido de rajadas de espingarda automática! Ela sentiu que se acabava, mostrou-me como é grande o desejo de viver e antes de cair varada pelas balas gritou bem alto o aviso aos outros que, como ela, estavam sob o nosso cerco.)*

Levanto-me e procuro informação. Avanço e vejo um corpo de mulher varado pelas balas. Diz-se que o grupo seria numeroso e que o seu grito tão forte foi de aviso aos seus companheiros de caminho. Alguns ripostaram com fogo de modo a facilitarem a fuga de quase todo o grupo que, tudo levava a crer, tinha funções de reabastecimento de alguma célula do IN.

Olho de novo para o corpo estendido e reparo numa figura sentada, ali perto e encostada às pernas de um soldado. Calada, alguns fios e salpicos de sangue pelo corpo, olhar vago, expressão indefinida, talvez em estado de choque, está uma jovem bajuda, aparentando uns 15 a 17 anos (viçosa, semi-nua, seios túrgidos e vigorosos pintalgados de sangue, talvez filha. Manhã maculada! Manhã terrivelmente dolorosa. Infelizmente, manhã inesquecível. Quão estúpida e vergonhosa, horrível e criminosa é a guerra, minha querida...)*

*Em itálico, excertos duma carta enviada, na altura, à minha namorada e futura esposa.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9153: Notas de leitura (309): Guillaume Apollinaire, de George Vergnes (Manuel Joaquim)

Vd. primeiro poste da série de 27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5358: Memórias de Manuel Joaquim (1): O Balanta furtador

Guiné 63/74 - P9325: Ser solidário (119): Anabela Pires: A caminho de Iemberém como voluntária da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento (JERO)



1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem: 


A CAMINHO DE IEMBERÉM COMO VOLUNTÁRIA DA “AD”

Camaradas,


Remeto-vos mais um texto que, nos tempos que correm, julgo ser um  grande exemplo de generosidade e amor pelo próximo. Uma senhora, que  poucos meses depois da reforma, resolve ir fazer voluntariado para a  Guiné, para a zona da Mata do Cantanhez.

Família, amigos(as), ex-colegas, ex-vizinhos:
 
Chegou o dia da partida. Hoje às 21.30 embarco para a Guiné-Bissau. No Domingo bem cedo,às 6 da manhã, farei a viagem para o Sul, para Iemberém, onde ficarei a residir nos próximos 6 meses. Vou contente, esperançosa, de muito aprender e, quem sabe, ensinar também.
 
Obrigada a todos os que partilharam comigo estes meses de preparação desta viagem, àqueles que me ajudaram de uma ou outra forma, àqueles que nos últimos dias me têm contactado para um último adeus.
 
Parece que vou para o fim do mundo mas não é assim. São só 3300 Kms de distância, 4 horas de voo e até dá para lá ir de carro. A alguns, os(as) mais atrevidos(as), eu espero um dia receber em Iemberém.
 
Aqui fica para cada um de vós um grande abraço e um até breve.
 
Anabela Pires
(6.Janeiro.2011)


Fotografia: © João Graça (2009). Direitos reservados.

Voluntariado na Guiné 

Conheci a Anabela Pires, em Coimbra, no dia do falecimento de sua Mãe.Já lá vão um bom par de meses. A conversa foi de circunstância e a minha presença na cerimónia religiosa ,no dia do funeral, deveu-se à minha relação fraterna com a sua irmã Margarida Pires, professora em Alcobaça e camarada de boas causas (Defesa de Património Cultural e outras). 

No último Verão soube pela Margarida que a sua irmã Anabela queria fazer serviço voluntário na Guiné. Falei-lhe do nosso Pepito (nickname do Engenheiro Agrícola Carlos Schwarz da Silva), que vive e trabalha em Bissau desde 1975, sendo um dos fundadores da AD - Acção para o Desenvolvimento. 

O mundo é pequeno e a Anabela Pires tinha sido colega e amiga da Alice Carneiro, mulher do nosso Editor Luís Graça. 

Poucos dias depois estava a falar com as pessoas certas e em poucos meses “arrumou” a sua vida para cumprir esse seu velho de sonho de fazer voluntariado em África. 

Esteve em minha casa na passada 4ª. feira, dia 4, a despedir-se e, obviamente a fazer-me perguntas sobre a “nossa” Guiné. Respondi-lhe gostosamente e tentei atenuar alguns dos seus receios em relação “a cobras e lagartos”. E ofereci-lhe um exemplar do meu livro “Golpes de Mão’s” com uma dedicatória em que lhe chamava “Mulher Grande”. 


Pedi-lhe para escrever alguma coisa para o nosso blogue. Agradeceu o convite mas disse-me que era cedo. Escreveria “quando tivesse feito alguma coisa de bom na Guiné”.
Recebi hoje o e.mail que reproduzi no início deste texto. E respondi como segue.

«Olá Anabela




Relendo o texto fixei-me de novo na parte do e.mail da Anabela em que diz:

«A alguns, os(as) mais atrevidos(as), eu espero um dia receber em Iemberém.»

Sinceramente passei ,a partir deste momento, a ser candidato a uma viagem à Guiné.
O futuro o dirá.

Em ano de crise percorrer 3.300 kms…não é (quase) nada!

E por uma boa causa…valerá sempre a pena.

JERO
Fur Mil da CCAÇ 675 
___________ 
Nota de M.R.: 

Vd. Também o último poste desta série em: 




Obrigado em meu nome e ,julgo poder dizê-lo, em nome de todos que passaram pela Guiné fazendo a guerra mas recordando, essencialmente, a paz..

Que tudo corra bem e parabéns aos Guineenses por terem junto deles a partir de hoje uma Mulher da sua raça. Uma Mulher (de) Grande (coragem).

Até breve.

Com todo o afecto (com “c”) aceite um apertado abraço do JERO».

Guiné 63/74 - P9324: História do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (3): Homilia do Alf Mil Capelão Arsénio Chaves Puim, em Viana do Castelo, a 6/5/1970, na missa da benção dos guiões, antes da partida (Benjamim Durães)

Fonte: Excertos de História do Batallhão de Artilharia nº 2917, de 15 de Novembro de 1969 a 27 de Março de 1972. (*)


Anexo ao Capítulo I da História da Unidade >

CERIMÓNIAS DE DESPEDIDA > 06.MAIO.70


 O dia amanheceu chuvoso em Viana do Castelo. Foi o dia marcado para oficialmente a Cidade se despedir do BART 2917. Foi o dia em que cada Unidade recebeu o seu Guião.


Igreja de São Domingos – 10, 30 horas


Na Capela-Mor as entidades de Viana do Castelo que quiseram honrarem com a sua presença:

- Reverendíssimo Arcipreste do Julgado Eclesiástico de Viana do Castelo;
- Governador Civil do Distrito;
- Presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo;
- Comandante Militar;
- Capitão do Porto de Viana do Castelo;
- Comandante Distrital da GNR;
- Presidente da Junta Distrital;
- Delegado do INTP;
- Comandante Distrital da PSP;
- Comandante da Secção da Guarda Fiscal;
- Comandante Distrital da Legião Portuguesa;
- Senhoras do Movimento Nacional Feminino local;
- Senhoras da Cruz Vermelha Portuguesa;
- Delegado Distrital da Mocidade Portuguesa;
- Delegado Distrital da Mocidade Portuguesa Feminina;
- Comandante do Batalhão de Caçadores Nº 9.


Estranhos a Viana do Castelo, [eram] apenas o Comandante do RAP 2, Coronel de Artilharia Neto Parra, a quem pelo telefone foi pedido que representasse o Comandante da Região Militar do Porto que,  intimidado pela chuva ou pela distância, brilhou pela ausência, e o Capelão da Região Militar do Porto.

Presente na vasta nave, o Batalhão assistiu à “Bênção dos seus Guiões”,  seguida de missa celebrada pelo nosso Capelão, Alferes dos Serviços Religiosos Arsénio Chaves Puim

À homilia o nosso Capelão Alferes Graduado Arsénio Chaves Puim  [foto à direita] disse:

“Amigos e Companheiros:


"O problema fundamental do homem não é ser oficialmente cristão. O cristianismo existe em razão e em função da verdade e do bem objectivos e não é, portanto, verdadeiro e bom porque é cristianismo, mas é cristianismo, porque é verdadeiro e bom.


"De resto, o cristianismo é essencialmente um espírito e uma vida, uma mentalidade e uma conduta efectiva, que não aceita monopolistas nem detentores absolutos.


"O problema fundamental do homem também não é ser oficialmente cristão, na medida em que isso pode implicar desvio da verdade e do bem, e até cobardia e falta de personalidade, além da falta de estudo e procura. O problema fundamental dos homens, penso que é um problema de seriedade e verdade, de coerência consigo, de autenticidade humana e realização da missão de vida.


"Cristo apareceu num determinado ponto do curso da história humana e, num programa de autêntico revolucionário, destroçou erros, descentralizou frases legalistas, focalizou as grandes virtudes do amor e da justiça e aperfeiçoou o âmbito dos conhecimentos e da Fédos homens.

"A Igreja adoptou, ou melhor, nasceu desse Cristo e pregou-o. Os povos aceitaram-no ou guerrearam-no e todos, em movimentos de adesão ou combate e heresia, influenciando-se mutuamente, têm contribuído para o desenvolvimento progressivo da verdade evangélica e a realização mais precisa e renovada do espírito de Cristo no Mundo, que é de Fraternidade na Liberdade, Acção na Justiça, Paz no Progresso.

"No fim de contas, todo o Mundo e todos nós, Cristãos ou não, assumimos muito do espírito cristão e encontramo-nos num ponto de convergência, não só pelo respeito e amor mútuos, mas na posse da verdade essencial.

"É por isso que aqui estamos todos nesta Missa e que eu ouso confiar na compreensão daqueles que, porventura, em circunstâncias de maior espontaneidade, não estariam aqui presentes neste momento.

"A Missa é de facto, na sua origem, essência e história, um acto do culto católico, que não pode ser número de, programa acomodado sem efeito a propósito ou, ideologias que não sejam a prestação pura de honra ao Pai da humanidade e com Cristo incarnado e sacrificado, e a comunhão da Palavra e do Pão de Deus.

"Julgo porém que, segundo o que disse, esta missa será um acto de grande profundidade existencial e estimulante solidariedade humana e religiosa para esta comunidade, que todos nós formamos - ”O Batalhão 2917”.


"Deixamos com saudades as nossas famílias, estamo-nos a despedir deste simpático povo de Viana do Castelo, e em breve deslocar-nos-emos para a Guiné, onde vivemos juntos dia a dia, pisando as mesmas dificuldades e sacrifícios, realizando a mesma vida, com uma nova família, onde todos formarão um, cada um viverá para todos e todos para os outros.


"Esta hora de missa deverá bem sintetizar, consolidar e intensificar esse espírito de comunidade que nos une, assim como os altos ideais humanos e cristãos, que são apanágios de todos os homens de boa vontade em quaisquer circunstâncias.


"Os exércitos também têm a sua mística altamente humanitária, que não a guerra, essa nunca poderá ser um ideal ou valor em si mas a defesa do direito de todos, a garantia da liberdade dos povos, a consecução da paz justa, o compromisso apenas com verdade.


"O Batalhão 2917 viverá rectamente esta missa e a sua comissão de serviço na Guiné se para todos pesar um desejo sério de sermos homens mais perfeitos, uma comunidade militar autêntica ao serviço dos outros (da África Negra) e construirmos um Mundo melhor.”


Que assim seja!
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Nota do editor:


(*) Vd. último poste da série > 6 de desembro de 2012 > Guiné 63/74 - P9322: História do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) (2): "P'la Guiné e suas gentes": a alocução patriótica do comandante, em Viana do Castelo, a 8/4/1970, antes da partida (Benjamim Durães)