segunda-feira, 7 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9861: Cartas do meu avô (2): Segunda Carta: Em Catió (Parte I) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)



Guiné > Região de Tombali > Catió > BCAÇ 619 (1964/66) >  Grupo de oficiais à mesa, no famoso bar Tombali, em Catió. Há dois palmeirins, da CCAÇ 728: o alf mil J.L. Mendes Gomes, o 2º a contar da direita, de óciulos escuros; e o alf mil Gonçalves, o 1º a contar da esquerda. Os restantes pertenciam à CCS do BCAÇ 619, então sedeado em Catió, com destaque para o major  Luís [António Moura] Casanova Ferreira [, hoje coronel reformado,] de bivaque na cabeça e camuflado, ao fundo (era o homem grande da logística do batalhão e foi um dos mentores e atores do 25 de Abril).  Da direita para a esquerda, são ainda visíveis o alferes de transmissões do batalhão - o Teixeira; a seguir ao J.L.Mendes Gomes, o alferes, do Pel Art,  de apelido Maia);  e por fim, o alferes Pires Marques, de cavalaria (Pel Rec). Foto do álbum do nosso camarigo J.L. Mendes Gomes.

Foto (e legenda): © J. L. Mendes Gomes (2006). Todos os direitos reservados.


1. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do  nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió)  e em Bissau, nos anos de 1964/66, vivendo presentemente em Berlim.


SEGUNDA CARTA – EM CATIÓ (PARTE I)

Lichtenrade, Berlim,  14 de Março de 2012- 16h e 22m 


1- A Despedida do Cachil e a Entrada em Catió

Os nove meses que decorreram no Cachil deram para sedimentar tudo. A ambientação ao clima de guerra estava culminada. Ao cabo de várias substituições de comandante, - porque o primeiro, tão valente se aparentava, desertara escandalosamente, logo no nosso baptismo de fogo - tínhamos dado a volta ao quartel.

Tornámo-lo habitável. Até uma pista de aviação se conseguiu montar umas dezenas de metros ao lado da paliçada leste. Dava para recebermos os abastecimentos mais prementes através da Dornier. Legumes frescos, alfaces….Vindos das hortas de Bissau.

Ninguém que não tenha passado por uma situação destas poderá imaginar o valor que estes vulgares consumíveis assumem numa comunidade como é uma companhia isolada e entregue a si própria. Poder debicar umas escassas folhas de alface ou de couves frescas ponha o quartel em verdadeiro transe…e alvoroço.

Receber o correio trazido directamente pela avioneta estreitava e atenuava infinitamente o sofrimento que se sente quando a vida e o mundo se resumem a um universo de cento e oitenta homens perdidos numa ilhota cercada de rios e bolanhas. 

Renovaram-se casernas, uma para cada pelotão; outra para os oficiais, outra para os sargentos; ergueu-se um bar com tamboretes à volta para os momentos de ócio, idêntico aos de um quartel a sério; a cozinha completamente reformulada, assente num espaço cimentado; aulas de escolaridade, etc.


O tempo decorria serenamente. As noites não. Eram de permanente suspense… e pesadelo. Seriam a pior altura para se sofrer um ataque. Fosse pelo que fosse, isso não chegou a acontecer.

Foram nove meses sossegados os do Cachil. Por isso, foi um momento muito difícil, aquele em que se soube que a companhia iria ser deslocada para Catió. Ficaria a ser a companhia de segurança ao comando do batalhão e de intervenção em todas as operações a desencadear no sul.

Eram muito negras as perspectivas daí para a frente. Como o foi a hora de largar o quartel e entregá-lo à outra que veio render-nos. Pela calada da noite, aproveitando a maré-cheia, fomos levados numa grande LDM, escoltadas ao longe, pelo temível poderio de fogo pesado de uma curveta da Marinha. Talvez a "Orion".

Ao cabo dumas boas horas de escuridão, a navegar aos ziguezagues pelo labirinto hidrográfico do sul da Guiné, ladeados por vastas bolanhas livres ou temíveis florestas densas, a escorrerem sobre as águas, chegámos a Catió.





2- Entrada em Catió

Catió era um pólo administrativo com certo relevo comercial, vinha dos tempos coloniais. Tinha um Administrador de carreira; uma igreja, um mercado, um posto de assistência médica, uns correios e várias casas comerciais. Exploradas por libaneses, sirianos ou emigrantes do continente.

À volta, havia um arco de aldeias populosas de nativos, fulas e mandigas, que nos eram fiéis e favoráveis.  Chefiadas sábiamente, por dois homens grandes cuja palavra ou ordem eram verdadeira lei.

Ordeiramente, foi-se procedendo à instalação das tropas, em sobreposição com as residentes. A receptividade era total. Para a companhia que saía era o luminoso fim da tormenta. Os oficiais ficaram instalados no designado "Sete e meio"- Era a anterior casa do enfermeiro.  Os sargentos nas instalações existentes, junto à parada e à cozinha. Os 
soldados nas casernas da companhia. Tudo era mais confortável e a sério. 


Catió era a importante sede do batalhão que superintendia em todo o sul. Para além da companhia de comando e serviços, tinha três pelotões autónomos: o de transmissões, os de artilharia e cavalaria. Tinha um médico, com os respectivos enfermeiros, a enfermaria e um capelão militar.

A vida decorria à boa maneira dum qualquer quartel no continente. A toque de corneta. Os oficiais dispunham duma boa cozinha e excelente messe, onde pontificavam o comandante-mor – um tenente- coronel- e os oficiais de planeamento de operações.

A hora das refeições era, por artes do comandante, um intencional momento de convívio solene, sempre sob o seu olhar atento e, por vezes, inquisidor. A distribuição na grande mesa comprida, era feita por ordem decrescente de patentes. No topo estava ele.


O primeiro comandante tinha trato afável e era próximo de todos. O tenente coronel Matias. (**) O segundo, que o viria a substituir, era o seu oposto. Um mau carácter, autoritário e desconfiado. A bonomia do capelão e do médico, mais a inesgotável verborreia do oficial de justiça, o M. Fernandes, todos muito bem sediados no batalhão, davam para minorar o ambiente pesado que, sem eles, haveria.

Anedotas, discussões filosóficas, gracejos picantes virados, sobretudo, para o padre, havia de tudo, eram o pano de fundo. No fundo, gerava-se um ambiente agradável. Depois, havia torneios de damas, de poker e xadrês. E até, torneios de voleibol. Enfim, Tudo condimentos que serviam para amenizar as nossas agruras.


Nas horas mortas, dava para, livremente, fazer sala pelos bares públicos da vila. Em descontraída cavaqueira. Aí, era a boa cerveja e o marisco, um açafate de ostras, apanhadas horas antes - o five o’clock -ostra - o amendoim, tudo muito barato. E ainda, de vez em quando e à socapa, uns passeios de jeep pelas aldeias à conversa com os artesãos ou à procura das nossas rutilantes lavadeiras. Sempre com a velha pistola Walter à cintura. Por precaução. Servia para nos dar aquela sensação de longínqua liberdade que não tem preço.

3- Foi só o começo

Não demorou muito, depois da chegada, para sermos chamados para uma magna reunião com os altos comandos. Na sala de operações numa dependência contígua à residência do comandante. Com toda a pompa e circunstância.

Várias filas de cadeiras frente a uma mesa comprida e larga, sobre um estrado bem sobre-elevado. O tenente coronel ao meio do sub-comandante e do oficial de planeamento. Na esquina da sala, à sua direita, desde o tecto até ao chão, pendia uma enorme cortina verde.

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Dadas as solenes boas-vindas à nova companhia, à ordem do comandante, o tal oficial de planeamento procedeu ao correr das cortinas puxando-as por cordões longos de cor dourada. A sala estava medianamente iluminada. Excepto a zona frontal à nossa esquerda. Para onde se dirigia um foco de luz.

Eis que um vasto mapa, de fundo predominantemente verde surgiu aos nossos olhos.  Com rigoroso pormenor, ali estavam as estradas, caminhos, veredas, linhas de água e povoações, cobrindo todo o sul da Guiné, como se fosse um retrato aéreo, que ainda não havia.

Em evidência, muito bem assinalados em traços de tinta, de várias cores, ali estava todo o plano secreto da operação que começaria, na madrugada dessa noite. Garbosamente, em pé, de ponteiro em punho, o oficial começou a expor minuciosamente, e a indicar no mapa, como tudo se deveria desenrolar no terreno.

A facilidade e rapidez com que o ponteiro percorria os longos meandros verdes das bolanhas e florestas e, como, serenamente, nos levava até à zona do Inimigo... parecia querer embalar a nossa fantasia. Tudo fora muito bem delineado, em longas horas de sacrificada concentração, ao mais alto nível, desde a última operação.

Pela entoação vibrante do orador, a lição estava muito bem estudada. Se não houvesse fuga de informações, aquilo ia mesmo ser um grande êxito. Tinha de sê-lo.


- Se não houver mais dúvidas..., desejo-vos boa sorte, uma boa noite... Esta reunião está encerrada. – proclamou sorridente o tenente coronel.

Era este o cenário a que iríamos ter de assistir nos nossos próximos meses. Repetidamente, aí de quinze em quinze dias. Cabisbaixos, um a um, recolhíamos às nossas instalações na companhia. A seguir, seria o acerto entre os oficiais, sargentos e soldados da companhia.

À hora fixada, todos os três pelotões, estariam na forma para a vistoria final e a partida, porta de armas fora. Jamais esqueceremos os olhares compungidos do comandante, do capelão e do pessoal médico a despedir-se à porta de armas, enquanto não se deixasse de ver, por entre o nevoeiro da noite, o derradeiro soldado da companhia em fila indiana.

Tal como de alegres os mesmos olhos haveriam de brilhar, quando, à mesma porta de armas, quando nos viam a regressar.


- Então, como correu?...quantos mataram? Houve baixas? - perguntava, feliz, como que a abraçar-nos, o nosso ingénuo capelão.

Lembrar-me-ei até ao fim dos meus dias da resposta pronta e espontânea do furriel Cunha das transmissões:
- Até rezei, caralho,…senhor padre!
- Ó homem! Não diga carvalho!... Onde é que eles estão? Diga palmeira!


J. L. Mendes Gomes (***)

(Continua)


Fotos (em formato pequeno, de Catió): ©  Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 3 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9848: Cartas do meu avô (1): Primeira: No Cachil (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Como, Cachil e Catió, 1964/66)

 (**) Ten cor inf Narsélio  Fernandes Matias, comandante do BCAÇ 619: mobilizada pelo RI 1, esta unidade partiu para o TO da  Guiné em 8/1/1964 e regressou a 9/2/1966. Esteve sempre em Catió. Subunidades: CCAÇ 616  (Bissau e Empada); CCAÇ 617 (Bissau, Catió e Cachil); e CCAÇ 618 (S. Domingos e Binar). O ten cor Matias era ilhavense, segundo informação do nosso  camarada e amigo Jorge Picado.



Por sua vez, a independente CCAÇ 728, os Palmeirins de Catió, foi mobilizada pelo RI 16, partiu em 8/10/1964 e regressou a 7/8/1966.  Teve 3 comandantes: cap inf António Proença Varão,  cap cav Ramiro José Marcelino Mourato, e cap inf Amândio Oliveira da Silva.

Guiné 63/74 – P9860: Convívios (425): 18º Encontro do Pessoal de Bambadinca, 1968/71, em 26 de Maio na cidade do Porto (Manuel Monteiro Valente)




1.   Mensagem do nosso leitor e camarada Manuel Monteiro Valente, ex-1º Cabo At Inf, CCAÇ 12, 1969/71 (a quem convidamos para formalmente para ingressar na Tabanca Grande), enviou-nos o seguinte programa da próxima festa do pessoal que andou pró Bambadinca. 

BAMBADINCA, 1968 A 1971 > 18º Almoço/Convívio  
26 de Maio - Complexo Monte Aventino - Porto

CCS / BCAÇ 2852 (1968/70)
CCAÇ 12 (1969/71)
Pel Caç Nat 52 (1968/70)
Pel Caç Nat 54 (1969/70)
Pel Caç Nat 63 (1969/71)
Pel Mort 2106 (1969/70)
Pel Mort 2268 (1970/72)
Pel Rec 2046 (1968/70)
Pel Rec 2206 (1970/71)
CCS / BART 2917 (1970/72)
(sem esquecer o pessoal do PINT - Pelotão de intendência). 


Companheiro, 
 
Se por um lado vamos prestar homenagem aos companheiros que perderam a vida, caindo ao nosso lado, e que eram afinal ao tempo a nossa família, por outro lado, confraternizaremos e regozijar-nos-emos, por, depois de tudo o que passamos, passados mais de 40 anos,  o estarmos vivos. 

Se ainda não te inscreveste, se puderes e quiseres deves fazê-lo, de preferência com alguma antecedência, a fim de melhor nos organizarmos e te recebermos com a dignidade que mereces, na cidade do Porto. 

Junto a planta topográfica/viária de acesso ao local do evento, para não te enganares. 

Nesta conformidade, para quem vem do Centro e Sul do país e tem como referencia a A1 > Ponte do Freixo e consequentemente entra na cintura interna (IC23). Quando começar a subir, imediatamente a seguir à ponte, encontra à sua esquerda o Estádio do Dragão e o Dolce Vita, a cerca de 1.500 metros, uma saída à direita (5ª saída depois da Ponte) com a indicação ANTAS, sais aí e logo vês a Igreja das Antas, o Mac Donald`s e a Praça Velásquez (Francisco Sá Carneiro). Chegado aí entras em local com estacionamento fácil e gratuito, dirige-te à esplanada do Café Velásquez, à Igreja, ou ao complexo do Monte Aventino, conforme a hora a que chegares. 


Para quem vier do Norte, tem como referência a A3 e a A4, sai em direcção ao Freixo e a 750 metros encontra uma placa à direita que diz ANTAS e segue as mesmas indicações dadas aos que vêm do Centro e Sul. 

Antes de vires dá uma vista de olhos ao esquema, depois é só segui-lo.


Um abraço, 

Manuel Monteiro Valente
Rua Joaquim Lopes Pintor Nº118 1ºDir.
4405-868 Vilar do Paraíso- Vila Nova de Gaia
Tel. 912700544/ 968849886 

Mini-guiões e emblemas: © Carlos Coutinho (2012). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

1 DE MAIO DE 2012 > Guiné 63/74 – P9839: Convívios (344): 18º Encontro do Pessoal de Bambadinca, 1968/71, em 26 de Maio na cidade do Porto (Manuel Monteiro Valente, ex-1º Cabo At Inf, CCAÇ 12, 1969/71) 


domingo, 6 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9859: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (15): Contam-se histórias tenebrosas sobre Gadamael...



1. Em 1973, em Maio/Junho, Gadamael era um dos três G de que toda a gente falava: Guidage, Guileje, Gadamael... Sobre Gadamael temos mais de 170 referências no nosso blogue, já tendo nós publicado diversos depoimentos em primeira mão, relativos à chamada batalha de Gadamael (em finais de maio e princípios de junho de 1973), desde o J. Casimiro Carvalho ao Pedro Lauret, do Carmo Vicente ao Victor Tavares, do Luis Paiva ao Manuel Rebocho, do Jorge Canhão ao João Seabra, sem esquecer o Manuel Reis, o Constantino Costa e outros "piratas de Guileje" ...

Qualquer destes três G têm suscitado e continuarão a suscitar as mais diversas versões, não necessariamente contraditórias, seguramente parcelares e complementares, umas mais polémicas, apaixonadas e acaloradas do que outras.


Alguns de nós, como é o acaso do nosso camarigo António Graça de Abreu (AGA), assistiram aos acontecimentos de Gadamael a uma distância relativamente confortável (desde Mansoa ou de Cufar). Para quem não estava lá, em meados de 1973, no TO da Guiné, não deixa de ser interessante ler as referências a Gadamael no diário do AGA, e ficar a conhecer as reações que a evocação do topónimo provocava nas NT... Lembro-me do mesmo temor e respeito que nos inspirava, em meados de 1969, a evocação de outros topónimos como Gandembel ou Madina do Boé, quando desembarcámos em Bissau e começamos a deambular pelas 5ªs Rep, ávidos de notícias, boatos e histórias da guerra. 

Pois aqui ficam alguns excertos do Diário da Guiné onde encontrei referências ao topónimo Gadamel. Recorde-se que há uma edição comercial do livro, e que este pode ser comprado nas livrarias ou na feira do livro que está a decorrer em Lisboa. Referência completa:  António Graça de Abreu - Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp. (*) (LG)



Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu (1972/74) junto ao obus 14....
                                                                                 
Foto: © António Graça de Abreu (2010). Todos os direitos reservados



Mansoa, 22 de Maio de 1973

O PAIGC parece que vai declarar a independência, mas isso não modificará o rumo da guerra. O que tem abalado os portugueses nestes últimos meses é a quase ausência da nossa aviação, o armamento cada vez melhor, em maior quantidade e melhor utilizado pelos guerrilheiros e, acima de tudo, o estado anímico e psíquico da tropa portuguesa. No entanto, continuo a acreditar que esta guerra está longe de se resolver no campo militar e terá, só Deus sabe quando, uma solução negociada, política.
Creio que continuamos em vantagem sobre os guerrilheiros, dominamos os centros urbanos e as maiores povoações da Guiné, existem aquartelamentos espalhados por todo o território e temos muitos mais militares do que eles. Se em vez de quatro ou cinco Fiats tivéssemos vinte ou trinta aviões mais modernos, se contássemos com blindados capazes para este tipo de guerra, se a tropa portuguesa estivesse moralizada e decidida, as NT voltariam a manejar quase todos os cordéis com que se tece a guerra. Mas onde ir buscar dinheiro para tanto material militar – parece que as guerras em África consomem quase metade do orçamento de Estado, – e fundamental, como mudar estes nossos homens, descrentes, cansados, confusos?
Os senhores que nos governam ou estão cegos para a realidade ou fingem estar, querem que os pobres soldados portugueses continuem a “defender a Pátria” até ao impossível. (...)
O meu coronel [, Cor pára Rafael Durão, comandante do CAOP1] anda lá pelo sul, (...)  Guileje, Gadamael aquartelamentos junto à  fronteira que têm sido atacados quase sem interrupção. Ele já tem cá o seu “periquito”, o substituto, outro coronel pára-quedista que parece ficará em Catió, no sul, onde se diz que será criado um CAOP 3. (...)

Mansoa, 28 de Maio de 1973

O outro “Gui”, Guileje. O que se passou no aquartelamento do sul? Dizem-me que Guileje tem os melhores abrigos de toda a Guiné, em cimento armado, mas foi sendo sucessivamente flagelada, dias a fio, com o mais variado tipo de armas e, tanto quanto sei pela primeira vez na história recente desta guerra, as NT abandonaram um aquartelamento e retiraram-se para Gadamael, outro destacamento também junto à fronteira mas mais próximo de Cacine e do mar. Isto sem o conhecimento do Comandante-Chefe, general Spínola e dos estrategas de Bissau. Pelo menos é o que consta, estou a vender a notícia como a comprei, mas parece produto afiançado. (...)

Mansoa, 19 de Junho de 1973

Chegou anteontem a Mansoa uma companhia nova de pessoal destinado a Angola. Só dentro do avião souberam que vinham para a Guiné. Aconteceu o mesmo a três outras companhias de 180 homens cada, com outros destinos, que também foram desviadas para a Guiné. Estes vêm substituir uma companhia do Batalhão 4612, aqui estacionado em Mansoa e que, com oito meses de comissão, parte amanhã para reforçar Gadamael, ao lado de Guileje já evacuado há um mês pelas nossas tropas. Ontem os rapazes desta companhia estavam desesperados face ao futuro incerto que os espera, mais incerto do que o meu. Eu vou para pior, não propriamente para um matadouro. Esta companhia, ai, que Deus os proteja!...

A grande maioria dos mortos em combate na primeira quinzena de Junho, vinte e quatro no total, registou-se no sul, na região de Gadamael-Cameconde onde os guerrilheiros tentam conseguir o mesmo que em Guileje, obrigar os portugueses a abandonar mais um aquartelamento. Contam-se histórias tenebrosas sobre Gadamael. (...)

Hoje, às oito da noite estávamos os oficiais a jantar quando, diante da messe, surgiu quase toda a companhia velha em marcha fúnebre, com arcos e velas acesas sobre umas tábuas que pareciam caixões. Formaram e queriam oferecer uma garrafa de whisky ao capitão, o comandante da companhia, um homem do QP, competente, respeitado e determinado. Saiu da messe, perfilou-se, fez continência aos seus homens e mandou-os dispersar. Obedeceram logo. Depois houve grandes bebedeiras. Estive no bar de oficiais até cerca da meia-noite. Alguns alferes da companhia que segue para Gadamael, cheios de álcool, partiram garrafas e cadeiras. Não se tratou de insubordinação, apenas o extravasar de recalcamentos e medos. (...)

Cufar, 25 de Junho de 1973

Não estou encantado com o lugar que vim encontrar, mas Cufar é melhor do que eu imaginava. Em termos de guerra, segurança pessoal, companheiros de armas e instalações. (...). O que se passa lá mais para sul, em Guileje, há um mês abandonado pelas NT, em Gadamael, que esteve quase a ser evacuada, em Cameconde ou Cacine, só indirectamente tem a ver com a zona onde me encontro. Embora perto de Cufar, uns trinta quilómetros em linha recta, são regiões geográfica e militarmente diferenciadas da nossa. Lá os guerrilheiros estão a exercer uma enorme pressão mas, pelo que conheço deles, não me parece que tenham hipóteses de repetir a ocupação de qualquer aquartelamento NT. No extremo sul da Guiné eles atacam muitas vezes a partir do outro lado da fronteira. Dispõem de uma base grande em Kandiafara, uns quinze quilómetros já dentro da Guiné-Conacry, para onde regressam após emboscadas e flagelações. (...)

  Cufar, 27 de Junho de 1973

De Lisboa, contam-me as “bocas” que por lá correm. E “bocas” falsas. Fala-se em evacuar da Guiné mulheres e crianças. Mas onde e porquê? É verdade que a população nativa, os africanos das aldeias de Guidage, Guileje e Gadamael, abandonou essas tabancas por causa do perigo nas flagelações constantes do IN. Mas não houve nenhuma evacuação nem sei se tal está previsto pela nossa tropa. Também é verdade que muitos milhares de habitantes da Guiné Portuguesa procuraram fugir à guerra e refugiaram-se quer no Senegal quer na Guiné-Conacry, no entanto esta procura de um lugar mais pacífico para habitar não é novidade, começou há já alguns anos com o agravamento do conflito armado. (...)

Cufar, 2 de Julho de 1973

Catió “embrulhou” ontem às seis e meia da tarde. Seis foguetões, como de costume caíram fora do quartel. Em Cufar, ouvem-se sempre os rebentamentos mas a maioria do pessoal está tão habituado que já nem estranha. Hoje, às seis da manhã, acordei com mais pum, catrapum, pum, pum, tão diluídos na distância que voltei a adormecer. Era Gadamael. (...)

Cufar, 21 de Setembro de 1973

Tenho o cabelo um pouco mais crescido, mas os meus superiores não me chateiam com críticas ou ordens para o cortar. Também deixo crescer o bigode embora não me pareça que fique mais bonito. O bigode dá-me um certo ar rufia, um aspecto de mafioso italiano ou grego, de facalhão à cinta. Cortá-lo-ei em breve. Para um oficial usar bigode é necessário fazer um requerimento ao ministro do Exército. Não fiz nada disso, estou no sul da Guiné, quanto maior é o “buraco” em que estamos metidos, mais se ultrapassam os regulamentos. Os tipos do Chugué, Jemberém, Gadamael usam bigodes, barbas, cabelos de meses, estão-se cagando para os regulamentos. Os tipos do ministério do Exército que venham cá até ao sul da Guiné, até este esplendoroso torrão de solo pátrio, mandar vir com os soldados barbudos e cabeludos!... Eles são capazes de lhes meter uma bala nos tomates. (...)

Cufar, 8 de Novembro de 1973

Os dias fabulosos, as histórias que não conto, os whiskies que bebemos, às vezes a morte, espantalho de sangue agitado ao vento diante da menina dos olhos.
De madrugada, Gadamael, chão com cadáveres, juncado de medos. Quarenta e seis foguetões 122 disparados pelos guerrilheiros do PAIGC sobre o aquartelamento, aqui a sul, na fronteira. Apenas me apercebi de rebentamentos distantes, no sono do resto da noite. É normal, já nem estranho. Mas na mente de cada um de nós, a preocupação cresce. Quarenta e seis foguetões sobre Cufar, como seria?
As bebedeiras, cerveja, vinho, whisky, o álcool a circular no sangue temeroso. Os homens tontos de mágoa, solidão e medo. (...)

Cufar, 11 de Novembro de 1973

Outro dia duríssimo para Gadamael. Às seis da manhã, eu dormia mas acordei sonolento com os muitos rebentamentos distantes. Foram duas horas de flagelação com quarenta e dois foguetões 122. Tiveram dois mortos e muitos feridos.
Quando chegou a Cufar, o meu tenente-coronel “periquito” vinha cheio de ideias para pôr num brinquinho o que resta do CAOP 1. Começa a baixar a cabeça, a entrar na realidade. Ficou alterado com os ataques a Gadamael, hoje à noite apanhou uma bebedeira monumental. As pessoas, quer as do pequeno, quer as do grande mando, quando têm vinho dentro ficam claras como água. (...)


Cufar, 21 de Novembro de 1973

Guerra todos os dias. Ontem às seis de tarde, hoje às seis da tarde. Ontem foi Cobumba, estávamos a começar a jantar e pum, catrapum, pum, pum. Alguns de nós saltaram das mesas e começaram a correr para as valas. Cobumba fica aqui mesmo ao lado e como têm lá uma nova companhia de “periquitos”, os guerrilheiros trataram de lhes fazer condigna recepção, com foguetões, morteiros, canhão sem recuo, tudo a disparar numa cadência de fogo impressionante. O pessoal de Cobumba teve sorte, estão lá estacionados quatrocentos homens – a companhia velha e os “periquitos” que os vêm substituir – e não sofreram uma beliscadura.

            Hoje foi a vez de Gadamael, já não era atacada há dois dias e meio! Embora muito mais distante do que Cobumba, ouviam-se os rebentamentos com extrema nitidez. Foram só vinte minutos de fogo, também a um ritmo capaz de assustar o mais valente, as granadas rebentavam de dez em dez segundos. Não sei se houve consequências para as NT em Gadamael, mas a flagelação foi tremendamente feia. O ataque a Cufar dia 13 passado, comparado com estes dois que ouvi ontem foi uma brincadeira.

            Em resumo, a nossa tropa anda acagaçada. O PAIGC movimenta-se, põe, dispõe e manda lembranças. Começamos a ver a guerra com os olhos cada vez mais tortos. A aviação actua, os Fiats fartam-se de bombardear aqui em redor, numa cintura aí de quarenta quilómetros. Volta e meia ouvimos o zumbido dos aviões a jacto e os rebentamentos secos das bombas a cair.

            Só desejo que este embeber doloroso na guerra, este permanente estado de insegurança, este saber que a meu lado todos os dias morrem africanos e portugueses, não entre demasiado por dentro de mim e me marque a ferrete, com ressacas complicadas para o futuro. Não sou um tipo medroso, nem fraco. Procuro manter a cabeça fria e fazer estes jogos de guerra mantendo-me vivo e seguro. Mas custa muito ver tanta gente destruída, de ambos os lados. Os soldados parecem crianças com todos os defeitos dos homens. Bebedeiras conscientemente procuradas, reacções sem nexo, o medo escondido a crescer.
            Em mim, acho que quero, posso e mando. Às vezes, embora eu diga que não, a guerra afecta-me, e muito. Tento criar calo, uma armadura onde as sensações mais fortes batam e façam ricochete. Há o futuro, o desta gente, negros e brancos, e o meu. Faltam-me apenas quatro meses para terminar a comissão. É aguentar, e peito firme!  (...)


            Cufar, 4 de Dezembro de 1973


Mais foguetões 122 e de novo para Cufar, direccionados para o interior do nosso aquartelamento. O Chugué, há dois dias levou com vinte e cinco foguetões, sem consequências, Gadamael tem sido tão flagelada, com consequências, que já perdemos a conta ao número dos foguetões. Nós, mais humildes, fomos brindados com dez projécteis explosivos disparados durante quinze minutos. (...)


           Cufar, 21 de Janeiro de 1974


Cumpriu-se um ano sobre o assassinato do Amílcar Cabral e o PAIGC comemorou a data. Aqui na zona atacaram os aquartelamentos de Gadamael, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Bedanda, Chugué, Catió e … Cufar. (...)


           Cufar, 31 de Março de 1974



Prometi que só regressava a Cufar depois de ter resolvido o problema do meu substituto. Pois agora é verdade, já desencantaram o homem. É o alferes Lopes, apenas com quinze dias de Guiné. Tem a especialidade de Secretariado, estava exactamente destinado à 1ª. Repartição, em Bissau, e ou porque têm gente a mais ou porque eu os chateei demasiado nestes últimos dez dias, desviaram-no para Cufar. Encontrei-o na piscina do Clube de Oficiais, almocei com ele, animei-o – está um bocado abalado com a vinda para o mato, -  disse-lhe que Cufar é mauzinho mas se ele fosse atirador de Infantaria e tivesse sido colocado em Cadique ou Jemberém ou Gadamael, seria bem pior. (...)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 23 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9790: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (14): O cap mil grad António Andrade, açoriano, terceirense, da 35ª CCmds... (ou a confirmação de que o Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca... é Grande)


Guiné 63/74 - P9858: Tabanca Grande (336): Rogé Henriques Guerreiro, ex-1.º Cabo Op. Cripto da CCAÇ 4743 (Gadamael e Tite, 1972/74)

O Rogé Henriques Guerreiro, que vive em Cascais, e que foi 1.º Cabo Op. Cripto, na CCAÇ 4743 (Gadamael e Tite, 1972/74), telefonou-nos há dias, manifestando o seu desejo de se tornar, também ele, um grã-tabanqueiro. Conhece, entre outros membros da nossa Tabanca Grande, a residir no concelho de Cascais, o Rogério Cardoso e o Jorge Rosales. Disse-nos também que ainda não se sentia muito à vontade com o computador e a Internet, mas que com o tempo lá chegará.

Em seu nome, a sua mulher, Teté Guerreiro, adicionou as duas fotos da praxe na nossa página no Facebook, em 28 de abril último. https://www.facebook.com/tete.guerreiro

Recorde-se que a CCAÇ 4743/72 foi mobilizada pelo BII 17, partiu para a Guiné em 27/12/72 e regressou a 31/8/74. Esteve em Gadamael e Tite. Teve 3 comandantes: Cap Mil Inf Manuel Bernardino Maia Rodrigues; Cap QEO Manuel Jesuíno da Silva Horta; Cap Mil Cav Germano do Amaral Andrade. O Rogé tem história dos duros dias da batalha de Gadamael (maio / junho de 1973) (**).

Um das suas obrigações, como novo grã-tabanqueiro (n.º 555) é partilhá-las connosco, com os seus camaradas que o saúdam.
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Notas dos editores:

(*) Vd. poste de 28 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9820: O Nosso Livro de Visitas (134): Rogé Henriques Guerreiro, que vive em Cascais, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 4743 (Gadamael e Tite, 1972/74)

(**) Vd excerto de Guerra Colonial, 1961-1974 > Gadamael - o verdadeiro inferno!

Em Maio de 1973, a guarnição de Gadamael, constituída pela Companhia de Caçadores 4743, que dependia operacionalmente do COP 5, com sede em Guileje, constituía a retaguarda deste posto e era o seu único ponto de apoio para o reabastecimento depois de a acção do PAIGC ter tornado intransitáveis as ligações por terra para Bedanda e Aldeia Formosa.

O interesse militar de Gadamael resumia-se a servir de ponto de reabastecimento a Guileje, pois situava-se no último braço de mar do rio Cacine que permitia a navegação a embarcações de transporte. O interesse militar de Guileje tornara-se, por sua vez, muito discutível, pois a guarnição fora ali instalada ainda no tempo do dispositivo territorial montado pelo General Schulz, para anular as infiltrações de guerrilheiros vindos da grande base de Kandiafara, na Guiné-Conacri, pelo célebre «Corredor de Guileje». Mas os guerrilheiros tinham conseguido ultrapassar esse obstáculo, fixando-se em toda a zona da península do Cantanhez, o que reduziu Guileje a um ponto forte onde as forças portuguesas resistiam e marcavam presença territorial.

Em 1973, [Guileje] não servia já como base de apoio a operações lançadas na margem sul do rio Cacine, limitando-se a assegurar a presença das tropas portuguesas entre este rio e a fronteira com a Guiné-Conacri, em conjunto com as guarnições de Cacine e Gadamael. Mantinha-se naquele local aguardando situação mais favorável que permitisse a sua transferência, sem ser como resultado directo da pressão do adversário, dispondo, como ponto forte, de instalações defensivas, que lhe permitiram resistir sem baixas significativas a fortes ataques de artilharia.

Tinha, contudo, a grave limitação do abastecimento de água, que era transportada em depósitos a partir de uma fonte situada no exterior do quartel, e este movimento diário constituía a grande vulnerabilidade das tropas ali entrincheiradas.

Após a retirada de Guileje, a guarnição de Gadamael ficou constituída por duas companhias (a CCav 8350, vinda de Guileje, e a CCaç 4743, que ali se encontrava do antecedente), um pelotão de canhões S/R, com cinco armas, e um pelotão de artilharia de 14cm, com três bocas de fogo. Este conjunto de forças passou a constituir o COP5, tendo sido nomeado para o seu comando o capitão Ferreira da Silva, em substituição do major Coutinho de Lima.

Ao contrário de Guileje, Gadamael dispunha de más condições de defesa, por se situar em zona pantanosa onde era difícil construir abrigos. Se as condições já eram más para os militares da guarnição, a situação piorou significativamente com a chegada da coluna vinda de Guileje, que não dispunha de abrigos, nem de condições de alojamento para ali permanecer. Pior ainda, a duplicação de efectivos aumentou a concentração de pessoal dentro do espaço exíguo do quartel e tornou-o alvo altamente remunerador para ataques de artilharia do PAIGC.

De facto, as forças do PAIGC, moralizadas pela vitória obtida em Guileje, transferiram para Gadamael os seus esforços e entre as 14 horas, de 31 de Maio e as 18 horas, de 2 de Junho bombardearam o quartel com setecentas granadas, uma média de treze por hora, provocando cinco mortos e catorze feridos, além de avultados prejuízos materiais.

A violência destes bombardeamentos fez com que a guarnição de Cacine, a cerca de dez quilómetros para jusante do rio, difundisse uma mensagem a comunicar que Gadamael fora destruída, no entanto, a posição manteve-se, embora com o aquartelamento parcialmente destruído e a defesa imediata com brechas.

Em 1 de Junho foram lá colocados os capitães Monge e Caetano, para enquadrar os militares ali reunidos.

Em 2 de Junho foram recolhidos pela lancha Orion cerca de trezentos militares que se haviam refugiado nas bolanhas em redor de Gadamael, para escapar aos ataques.

Ainda neste dia desembarcou uma companhia de pára-quedistas e um pelotão de artilharia, passando o comando do COP5 para o comandante dos pára-quedistas.

Entre 3 e 4 de Junho caíram em Gadamael duzentas granadas, que provocaram mais dois mortos e quatro feridos. Em 4 de Junho, o PAIGC realizou uma emboscada a menos de um quilómetro do aquartelamento, causando quatro mortos e quatro feridos e capturando três espingardas G-3 e um emissor de rádio. O comandante do COP5 pediu autorização para retirar de Gadamael, o que não lhe foi concedido, recebendo ordem para defender a posição a todo o custo.

Em 5 de Junho, uma lancha da Marinha, botes dos fuzileiros e embarcações sintex do Exército evacuaram de Gadamael os mortos e os feridos, além de militares que não se encontravam em condições de combater, passando o COP5 a ser comandado pelo tenente-coronel Araújo e Sá. No mesmo dia ocorreu novo ataque com setenta granadas, que provocaram cinco feridos graves e cinco ligeiros.

A partir de 12 de Junho, foi colocada uma terceira companhia de pára-quedistas na região, ficando todo o Batalhão de Pára-Quedistas 12, empenhado no Sul, para «segurar» Gadamael.

As forças portuguesas sofreram nesta acção vinte e quatro mortos e cento e quarenta e sete feridos. O PAIGC conseguira ocupar uma posição militar portuguesa e apresentar esse feito na conferência da OUA, lograra esgotar as reservas de forças de intervenção portuguesas (o Batalhão de Comandos mantinha-se inoperacional depois das baixas sofridas no ataque a Cumbamori de 19 de Maio) e limitara seriamente a acção aérea. Estavam, pois, reunidas as condições para se realizar uma grande acção política no interior do território, o que aconteceu [na região de ] Madina do Boé, em Setembro, com a declaração unilateral da independência, na presença de numerosos convidados estrangeiros.

Fonte: Guerra Colonial, 1961-1974 > Operações > Guiné Maio de 1973: O Inferno > Gadamael, o verdadeiro inferno.
 http://www.guerracolonial.org/index.php?content=413


Vd. último poste da série de 3 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9846: Tabanca Grande (335): Maximino Guimarães Alves, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do Centro de Escuta do Agrupamento de Transmissões de Bissau, 1972/74

sábado, 5 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9857: Memórias da minha comissão (João Martins, ex-alf mil art, BAC 1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69): Parte III - BIssau e férias em São Martinho do Porto, em agosto de 1968



Guiné > Bissau > Quartel-General > O velho forte da Amura > Entrada principal > Foto nº  17/199 do álbum Guiné, disponível na página do Facebook, do João Martins.





Guiné > Bissau > BAC 1 [, Bateria de Artilharia de Campanha] > Obuses 8.8 e viaturas, de fabrico alemão, do tempo da II Guerra Mundial. Foto nº  30/199 do álbum Guiné, disponível na página do João Martins no Facebook.





Guiné > Bissau < Junho de 1968 > Piscina do Quartel General. Foto nº 7/199.





Guiné > Bissau < Junho de 1968 > Capela do Hospital Militar 241 > Foto nº 9/199.






Guiné > Bissau < 10 Junho de 1968 > Desfile militar > Início do 'consulado' do brig e depois gen António Spínola, governador-geral e comandante-chefe do CTIG (1968-1973) . Foto nº 44/199.




Fotos (e legendas): © João José Alves Martins (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. (Fotos editadas e parcialmente legendadas por L.G.) 





Memórias da minha comissão na Província Ultramarina da Guiné - Parte III (*)

por João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69)


6 – Regresso a Bissau para gozar férias na Metrópole (Julho de 1968)



As férias aproximavam-se e regressei a Bissau a tempo de assistir às comemorações do 10 de Junho, de dar uns mergulhos na Piscina do Quartel-General (QG), de conhecer Mansoa, de ir até Nhacra, de passar por Quinhamel, e de tomar banho num local rodeado por uma paliçada, que, a certa altura, quando eu estava agarrado a ela e sem pé, tremeu toda, não cheguei a perceber se tinha sido por efeito de algum jacaré que teria dado pela minha presença e que ao ir ter comigo com ela teria chocado, mas é possível. 

Como não era um sítio propriamente agradável para se estar, e queríamos estar mais perto do mar, continuámos para oeste até ao fim da picada, a Ponta Biombo. Descemos até à praia e constatámos que, à nossa frente, havia uma duna de areia a uns cem metros, e que só a partir dela é que se via bem o mar.

A maré estava baixa e o chão, de lodo ressequido pelo efeito do calor, permitia-nos caminhar sem qualquer dificuldade. Passada cerca de uma hora, percebemos que a maré estava a encher e que a água nos rodeava completamente. Achámos conveniente regressar à praia, e assim fizemos. O problema é que o terreno ressequido por onde tínhamos passado já tinha cerca de meio metro de água, o que não dava para andar porque nos enterrávamos até ao joelho ferindo-nos nas conchas que estavam enterradas no lodo, e, também não dava para nadar porque a altura da água não era suficiente; só havia uma alternativa, era rastejar, e assim fizemos com o receio de algum de nós ser apanhado por algum jacaré. 

Com a maré mais cheia tomámos uma rica banhoca com a vantagem de termos por perto algumas “sereias” de tez bem clarinha, com muito bom aspeto, e que dava gosto ver depois de termos passado por tanta “escuridão”…

Finalmente, chegou o dia da partida para Lisboa para gozar umas mais que merecidas férias. A viagem correu da melhor maneira, mas, no aeroporto, à passagem pelo controlo de passageiros, algo de anormal se passou porque fui abordado por um senhor que me mostrou uma identificação. Concluí que devia ser da PIDE/DGS, pois “pediu-me” que o acompanhasse, enquanto eu ouvia uns comentários, estilo “aquele já vai preso”, é claro que não dei grande atenção aos comentários porque não tinha nada a recear, nunca tinha feito nada que justificasse aquela receção, a não ser dizer sempre tudo o que penso, e prontifiquei-me a acompanhar o tal senhor que me conduziu a uma sala.

Ao fim de algum tempo, que me pareceu exagerado, resolvi sair, ele estava cá fora e informou-me que não tinha autorização para sair porque eu estava detido.
 
Bem, nunca me tinha acontecido tal coisa de modo que resolvi aguardar pacientemente a evolução dos acontecimentos. Chegou então o meu pai que vinha atrasado contra o seu costume e que me vinha receber e levar até ao Ministério da Defesa Nacional [MDN], onde estava colocado na altura. É claro que o meu “guarda” temporário percebeu o ridículo da situação e se desfez em desculpas.

Chegados ao MDN, compreendi que pretendiam conhecer as minhas impressões sobre a evolução do TO da Guiné. Como estava de mau humor depois daquela detenção inesperada como receção, quando esperava recompor-me do “stress” acumulado em horas de combate, resolvi desabafar.







Quadrante 1 (Norte,  Noroeste): Principais localidades: Bissau (capital),  São Domingos, Farim, Bissorã, Mansoa, Teixeira Pinto e Fulacunda  (sedes de concelho ou circunscrição). Outras localidades que eram postos administrativos: Sedengal, Bigene, Olossato, Bula, Calequisse, Caió. Binar, Safim, Injante, Quinhamel, Prabis, Encheia,  Olossato, Mansabá, Porto Gole, Tite...






Quadrante 2 (Sudoeste): Principais localidades: Bolama, Bubaque, Catió  (sedes de concelho ou circunscrição)... Localidades que eram postos administrativos, excluindo os Bijagós: São João, Empada, Bedanda, Tombali, Cabedu, Cauane, Cacine...


Quadrante 3 (norte e noroeste): Principais localidades: Bafatá, Nova Lamego  (sedes de concelho ou circunscrição)... Postos administrativos: Bambadinca, Xitole, Darsalame (pertencia a Fulacunda), Galomaro, Bengacia, Beli, Piche, Pirada, Sonaco, Contuboel, Colina do Norte, Gã Mamudo..




 Quadrante 4  (sudeste): Principais localidades:  Nenhuma sedes de concelho ou circunscrição:  Apenas 2 localidades fronteiras, com a categoria de posto administrativo: Quebo, Guilege (com g)...

 
Mapa da Guiné que foi oferecido  ao João Martins, por seu pai, oficial da Marinha, quando esteve estava destacado no Ministério da Defesa Nacional (MDN), e o filho foi mobilizado para o TO da Guiné... Não tem data, escala, nem legendas, não se podendo perceber, por exemplo, o significado nem das cores nem das linhas a vermelho que delimitam porções do território. O mapa é claramente anterior à guerra, seguramente dos anos 40/50.


 Recortámo-lo em quatro partes para simbolizar a ideia de "puzzle"... Ontem como hoje, a Guiné é um "puzzle", uma quebra-cabeças... pensando na conversa (algo surreal) que o João Martins teve no MDN, à chegada a Lisboa, na sua viagem de férias, e que tenta reconstituir - mais de 40 anos depois - neste texto das suas memórias... (LG).
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E fui dizendo que estávamos numa guerra em que os nossos responsáveis políticos e militares não estavam à altura das circunstâncias, e que o desconhecimento do sentir das populações e a falta de competência das chefias para enfrentarmos aquela guerra era mais do que evidente, que uma guerra de guerrilhas apadrinhada, implementada, promovida e incentivada pelas grandes potências que eram de facto o nosso principal adversário, não devia ser conduzida com tanta incompreensão do que se passava no TO e dos sentimentos profundos das populações.


Transmiti a minha convicção de que aquela guerra tinha a sua origem num cariz político e que só podia ser ganha se tudo se fizesse para melhorar o nível de vida das pessoas, incentivando e apoiando o desenvolvimento económico e social, e que era fundamental, para o efeito, que se organizasse todo o apoio possível à produção e se limitassem as margens de comercialização.

Afirmei que era de primordial importância que se criassem postos de trabalho que contribuiriam para uma vida melhor e uma felicidade a que todo o ser humano tem direito. Expliquei que era imprescindível dar emprego a toda a gente e atender à satisfação das necessidades básicas que são a alimentação e a habitação, e que para isso era necessário desenvolver a agricultura, as pescas e a agropecuária, e era necessário cultivar produtos passíveis de exportação tais como o arroz, a manga, o abacaxi e o amendoim, para equilibrar a balança de pagamentos.

Também era óbvio que o sector energético e o dos transportes deveriam ter pessoas competentes a geri-los, entendendo-se por gestores competentes aqueles que, não endividando as empresas, colocavam no mercado os seus serviços e os seus produtos a preços de venda realmente baixos, contribuindo desse modo para o acréscimo da viabilidade financeira das empresas suas clientes, aliviando a necessidade de recorrerem ao crédito, permitindo o aumento dos vencimentos e do poder de compra das populações, o que traria o fortalecimento da atividade económica, e, em consequência, o aumento da cobrança dos impostos, fundamental para atender às necessidades básicas dos mais desprotegidos, nomeadamente em termos de saúde, e também, e finalmente, para contribuir para o financiamento do esforço de guerra.

Também expliquei que os portugueses, tanto os da Metrópole como os do Ultramar, o que pretendiam era uma vida melhor, mais digna, com desemprego nunca superior a 3%, limite que, quando ultrapassado, deve levar qualquer regime político a ser substituído por um mais competente que evite a saída para o estrangeiro de portugueses, quer dos menos qualificados quer dos mais qualificados e que a emigração que se verificava em Portugal era uma verdadeira vergonha nacional que revelava a grande incompetência dos responsáveis políticos, e a possível falência do regime a curto prazo.

Continuei dizendo que a dívida externa nunca deveria ultrapassar os 30% do Produto Interno Bruto, porque se isso se verificasse, os juros da dívida representariam um custo adicional dificilmente suportável, e que era pois premente promover a produção de modo a evitar as importações e a consequente saída de divisas que poderiam pôr em causa o equilíbrio financeiro da balança de transações correntes.

E acrescentei que, para apoiar devidamente aqueles setores da economia era absolutamente necessário que o governo controlasse a taxa de juro dos empréstimos. Por outro lado, considerava que era completamente errada a política de baixos salários da maioria dos portugueses, na medida em que é o poder de compra que permite o desenvolvimento das trocas comerciais, da atividade económica e a arrecadação por parte do Estado do imposto de transações que lhe permitiria fazer face aos seus compromissos, e, para isso, tornava-se necessário que o dinheiro fosse gasto na aquisição de bens e serviços produzidos no país a começar por aqueles que se destinam à satisfação das necessidades básicas. 

Por outro lado, devia-se evitar salários e ordenados demasiado elevados, muitas vezes não merecidos, mas que se justificavam apenas pela sua natureza “política” (afilhados) ou de “grupos de interesse ou de pressão”. E precisei que estes rendimentos são na maioria das vezes canalizados para paraísos fiscais, ou, na aquisição de bens de luxo e de importação como sejam os automóveis de elevada cilindrada e as viagens ao estrangeiro. Portanto, era fundamental, para bem do país, diminuir a diferença de rendimentos entre ricos e pobres, promover o crescimento económico, aumentando o poder de compra das populações, diminuir o desemprego, a dependência energética e os custos de exploração das empresas.

Acrescentei que felizmente havia a preocupação de manter a moeda forte e a inflação baixa, pelo que se justificava poupar e investir, porquanto, se tal não ocorresse, por exemplo, se a inflação fosse da ordem dos 30%, quem tivesse poupanças no valor de 100$00, ao fim de um ano valeriam 70$00, e ao fim de dois anos valeriam 49$00, isto é, bastariam dois anos para valerem menos de metade, o que é uma maneira de tornar as pessoas mais pobres retirando poder de compra a quem consegue “poupar” e é um nítido convite ao consumo em detrimento da poupança que possibilita o investimento, e em consequência, a criação de postos de trabalho.

Para quebrarem este meu discurso que já ia longo, perguntaram-me o que é que eu pensava do Amílcar Cabral.

 Resolvi responder que em minha opinião era um herói nacional, porque, pelos comunicados do PAIGC, na rádio, afirmava a sua condição de português e o que pretendia não era propriamente a independência, mas sim, uma vida melhor para o povo da Guiné, o que era próprio de qualquer português bem-intencionado, e que a independência que advogava só se justificava como reação ao regime político em que nos encontrávamos que não se esforçava por obter um futuro melhor para as populações.

E acrescentei que era essa a razão que levava muitos africanos a acreditarem na propaganda de que eram alvo e a passarem-se para o IN. Não terão gostado muito de ouvir estas minhas considerações sobre política económica, possivelmente concluíram que eu era um comunista ao serviço do KGB e dos interesses imperialistas de Moscovo, ou, o que ainda seria pior, socialista ao serviço da CIA e do imperialismo norte-americano, porque me disseram que, depois de terem ouvido o que eu disse, tinham que me deter. É claro que não estava à espera de uma reacção destas, e pensei como é que havia de sair daquela embrulhada.

Foi então que respondi: 
- Ainda bem, fico muito satisfeito, porque se estiver preso já não terei que ir combater e ficar sujeito a levar um tiro ou apanhar com um estilhaço de alguma granada. 

Tal como imaginei, face a esta resposta, o oficial que me interrogou lá pensou duas vezes e disse: 
- Realmente é melhor ir combater mas não transmita essas suas ideias a ninguém. 

É claro que aceitei a sua recomendação, e fui finalmente de férias, procurando esquecer o que tinha passado na Guiné.

Em férias, foi-me apresentado alguém que, sabendo que eu andava por terras da Guiné,  me foi dizendo o que sabia sobre aquela realidade. Fiquei atónito com o que ouvia, como era possível aquela “suposta autoridade” dizer tantos disparates. Mas dando mais atenção ao que dizia cheguei à conclusão de que fazia algum sentido, e, depois de o ouvir comentei transmitindo-lhe as minhas conclusões sobre as suas opiniões, disse-lhe que “era óbvio que nunca tinha estado em África e muito menos na Guiné, que tinha estado em Paris, na Sorbonne, onde lhe teriam feito uma lavagem ao cérebro, e que era evidente que se limitava a reproduzir a propaganda comunista”. É claro que eu tinha acertado em cheio.









Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Um lugar mágico...  A baía de São Martinho do Porto onde o João Martins passa férias há dezenas de anos... Na foto, Graça Martins, a sua esposa. Foto (nº 83/88) do álbum São Martinho do Porto, de João Martins, disponível na sua página do Facebook...


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Passei o Agosto em S. Martinho, como de costume, e regressei a Bissau num avião da TAP. Nova aventura, estávamos a sobrevoar Sesimbra quando o avião ficou como se os motores tivessem deixado de funcionar, o avião perdeu altura muito rapidamente, afocinhando na direção do mar. Uma hospedeira, convencida de que íamos todos entrar em pânico, apareceu vinda da cabina do comandante com um ar muito desesperado e apostada em nos sossegar. Olhou para mim, porque eu ia num dos bancos da frente, e ficou espantada com a nossa reação, sorri-lhe, e comentou: 
- Vê-se mesmo que são militares e andam na guerra.

E voltou para a cabina do comandante. Tivemos que aterrar nas Canárias e depois em Cabo-Verde onde vi um avião com uma frente que me lembrou os olhos de um gafanhoto e que, segundo o que comentavam, operava na guerra do Biafra.

Chegado a Bissau, novo pelotão e novo destino me esperavam, em Piche [, em setembro de 1968] .

(Continua)






Guiné > Ilha de Bissau > Agosto ou setembro de 1968 > Regresso a Bissau, em avião da TAP >   Foto aérea da região de Bissau > Foto (nº 3/199 do álbum Guiné, de João Martins, disponível na sua página do Facebook...


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Nota do editor: