1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá,
1967/69), com data de 31 de Maio de 2012 com mais um dos seus Contrapontos.
Caro Carlos Vinhal
Junto vai o texto para o CONTRAPONTO (45), que espero incluir no próximo "Última CAMBANÇA".
Um abraço do
Alberto Branquinho
CONTRAPONTO (45)
FOGO DE RAJADA COM… MORTEIRO
No Porto, chamavam “Ver-a-lista” aos homens e rapazes, habitualmente aleijados ou diminuídos mentais, que andavam pelas ruas vendendo lotaria. Por exemplo, alguém que estivesse sentado numa esplanada, ao avistar um vendedor de jogo, chamava:
- Ó Ver-a-lista!
O homem aproximava-se, exibindo a lista da última extracção e, também, o jogo que tinha para vender.
Apresentou-se na Companhia, ainda em formação e antes do embarque, um rapaz cuja cara parecia uma caricatura. Olhos esbugalhados e assustados, nariz estreito, anguloso e projectado para a frente, quase ausência de malares, queixo pontiagudo e com a bochecha direita perfurada por uma fístula. Verificou-se mais tarde que era provocada pela infecção de um dente, que foi tratada.
Parecia ter sido arrancado de um quadro de
Hieronymus Bosch.
Pois este rapaz, depois da observação sagaz e agressiva, que era habitual no meio militar, passou a ser chamado de “
Ver-a-lista”.
Assustado, olhando em volta, chegou-se à porta do espaço onde funcionava a secretaria, parou e grunhiu qualquer coisa. O sargento, que não era propriamente uma pessoa suave e de trato fácil, berrou-lhe:
- Que é que queres, ó rapaz?
Ele estendeu a mão, mostrando os papéis de apresentação. O sargento agarrou neles, olhou-o atentamente e fez-lhe algumas perguntas. Pela postura e pelo aspecto, constatou que devia ter um atraso mental.
- Qual é a tua especialidade?
- Atirador… de… de… morteiro.
- Espera aí.
O sargento bateu na porta ao lado.
- Meu capitão, dá licença?
Entrou. Pouco depois chamou o rapaz, que entrou no gabinete do capitão.
- Então não cumprimentas o nosso capitão?
Ele tropeçou bota contra bota, desequilibrou-se. O sargento amparou-o. O rapaz estendeu a mão para cumprimentar o capitão e o sargento berrou-lhe:
- Cumprimento militar!
- Deixe lá, nosso sargento. Então, ouve lá rapaz. Disseste ao nosso sargento que és atirador de morteiro. É verdade?
O rapaz olhou o sargento com olhos assustados, olhou o capitão, olhou para as botas e, passado algum tempo, voltou a olhar o capitão e respondeu:
-
Xim, xenhora!
- Então como é que fazes fogo com o morteiro?
Ele levantou ambas as mãos à altura do ombro direito, como quem segura uma arma e respondeu:
- Tá… ta…rá…tá…tá. PUM!!!
- Está bem. Podes ir embora.
Saiu.
- Nosso sargento, vamos aproveitar o rapaz nos trabalhos de limpezas e outros afins.
(Nesses tempos aconteciam situações semelhantes. Havia que aproveitar todos os homens e, em caso de menos cuidado: “
Apurado para todo o serviço militar”).
Depois de passar a curiosidade e, até, espanto pela presença daquele militar bizarro (até a marchar era diferente, pois, para além de não conseguir acertar o passo, marchava como se estivesse a pisar uvas), passou a ser protegido, pelo menos por alguns.
Ao receber o pagamento do pré, olhava espantado o sargento que lhe entregava o dinheiro – então, tinha cama, mesa e… (roupa lavada não, porque era ele que a “lavava”) e ainda lhe pagavam?
- Então, Ver-a-lista, disseram-me que fazes fogo de rajada com o morteiro?
-
Xim, xenhora!
Na Guiné, com o decorrer do tempo e com o crescer da agressividade entre os homens, criou um instinto de defesa, principalmente com os que não eram da Companhia.
- Ó Ver-a-lista tu sabes escrever?
-
Xei calquer coijita.
- Tu não recebes correio. Não escreves à família?
-
Nã, xenhora.
- Queres que eu escreva ou que te ajude?
-
Eles xabem munto bem ond’é q’eu estou.
Durante o primeiro ataque ao quartel, alguém lhe berrou:
- Corre pr’ó abrigo, Ver-a-lista!!!
- O quê?!
- Os gajos estão a atacar!
-
E ós’póis? O qu’é qu’eu fiz de mal p’ra ter que fugir?
Teve que ser empurrado para dentro.
No final da comissão voltou para a aldeia, em Trás-os-Montes.
Também ele estava ainda mais duro, como todos os outros, mas não estava marcado pela guerra. Terá, alguma vez, entendido a realidade dentro da qual viveu durante cerca de dois anos?
Estava mais esperto e mais risonho, não só por voltar a casa, mas também devido à taleiga cheia de notas, amarrada à cintura.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 12 de Maio de 2012 >
Guiné 63/74 - P9891: Contraponto (Alberto Branquinho) (44): Se estou grávido ou não, não sei, mas...