segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10232: Recortes de imprensa (55): Os 50 anos da guerra colonial, a saúde publica e a lusofonia (Editorial, Revista Portugal de Saúde Pública, 2011; 29(1): 1-2) (Luís Graça)




A Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP/UNL) edita, desde 1983, a Revista Portuguesa de Saúde Pública (RPSP), acompanhada a partir de 1999, por um número temático, subordinado a diferentes temas de interesse para a área da saúde em geral.

Razões que se prendem com a responsabilidade de manter a qualidade técnica e científica da RPSP – de molde a que esta possa continuar a ser fonte de referência básica na investigação em saúde pública – têm permitido que a sua cobertura, em termos de assinantes particulares e institucionais (IPSS, Direcções Gerais, Institutos, Empresas, Faculdades, Institutos Politécnicos, Escolas Superiores de Saúde, Escolas Superiores de Enfermagem, Centros Hospitalares, Hospitais, Câmaras, ACES, Centros de Saúde, ARS, Unidades Locais de Saúde) e a sua distribuição, através de permuta e oferta, a mais de trezentos organismos nacionais e internacionais que ocupam lugar relevante no universo da saúde em Portugal.

Apesar do seu elevado custo financeiro anual (cerca de 25 mil), a  edição deste instrumento de reconhecido valor tem importância crucial, não só para a ENSP mas também para a comunidade científica nacional e internacional, uma vez que a Revista está indexada na Latindex – Sistema regional de información en línea para revistas científicas da América Latina, el Caribe, España y Portugal (htpp://www.latindex.unam.mx) e foi considerada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) como preenchendo todos os requisitos de qualidade exigidos em termos de revistas técnico-científicas. 


A RPSP integra o Projecto SciELO Portugal - Scientific Electronic Library Online (http://www.scielo.oces.mctes.pt/) - desde Abril de 2009, passando a ficar acessível em formato electrónico (texto integral) aos investigadores de todo o mundo, 6 meses após publicação, através de uma das maiores plataformas mundiais de conteúdos digitais em língua portuguesa.  Pelas razões acima apresentadas, a RPSP está aberta ao patrocínio de empresas e demais organizações, nacionais e internacionais, e é cada mais procurada por autores de língua portuguesa, inglesa e outras para publicação de artigos científicos originais, sendo hoje considerada uma revista científica, em língua portuguesa, de referência no campo da saúde pública.

Em 2010, a Elsevier ES (http://www.elsevier.es/pt/revistas/revista-portuguesa-saude-publica-323) passou a ser a entidade responsável pela impressão e envio da Revista, pela sua publicação electrónica e atribuição automática do identificador digital único (DOI) para cada manuscrito, pela sua publicação na Science Direct, pela inclusão dos artigos na Scopus, pelo seguimento da indexação para futura inclusão em índices da especialidade (Medline/Pubmed) e pela assessoria de qualidade e estudos bibliométricos da RPSP para melhorar a sua posicão nos índices internacionais (Journal of Citation Reports), solicitando a sua inclusão nos mesmos. 

Em 2011, foi adoptada a plataforma electrónica de gestão editorial da Elsevier que utiliza um sistema integrado (autor/editor/revisor) de manuscritos através de uma página web – o EES – o que contribui para uma maior celeridade do processo de revisão.

Acrescente-se que a Elsevier é a maior editora do mundo no campo nas publicações na áreas das ciências da saúde. Luís Graça é o Director da RPSP, desde 2007 até à presente data. É apoiado por um Conselho Editorial e por um Conselho Científico, constituído por avaliadores internos e externos, nacionais e internacionais, aplicando-se o sistema de double-blind peer review [sistema de revisão duplamente cego em que o revisor não conhece o autor, nem o autor conhece o revisor] na avaliação dos artigos que lhe são submetidos electronicamente através da plataforma da Elsevier em http://ees.elsevier.com/rpsp, acompanhados de uma declaração de autor que garante o seu carácter inédito e de uma declaração de disponibilização para acesso mundial.


Aproveita-se, mais uma vez, este ensejo para fazer aqui, publicamente, um especial agradecimento à ENSP/UNL pelo alojamento da página pessoal de Luís Graça, página essa que está intimamente ligada a este blogue. Fica aqui também a informação para eventuais interessados nos cursos deste prestigiado estabelecimento de ensino: está a decorrer, de 16 de julho a 10 de setembro, a 2ª fase as candidaturas aos seus cursos de  mestrado (Saúde Pública, Gestão da Saúde, Segurança do Doente, Fisioterapia, Saúde, Ambiente e Trabalho) e especialização (Administração Hospitalar, Medicina do Trabalho).  Terminou já, por sua vez, em julho passado, a fase de candidatura ao 4º programa de doutoramento (Saúde Pública).

1. Com a devida vénia, transcreve-se aqui o editorial da Revista Portuguesa de Saúde Pública, vol 29, nº 1, 2011 (janeiro-julho), pp-1-2:






Os 50 anos da guerra colonial, a lusofonia, a cooperação e a saúde pública
por Luís Graça



A guerra colonial (1961/75) terá sido possivelmente o acontecimento mais marcante da sociedade portuguesa do Séc. xx (Em rigor dever-se-ia falar em guerras coloniais, já que há um sucessão de intervenções militares portugueses nos territórios ultramarinos, da Guiné a Timor, desde finais do Séc. xix, ou seja , desde a expansão colonial europeia, na bsequência da Conferência de Berlim, em 1884/85).

O seu desfecho levou não só à restauração da democracia em Portugal, com o 25 de Abril de 1974, mas também ao desmantelamento do velho império colonial (Índia Portuguesa, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Angola, Macau, Timor), e ao aparecimento de novas nações lusófonas, mais de cento e cinquenta anos depois da independência do Brasil (em 1822).

Pela primeira vez na sua história, Portugal via-se reduzido, em 1975, aos seus 89 mil quilómetros quadrados de meados do Séc. xv, à sua dimensão atlântica, continental e europeia. E hoje, no seio da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), é um país respeitado e prestigiado, em paz (e cooperação) com as suas antigas colónias.

O enorme esforço de guerra, ao longo de 14 anos (1961/75), teve consequências, relevantes para a demografia, a economia, a política e até a saúde pública: a mobilização de quase um milhão de homens (800 mil do recrutamento metropolitano), e nomeadamente para três teatros de operações, muito distantes da rectaguarda: Guiné (a 5 mil quilómetros), Angola (a 8 mil), Moçambique (a 12 mil); uma despesa militar que chegou a ultrapassar mais de metade do orçamento de Estado (em 1969); o isolamento e o desprestígio a nível internacional, etc.

Em 25 de Abril de 1974, os efectivos das Forças Armadas Portugueses ultrapassavam os 230 mil, três quartos dos quais estavam nos citados teatros de guerra. Segundo historiógrafos militares, o esforço humano despendido por Portugal na guerra colonial, àquela data, terá sido 4 a 5 vezes superior ao do EUA que, com uma população 23 vezes maior, teve no máximo cerca de 540 mil homens no Vietname (em 1969).

Estima-se em 200 mil o número de refractários e em 3 mil o de desertores. Cerca de 9 mil combatentes morreram, em consequência de ferimentos em combate, acidente ou doença. Os feridos terão sido cerca de 30 mil. Mais difícil é contabilizar as vítimas de stress pós-traumático de guerra (cerca de 140 mil, ou seja, 15% dos efectivos metropolitanos), os que morreram precocemente, os que se suicidaram ou tentaram o suicídio, as vítimas de violência, abandono, pobreza e exclusão social (incluindo dezenas de milhares de africanos – cerca de 70 mil, no final da guerra − que combateram nas fileiras do exército português, como soldados do recrutamento local ou como milícias, e cujos direitos – a começar pela sua vida e segurança – não foram devidamente acautelados, para não dizer que foram pura e simplesmente ignorados, desprezados ou escamoteados).

Mais difícil ainda é hoje fazer a estimativa das vítimas, de todo o tipo, entre os combatentes dos movimentos de libertação e as populações africanas, de um lado e do outro. Para não falar da destruição e desarticulação das estruturas materiais e simbólicas das sociedades africanas. E, enfim, está-se longe de saber o impacto, na saúde física e mental das famílias portuguesas que aguardavam o regresso dos seus filhos, sãos e salvos, sendo o único elo de ligação o serviço postal militar (Eram distribuídos anualmente pelo Movimento Nacional Feminino, criado em 1961, cerca de 32 milhões de
aerogramas, nos últimos anos de guerra). Talvez cerca de 80 mil mulheres e outros familiares de ex-combatentes possam ainda hoje ser vítimas da chamada Pertubação Secundária de Stress Traumático (PSST).

Portugal nunca fez (ou está agora a fazê-lo, tardia e lentamente) esse balanço (global) de uma guerra que, contrariamente a outras (invasões estrangeiras, guerras civis…) se passou a muitos milhares de quilómetros de distância da Pátria, em regiões tropicais. Portugal nunca fez o luto da guerra colonial (ou está agora fazê-lo, tardia e lentamente). Mas o mesmo se passa com os novos países que combateram o exército colonial português e que, depois das suas independências, se viram envolvidos em guerras civis (Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Timor)...

Cinquenta anos do início da guerra colonial (em 1961, em Angola), tem vindo a aumentar a literatura memorialística, a produção ficcional, a produção bloguística, a investigação científica, o interesse dos media (cinema, televisão, imprensa escrita) pela guerra colonial… Mas não há, por exemplo, estudos de epidemiologia histórica sobre a morbimortalidade dos combatentes da guerra colonial… Nem sabemos, ao certo, quanto médicos passaram pelos teatros de operações (entre 1400 a 1600, com base dum rácio de 1 médico por 600 militares, operacionais e não operacionais). Ou a efectividade do papel dos serviços de saúde militar no apoio às populações africanas durante a guerra.

Só em 2000 foi criada “a rede nacional de apoio aos militares e ex-militares portugueses portadores de perturbação psicológica crónica resultante da exposição a factores traumáticos de stress durante a vida militar” (D. L. nº 50/2000, e 7 de Abril), rede essa que é constituída pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, no Sistema de Saúde Militar e pelas organizações não governamentais com as quais sejam celebrados protocolos.

No entanto, esta rede tem sido acusada de ter um funcionamento demasiado burocrático. Igualmente o Serviço Nacional de Saúde é alvo de críticas pelas dificuldades de resposta, rápida e eficaz, a estes casos de Perturbação Pós Stress Traumático (de acordo com a terminologia portuguesa consensualizada). E muitas dos potenciais beneficiários da rede desconhecem a sua existência.

Há associações da sociedade civil como a Apoiar que fazem acompanhamento gratuito (clínico, médico e social) às vítimas de Stress Pós-Traumático de Guerra, necessitando apenas que o interessado peça ao seu médico de família o Mode 1 devidamente preenchido e assinado por ele,  de acordo com o disposto na Circular Normativa nº 11/DSPSM, de 13/08/2001, da Direcção Geral de Saúde... Esta circular é dirigida aos técnicos dos serviços de saúde e destinada a divulgar os impressos para admissão na rede e a clarificar os procedimentos a ter na elaboração dos processos clínicos.

Talvez nenhum país europeu, em meados dos anos 70, em plena guerra fria, tenha operado tantas mudanças, institucionais, jurídicas, políticas, económicas, sociais, sanitárias, epidemiológicas, demográficas e culturais, desde o fim da guerra colonial à descolonização e à integração dos chamados retornados, da criação do Serviço Nacional de Saúde à drástica redução da mortalidade infantil… Fica-nos a dúvida se não poderíamos ter feito mais, e sobretudo melhor, pela plena reabilitação e reintegração dos combatentes da guerra colonial (aos diferentes níveis, e nomeadamente sanitário, psicossocial e sócio-familiar). Teremos também perdido aqui uma excelente oportunidade de mostrar que cooperação, saúde pública e lusofonia falam (ou devem falar) a mesma língua… e que, afinal, “em bom português nos entendemos”.


Luis Graça
Director Revista Portuguesa de Saúde Pública
Correio electrónico: luis.graca@ensp.unl.pt

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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de dezembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P9241: Recortes de imprensa (54): No DN, declarações do Ministro da Defesa, José Pedro Aguiar-Branco, na Associação dos Deficientes das Forças Armadas: Temos que fazer a paz com a História

Guiné 63/74 - P10231: Álbum fotográfico de Abel Santos (1): Viagem de ida, Bissau, Nova Lamego e Cheche




1. O nosso camarada Abel Santos* (ex-Soldado Atirador da CART 1742, Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), fez chegar ao nosso Blogue algumas fotos do seu espólio.
Segue-se a primeira de duas séries:





Memorial que testemunhou a passagem da CART 1742 por terras da Guiné

Julho de 1967 > Abel Santos, algures no alto mar, a caminho da Guiné.

Julho de 1967 > Já em Bissau, no "600"

Nova Lamego, 21 de Dezembro de 1967

Nova Lamego, Natal de 1967, o primeiro passado na Guiné

Nova Lamego, Janeiro de 1968 > Equipa poderosa e terrível 

Canjadude, 1968 > Vista parcial do resort

Cheche > Rio Corubal, Janeiro de 1968

Cheche > Rio Corubal, Janeiro de 1968

Cheche > Rio Corubal, Janeiro de 1968 > Uma AML Daimler a banhos

Fotos: © Abel Santos (2012). Todos os direitos reservados.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10151: Tabanca Grande (349): Abel Moreira dos Santos, ex-Soldado Atirador da CART 1742 (Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69)

Guiné 63/74 - P10230: Notas de leitura (388): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 18 de Junho de 2012:

Queridos amigos,
Aristides Pereira é muitas vezes compelido, ao longo desta indeterminável entrevista (bem estruturada, por sinal) a abordar questões altamente sensíveis, de que sempre fugira. Por exemplo, o que estivera por trás do complô que levara ao assassinato de Cabral, os fundamentos racionais ou manipulados da profunda desconfiança/hostilidade entre guineenses e cabo-verdianos. Há momentos em que se fica mesmo com a ideia que o território guineense foi um imenso laboratório para uma experiência revolucionária que levasse a uma utopia de unidade. E há um discurso de uma ingenuidade que desarma: o Amílcar decidiu, o Amílcar é quem sabia, o Amílcar escolheu as cores da bandeira e a letra do hino, o Amílcar trabalhava noite e dia…
Será que o n.º 2 do PAIGC ao longo desta entrevista teve consciência que criou a imagem de um líder que tudo pensava e que tudo orientava, com a aquiescência de devotados executantes?
Dá para pensar.

Um abraço do
Mário


Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História (2)

Beja Santos

Trata-se de uma longuíssima entrevista, obviamente estruturada entre entrevistado e entrevistador, o escopo que nos interessa tem a ver com os acontecimentos vividos por Aristides Pereira entre 1960 e 1974 em Conacri bem como os acontecimentos associados à cisão entre cabo-verdianos e guineenses. Aristides Pereira não se esquiva a responder a perguntas diretas e revela, sem papas na língua, as questões de fundo que levaram à separação dos dois países.

A sua sensibilidade chega a surpreender. Ele, Aristides, respondia pela logística, sob todos os pontos de vistas: material bélico, manutenção das pessoas, fardas, comida, combustível, dinheiro, eram um escravo do trabalho de manhã à noite. Cabral redige todos os documentos essenciais, desde o panfleto até às cartas a chefes de Estado, é pensador, responsável pela atividade diplomática, conferencista, o dirigente incontestado. Descreve ponto por ponto uma quase saga de meia-dúzia de dirigentes que se instalam em Conacri, em 1960, numa completa míngua de recursos e passo a passo vai ganhando credibilidade na cena internacional a par dos avanços na luta da libertação. O dinheiro era escasso mas os países amigos forneceram armas, equipas de treino, camiões, bolsas de estudo, comida, equipamentos de saúde. Conta como não foi fácil a implantação do PAIGC na Guiné-Conacri e mesmo ao nível da Organização da Unidade Africana.

Entrando na questão polémica do que divide e aproxima cabo-verdianos de guineenses, recorda a impaciência dos cabo-verdianos, a começar por Abílio Duarte, que queriam entrar na luta nas ilhas com o mesmo entusiasmo com que se lutava na Guiné. Cabral esforçou-se por levá-los à compreensão de que não havia o mínimo de hipóteses de instalar a guerrilha nas ilhas, até mesmo conselheiros internacionais dissuadiram-nos dessa intensão, seria uma carnificina e nenhuma potência amiga estada disposta a enviar barcos.

E assim chegamos à morte de Amílcar Cabral. Em Março de 1972, Amílcar tinha feito uma denúncia de um plano feito contra ele, com base num documento que lhe fora fornecido pelo PCP na URSS. Interrogado como é que a conspiração tinha ganho tal dimensão sem que os cabo-verdianos se tivessem apercebido, ele responde: “Isto surpreende quem não estava lá. Parte-se do princípio que o partido era o grupo que estava em Conacri, ou então era verdade. O grosso dos militantes estava no interior do país e não em Conacri. Mas porquê os cabo-verdianos que estavam lá não nos avisaram também? Eles eram os visados principais, sendo o Cabral o cabeça”. Mas afinal também havia implicados cabo-verdianos e ele fala em nomes. Considera que Sékou Touré sabia do complô, em Conacri havia racismo, mas perfilha que o ditador de Conacri tinha mais a perder do que a ganhar com o desaparecimento de Cabral. Descreve os acontecimentos que ele próprio viveu em 20 de Janeiro e depois a conversa desliza para as intenções de Cabral a seguir à independência. Afinal, que país Amílcar pretendia constituir na Guiné? Cabral admirava o combatente balanta e a sua dedicação ao trabalho. E assim se chega à ideologia de Cabral. Aristides continuava convicto que Amílcar não era um comunista: “Para ele, ter ideologia não era ser comunista, socialista ou mesmo capitalista. Não ter ideologia era no sentido dos dirigentes africanos, uma vez no poder, não terem uma conceção própria do mundo, do desenvolvimento dos seus povos e países, apenas estavam preocupados em ter poder pelo poder. Cabral, estudioso que era desse problema dava um sentido preciso à ideologia, era saber o que se queria em determinadas condições da luta”.

Sinceramente, é uma resposta ténue, frouxa, para quem conviveu em permanência com Cabral, que socialismo pretendia o líder, será que em anos a fio, nunca debateram sonhos, falaram de projetos, acalentaram esperanças? E depois Aristides sucede a Cabral, havia que encontrar consensos quando a desconfiança dos guineenses aos cabo-verdianos era muito elevada. E vem uma confissão: “Goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano. Da parte cabo-verdiana, principalmente aqueles que estavam em Conacri e que sofreram vexames, humilhações, etc. eu também não via como é que eles iriam suportar bem um guineense como secretário-geral”. Aristides considerou que os guineenses o iriam aceitar como substituto de Cabral, sem grande margem de reticências, porque sempre tinha assumido a posição de cabo-verdiano. Havia um claro, indisfarçável problema de poder: “A luta tinha chegado a um ponto tal que a independência era inevitável, era questão de mais dia, menos dia. De maneira que eu via a possibilidade de, de facto, os guineenses darem mais assentimento a mim do que ao Luís (Cabral), por exemplo, para liderar o PAIGC. Ao contrário de mim, o Luís foi sempre considerado guineense, porque nasceu na Guiné, e apresentava-se como sendo 100 % guineense. Mas, é claro, há a questão da cor, que contradiz tudo, e o guineense é sensível a isso ainda hoje”. O discurso volta atrás, às peripécias do assassinato. Admite o envolvimento de Osvaldo Vieira mas recusa que ele estivesse a comandar fosse o que fosse, já não tinha essa faculdade, incapacitado pelo alcoolismo, acredita mais que fosse o Mamadu Indjai a comandar. Todo o julgamento foi uma barafunda em que os guineenses apresentaram um conjunto de culpados, puseram-nos no carro, liquidaram-nos em território guineense. Aristides Pereira admite que Victor Saúde Maria deve ter morrido com este peso na consciência. Aristides vai mais longe, refere Nino Vieira envolvido na tramoia, também Chico Mendes e Carlos Correia também sabiam. Amílcar Cabral terá sido traído por toda esta gente.

Segue-se o Congresso de Madina de Boé, elege-se uma nova direção e discute-se a proclamação do Estado da Guiné-Bissau. No congresso Vitor Saúde Maria apresentou os resultados do inquérito ao assassinato de Amílcar Cabral, nitidamente mal orientado e mal dirigido, via-se à légua que se escondiam dados fundamentais e acrescenta: “Foi nessa base que se liquidou muita gente logo a seguir ao 20 de Janeiro que nem havia razão para liquidar”.

Questionado sobre se Amílcar Cabral também se sentia guineense, Aristides responde afirmativamente. O jornalista não desarma e pergunta-lhe como é que um filho de cabo-verdianos que passou parte da infância e da adolescência em Cabo Verde e fez estudos superiores em Portugal se sentia mais guineense do que cabo-verdiano, ao que Aristides responde: “Já formado, anticolonialista, pensou sempre na independência da Guiné. Na verdade, primeiro, ele pensou a luta a nível de Cabo Verde apenas. Talvez porque a situação da Guiné fosse muito mais gritante, ter adquirido essa posição firme de lutar pela Guiné e Cabo Verde, dois territórios a que se sentia ligado. A estratégia era essa: conseguir um território onde se podia facilmente estabelecer a luta armada. Então ele, com essa perspetiva, consolidou essa decisão e também a sua consciência de que tinha responsabilidades em relação à Guiné além de cabo-verde”. E acrescenta, referindo-se a Cabral: “Era um produto cabo-verdiano especial”.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10221: Notas de leitura (387): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 5 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10229: In Memoriam (122): Fernando Cavaleiro, antigo atleta olímpico, cor cav ref, cmdt do BCAV 490, e que comandou as forças terrestres na Op Tridente, Ilha do Como (jan / mar 1964) (1917-2012) (José Martins / Virgínio Briote)

1. O nosso camarada, amigo e colaborador permanente José Martins fez-nos chegar a notícia do falecimento, no passado dia 3 de Agosto, do cor cav ref Fernando Cavaleiro, que estava há largos anos internado num lar, em  Oeiras, no IASFA (Instituto Acção Social das Forças Armadas).

Segundo o portal Ultramar Terraweb, Fernando Cavaleiro, 
de seu nome completo Fernando José Pereira Marques Cavaleiro, terá nascido em 1920.  Notabilizou-se sobretudo no TO da Guiné, onde esteve de 22 de julho de 1963 a 12 de agosto de 1965. Foi o comandante do BCav 490. Nessa qualidade comandou as forças terrestres da Op Tridente, que decorreu na Ilha do Como entre 15 de janeiro e 23 de março de 1964.

Foi agraciado, com uma Medalha de Cruz de Guerra de 3ª classe (em 1964), e com uma Medalha de Cruz de Guerra, de 1ª classe (em 1966), ambas por feitos em combate.


Infelizmente não temos nenhuma foto deste combatente, um dos bravos da Ilha do Como. Por outro lado, temos dúvidas sobre o seu ano de nascimento. Se em 2008, de acordo com o Virgínio Briote, o Fernando cavaleiro tinha 91 anos, é porque teria nascido em 1917. À família, enlutada, e aos camaradas que o conheceram e e combateram sob as suas ordens, apresentamos as nossas melhores saudações bloguísticas e manifestamos o nosso pesar.

2. Temos três referências a este oficial de cavalaria, uma das quais um curto mas belíssimo texto do Jorge Cabral, de 4 de dezembro de 2008, que mereceu do Virgínio Briote [, foto à esquerda,] um extenso (e excecional) comentário, que voltamos a publicar:

(...) Este belo texto do Jorge, na sua singeleza, fez-me recordar a visita que fiz este ano ao outrora famoso atleta olímpico, Cor [Fernando] Cavaleiro. Um homem grande, robusto, que, em 1965, em Farim, quase nos 50, fazia o pino na piscina antes de se mandar para a água e, que no intervalo das marchas que forçava para Canjambari, marchava para Bissau, para a Associação Comercial esfolar uns patos ao bridge. Ele, que era um Mestre, repousa agora, num Lar em Oeiras... Na altura em que o visitei escrevi para mim:

Num dia de Março de 2008 localizei-o num lar das Forças Armadas, em Oeiras. Vivo, o Coronel Cavaleiro? Ó meu amigo, o Senhor Coronel está aqui para as curvas, respondeu-lhe do outro lado do fio, o bem disposto telefonista. Quer falar com ele? Aguente aí um pouco. Sou um ex-alferes do BCav 490, estive em Cuntima. Uma voz de senhora do outro lado, o meu marido deve estar no 1º piso, sentado a ler um livro numa mesa com as cartas, à espera que apareçam parceiros para o bridge. É sempre assim, no fim do almoço.

E no dia seguinte em Oeiras, no IASFA (Instituto Acção Social das Forças Armadas), ainda não eram 14 horas, lá estávamos nós, o Miranda e o Raimundo do Como (os dois da Op Tridente) e eu , às voltas, a subirmos e descermos escadas, o senhor Coronel esteve agora aqui, procurem-no no 1º piso.

Uma sala, numa mesa ao fundo, de costas para a janela (talvez para melhor ver as cartas e as caras dos parceiros), um senhor baixo, aspecto franzino, é ele. Nada que se parecesse com o Ten Coronel que eu conhecera em 1965. Mas era mesmo ele, o Coronel F. Cavaleiro, mais baixo uns bons centímetros e mais leve do que naqueles tempos. Sorriso gentil nuns olhos marcados de manchas, ar débil, o Coronel de pé à frente de jovens de 60 e poucos.

Sou o Miranda, meu Coronel, o Como, Farim, Comandos. Eu sou o Raimundo, o tipo do foto-cine do Como, as imagens que o Joaquim Furtado passou na Televisão fui eu que as fiz. Briote, meu Coronel, trabalhei poucos meses consigo, estive em Cuntima, na CCav 489 do Cap Pato Anselmo.

Pois, vocês têm que falar mais alto, o dedo apontado para o ouvido direito. A Guiné, bom, a Guiné foi uma doença que se entranhou em nós, Cor Cavaleiro. Quarenta e tal anos depois voltámo-nos a descobrir uns aos outros, almoçamos uma vez por mês, falamos da vida que levámos naquelas terras.

O Coronel, que naqueles anos media para aí um metro e oitenta e pesava seguramente mais de oitenta quilos, à frente de nós era o mais pequeno e mais magro. Estou com 60 e poucos quilos, eu que pesava 80 e tal, também estou com 91 anos, é altura de ter um pouco de cuidado. Leio, jogo bridge, ando um pouco a pé, olhem, ando aqui a ver os dias escorrer. Netos? Oito filhos, netos, bisnetos, não me perguntem quantos. Sim, vi na TV a Guerra do Furtado, só não entendi porque é que não transcreveu integralmente a carta, aliás muito pequena, que nós apanhámos a um mensageiro, aquela em que o Nino dizia que já não tinha nem gente nem população para aguentar a guerra no Como (...). (VB)

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sábado, 4 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10228: Tabanca Grande (353): Humberto Martins Nunes, ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art.ª (Gadamael Porto e Cuntima, 1972/74)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Humberto Martins Nunes (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º PelArt,  Gadamael Porto e Cuntima, 1972/74, com data de 3 de Agosto de 2012):

Caro Luís
Finalmente, depois de muitos meses de leitura do magnífico instrumento que criaram para evocar/relembrar os tempos que passámos na Guiné, consegui escrever alguma coisa sobre a minha estadia e poder juntar-me à Tabanca.
Aqui vai, portanto, a minha “história”.

Um abraço
Humberto Nunes


2. APRESENTAÇÃO:

Humberto Martins Nunes
Alferes Miliciano de Artilharia
Comandante do 23.º PELART
Chegada à Guiné – 15 de Julho de 1972
Partida da Guiné e chegada à Metrópole - 9 de Junho de1974
Nascimento - 27/4/1949
Morador em Bobadela-Loures e Marinha Grande
Casado – Um filho
Engenheiro Técnico - Reformado – Trabalhei na Sorefame/Adtranz/Bombardier desde 1975 até ao seu fim na Amadora–Junho de 2004
e-mail: humbertomnunes@netcabo.pt

Locais de permanência:
Gadamael Porto – de Julho de 1972 a Abril de 1973
Cuntima – de Maio de 1973 a Junho de 1974


3. A MINHA HISTÓRIA

Cheguei a Bissau, em rendição individual, no dia 15 de Julho de 1972 como Alferes Miliciano de Artilharia.

Durante a apresentação ao comandante do GA7, com mais três camaradas que viajaram comigo num Boeing 707 dos TAM, o comandante deu-nos a prelecção habitual em relação à nossa missão e indicou-nos os quatro locais para onde iríamos. A escolha seria feita por sorteio porque havia uns considerados maus e outros piores.

Num intervalo da prelecção, um dos camaradas perguntou: "meu comandante quando é que podemos ir de férias"? Esta pergunta, aparentemente pacífica, “azedou” o ambiente e, a partir desse momento, o comandante zangou-se, a conversa acabou e o sorteio também. Um vai para Gadamael (o meu caso), outro para ??, outro para ??....... e podem sair.

Assim começou – mal – a minha estadia na Guiné. Após uns dias de curso de reciclagem/aprendizagem sobre obuses, uma avioneta DO27 levou-me de Bissau até Catió, ponto de escala e estadia de três dias. Comigo viajou o Alferes Trindade que eu ia substituir e que se encontrava em Bissau nessa altura.

Outro DO27 levou-nos ao destino final Gadamael Porto. Aqui encontrei o 23.º Pelotão de Artilharia com três obuses 10,5 , a CCAÇ 3518 e o Pelotão de Reconhecimento Fox. Em relação ao que me tinham indicado - Gadamael era um “buraco” – considero que os meses que estive em Gadamael foram relativamente calmos.

Uns batimentos de zona com os obuses e 3 ataques com morteiros do PAIGC, sem quaisquer consequências físicas para o pessoal, foram as actividades que podem ser consideradas de guerra. Uns jogos de futebol entre Artilharia, CCAÇ (vários pelotões) e o Pelotão Fox proporcionaram bons momentos de descontracção mas com cada um a querer ganhar.

Para variar de desporto organizou-se um Rali, dentro do aquartelamento, em que as viaturas concorrentes eram as ”mais indicadas” para esta modalidade: Unimog, Berliet, GMC e o jipe do capitão Manuel Nunes Sousa. Como era lógico, tudo apontava para a vitória do capitão mas, quando deixou o motor do jipe ir-se abaixo, logo apareceram alguns “ajudantes amigos inocentes” para empurrá- lo e voltar a pegar. (o empurrão era normalmente a chave de ignição do Jipe) Foi uma pena o Regulamento ( feito com malandrice) não permitir empurrões....!!!

Em Março de 1973 “assistimos” à queda do primeiro Fiat sobre a zona de Guileje: vimos chegar dois e pouco depois já só víamos um, sem imaginar o que tinha acontecido.

Em 1973 acompanhei a chegada da CCAÇ 4743 e a partida da CCAÇ 3518 que, aparentemente, ía para uma zona boa como compensação da estadia em Gadamael. Afinal, essa compensação teve o efeito contrário, já que foi então que aconteceram as perdas de vidas de alguns camaradas.

Em Abril de 1973, recebi a indicação de que o Pelotão – material e guarnição - iria ser transferido para Cuntima.

A princípio houve alguma sensação de desagrado, já que, apesar do local não ser propriamente um campo de férias, estavamos habituados, conhecíamos nos mapas os locais onde as nossas tropas faziam o reconhecimento nas matas e onde o PAIGC tinha os seus corredores de passagem e os momentos de guerra propriamente vividos estavam longe do que era previsto.

No entanto, quando passados apenas 15/20 dias da nossa partida, Gadamael se transformou, em conjunto com Guileje e Guidage, num dos mais terríficos locais da Guiné, com dezenas de mortos e feridos verificámos que tínhamos tido a sorte que, infelizmente, não tiveram muitos dos camaradas que lá ficaram.

A viagem de Gadamael para Cacine foi feita em duas LDM. Uma vez que o braço do rio que banhava Gadamael estava sujeito às marés, só havia cerca de 2 horas para efectuar o carregamento dos obuses, granadas, do pessoal e de todos os seus pertences que eram constituídos por roupa e outros objectos pessoais, patos, cabras, galinhas, coisas inimagináveis. No que respeitava ao pessoal do pelotão oriundo da Guiné – cerca de 15 pessoas – no fundo, era o transporte de todas as suas vidas já que as suas mulheres e filhos viviam ali no quartel.

No meio de uma confusão indescritível, lá se conseguiu fazer o carregamento e, com a água do rio já a fugir, as LDM iniciaram a viagem até Cacine onde estivemos cinco dias a aguardar a chegada de transporte para Bissau. Uma LDG levou-nos até Bissau, com um desvio e uma paragem de duas horas junto à Ilha de Bubaque, zona onde dezenas de golfinhos nos saudaram.

Quando saímos de Gadamael, o aquartelamento ficou sem a protecção da Artilharia, uma vez que os obuses 14 que iriam substituir os 10,5 se encontravam em Cacine à espera de transporte. Além disso, as dimensões dos espaldões de protecção dos obuses 10,5 não permitiam que os mesmos servissem para os obuses 14 com uma envergadura bastante maior.

Chegados a Bissau, os obuses e granadas foram entregues no GA7.

Após alguns dias em Bissau a aguardar a formação de uma coluna para Farim, partimos com destino a Cuntima/Colina do Norte.

Em Farim, seis dias de estadia à espera de coluna para Cuntima, notavam-se já os efeitos dos ataques em Guidage.

A viagem de Farim para Cuntima, feita numa picada muito concorrida pelo PAIGC e muito minada, foi feita com alguma ansiedade já que o pessoal do pelotão não estava habituado a deslocações deste tipo. Após paragem em Jumbembem lá seguimos para Cuntima

O Pelotão de Artilharia aqui destacado tinha dois obuses 10,5 e o 3.º estava destacado em Jumbembem “à guarda” de um dos furriéis.

A calma foi alterada algumas vezes quando umas dezenas de morteiradas caíram no interior do quartel mas apenas causaram susto e danos materiais. No entanto, um ataque com foguetões deu origem a vários feridos, um deles muito grave. A noite impediu que a evacuação daquele se fizesse porque os hélis já não voavam. Nessa noite, a messe, que tinha o tecto mais ou menos reforçado, transformou-se em enfermaria. A mesa de refeições serviu de cama onde foi montado o melhor dispositivo possível para tratar o ferido. A imagem de montes de ligaduras ensanguentadas em conjunto com as emoções e ansiedade devidas aos acontecimentos daquela noite foi o momento mais marcante da “minha guerra”.

A evacuação, feita na manhã seguinte, já não deu para salvar aquela vida.

Chega o 25 de Abril de 1974. Ouvimos qualquer coisa sobre o que se estava a passar na Metrópole mas as notícias eram muito vagas.

Quando acabou o prazo previsto da minha estadia, preparei as malas e, assim que o meu substituto chegou, “saltei” para um heli que levava o correio. A viagem até Bissau, feita rente ao chão para evitar os mísseis – a guerra ainda não tinha terminado totalmente – foi bastante emocionante.

Cheguei a Bissau, era sábado de manhã, e ao saber que o transporte para a Metrópole poderia demorar muito, fui a correr à TAP, comprei um bilhete para Lisboa para o dia seguinte 9/6/74. Corri em seguida para o QG, onde todo o pessoal estava já a sair para o fim de semana, para obter os documentos de “libertação”. A última assinatura, a do 2-º Comandante – Spínola estava em Lisboa - foi o último acto militar. Ao chegar a casa provoquei uma agradável surpresa já que não tinha avisado ninguém.


4. MEMÓRIAS FOTOGRÁFICAS:


Cuntima > A minha 2.ª suite > 1.ª porta à esquerda

Cuntima > As casas dos Artilheiros

Cuntima > Obús à espera de acção

Cuntima > Alf Mil Soares (de costas), Alf Mil Martins, Alf Mil Ferreira e eu


5. COMENTÁRIO DE CV:

Caro camarada Humberto Nunes, bem-vindo e muito obrigado por acreditares no nosso projecto.
O nosso Blogue está a caminho dos 9 anos de existência, e com muito orgulho que recebemos, ainda hoje, os camaradas que se nos dirigem com a vontade de pertencer a esta já grande família de ex-combatentes da Guiné, onde também colaboram pessoas que de alguma maneira se sentem ligadas àquela terra ou a quem por lá fez a guerra.

A partir de hoje contamos com a tua colaboração em memórias ou fotos, ou ainda comentando o que por aqui se vai escrevendo.

Sobre Gadamael muito já foi escrito nesta página, basta clicares, por exemplo, nos marcadores Gadamael e Memórias da CCAÇ 798 para acederes aos diversos postes existentes.

Deves ter conhecido o nosso camarada Daniel Matos, ex-Fur Mil, recentemente falecido, que nos deixou um excelente contributo ("Os Marados de Gadamael") sobre a sua Companhia, CCAÇ 3518, a que fazes referência na tua apresentação.

As fotos que mandaste e que hoje não foram publicadas, sê-lo-ão brevemente na série "Memória dos Lugares". Se tiveres outras que gostasses de ver publicadas, manda para mim.

Antes de terminar crê-nos ao teu dispor para qualquer esclarecimento adicional.
Recebe um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores.

O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10217: Tabanca Grande (352): Ricardo Marques de Almeida, ex-1.º Cabo da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Farim, K3, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)

Guiné 63/74 - P10227: Blogpoesia (196): Na Grande Rota Caminho do Atlântico (GR11 - E9), a Praia do Paimogo da minha infância... (Luís Graça)



Lourinhã  > Praia de Paimogo > 28 de julho de 2012 > Uma maré de algas vermelhas...

Vídeo (2' 07''): © Luís Graça (2012). Alojado em You Tube > Nhabijoes







Lourinhã > Vimeiro > Monumento comemorativo e centro de interpretação da Batalha do Vimeiro > Azulejo alusivo ao desembarque das tropas luso-britânicas, na Praia de Paimogo, em 19 de Junho de 1808... A batalha do Vimeiro desenrolou-se em 21 de Agosto de 1808. Azulejo desenhado e pintado à mão por Salvador (2000).

Foto: © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados.


Paimogo da Minha Infância
por Luís Graça

Não preciso de ser geólogo
Para te amar,
Ó Praia de Paimogo
Da minha infância.

Nem de ser paleontólogo
Para desenhar na areia
As peugadas da tua errância
De dinossauro do Jurássico Superior (1).

Nem muito menos biólogo ou sociólogo
Para te conhecer aí onde
Se alimenta o recolector-caçador,
E o polvo, o povo, se esconde
Nas marés vivas de lua cheia (2).

Fugi de terramotos e tempestades,
Procurei abrigo na tua enseada,
Domei as ondas e o vento,
Desfiz mitos,
Adorei divindades,
Esculpi a esfinge alada
Que guarda a porta do teu templo.

Andei na pesca ao candeio,
Fui pescador de lagosta,
Camponês, jornaleiro, camarada,
Andarilho de costa a costa,
Negociante de peixe, almocreve,
Apanhador de algas, caçador submarino,
Amigo do fado e da boémia,
Poeta, pirata e frade,
Mulher e fêmea,
Viúva de vivo e de morto,
Zé-Ninguém, cidadão clandestino.

Vim da Bretanha em barcos a vapor,
Fui avieiro nos meses longos de verão,
Fenício, cartaginês, romano e moçárabe,
Português do mundo em cada porto (3).

Armei navios, enriqueci, trafiquei,
De escravos fui senhor,
E dono de engenhos nos Brasis.
Embarcadiço e capitão do norte,
Aventureiro e explorador colonial,
Bandeirante, garimpeiro,
Prostituta e proxeneta,
E até de príncipes fui conselheiro.

Carreguei vinho nos barris
Da nossa Nau Catrineta,
Para a corte russa, imperial;
Naufraguei em ilhas longínquas, polinésias,
Adubei as minhas terras
Com o limo do mar dos sargaços;
Fiz o meu ninho de ave de rapina
No alto das tuas falésias,
Fui presa e predador,
Dos contrabandistas segui os passos,
Lavrei o mar, semeei a morte;
Sobrevivi a mil e uma guerras,
E os meus mortos enterrei
Nas tuas areias.

Vigiei o mar, o céu e a terra
Do alto setecentista do teu forte (4);
Tive visões, vi monstros e sereias,
Fugi das garras dos terópodes,
Escapei dos mandíbulas dos crocodilos,
Lutei contra muitas outras feras,
Fiz a paz e a guerra,
Da vida conheci todo os estilos,
Fui condenado às galeras
E quase devorado por gastrópodes,
Peguei de caras o minotauro,
Estive cativo do mouro
Nas longínquas Mauritânias,
Choquei os teus ovos de dinossauro,
Construí castros, citânias,
Andei à deriva dos continentes,
Sobrevivi à fome e à peste,
Andei a monte, fugi a salto,
Lutei pela liberdade,
Pela lei e pela grei gritei bem alto,
De norte a sul, de leste a oeste,
E a pátria te defendi,
Contra todos os invasores.

A verdade, a verdade,
É que cobiçada por muitas gentes,
Desejada por muitos senhores,
Nunca nenhuma armada invencível te venceu,
Ó Praia de Paimogo da minha infância.
Se te perdeste,
Se alguma vez te perdeste,
Foi só por amores.

Quando eu era criança,
Quando eu tive a sorte de ser criança
Como diria o Fernando Pessoa,
As sardinhas voltavam sempre,
Em frágeis cardumes de prata e luar,
À praia onde haviam desovado.

Quando eu era menino e moço,
No tempo em que ainda partiam soldados
Para a Índia, para Goa,
Havia uma princesa, moura, encantada,
Numa das tuas grutas submarinas;
O corpo coberto de ágar-ágar,
Era fonte de água pura, quente e doce,
Donde bebiam os ofegantes cavalos alados,
Com as suas enormes narinas.

E o vento, a nortada,
Nas velas dos barcos e dos moínhos,
Falavam-me da tragédia antiga,
Mas ainda viva,
Da filha do teu capitão
Que se havia matado do alto da arriba,
Dizem que por amor e solidão.

No antigo reino mouro,
E depois franco e fero, da Lourinhã,
Também os búzios me diziam
Que à noite as luzinhas,
A sul das Ilhas Berlengas,
Eram as alminhas
Dos que morriam
No mar, sem sepultura cristã.

Pobres náufragos,
Marinheiros, pescadores,
Poetas loucos, errantes, noctívagos,
Imigrantes clandestinos,
Corsários, contrabandistas, pecadores,
À deriva, sem um ui nem um ai,
Agarrados às tábuas do barco Deus é Pai (5).

Hoje não acredito mais
Nessas lendas das alminhas
Que eu ouvia aos ceguinhos das feiras,
Vendedores de letras de fado
E do Borda-d’Água:
Afinal essas luzinhas,
Lá longe e ali tão perto,
São apenas as traineiras
Ao largo do Mar do Serro,
Atrás dos cardumes de sardinhas.

© Luís Graça (2005-2012)
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Notas de L.G.:

(1) A região do Oeste (e em particular o concelho da Lourinhã) é rica em vestígios paleontológicos dos dinossauros do Jurássico Superior (c. 150 milhões de anos). Em 1993, foi descoberto na zona de Paimogo aquilo que viria a ser considerado o maior ninho de ovos de dinossauro do mundo. Segundo o jovem paleontólogo e meu amigo, o Doutor Octávio Mateus, a jazida de Paimogo tem cerca de 120 ovos. “Existem ovos ou cascas de ovos mais antigos, mas o ninho de Paimogo é a mais antiga estrutura de nidificação. É o único com embriões na Europa e possui os mais antigos ossos com embriões do mundo (150 milhões de anos)”. Além disso, misturados com os ovos de dinossauro, “descobriram-se três ovos de crocodilo, os mais antigos do mundo". Essa ocorrência, conclui o jovem cientista lourinhanense, "permite-nos pensar numa relação de comensalismo entre dinossauros e crocodilos durante o Jurássico”.

(2) Em Agosto de 2005 foi lançado um livro interessante sobre  , da autoria da bióloga marinha Ana Silva, natural do concelho da Lourinhã. Esta actividade, embora complementar (da agricultura, da pesca, etc.), ainda hoje é um dos traços da identidade cultural das gentes ribeirinhas deste concelho. A edição do livro é da Câmara Municipal da Lourinhã (2005).

(3) A presença humana em Paimogo está documentada por vestígios arqueológicos, remontando pelo menos ao Calcolítico. A região da Lourinhã também foi habitada por povos como os iberos, os fenícios, os gregos, os túrdulos e os cartagineses. A passagem mais marcante foi, todavia, a dos romanos e, depois, a dos mouros. Na reconquista destas terras, D. Afonso Henriques foi ajudado por cavaleiros francos (isto é, oriundos da antiga Gália), entre eles D. Jordão, que irá ser o primeiro donatário da Lourinhã (Cipriano, 2001. 17-25).

(4) O Forte de Paimogo, construído em 1674, construído durante a regência do príncipe D. Pedro, futuro rei D. Pedro II, “fazia parte de uma linha defensiva da costa portuguesa, que começava na Praça Forte da vila de Peniche e estendia até ao Forte de São Francisco de Xabregas, na cidade de Lisboa” (Cipriano, 2001.143). Classificado como imóvel de interesse público pelo Decreto nº 41191, de 18 de Julho de 1955,  esteve em estado de ruína durante anos, tendo sido objeto há uns anos de uma intervenção de recuperação pela Câmara Municipal da Lourinhã.

(5) O concelho da Lourinhã também tem a sua quota-parte na história trágico-marítima deste país. Cipriano (2001. 261-262) refere a ocorrência, de 1968 a 2000, de seis naufrágios de barcos de pesca onde morreram três dezenas de filhos da terra, com especial destaque para as gentes de Ribamar (fora outros acidentes de trabalho mortais, cujo número se desconhece).

Um desses naufrágios foi o do barco Deus é Pai, em 26 de Março de 1971, no Mar do Serro, ao largo do Cabo Carvoeiro. Os restantes foram os do Certa (15 de Maio de 1968), Altar de Deus (6 de Novembro de 1982), Arca de Deus (17 de Fevereiro de 1993), Amor de Filhos (25 de Julho de 1994) e Orca II (antigo Porto Dinheiro) (19 de Julho de 2000). Entre estes homens há parentes meus, da grande família Maçarico, de Ribamar, donde era oriunda a minha bisavó paterna, Maria Augusta (nascida em 1864).

Referência bibliográfica:

Cipriano, Rui Marques (2001) – Vamos falar da Lourinhã. Lourinhã: Câmara Municipal da Lourinhã.

Sitografia:

 Lusodinos - Dinossauros de Portugal

Museu da Lourinhã







Infografias: Painel informativo da Rede Natura Oeste, Praia da Areia Branca... A Grande Rota Caminho do Atlântico - Rede Natura Oeste (GR 11 - E9), numa extensão de cerca de 70 km, vai da Praia da Assenta Sul (Torres Vedras) até ao Cabo Carvoeiro (Peniche), incluindo as minhas praias  favoritas no concelho Lourinhã, entre as quais está o Paimogo.... Reprodução com a devida vénia, a partir de fotos de L.G.

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Último poste da série > 3 de agosto de 2012 >  Guiné 63/74 - P10223: Blogpoesia (195): Ah, ladrão e No ambiente de uma tasca (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P10226: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (7): Os "cubanos"

1. Primeira estória, de mais uma série de três, dos Fidalgos de Jol, enviada pelo nosso camarada Augusto Silva Santos (ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73), em mensagem do dia 2 de Agosto de 2012:

Camarada e Amigo Carlos Vinhal,
Depois do teu desafio e, após rebuscar no meu baú das memórias e do contacto com um ex-camarada, atrevo-me a contar mais 3 Estórias dos Fidalgos do Jol, nem todas com um final feliz, mas com a suficiente dose de insólito e humor que, passados todos estes anos, ainda mais divertidas se tornam.
Nos ficheiros anexos envio-te a primeira destas três estórias e mais algumas fotos, que obviamente deixo ao teu critério a possível publicação.

Mais uma vez recebe um grande e forte abraço, e muito obrigado por toda a preciosa colaboração.
Augusto Silva Santos


ESTÓRIAS DOS FIDALGOS DE JOL (7)

Os “Cubanos”

Já perto do final da comissão do BCaç 3833 (Out1972), o então Comandante do CAOP1 sito em Teixeira Pinto, mais propriamente o Coronel Paraquedista Rafael Durão, determinou que se realizasse uma acção conjunta a nível das três Companhias operacionais, ou seja, a 3306 de Jolmete, a 3307 do Pelundo, e a 3308 de Có. Foi estabelecido um plano por forma a que os respectivos Grupos de Combate se encontrassem em determinado ponto, mais propriamente onde confinava a zona de actuação definida para cada uma delas, sendo o vértice uma extensa bolanha.

Já perto do ponto de encontro em questão na região de Catafe e, mais ou menos à hora combinada, foi tentando por nós (Grupo de Jolmete) o contacto via rádio, com vista a apurarmos em que posição se encontraria cada um dos Grupos, para que a aproximação (reconhecimento) se realizasse dentro da máxima segurança.

É nessa altura que somos alertados pelo Grupo de Có, de que estariam a avistar movimentação do que suponham ser um bigrupo do inimigo, comandado por “Cubanos”, pelo que perante tal alerta, parámos de imediato a nossa progressão e tomámos posição de emboscada, aguardando melhor informação sobre a posição do tal grupo de guerrilheiros.

Talvez cerca de um ou dois minutos depois, somos informados da eventualidade de termos sido detectados, visto que o inimigo estava a emboscar, pelo que a nossa progressão se deveria fazer com o máximo cuidado, tendo-se inclusive ponderado se não seria melhor solicitar apoio aéreo para bater a zona, tendo em conta ser um grupo com muitos elementos e, dada a extensão da bolanha, ser difícil aos Grupos de Có e Pelundo chegarem rapidamente até nós para fazer um possível envolvimento, sem serem também detectados.

Porque a posição assinalada pelos camaradas de Có, era coincidente com aquela em que nos encontrávamos, questionámos de imediato se algo de errado não se estaria a passar, e sugerimos que um dos elementos do nosso Grupo se assomasse até à orla da mata com a tela de sinalização usada para o apoio aéreo, para nos identificarmos. Escusado será dizer que rapidamente se chegou à conclusão de que o grupo supostamente do inimigo era afinal o nosso, que seguia na frente com boa parte dos elementos do Pelotão de Milícias, e afinal os “Cubanos” não eram mais do que eu e o outro Furriel que estaríamos a tentar orientar o decorrer da acção.

Importar salientar que a bolanha em questão era de facto muito larga e extensa, e a distância entre os nossos Grupos não permitia no imediato uma melhor identificação do pessoal, além de que parte da confusão foi originada pelo facto de, tanto eu como o outro Furriel, estarmos na altura a usar não os nossos tradicionais quicos, mas sim bonés não convencionais. Eu estava com um boné de xadrez com pompom, que me tinha sido oferecido por um Cabo apontador da bazuca, o qual lhe havia sido trazido por emigrante amigo em França, e o outro Furriel com um chapéu improvisado feito de folhas de palmeira, para se proteger do sol intenso.

Até então o dito boné (com o qual tenho algumas fotos) funcionou para mim como um amuleto, mas até ao final da comissão não voltei a usá-lo, não fosse o diabo tecê-las. Para “Cubano”, bastou um dia.

Curiosamente havia de devolvê-lo 30 anos depois ao seu antigo e primeiro proprietário, aquando de um dos encontros da nossa Companhia, em que este acontecimento acabou por ser recordado com algum gozo.

Este é um dos muitos episódios ocorridos em cenários idênticos que, não só por mera sorte mas também com responsabilidade, acabou por ter um final feliz. Por fim ainda brincámos com a situação, mas nem quero imaginar as consequências graves que poderiam ter ocorrido, se por acaso os outros Grupos ou a aviação (que não chegou a ser solicitada) tivesse aberto fogo sobre nós.

Jolmete, Janeiro de 1972 > Na tabanca

Jolmete, Março de 1972 > Entrada do Quartel

Jolmete, Maio de 1972 > Interior do meu abrigo

Jolmete, Junho de 1972 > Entrada do meu abrigo

Jolmete, Julho de 1972 > Trilhos de Gel

Jolmete, Agosto de 1972 > Regresso da Bolanha de Gel

Jolmete, Agosto de 1972 > Boné do Cubano
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10197: Estórias dos Fidalgos de Jol (Augusto S. Santos) (6): Cabo Bigodes, o homem-macaco

Guiné 63/74 - P10225: Do Ninho D'Águia até África (4): No aquartelamento, quase em final de construção (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

Aquartelamento de Mansoa

Foto: © César Dias. Todo os direitos reservados


1. Continuação da publicação de Do Ninho de D'Águia até África, de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Op Cripto, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66). iniciada no Poste P10177. O Tony Borié, natural de Águeda, vive nos EUA, Flórida, há 40 anos.

Do Ninho D'Águia até África (4)

No aquartelamento, quase em final de construção

Neste aquartelamento, todos trabalham, ou pelo menos tentam estar ocupados.

Mesmo depois de completas, as principais instalações, havia sempre coisas a improvisar. -sePor exemplo, com a madeira das caixas de munições faziam-se mesas e secretárias, que se usavam para escrever os aerogramas e as cartas para a família e as madrinhas de guerra.

Plantavam pequenas árvores e flores, em alguns locais desertos, que ainda não tinham construção e cada um era proprietário do seu pequeno jardim, que cuidava, e trocavam plantas entre uns e outros.

Chegou a haver uma pequena rivalidade entre o Setúbal e o Trinta e Seis, cada qual tinha o seu jardim, qual deles o mais bonito. O Trinta e Seis era um soldado telegrafista que não sabia quem lhe lhe tinha posto a alcunha, mas todos diziam que era pela estatura do corpo, pois era baixo e forte, mesmo muito baixo e forte, e diziam que era o conjunto de números derivado de uma dúzia. Por exemplo, o corpo inteiro eram doze, metade eram seis, um quarto eram três, e no conjunto dos números, começando por baixo, dava três mais seis, e como ele era baixo e forte, juntaram os números três mais seis e deu no sugestivo nome de Trinta e Seis. Era muito popular entre os militares e conhecido pelo Trinta e Seis.

O Curvas, soldado atirador, alto e refilão, que andava sempre contrariado, não acatava ordens, queria mandar e todos diziam que devia ser general, tinha este nome porque como era alto e magro, caminhava sempre curvado para o lado da frente, por tal motivo ficou a chamar-se o Curvas. Além de andar sempre contrariado, tinha uma linguagem reles, e quando por aquela área passava, dizia:
- Que grande porcaria! Parecem parvos, as flores não servem para comer! Qualquer dia arraso isto tudo!

Com os barris de vinho vazios faziam excelentes cadeiras de encosto e lindos vazos, onde nasciam flores e até pequenas palmeiras. Havia os mais habilidosos que construíam lindas gaiolas para piriquitos, outros pássaros exóticos e macacos bebés.

Os macacos,  depois de conhecerem bem o dono, que os trata e lhes dá de comer, não mais abandonam essa pessoa. Dentro do aquartelamento, debaixo de uma grande árvore, a que chamavam a Mangueira do Setúbal, de quem já aqui falámos, havia um autêntico jardim zoológico, tal era o número de gaiolas com pássaros exóticos e macacos. Todos tinham o seu dono, que os tratava, e perdiam horas na sua companhia.

Alguns andavam a passeá-los pelo aquartelamento, e não raro era o caso em que os traziam para a vila, em especial para a sede o clube de futebol, como por exemplo o Setúbal, que chegou a ter dois macacos, um já adulto e outro bebé, e um periquito. Andava de periquito ao ombro e um macaco a cavalo no outro, isto a passear na vila e, tanto o periquito como os macacos, faziam o que ele mandava, parecia como no circo.

Se algum militar era transferido para outro cenário de guerra, levava o animal com ele. Quando uma coluna militar passava pelo aquartelamento, faziam parte dessa coluna militares, civis, macacos e periquitos, entre outras coisas. Esse zoo, no aquartelamento, ajudava na segurança. Se alguém estranho penetrasse no aquartelamento, pela calada da noite, os primeiros a fazerem barulho eram os macacos.

Havia uma árvore de pequena estatura, mas muito florida, que nasceu junto a um pequeno pântano, que existia dentro do aquartelamento, ao fundo, mais a oeste, que pela manhã se cobria de periquitos e outras aves exóticas, muito coloridas. Um furriel miliciano do pelotão de morteiros todos os dias ia lá colocar comida em cima de um tampão de um barril de vinho vazio, onde os pássaros iam comer e se empurravam uns aos outros, pois cobriam completamente o tampão do barril, ao que o furriel, dizia:
- Esta árvore é a minha gaiola, de periquitos.

Quando criança, na sua aldeia no vale do Ninho d’Águia, o Cifra tinha um cão rafeiro, amarelado, que dormia com ele aos pés da cama, feita de colchão de palha de centeio, das terras altas do pinhal. Pela manhã, ao passar o comboio das seis e meia, que apitava, o Cifra, ainda criança, abria os olhos, passava a manga da camisola pelo nariz, limpando algum ranho, camisola essa já bastante coçada, pois já tinha sido do irmão mais velho que depois a passou para o irmão do meio e que finalmente lhe veio parar ao corpo, tocava com o pé no cão piloto, que compreendia o sinal, e logo se levantava, e dando ao rabo, em sinal de alegria, vinha na sua frente, sentar-se na lareira, onde a mãe Joana já preparava o café de chicória, que com umas côdeas de broa amolecidas, e um pouco de leite de cabra, era o seu pequeno-almoço, que repartia com o cão piloto.

Lembrando toda esta cena, não tardou muito tempo que não tivesse também o seu macaco, um pouco maior, era uma raça a que os naturais chamavam “macaco cão”. Depois de alguns meses de convívio, já fazia algumas habilidades. Alguns até diziam que era mais inteligente que o Curvas, o tal soldado atirador, alto e refilão. O macaco que obedecia ao Cifra, deitava-se, sentava-se, dava a mão, fazia cambalhota, abria a boca, mostrando os dentes e saltava. Era uma cópia do que o Cifra fez quando foi “às sortes”, no quartel da cidade, onde lhe fizeram a inspecção militar, antes de ser incorporado no exército de Portugal. Esse macaco chamava-se Piloto em homenagem ao seu querido Piloto.

Mas voltando ao aquartelamento, enquanto decorriam os trabalhos da sua construção, algumas vezes, durante a noite, o Cifra e os seus companheiros eram flagelados do lado sul, onde havia matas, por granadas de morteiro, seguidos de rajadas de metralhadora, e quando em vez tiros de pistola.

Ninguém sabia porquê, mas até aquela data nunca acertaram no aquartelamento. Voavam granadas de morteiro, que quase sempre vinham cair no que nós chamávamos campo de aviação, no tal terreno plano próximo da aldeia, com casas cobertas de colmo. Pela manhã, era normal sairem diversas secções de combate, ou até mesmo pelotões completos, a fazer incursões no interior das matas. Este conjunto de militares era sempre acompanhado por uns tantos africanos que, pelo menos, mostravam que eram fiéis aos militares, serviam de guias e tradutores, passavam em certas áreas, visitavam aldeias, pediam identificação a alguns naturais, verificavam se havia algo de suspeito e faziam algumas perguntas quando suspeitavam de algo.

Quase sempre por onde passavam não viam ninguém, só talvez pessoas já de uma certa idade, mesmo velhas, a trabalharem nos pântanos do arroz, e crianças, mesmo crianças, com menos de dez anos, a guardarem algum gado, como se fossem pastores.

Quando os militares andavam em patrulha, por essas áreas, se por qualquer circunstância encontrassem um jovem, tanto fazia ser homem ou mulher, que aparentasse idade entre os quinze e os trinta anos, mais ou menos, e não tivesse identificação, ficava nesse momento com o rótulo de guerrilheiro e era aprisionado e trazido para o aquartelamento, como fosse guerrilheiro das forças de libertação, para ser interrogado. Este era o sistema e as ordens que na altura havia.

Os guerrilheiros que compunham os diversos grupos de combate, que queriam a independência, da dita província e a quem o governo de Portugal chamava “terroristas”, embora ainda não tivessem muita experiência de combate, sabiam o que faziam, sabiam estar no terreno. Talvez avisados, precaviam-se e desapareciam dessas áreas. Dava a entender que sabiam o sistema como actuavam os militares.

No aquartelamento dizia-se que aqueles ataques esporádicos, que o aquartelamento sofria, eram só para os militares saberem que eles andavam por ali, e que existiam.

Ninguém sabe se era essa a verdade. Contudo, raro era o dia em que as nossas forças, no regresso ao aquartelamento, traziam de volta prisioneiros, ou qualquer outra informação. Pelo contrário vinham exaustos e com cara de sofrimento.

Num desses ataques, o Curvas, o tal soldado atirador, alto e refilão, que andava sempre contrariado e não acatava ordens, que queria mandar e todos diziam que devia ser general, sai sozinho do aquartelamento, por uma parte onde ainda não havia arame farpado, para o lado das matas, com a G3 em punho, aos tiros, de peito aberto, gritando:
 - Venham cá, filhos da puta!. Turras da merda!. Eu vou matá-los a todos!

Era assim o homem, não obedecia e fazia o que queria. Por acaso não lhe aconteceu nada e regressou ao aquartelamento, pelo mesmo sítio, com a cara vermelha e coberto de suor, deitando saliva pelos lábios, com os olhos vidrados, talvez de fúria.

O tal capitão, que diziam que partia tudo à bofetada, estava lá, viu toda esta cena, na frente de todos, mas nem se aproximou do Curvas, e diziam que a partir desse momento deixou de bater nos soldados.

O Curvas pertencia ao pelotão de morteiros e era amigo do Trinta e Seis, pois só o Trinta e Seis lhe dava ordens e o acalmava.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10212: Do Ninho d'Águia até África (3): Uma pausa para reflectir, guerra é guerra (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

Guiné 63/74 - P10224: Parabéns a você (454): José Nunes, ex-1.º Cabo Mec Electricista do BENG 447 e Rui A. Ferreira, Ten-Cor Reformado

Para aceder aos postes dos nossos camaradas José Nunes e Rui A. Ferreira, clicar nos seus nomes
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10211: Parabéns a você (450): Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil da CCAV 8350 (Guiné, 1972/74)

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10223: Blogpoesia (195): Ah, ladrão e No ambiente de uma tasca (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 2 de Agosto de 2012:

Olá Carlos,
Depois da minha apoteótica estreia na condição de poeta, em virtude dos improváveis comentários de três consagrados versejadores, decidi enviar mais dois belos exemplares da minha obra, que são a demonstração clara de que passei ao lado de uma grande carreira artística.
Naturalmente, de tão soberbos, os meus poemas não obedecem a regras, não mostram respeito pela métrica, nem têm que rimar. São o que são: devaneios pelo género.

Para evitares riscos de desconsideração pública, alerto para a eventual conveniência de não os publicares.

Um grande abraço
JD


2. MAIS POESIA DE BAJOCUNDA

Como já antes referi, a minha Companhia não teve autonomia financeira e administrativa durante os primeiros seis meses, pelo que, sendo este poema (Ah, ladrão!) um libelo em relação ao Capitão Trapinhos e a dois sargentos, é necessário excluir deste conjunto o competente Sarg. José Vieira de Sousa, que foi requisitado para Bissau durante aquele período, e constituiu uma perda significativa, bem como o Sarg. Rui Luz, um indivíduo muito simpático e camarada, que manteve um relacionamento de alto nível e educação. Nas minhas notas o poema também se lembra do Silva, um comerciante local.


AH, LADRÃO!

Oh África, Oh África!...
Porque é que és tão quente?
Se soubesses como 
A malta se escalda,
Se ao menos tivesses gêlo, 
Ai África!

E os abastecimentos? 
Coca-cola, Fanta, Sumol, 
Cerveja "pequinina"... 
A cerveja grande deve 
Pagar portagem: subiu para 7,50. 
Whisky, gin, água tónica...

Mas nem o mar,
Nem o rio,
Nem a bolanha,
Não têm fresco.

A coluna vai na picada,
Os lenços não chegam,
P'ra cobrirem da poeira.
À noite o IN ataca,
A malta precipita-se
Na vala.
A temperatura sobe
Aos muitos graus,
Estilhaça!

Se ao menos tivesses gelo!
Sandes de presunto = 10 paus.
Sandes de fiambre = 8 paus.
Sandes de mortadela = 6 paus.
Ah, ladrão!

Bajocunda, 1971


NO AMBIENTE DE UMA TASCA

No ambiente de uma tasca,
Falavam dois velhos varões,
Da falta de culto e do rasca,
Que são dos rufiões.

Mas eis que se levanta um bêbado,
- Alto lá meus senhores!
Dito isto não se conteve:
- Parto-vos as fuças sem muitas dores.

Os barões acabrunhados,
Da manifesta desigualdade,
Foram-se dali muito revoltados,
Que a vingança não tem idades,
Eles serão espezinhados,
Para evitar outras veleidades.

Bajocunda, 1971

OBS: Não sei a que propósito escrevi isto, provavelmente influenciado por alguma notícia que me provocou indignação.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10204: Blogpoesia (194): Lá longe a Pátria e Quando o Estado morrer (José Manuel M. Dinis)