quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Guin é 63/74 - P10478: Tabanca Grande (364): Júlio Madaleno, tocador de guitarra, feicebuqueiro e agora grã-tabanqueiro, nº 582, ex-fur mil, CCAÇ 1685 (Fajonquito) e CCAÇ 2317 (Gandembel) (1967/69)

1. Mensagem de ontem, enviada pelo Júlio Madaleno [, foto atual à esquerda]:

Data: 3 de Outubro de 2012 19:27

Assunto: Ex-fur mil Júlio T S Madaleno,  Guiné 1967/69

Caro Luís Graça

Desde há 1 ano que intervenho no blogue mas parece-me que ainda estou despercebido, embora não ache que isso tenha grande importância.

Localizo uma minha primeira intervenção com uma referência vossa P9104, Agenda cultural (172) (*) e outra vossa, do Luís Graça para o GG (30/11/2011) (**).

Daí em diante faço umas visitas ao blogue e como tenho conta no facebook subscrevi a vossa da Tabanca e recebo as atualizações todas.

Quando o Idálio Reis apresentou o livro sobre Gandembel, intervi e ele até dialogou comigo por e-mail, pois que não nos víamos desde a Guiné. Também já descrevi o meu percurso militar nas CCAÇ 1685 e 2317 e uma tragédia cá, uns anos após a desmobilização, que me voltou a perturbar o sono.

Se for possível torna-me também tabanqueiro. Quero continuar ligado aos meus antigos camaradas de armas.

Um abraço do Júlio Madaleno, o tal que gosta de tocar guitarra,
______________

(*) Comentário de Júlio Madaleno, de 29 de novembro de 2011, ao poste P9104:

 (...) Dois dos [três] F [Fátima, futebol e fado], um respeito-o, outro causa-me ansiedade clubística. Quanto ao terceiro, amigos...ah quanto nos fazia reviver o que nos era querido e estava longe. Na altura tinha lá uma viola que nos ajudava nesses bocadinhos de nostalgia. Hoje sou intérprete de guitarra portuguesa. 

Só lamento não conseguir encontrar-me com rapaziada das 2 CCAÇ por onde passei, a 1685 e a 2317. 

Abraço a todos e viva o que os 3 F  ainda hoje simbolizam.


(**) O Júlio Madaleno deixou o seguinte comentário, com data de 10 de abril de 2012, ao poste P9726 (*):

Velhos companheiros:

Certamente não vos lembrais de mim porque fiz uma efémera passagem pela [CCAÇ] 2317 quando quis o destino que fosse substituir o fur mil Alves devido à infelicidade que o vitimou.

O meu nome é Júlio Madaleno e operei o tal morteiro 120 que lá foi colocado e estava instalado na parte de trás do abrigo da Browning. Pelas frequentes consultas que faço ao blogue estou informado do livro do amigo Idálio Reis e do almoço programado para 9 de junho [, data do convívio do pessoal da CCAÇ 2317, em Paredes ], onde vou tentar estar presente para rever antigos camaradas de armas.

Um grande abraço do ex-fur mil J M
juliomadaleno@gmail.com

(No Facebook,  identificável em foto com guitarra).

2. Comentário de L.G.:

Júlio:  Que a tua vontade seja cumprida: "Se for possível torna-me também tabanqueiro. Quero continuar ligado aos meus antigos camaradas de armas"...

Sê bem vindo, camarada, mais uma e outra vez!... Já há tempos, em 12 de agosto de 2009, nos apareceu aqui a filha, Lídia Gonçalves,  de um camarada teu, e nosso, que esteve contigo na CCAÇ 1685 (Os insaciáveis), nos anos de 1967/69. O seu nome era José Manuel Costa Gonçalves, 1º cabo mecânico auto rodas. É provável que não te lembres... Havia 150 homens numa companhia...

A outra (e última) referência que temos à tua antiga companhia, a CCAÇ 1685, reza assim: 

(...) CCaç 1685, comandada pelo Cap Inf Alcino de Jesus Raiano, unidade orgânica do BCaç 1912, e mobilizada em Évora no RI 16: assumiu a responsabilidade do subsector de Fajonquito, rendendo a CCaç 1501, em 19 de Setembro de 1967, e vindo a ser substituída pela CCaç 2435 em 14 de Dezembro de 1968. (...). 

Certo ? Confirmas ? Acontece que não temos  cá ninguém desta companhia, se não erro... Tu serás pois o primeiro e digno representante dos Insaciáveis. Quanto à CCAÇ 2317, já é mais familiar aos nossos leitores, devido ao seu heróico comportamento em Gandembel e em Balana, e ao livro do Idálio Reis.

O que é que te falta para cumprir as NEP do blogue ?... Manda uma ou mais fotos do antigamente e conta um pequena história... Precisamos de saber mais umas coisas sobre as tuas andanças pelo TO da Guiné.... Quanto à guitarra, um dia destes temos que ouvi-la!,,, 

Passas a ser o grã-tabanqueiro nº 582. Parabéns!

Guiné 63/74 - P10477: Parabéns a você (477): Artur Conceição, ex-Soldado TRMS da CART 730 (Guiné, 1965/67) e Inácio Silva, ex-1.º Cabo Apont Metral da CART 2732 (Guiné, 1970/72)

____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10471: Parabéns a você (476): Carlos Prata, Coronel Reformado (Guiné, 1973/74) e Hélder Sousa, ex-Fur Mil (Guiné, 1970/72)

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10476: (Ex)citações (197): Carta aberta a Tony Borié (Belmiro Tavares)

1. Em mensagem do dia 28 de Setembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos esta carta aberta destinada ao outro nosso camarada Tony Borié:


Lisboa, 28 de Setembro de 2012

Caro Tony Borié,
Depois de uns dias de férias no Centro-norte do país (a Troika não permite mais), eis-me de regresso às lides rotineiras. Apenas hoje tive oportunidade de ler o teu comentário (1) ao texto sobre o Engrácia, um digno soldado do meu pelotão. Obrigado!

Nunca escondi de ninguém que eu era rigoroso com os meus soldados; quer no cumprimento de horários, quer no seu comportamento individual, quer ainda no seu relacionamento com outros soldados ou com os seus superiores. Fui sempre muito exigente, mas eu dava o exemplo! Nunca ordenei aos meus subordinados que fizessem o que eu não fazia.

À primeira falta, eu, normalmente, não atuava a não ser que fosse muito grave; avisava e explicava pormenorizadamente as minhas razões; à segunda raramente não castigava. O oficial, comandante de homens, também deve ser, penso eu, um educador. Tenho a certeza que nunca fui injusto na aplicação de qualquer castigo – corporal ou não – porque na dúvida, não actuava disciplinarmente; sem dar a entender que me tinha apercebido que alguém teria prevaricado, eu conversava sobre determinada falta (a tal) e que deviam ter cautela com o seu comportamento. Eles logo entendiam que alguém teria pisado o risco.

Nunca castiguei um soldado “à ordem” – isso só podia acontecer in extremis – porque era um ferrete que o acompanharia durante toda a vida e prejudicava-o tremendamente, como bem sabes. O meu pelotão foi o único da gloriosa CCaç 675 que não teve problemas disciplinares graves até ao final da comissão.

Os meus homens tinham plena liberdade de me alertar, respeitosamente, se entendessem que eu não tinha agido corretamente; eu tinha de descalçar a bota. Um dia em pleno mato, na fase final de uma “batida”, mal eu subi para a viatura, um soldado que foi sempre muito frontal, mas educado, perfilou-se e pediu-me licença para me interpelar; eu respondi afirmativamente, e ele desabafou:
- Nós temos um alferes para nos comandar em qualquer situação; não queremos sair com qualquer outro oficial, a não ser que o nosso comandante esteja impedido de o fazer. Se tal voltar a acontecer, nós decidiremos se saímos ou não com outro, arriscando as consequências da nossa decisão.

Aceitei, respeitosamente, a “reprimenda” e de seguida, expliquei:
- O nosso alferes sentiu-se mal e eu aceitei sair com o seu pelotão por respeito aos seus soldados, pois não gosto que um pelotão vá para o mato sem alferes; não houve tempo para vos avisar que eu ia sair com outro pelotão e que vocês sairiam com outro oficial que não eu. Apenas exigi ao nosso alferes que teria de vos comandar nas viaturas para “recolher” aqui os que fizerem a “batida” pois não aceitava que o meu pelotão saísse do quartel, mesmo que apenas na coluna auto, sem um oficial.
- O problema é que nós fomos apanhados de surpresa, mas já está tudo esclarecido! - Comentou outro soldado.

Eu dava tudo pelos meus soldados e continuo a dar; mas sabia e sei ainda que o contrário, era também verdadeiro.
Um dia, em Bissau, fui informado que um cabo do meu pelotão estava na prisão, na companhia de adidos; fui logo de táxi para o quartel.

O 1.º Cabo A. F. Santos, encontrava-se dentro de uma cela… de porta aberta; mas um soldado com uma G3 na mão vigiava-o no seu cubículo. Ele era acusado de ter assaltado a cantina; ele negou perante mim ter sido o autor do assalto e isso bastava-me! Eu confiava nele!

De cabeça meio perdida procurei o capitão (um oficial do serviço geral) e transmiti-lhe que ele não podia manter o meu soldado na prisão. Se o assunto não fosse sério, a resposta do capitão até seria cómica:
- Ele não está preso! A porta da cela está aberta!

Perdi as estribeiras! Abri a boca e saíram asneiras em catadupa. Ele, porém, não teve coragem para agir disciplinarmente contra mim.

Quando lhe transmiti que eu só aceitava que o Santos fosse autor do assalto se ele confessasse, o capitão riu-se descaradamente. A sua resposta condizia perfeitamente com a sua mentalidade:
- São todos iguais! Roubam e negam, enquanto podem!

No dia seguinte - nem eu sei como - o verdadeiro assaltante foi detetado e não era o Santos. Desabafei de novo com o capitão… mas a asneira estava feita.

Um dia um soldado comunicou-me que o alferes X lhe deu uma bofetada.
- Porquê !?
- Eu estava a “massajar” uma preta, mas ele estava a fazer o mesmo com outra.
- Foi mesmo assim? - Perguntei.
- Foi tal e qual, meu alferes!

Falei com o outro oficial que me respondeu:
- Ele estava a apalpar uma preta!
- O mesmo que tu fazias! Ficas a saber que se voltares a agredir um soldado meu e acima de tudo sem motivo, ver-me-ei obrigado a agredir-te também.

Outra vez a companhia de Adidos. Eu estava na consulta externa – otorrino – e fazia serviço naquela companhia. Um 1º cabo da minha companhia perguntou-me:
- Oh meu alferes! No mato nós temos lençóis! Porque será que aqui não os temos?! - Fiquei surpreendido, mas era verdade!

O capitão já não estava na companhia. Perguntei ao 1.º Sargento se na companhia não havia lençóis para os praças. Ele respondeu que havia, mas que o capitão “mandou guardá-los porque os soldados não os merecem”.

Ordenei ao 1.º Sargento que preparasse tudo para distribuir lençóis imediatamente às praças que os quisessem.

No dia seguinte tive de aturar o capitão, mas pus termo à conversa como segue:
- O meu capitão deve exercer os seus poderes disciplinares, participe! E não se preocupe com o que possa acontecer-me! Não será difícil defender-me!

Isto já vai longo! Mas só mais uma pitada!

De maneira alguma levaria a mal o teu comentário! Eu exponho-me com a verdade dos factos! Nunca escondi o meu comportamento; passei a falar mais disto quando vi duas causídicas ficar assustadas, surpresas, de cabelos em pé por eu lhes ter declarado que castiguei corporalmente alguns soldados menos bem comportados. Mais um cheirinho: na CCaç 675 os soldados comiam razoavelmente bem. Talvez em nenhuma outra companhia “do mato”, os soldados comessem tão bem como os nossos. O cozinheiro deles era um profissional – era 2.º cozinheiro num hotel do Porto -; um soldado, pescador, em Peniche, cozinhava para oficiais e sargentos.

Quanto a matas, bolanhas, emboscadas e quejandos, os soldados da CCaç 675, não ”levavam“ mais que os oficiais e sargentos que sempre os acompanhavam; a dose era a mesma para todos.

A conversa é como a cerejas… é preciso travar às quatro… ou nunca mais acabo.

Na fase final da comissão, um alferes da CCaç 675 – a gloriosa – repreendeu asperamente um soldado que reagiu grosseira e insolentemente. O alferes agrediu-o, quanto a mim tarde de mais; o soldado ripostou e engalfinharam-se. Não foi necessária a minha intervenção. O alferes dominou a situação e aplicou-lhe um castigo tão severo… que me recuso a citá-lo.

Imaginei que ia haver complicações o que agravaria as circunstâncias. Cerca de meia hora mais tarde decidi dar uma volta pelo aquartelamento, para me antecipar a qualquer surpresa. Mais vale prevenir que remediar! Foi sempre – e ainda é – o meu lema.
Uns tantos soldados conversavam acaloradamente no refeitório, a briga era o tema.

A meia noite aproximava-se; abeirei-me do grupo e comentei:
- Tanta gente sem sono?! Eu também não tenho! Por isso ando por aqui!

Um dos meus soldados, ali presentes, perguntou-me:
- O meu alferes acha justo o que está a passar-se?
- Passa-se tanta coisa, por aqui, meu rapaz! A que te referes?

Era mesmo o que eu pensava! Tomei a iniciativa:
- Os soldados do meu pelotão não têm que meter o nariz naquilo que não lhes diz diretamente respeito. Assim sendo, o meu pessoal deve ir já para a cama.

Todos se dirigiram à caserna, mas o mesmo soldado comentou, meio zangado:
- Isto não podia acontecer! Temos de tomar uma atitude!
- Oh Pinela! Vem cá! Como é que tu tentas mostrar, agora tanta valentia e há dias na emboscada em “tal parte” escondeste-te atrás do teu medo e só não foste abatido porque o guerrilheiro tinha a espingarda em segurança e entretanto foi abatido. Vai deitar-te e não te metas onde não és chamado!

Sem resposta ele dirigiu-se à caserna.

De seguida, perguntei se havia ali mais alguém que não fosse do pelotão em causa. Três ou quatro levantaram-se e eu aconselhei-os a ir dormir, pois pretendia conversar apenas com os soldados mais diretamente ligados ao caso.

Conversei com cerca de dez praças; contei o que tinha acontecido e que eu presenciara; transmiti-lhes que comigo o soldado teria “levado” mais cedo mas que considerava o castigo exagerado. Contei tudo com tal minúcia que não deixei grande margem de manobra aos ouvintes. Consideraram que, na verdade, estavam decididos a agir erradamente, etc etc.
Convenci-os a ir dormir e que colocassem uma pedra sobre o assunto.

Solicitei, no entanto, a um cabo ali presente, que ficasse comigo mais um pouco. Sugeri-lhe determinada actuação, mas que não podia falhar. Juntos conversámos com o soldado castigado. A minha proposta foi cumprida… em rigoroso sigilo. E por aqui me fico. Transmiti-lhe que se algo corresse mal… eu assumia a responsabilidade. Quer o soldado castigado, quer o cabo por mim envolvido no assunto nunca compareceram nas nossas reuniões… por razões díspares; nunca descobri o paradeiro do cabo.

Creio que ficou demonstrado que o relacionamento com os meus soldados não era mau de todo. Bem ou mal não me arrependo do que fiz; a intenção era boa! Os meus soldados sempre mostraram que não ficaram zangados.

Se tiveres paciência, lê o meu texto, “ser ou não ser disciplinado” – está no blogue! (2) Não o cito aqui para não me repetir. É interessante, digo eu!
As minhas desculpas por tanta parra! Só mais um toque: há 46 anos, eu organizo as reuniões anuais da minha muito querida CCaç 675… e muitas minis pelo meio.

Há anos temos vindo a colocar lápides, nas sepulturas dos nossos mortos: os três que faleceram na Guiné cujos os corpos foram entregues às famílias a expensas nossa e 38 que faleceram depois da guerra.

A CCaç 675 foi ímpar e continua a sê-lo! Mais bofetada ou menos… valeu a pena!

Um grande abraço!

PS1 - Se vives em Lisboa ou na zona passa um dia pelo Hotel Dom Carlos Park e tomamos um copo. Fica na Av. Duque de Loulé, 121 – mesmo ao lado do Marquês!

PS2 - Creio que não pertences ao blogue… o teu nome não está na lista; e tratas-me por “você”. Aqui é “tu cá… tu lá…” como dizia a Cilinha S. P.
____________

Notas de CV:

(1) Comentário de Tony Borié no poste Guiné 63/74 - P10378: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (27): O "Engrácio" de 13 de Setembro de 2012

Caro Belmiro.
Gostei da história, é uma homenagem ao "Engrácio".
Não sei se, ao mencionar: "dei algumas bofetadas e pontapés aos meu soldados...", está a fazer uma confissão, ou se é um desabafo, pois como deve de saber, havia outras maneiras de colocar o pessoal no devido lugar, a violência, gera violência, e no caso já chegava aquela que sofriamos dos guerrilheiros. Esteve em 64/66, foi no meu tempo, e vejo que afinal não era só em Mansoa, que se batia nos soldados.
Pobres soldados, levavam em tudo, era no comer, no corpo, nas matas, nas bolanhas, enterrados na lama e na água, nas emboscadas, era difícil ser soldado.
Não leve a mal este comentário, pois isto é conversa entre combatentes, e longe de mim, ofender.
Um abraço e escreva mais.
Tony Borie

(2) Vd. poste de 17 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7001: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (3): A(s) Disciplina(s): Ser ou não ser... disciplinado, eis a questão

Vd. último poste da série de 28 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10451: (Ex)citações (196): Um funeral balanta, em Barro, no tempo da CART 2412 (1968/70) (Adriano Moreira)

Guiné 63/74 - P10475: Blogpoesia (306): S. T. T. L., Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria, ao menos, te seja leve!.. (Luís Graça)


[Imagem à esquerda: Guernica, de Picasso, 1937. Óleo sobre tela, 349 cm × 776 cm. Museu Rainha Sofia, Madrid, Espanha... 

Imagem do domínio público: Cortesia da Wikipedia.]




S.T.T.L... Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria,
ao menos, te seja leve!

por Luís Graça



1. Um dia até as pombas da paz do Picasso
repousarão no museu da guerra.

Em relicários,
de aço.
Mais as moscas,
regressadas dos campos de batalha,

que ficarão lá espetadas em alfinetes
nos respetivos mo(n)struários.

As moscas.
Exangues.

Cobertas de terra.
E a merda das moscas,

liofilizada,
como os grelos que comias na noite de Natal,
a merda agora elevada à categoria
de artefacto cultural.

Um dia ouviste um coronel, 

veterano,
dizer, sem rancor nem fel
(mas nunca viste isso escrito na Ordem de Serviço):
 Chiça!, sempre mais vale uma mosca na sopa
do que um míssil na cozinha.


A tua guerra foi tacanha.

Foi uma guerrinha,
de baixa intensidade,
assegura-te o escriba, submisso,
agora garboso historiador oficial.
Não viste mísseis a cruzar o Geba ou o Corubal,
mas milhões de insetos caíam-te na sopa.

Salgada,
da água da bolanha.
Fria.
Desconsolada.

A responder-lhe,
ao veterano,
seria com a célebre frase de um  general prussiano
(um general das guerras napoleónicas,

ainda por cima prussiano,
sempre é mais ovoestrelado 
do que um coronel do exército colonial):
– A guerra não é mais do que
a continuação da política de Estado
por outros meios. 

Fim de citação. 
Ponto final.
Siga a Marinha.
Até ao Terreiro do Paço. 

2. De megafone em punho,

o guia-mor do museu,
antigo combatente
maneta, 
o olhar baço, 
o peito ainda ardente, 
fala-te da arte e da ciência da guerra.
E da importância que é devida
aos detalhes
de barba.
Lá estava o aviso exposto na tua camarata:
– Mais vale perder um minuto na vida,
do que a vida num minuto.
Confessa, camarada,
que nunca chegaste a perceber
por que é que o soldado tem que ser tosquiado.
E ir ao encontro da deusa da morte... devidamente ataviado.

3. Faltou-te sempre a visão do todo,
que, para um estratega, 
bem escanhoado,
como o teu major de operações,
só podia ser maior do que a soma dos detalhes.
A única filosofia de vida,

de vida sem liberdade,que tu ouviste,
foi na tropa,
ao teu tenente de instrução da especialidade 

de atirador de armas pesadas de infantaria.
Começava em porcaria, 
e rimava com morte.
Era cínica e dissolvente,
como qualquer vulgar detergente
de cozinha:
- A merda é o adubo... da vida;
é fazendo merda, que tu aprendes;
e sobretudo nunca te esqueças
que é com a merda dos grandes,
que os pequenos se afogam.



À quinta feira, 
recordas-te ainda tão bem,
depois da feira do gado vacum, 
em Tavira,
fazia-nos, à malta do nosso pelotão,

rastejar na bosta,
enquanto ele gania como um cão
debaixo da janela da sua amada.  
É por isso que ainda hoje 
nem tu nem eu gostamos... de xarém.

4. Na tropa-do-um-dois-três-e-troca-o-passo

nunca soubeste
onde ficava o norte,

meu desgraçado!
Nem nunca soubeste pôr ao pescoço o baraço.
Nem fazer o nó à gravata.
Nem onde pôr a mão esquerda.
Nem o ombro arma,
a arma no ombro
ou o ombro na arma.

Nem fazer o pino.
Nem adivinhar a hora da sorte.
Nem sequer fazer um manguito de bravata.
Nem por isso te chumbaram,
coitado.

Depois um dia, no meio da guerra,

quiseram mandar-te para a psiquiatria,
o que era estranho,
porque o RDM,
em todo o seu articulado,
não previa a figura do inimputável 
nem a do cacimbado
(muito menos  a do psicopata... do major).
 Deem-lhe um valium dez,
metem-no numa camisa de forças. –
gritou o comandante das tropas em parada
ao médico, amável, 
ao enfermeiro, calado que nem um rato,
ao maqueiro, rapaz cortês:
– Sempre é mais cómodo e barato
do que embrulhá-lo em papel selado!

5. Prometeram-te depois um mundo melhor,

porém chato, chatíssimo,
com escudo de proteção 
e seguro contra todos os riscos;
não te disseram onde,
nem quando,
nem a que preço.
Descobriste que era tarde
e longe do planeta

e caríssimo.

 6. Ter a consciência limpa,

ó meu... sacana ?!
Para ti, é ter a memória com as baterias em baixo.

–   Por favor avisa-me, camarada,
quando elas estiverem a cinco por cento.
Quero fazer 'reset' das minhas memórias da Guiné.


Procuras, além disso, uma mão ?
– Direita, 
com cinco dedos,
disposta a ajudar
o meu pobre braço.
Esquerdo.
Decepado.
Dou alvíssaras,

estou disposto a pagar
com o American Express Card.
Golden, claro!


7. Morrer é 

quando tu chegas um beco sem saída
e não tens um kit de salvação.

Morrer em Nhabijões,
em Madina do Boé,
em Gandembel,
em Mampatá,
na Ponta do Inglês,
em Gadamael
ou em Missirá
... ou no Pilão, numa cena canalha,
tanto faz.
A morte não tem SPM.
E quem morre,  morre de vez,
quer mortalha,
e sobretudo quer que o deixem em paz!

8. A vida com a morte se (a)paga.
Há sempre moscas à espera
do teu cadáver,

mesmo seco e magro.
E jagudis.
E formigas bagabaga.

E um dia aziago.
E um primeiro sorja da CCS que te põe os pontos nos ii.
E um capelão que te fecha os olhos, 
com extrema unção e compaixão.
E um coveiro que te prega as tábuas do caixão.
– Não me perturbem o sono eterno! –,
podia ser o teu epitáfio,
ó tuga dum carago!

9. A prática, dizem-te, leva à perfeição,
exceto no jogo da roleta russa

que jogavas nas picadas da Guiné,
a G3 contra a Kalash,
a pica contra o fornilho,
o coiro, encardido,  contra o Erre-Pê-Gê.
Por isso tu vivias cada dia,
como se aquele fosse
o único que te restasse

no calendário de parede,
no teu abrigo,
grafado com gajas nuas.
E muitos traços, em conjuntos de sete, 
marcando a eternidade de uma semana, 
ou de um mês:

Cada dia era o primeiro, 
o único, 
o original, 
o irrepetivel,
no jogo da vida e da morte!
E todos as manhãs fazias o teste do dedo grande do pé esquerdo,
o do joanete,
o dos calos,
o das bolhas,
o da unha encravada,
o das pisadelas,
o mais azarento, 
o rebenta-minas!

10. Não sei se o pintor de Guernica 

(ou Gernika, que o topónimo é basco),
gostaria de ter conhecido
Adão e Eva
no Paraíso.

Ou a Terra Prometida quando era rica,
e nela corria então o leite e o mel,
mais o ouro, o incenso e a mirra.
Deve ter achado que 
esteticamente o Inferno
dava muito mais... pica.





PS - Aqui vai, para a comissão de ética,

 a tua declaração de conflito de interesses:
– Não conheço nenhum museu da paz,
apenas este,  o da guerra.

Nada sei de estética.
Não sou columbófilo.
E muito menos fã do Picasso. 


Já agora escreve, 
no teu testamento vital,
a tua última vontade, 
o teu desejo final:
Quando eu morrer, camaradas, 
que a terra da minha Pátria, 
ao menos, me seja leve!

_____________


Nota do editor:


Último poste da série > 2 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10466: Blogpoesia (305): O helicóptero (Jorge Cabral, Missirá, 1970)

Guiné 63/74 - P10474: Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte I): De Oliveira de Azemeis a Bula e Empada


1. Mensagem, de hoje, do nosso camarada da diáspora Manuel Serôdio, que vive em Rennes, capital da Bretanha, França, e com quem há dias falei ao telefone, dando-lhe as boas vindas à nossa Tabanca Grande... Ele ainda está a familiarizar-se com as ferramentas da Internet:


Por vezes é mais simples escrever, que dizer de viva voz, o que nos vai no íntimo, assim aproveito a oportunidade que me é dada, para escrever neste blog, um pouco da minha existência e dar a conhecer aquilo que todos nós, ex-combatentes, temos bem presente ainda no nosso espírito - o tempo passado no serviço militar, e principalmente o serviço efectuado em terras de África.

Cada um de nós sentiu na pele os efeitos de uma guerra que não pediu, os efeitos por vezes desastrosos na saúde, e o abandono a que fomos colocados. 


Guiné > Região do Cacheu > Bula > 1967 > População local

 Tomar > Regimento de Infantaria 15 > 967. Em pé, a contar da esquerda: Furrieis Silva, Freitas, Dayves; alferes Beirante, Alberto, Costa, Vairinhos. Em baixo, a contar da esquerda: Furrieis Marques, Monteiro,. Aires, Brito, Henriques, Serôdio.

Fotos: © Manuel Serôdio (2012). Todos os direitos reservados.


1. Manuel de Almeida Andrade Serôdio, ex-Furriel Miliciano na então província da Guiné, CCAÇ 1787, nosso recente membro da Tabanca Grande (*)::

(i) nasci a 21/10/1944 em Oliveira de Azeméis, mais precisamente no lugar de Moinho do Meio;

(ii) após uma infância e adolescência despreocupadas, entrei na vida adulta, e rapidamente, a 7 de Julho de 1964, e com o n° 53, fui declarado apto para o serviço militar, ou por  outros termos, pronto para pegar em armas;

(iii) 16 de Maio de 1966: pela primeira vez entrei na porta de armas de um quartel militar, o  Regimento de Infantaria n° 5, em Caldas da Rainha;

(iv)  Após três meses de recruta fui enviado para Tavira, o CISMI onde cheguei a 21 de Agosto de 1966;

(v) A  28 de Novembro do mesmo ano, no final do curso, fui mais uma vez enviado para outras paragens, desta vez para o Regimento de Infantaria n° 6, no Porto;

(vi) E o tempo corria tranquilo até que...  a mobilização chegou; destino a Guiné, com passagem por Tancos, afim de tirar o curso de minas e armadilhas, findo o qual tinha que me apresentar no Regimento de Infantaria n°15, Tomar, para formar o Batalhão;

(vii)  18 de Junho de 1967:  passei a porta de armas, para fazer conhecimento com todos os camaradas que a partir desta data e até ao final do tempo de serviço, iriam partilhar da minha vida, e eu da deles; dentro de bem pouco tempo, tínhamos uma viagem à nossa espera, o que para alguns seria uma viagem sem regresso.


História da Companhia de Caçadores 1787 / Batalhão 1932


A concentração do pessoal da Companhia iniciou-se em 18 de Junho de 1967, no Regimento de Infantaria n°15, em Tomar. Ali frequentou a instrução da sua especialidade.

Na generalidade o pessoal da Companhia era oriundo do Norte do País.

As principais efemérides ligadas à vida da Companhia foram as seguintes;


(a) 14 de Agosto de 1967 - Início do IAO na região do Agroal, situada entre Tomar e Vila Nova de Ourém;

(b) 11 de Setembro de 1967- Início do gozo da liçença das Normas Reguladoras do Decreto-lei n° 
42937, de 22/04/1960, finda a qual o pessoal se apresentou no CIM em Santa Margarida.

(c)  25 de Setembro de 1967- Continuação do IAO no CIM; 

(d) 26 de Outubro de 1967 - Cerimónia da benção e entrega dos guiões às unidades a embarcar, seguida de missa na igreja do CIM; 

(e) 28 de Outubro de 1967 - Embarque em comboio especial na estação de Santa Margarida pelas 2 horas, com destino a Lisboa, Cais da Rocha; após a chegada ao Cais da Rocha, procedeu-se à cerimónia da despedida e ao desfile, seguindo-se o embarque no Uíge pelas 12 horas.

(f) 2 de Novembro de 1967- Chegada a Bissau e desembarque das nossas tropas;  a CCAÇ 1787 permaneceu na Companhia de Adidos até 15 de Novembro de 1967, data em que marchou para Bula, afim de fazer o treino operacional, e de onde regressou à Companhia de Adidos em 6 de Janeiro de 1968;

(g) 20 de Janeiro de 1968 - Partida para Empada, via Bolama, tendo a Companhia saído desta última localidade em 22, 23, e 24 de Janeiro de 1968.

(Continua)
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Nota do editor:


(*) Vd. poste de 14 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10381: Tabanca Grande (360): Manuel Serôdio, mais um camarada da diáspora, ex-fur mil at inf, CCAÇ 1787/BCAÇ 1932 (Bula, Bissau, Empada, Buba, Quinhamel, 1967/68)

Guiné 63/74 - P10473: Tabanca Grande (363): Veríssimo Ferreira, natural de Ponte de Sôr, ex-fur mil, CCAÇ 1422 (Farim, Mansabá, K3, 1965/67)





Guiné >  Região do Oio >  CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858   (Bissau, Bula, Saliquinhedim/K3, 1965/67) >  O fur mil Veríssimo Ferreira em Mansabá, Setembro de 1965


Fotos:   © Veríssimo Ferreira (2012). Todos os direitos reservados.


1. Em 30 de setembro último, na página da Tabanca Grande no Facebook, o nosso camarada Veríssimo Ferreira manifestou a sua vontade de integrar o nosso blogue e colaborar ativamente na preservação e divulgação das nossas memórias, enquanto combatentes na Guiné:


Caros Senhores Luís Graça, Carlos Vinhal e Eduardo Ribeiro:

Pretendo ser dos 600 "antes do fim do ano" e, assim sendo e porque continuo com dificuldades (burro velho aprende...mas demora) em seguir o caminho normal e recomendado, solicito-vos o seguinte: 
Enviaria para aqui as duas fotos e uma 1ª história e os amigos extrairiam para o blogue.

Pode ser?


Abraços, Veríssimo Ferreira [, foto à esquerda, em Loures, em 1980, vestido "à homem grande"]


2. Os melhores 40 meses da minha vida > Introdução


Após alguns anos a procurar não recordar memórias que incomodavam, resolvi agora fazê-lo e em relação ao tempo prestado na vida militar. Sim. Porque eu fiz o serviço militar, e com honra, cumpri o meu dever.

Certo é que poderia ter desertado e hoje seria considerado "um senhor",  com chorudas reformas e sem nada ter descontado ou trabalhado. 

Certo é que poderia ter "fugido com medinho" para França e ter tocado xilofone, nas ruas e hoje seria um herói, aqui nesta terra que amo e que se chama e chamará Portugal. 

Certo é que poderia ter tido uns pais ricos (mas não...os meus pais sempre foram pobres...mas muito...muito honestos e trabalhadores), pais ricos esses que me mandariam para Londres e hoje eu seria ainda o verdadeiro artista, aplaudido mesmo que não tocasse ou cantasse. 

Só que não!!

O que sou é mal visto quer pelos políticos de ontem, quer pelos d'agora, pois que combati...mas não fugi e estou-me verdadeiramente nas tintas para tais gentes, se é que são gente.  

De nada me arrependo e comigo estão centenas de milhares de veteranos que, tal como eu, cumprimos e sofremos uns mais outros menos, mas que hoje somos uma irmandade e rimos...e lastimamos cada vez mais o desprezo e a sobranceria, com que, repito, "tais gentes, se é que são gente" nos pretendem marginalizar.

Estes maus filhos da Pátria (saberão o que é a Pátria ? acho que sabem apenas o que são Euros), por muitas honrarias que tenham após o 25 do 4, nunca conhecerão o que foi ter disparar para não morrer. Mas desejo que a terra lhes seja leve, antes porém deviam fazer um acto de contrição, embora "perdão",  para estes, seja palavra que não quero saber o que significa. (...)


(Continua)

3. Comentário do L.G.:


Meu caro Veríssimo Ferreira:  

Senhores,  todos somos, e grandes senhores!... Na Tabanca Grande tratamo-nos por tu, como camaradas que fomos e continuamos a ser. É pressuposto conheceres e aceitares as nossas 10 regras de convívio: consulta aqui o Nosso Livro de Estilo

Dás-nos a honra da tua presença, engrossando as fileiras do nosso blogue, com os seus quase  600 magníficos,  camaradas e amigos da Guiné. Serás o grã-tabanqueiro nº 581 e o teu nome passará a figurar no nosso quadro de honra, que vai de A a Z (vd. coluna do lado esquerdo da página de rosto do blogue). Depois de ti, faltarão apenas 19 para chegarmos às 6 centenas. 

Já recuperei as tuas fotos, na tua página no Facebook. Preciso apenas um endereço de email para a gente se comunicar internamente. Contactas connosco através do nosso email oficial:
luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com. 

Sei que já fizeste muitas coisas na vida, e que agora gozas a tua merecida reforma. Que és pai e avô. Que nasceste e viveste em Ponte de Sôr até à tropa. Que trabalhaste na tesouraria da fazenda pública local. Que tiveste um conjunto musical. Que foste para a Guiné como furriel miliciano, integrado na CCAÇ 1422. Que andaste pela região do Oio (Farim, Mansabá, K3), nos idos anos de 1965/67. Que, depois da peluda, foste bancário, mas também árbitro de futebol... E, por fim, que vives em Loures. 

Registe-se a propósito da CCAÇ 1422, de que tu és o primeiro representante no blogue:

(i) foi mobilizada pelo RI 15;

(ii) partiu para o TO da Guiné em 18/8/65 e regressou a 15/4/67; 

(iii) andou por Bissau, Bula, Saliquinhedim ou K3);  

(iv) comandantes:  cap mil  inf Diniz Alberto de Almeida Corte-Real;  alf mil  inf António Fernando da Cruz Macedo; cap inf Daniel Andrade de Carvalho.

O BCAÇ 1858, por sua vez,  esteve em Bissau, Teixeira Pinto e Catió. e conheceu 3 comandantes (ten cor inf Manuel Ferreira Nobre da Silva, ten cor cav Francisco José Falcão e Silva Ramos; ten cor inf António Veiga Fialho). Além da CCAÇ 1422, pertenciam a este batalhão a CCAÇ 1423 (Bolama, Empada, Cachil)  e a 1424 (Bolama, Cachil, Guileje, Sangonhá, Bissau)

 Em meu nome, dos demais editores, colaboradores e membros da Tabanca Grande, és bem vindo e recebido de braços abertos. Vamos seguir a série a que tu próprio chamaste Os melhores 40 meses da minha vida... Senta-te à sombra do fraterno e mágico poilão da nossa Tabanca Grande e conta-nos a(s) história(s) desse tempo, que nós seremos todos ouvidos...
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Nota do editor

Último poste da série > 27 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10443: Tabanca Grande (362): Vasco Pires, ex-Alf Mil, CMDT do 23.º Pel Art.ª (Gadamael, 1970/72)

Guiné 63/74 - P10472: Agenda cultural (219): Lançamento do livro de Julião Soares Sousa, "Guiné-Bissau: A Destruição De Um País", dia 5 de Outubro de 2012, pelas 18h45 na FNAC do Colombo, Lisboa


LANÇAMENTO DO LIVRO, DE JULIÃO SOARES SOUSA, "GUINÉ-BISSAU: A DESTRUIÇÃO DE UM PAÍS", DIA 5 DE OUTUBRO DE 2012, PELAS 18H45, NA FNAC DO COLOMBO, LISBOA




Julião Soares Sousa* é guineense (Guiné-Bissau). Licenciou-se em História pela Universidade de Coimbra em 1991, concluiu o Mestrado em 1996 e o doutoramento na mesma Universidade em 2008.

É o primeiro guineense a concluir o Mestrado e o doutoramento na Universidade de Coimbra. Atualmente é Investigador no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra.

Entre algumas das suas publicações destacam-se: Amílcar Cabral (1924-1973). Vida e morte de um revolucionário africano (Prémio Fundação Calouste Gulbenkian, História Moderna e Contemporânea, da Academia Portuguesa da História (2011); “Os movimentos unitários anticolonialistas (1954-1960). O contributo de Amílcar Cabral”, in Estudos do Século XX, 3, Coimbra, 2003; Um Novo Amanhecer, Coimbra, Minerva, 1996; “Amílcar Cabral: do envolvimento na luta antifascista à manifestações de tendência autonomista no Portugal do pós-Guerra (1945-1957)”, In Cabral no cruzamento de épocas. Comunicações e discursos produzidos no II Simpósio Internacional Amílcar Cabral realizado na Cidade da Praia, 9 –12 de Setembro de 2004, Praia, Alfa Comunicações, 2005; “O fenómeno tribal, o tribalismo e a construção da identidade nacional no discurso de Amílcar Cabral”, In Comunidades Imaginadas. Nação de nacionalismo em África, Coord. Luís Reis Torgal, Fernando Pimenta e Julião Soares Sousa. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008; "MPLA: da Fundação ao Reconhecimento por parte da OUA", Latitudes, Cahiers Lusophones, nº 28, 2006; “Amílcar Cabral: um contemporâneo de Francisco José Tenreiro no Portugal dos anos 40/50”, in Francisco José Tenreiro: As múltiplas faces de um intelectual, Coord: Inocência Mata, Lisboa, Edições Colibri, 2010; As associações protonacionalistas guineenses durante a I República: o caso da Liga Guineenses e do Centro Escolar Republicano (no prelo, Afrontamento); A cisão sino-soviética e suas implicações nos movimentos de libertação em África (no prelo, Universidade da Beira Interior).
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Notas de CV:

(*) Vd. Poste de 25 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8322: Agenda cultural (125): Odivelas, Biblioteca Municipal, 25 de Maio, 18h30: Apresentação do livro Amílcar Cabral (1924-1973): Vida e morte de um revolucionário africano, da autoria do guineense Julião Soares Sousa

Vd. último poste da série de 2 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10470: Agenda cultural (218): Conferência Militar intitulada Portugal Militar em África|1961-1974, 5 de Outubro de 2012 em Góis

Guiné 63/74 - P10471: Parabéns a você (476): Carlos Prata, Coronel Reformado (Guiné, 1973/74) e Hélder Sousa, ex-Fur Mil (Guiné, 1970/72)


Para aceder aos postes dos nossos camaradas Carlos Prata e Hélder Sousa, clicar nos seus nomes
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10453: Parabéns a você (475): António Bastos, ex-1.º Cabo do Pel Caç 953 (Guiné, 1964/66) e Manuel Moreira Vieira, ex-1.º Cabo da CART 1746 (Guiné, 1967/69)

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10470: Agenda cultural (218): Conferência Militar intitulada Portugal Militar em África|1961-1974, 5 de Outubro de 2012 em Góis



1. Recebemos de Liliana Pinto - Município de Góis -, a mensagem que a seguir publicamos. 

Conferência Militar intitulada Portugal Militar em África|1961-1974


Exmºs senhores:

Para conhecimento e divulgação, junto enviamos a V. Exª. Cartaz alusivo à Conferência Militar intitulada Portugal Militar em África|1961-1974, a decorrer na Biblioteca Municipal António Francisco Barata, no próximo dia 05 de outubro, pelas 14 horas, iniciativa promovida pelo Município de Góis em parceria com o NICCM - Núcleo Impulsionador das Conferências da Cooperativa Militar e com os Combatentes do Ultramar do Concelho de Góis. 



Com os melhores cumprimentos,
Liliana Maria Rosa Pinto
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

 26 DE SETEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10439: Agenda cultural (217): RTP1, 28 de setembro, 6ª feira, 22h45 > Programa Portugueses pelo Mundo ... Episódio 8/25: Bissau... Uma oportunidade para redescobrir a cidade e rever amigos como a Isabel Levy Ribeiro, nossa grã-tabanqueira, formadora da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, mulher grande da Tabanca de São Martinho do Porto...


Guiné 63/74 – P10469: Memórias de Gabú (José Saúde) (25): Deus, virtualmente presente. A fé na guerra


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

Deus, virtualmente presente

A fé na guerra

A inabalável fé que cada um de nós, cidadãos comuns do mundo, suporta ao longo da vida, afigura-se como uma junção espiritual que nos transporta a um mundo virtual onde as barreiras do imaculado não ousam ferir princípios que catapultam o ser humano para uma bênção divina. O conceito de fé não deve de forma alguma ser susceptível de hediondas concepções que tornam o homem uma criatura mártir de preconceitos falsamente concebidos. 

A guerra, melhor, viver no terreno as agruras que o conflito teimava em não dar tréguas a um soldado sem medo, tinha também uma outra vertente que conduzia o combatente a venerar algo oculto que permitisse sentir um melhor estar emocional. Afinal, ninguém foge às escarpas que a vida nos contempla, conclui-se. 

Assim, partindo do princípio que a fé, embora na concepção dos laicos a convicção seja irreal, remeto-me ao sentimento nobre de um persuadido que olvidou por completo o parecer do mundo pagão e assumiu convictamente penetrar num universo onde a fé sempre pernoitou. 

Penso que cada um de nós perfilha uma ideologia religiosa, ou não, que nos transporta para infindáveis presenças espirituais que em momentos extremos nos conduz a evocar a palavra de Deus. O ateu, que se afirma completamente adverso ao catolicismo, ou a uma outra religião, tem, a espaços, particulares momentos na vida que inadvertidamente o leva a momentos de reflexão, sendo comum vociferar o nome de Deus. Esta a minha conceção. Respeito, todavia, outras opiniões. 

A minha experiência no conflito da guerrilha na Guiné, teve como singularidade testar o meu mundo espiritual. Sabia que em casa dos meus pais, Aldeia Nova de São Bento, uma urbe situada num Alentejo sempre desperto, e astuto, a minha saudosa mãe convivia no dia-a-dia com uma promessa feita a partir do momento em que embarquei para a Guiné que a acomodava em manter as suas “santinhas” velinhas ininterruptamente acesas, deixando a sua jura antever que a fé superava um sofrimento superior com o qual o seu querido filho se deparava numa guerra que, por sinal, não dava folgas. 

Hoje, com a distância do tempo a prevalecer, confesso que essa candeia incandescente que a fé justamente ditou, elevou a minha auto-estima, assumindo em momentos considerados chaves, de apuro, atitudes que me catapultaram, e sempre, para virtuais sinais de esperança. 

Aliás, esta iniciativa da minha querida mãe expandia-se certamente por uma imensa diversidade de lares situados algures no mais discreto lar deste cantinho à beira-mar plantado. A família, no seu todo, convivia com a barbaridade que a guerra no Ultramar impunha ao mais modesto cidadão luso. A fé incutia na família um estado de espírito que gerava díspares situações que conduziam as mães, em particular, a orar a Deus e depararem-se com pagamentos de promessas. 

Naquela tarde o silêncio protelava-se com o avançar dos ponteiros do relógio. O calor apertava, era normal. Não havia ordens de saída, tão-pouco conhecimento de eventuais investidas ao mato. Prevalecia a serenidade. O pessoal dispersava-se no interior do arame farpado e passava o tempo a emborcar cervejas para contemplar os seus bebíveis desejos. Outros divertiam-se a jogar às cartas e havia também quem aproveitasse a ocasião para colocar a escrita em dia, enviando notícias para a metrópole, boas como era da praxe. Nada de insinuar potenciais desgraças entretanto conhecidas. 

A polícia do Estado – antiga PIDE – era uma organização que se mantinha sempre atenta. Uma pequena frase a denunciar o flagelo era fatídica. Nada de riscos. O cuidado atempado recomendava-se. Pintava-se a prosa em tons líricos. O sítio onde nos depositaram era esplêndido e tiros, ou desgraças, passavam completamente alheios ao nosso bem-estar. Mortos? Estropiados? Nem pensar, estávamos no paraíso. A mãe, o pai, os familiares e os amigos rejubilavam entretanto com as boas notícias recebidas do combatente. 

As leituras de livros em tempos de pausa favoreciam os nossos laboriosos espíritos. Com uma pequena foto da então namorada sobre a minha mesa-de-cabeceira, estiraçado numa cama onde os ferros apresentavam resquícios de uma ferrugem atroz que se sobrepunha a uma ténue cor de café com leite e uma ventoinha que me deleitava o corpo, lia atentamente um livro intitulado “UM DEUS NA PALMA DA MÃO”. Um Deus, algures num universo imaginado, que copiosamente teimava proteger a minha aureola humana e adornava os meus intuitos de uma luta constante pela sobrevivência. 

A luta, não titânica, travava-se, agora, entre as quatro paredes do meu afrodisíaco quarto. Esquecia-me, por momentos, do horrível som emitido pelas armas, dos rebentamentos das minas nas picadas, dos famigerados ataques noturnos aos quartéis, da imprevisibilidade do trilho no mato, ou dos momentos extremos e de ansiedade pura que a guerra sensatamente impunha. 

Ao lado, um camarada entretinha-se numa leitura sobre os heróis da banda desenhada. O ator principal era, no final, o vencedor. A personagem, obviamente mítica, ultrapassava barreiras inimagináveis. Vencia obstáculos. Nada temia. Era virtualmente o autêntico vencedor do chamado conto de fadas. Nós, recatados ao conflito, mergulhávamos num universo onde a prudência ditava ordens. 

Neste eloquente vaguear pelo mundo do ilusório, nós, jovens forçados a integrar esquadrões enviados para os campos de batalha, concluíamos: a guerra é um cosmos devastado por múltiplos interesses e assumidos por gentes que jamais conheceram os contornos de uma peleja onde a dignidade acaba por resvalar para conflitos incontornáveis!  

Revia-me, na altura, como uma pequena peça que integrava a plenitude de um xadrez onde um simples peão se limitava a evocar, apenas, a palavra de Deus. Avocava, fielmente, uma fé inacabada. Lembrava-me das orações da minha saudosa mãe; as suas idas constantes à Igreja; às missas domingueiras; as suas devoções, da sua entrega ao Pai Todo Poderoso. 

Crenças que se estendiam aos ilustres soldados enviados para o então Ultramar a fim de combaterem um inimigo com rosto e de ideais seguros. Homens joviais que deixavam no seu torrão sagrado um vínculo real para o seu chamamento a terras de além-mar. “Carne para canhão”, falava-se nas velhinhas ruas de uma recôndita urbe portuguesa ou em redor de um balcão de uma velha taberna. “Deus o proteja”, asseverava uma venturosa senhora que conhecia a preceito o rapaz, agora feito militar, numa das lojas da aldeia. 

Restava a inequívoca verdade que a fé na guerra do ex-ultramar prevaleceu entre os homens que combateram no terreno com o IN. Por outro lado ficará a inquestionável dúvida: será que a Pátria agradeceu toda a nossa entrega? Será que os nossos companheiros que fazem parte do rol dos falecidos, desaparecidos, estropiados bem como todos aqueles que ainda hoje se deparam com exequíveis sequelas de uma guerra que teimam em persegui-nos, são reconhecidos? O que resta de uma guerra atroz que implicou no rumo das nossas vidas? Responda quem de direito. Nós, piamente esperamos, como sempre! Que Deus os oiça e ilumine as suas mentes.


Mini-guião e emblema de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P10468: Carta aberta a... (8): Meu amigo português de Cufar, António Graça de Abreu (Cherno Baldé)

1. Mensagem de 1 de outubro, do Cherno Baldé, em resposta á cara aberta do AGA, no poste P10448 (*)

 
Caro amigo Luís Graça,

O título desta carta, ficava melhor assim: Carta aberta ao meu amigo Guineense (Cherno) Cufar... (Baldé), porque não creio que ela seja endereçada a mim, pois o mais provével é ter o AGA [, António Graça de Abreu], o grande vencedor, ter feito esta carta para se exorcizar ou melhor reconciliar-se com os seus fantasmas de Cufar que, pelos vistos,  continuam a incomodá-lo.

Primeiro, porque eu não sou propriamente um militante anti-colonialista visto que, feliz ou infelizmente, tanto eu como os meus familiares próximos e longínquos, não aderimos a luta anticolonial, bem ao contrário. 

Em segundo lugar,  não sou dos que vêm a história e o mundo a preto e branco pois, ainda criança, desafiei tudo e todos ao quebrar, por iniciativa própria, todas as barreiras sociais e culturais levantadas pela nossa gente para de seguida atravessar os arames farpados levantados à volta dos soldados portugueses e partilhar com eles momentos de alegria, tristeza, medo e angústias ,próprios de uma guerra sem rosto que não poupava a ninguém. 

Parece-me que entre o lúcido e comedido AGA que escreveu o Diário da Guiné e o ultranacionalista e super-herói "vencedor" AGA que agora se nos apresenta neste Blogue, há uma grande diferença. 

De resto, não estou interessado em alimentar controvérsias a volta de manifestações de um patriotismo tardio, ainda que tenha, também, por ele todo o respeito deste mundo.

No post da tua autoria (*), o sentido das minhas palavras ficou incompleto sem a inclusão da última parte do meu comentário, pois embora tenha reconhecido que nem sempre concordei com a linguagem utilizada pelo historiador [, René Pélissier,] , no fim acrescento que factos são factos e que não adiantava tentar tapar o sol com as mãos, o que significa que posso concordar com o conteúdo e não estar, necessariamente, com a forma. 

Mas, é como dizem: uma vez jornalista, é-se jornalista para sempre. 


Um grande abraço,
Cherno Baldé
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Guiné 63/74 - P10467: Do Ninho D'Águia até África (14): O herói "Curvas" (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (14)

O herói Curvas

O cenário da área onde se encontram uns tantos militares que seguiam em normal patrulha e que neste momento esperam pela ajuda de um helicóptero, para fazer pelo menos duas evacuações, é este: capim e arbustos rasteiros, algumas árvores, também rasteiras, algumas até têm picos, um homem natural da província, que era guia e tradutor, está morto depois de uns minutos de agonia, no chão, um pouco encolhido, com duas balas alojadas na zona do peito que quase lhe perfuraram o corpo de um lado ao outro; um militar, com sangue em ambas as pernas, chora e lastima-se da sua pouca sorte, e um pouco retirado, encostado a uma dessas árvores sem picos, está o Curvas, alto e refilão, que chama filho da puta a toda a gente, pois vê o seu amigo Trinta e Seis, que tem uns arranhões dos picos das árvores que o feriram nos braços, porque é baixo, e tem a mania de andar sempre de camuflado com mangas arregaçadas.

A história foi contada pelos intervenientes, que ao chegaram ao dormitório, beberam água e se atiraram para cima das camas, alguns rompendo mesmo o mosquiteiro, pois vinham exaustos mas com um ar de pessoas importantes, e tinham alguma razão. Na noite anterior, o furriel miliciano entra no dormitório e avisa uns quantos:
- Amanhã, ao romper do dia, vamos sair em patrulha, preparem as G3 e carregadores, vejam se têm suficientes munições, se não tiverem, alguém que vá buscar uma caixa e carreguem os carregadores, pois as granadas, logo ao sair serão distribuídas, vai ser coisa simples, de rotina.

O grupo estava formado à hora e subiram para os Unimogues que os deixaram a sudoeste, numa zona de mato e capim, quase seca, de onde deviam começar o patrulhamento em direcção ao aquartelamento, onde estava previsto regressarem antes de anoitecer. Alguns já tinham feito este tipo de patrulhamentos e às vezes adiantavam-se, chegando a meio da tarde, ao aquartelamento, o que levava muitas vezes o Setubal dizer ao Cifra:
- Porra, quando sou eu, deixam-nos em casa do caral...! Mas estes deixaram-nos à porta do aquartelamento!

Enfim, voltando à história, andaram por mais de uma hora, nada de suspeito, não tiveram qualquer contacto com pessoas, o que leva o Curvas, alto e refilão, a falar na linguagem que todos lhe conhecem, dizendo:
- Aqui há merda. Não se vêm pessoas. Será que já entramos noutro País?

E o Trinta e Seis, baixo e forte na estatura, que ia como de costume a seu lado, logo lhe diz:
- Tão alto e tão burro. Nós estamos perto do aquartelamento, que fica a dezenas de quilómetros da fronteira.

Mas o Curvas, alto e refilão, que não acatava ordens, não se convencia, e voltava a dizer:
- Não, isto não é normal. Não fales merdas, tem que haver aqui pessoas.

Ainda não tinha acabado de pronunciar estas últimas palavras e já se ouviam tiros de metralhadora, vindos de umas árvores, um pouco ao longe.

- Abaixem-se, é uma emboscada. Grita o furriel miliciano que comandava este grupo.

Seguiu-se um tiroteio, não muito longo, pois passado uns minutos deixou de se ouvir tiros e o resultado foi a morte de um guia tradutor, que seguia na frente do grupo, e ferimentos com balas nas pernas de um militar, acima dos joelhos, que chorava com fortes dores, mesmo depois de estancado o sangue com ligaduras.

O helicóptero veio, evacuou o ferido e o morto e a título de curiosidade, pois a ordem era regressar ao aquartelamento imediatamente, mas o Curvas, alto e refilão que não acatava ordens, disse, tentando desapertar o cinto:
- Porra, esperem só uns minutos. Estou à rasca! Vou ali fazer um serviço que ninguém pode fazer por mim e volto já.

E foi revistar a zona de onde tinham vindo os tiros, deparando com uma pequena aldeia, apenas com duas casas, muito baixas, que se confundiam com o capim e demais vegetação, com um arsenal de armas e munições, assim como alguns documentos importantes.

Um achado valioso em termos militares, muito mal guardado, pois segundo se soube, deviam ser poucos os guerrilheiros, que ao darem pela presença dos militares, deviam ter disparado tiros, mas julgaram que se tratava de um grande grupo de militares logo se puseram em fuga, como era seu costume. E o Curvas, alto e refilão, continuava, dizendo:
- Eu sabia! Eu sabia! Vejam o que estes filhos da puta, aqui tinham escondido. Vou matá-los a todos, todos!

Entraram de novo em contacto com o comando, que enviou alguns reforços, assim como viaturas e veio o helicóptero de novo, que recolheu todo aquele arsenal, por diversas vezes, para uma zona próxima, onde podiam circular as viaturas, que por sua vez, transportaram todo o arsenal para o aquartelamento, todos olhavam o Curvas, como um herói e poucos recriminavam a sua linguagem, alguns, até o imitavam.

Este pequeno arsenal estava a poucos quilómetros do novo aquartelamento, sinal que os guerrilheiros avançavam e andavam por perto.

E o Setubal, dizia ao Cifra:
- Isto está a aquecer, qualquer dia escalda.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10454: Do Ninho D'Águia até África (13): O Bóia (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10466: Blogpoesia (305): O helicóptero (Jorge Cabral, Missirá, 1970)





Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) >CCAÇ 12 (1969/72) > Uma helievacuação em Madina Colhido (muito provavelmente), no subsector do Xime... Pelos vestígios de queimadas, nota-se que estávamos na época seca, logo a foto será dos primeiros meses de 1970... O riquíssimo Álbum Fotográfico do meu querido amigo e camarada Arlindo Teixeira Roda (naturald e Pousos, Leiria, a viver em Setúbal há décadas) não tem, legendas...

Fotos: © Arlindo Teixeira (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados



O Helicóptero

Pelo ar lento que aquece,
Um pássaro de ferro e aço
Leva o morto que apodrece,
Na boca mais um abraço.

A gente fica a pensar
Mas mais um morto que interessa,
Já vêm mais pelo mar,
Vêm muitos e depressa.

A gente pensa,
Mas fica com o dedo no gatilho,
Na garganta um nó que pica,
Na preta o ventre com o filho.


Jorge Cabral, Missirá, 1970

Jorge Cabral 
(ex-alf mil art, Pel Caç Nat 63, Fá e Missirá, 1969/71).

In jornal “Apoiar”, 23 (Jan/Mar 2002), 
órgão da Apoiar - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes, Vítimas de Stress de Guerra

(Selecção de Jorge Santos, membro da nossa Tabanca Grande, 
e autor da página sobre A Guerra Colonial
republicado na I Série do nosso blogue, 

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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10458: Blogpoesia (304): Cangalheiros deste povo (Ricardo Almeida, o poeta da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)