sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10771: Notas de leitura (437): "Amílcar Cabral, Essai de biographie politique", por Mário de Andrade (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
Mário de Andrade organizou esta biografia política de Cabral quase como um manual de consulta para leitores que fossem eventualmente quadros do PAIGC mas também curiosos que quisessem conhecer a formação cultural, a aprendizagem política, a organização do pensamento político e do tipo de intervenção pragmática que Cabral teve na história do PAIGC.
Utiliza a correspondência dos dois, e o produto final leva à conclusão que não se pode estudar a obra de Cabral e o seu relacionamento com o PAIGC sem ler este Mário de Andrade.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral, uma biografia intimista de um grande intelectual africano

Beja Santos

Em 1980, as edições François Maspero davam à estampa o livro “Amílcar Cabral, Essai de biographie politique”, por Mário de Andrade. É do conhecimento de todos que os dois líderes trabalharam conjuntamente, Andrade e Cabral nutriam uma estima e uma admiração reciprocas. Cabral confidenciava-lhe memórias, pedia-lhe conselho, mostrava-lhe em primeira mão documentos de tese. Por todas estas razões, Andrade dispunha de meios singulares para escrever esta biografia que se distingue de todas as outras, as que a precederam e as que a antecederam. E ele não esconderá, ao longo deste trabalho, que se rende perante as excecionais qualidades de Cabral como organizador, teórico, diplomata e revolucionário. Não exagera quando diz que o nome de Cabral estava associado a duas outras grandes figuras dos anos 60, Patrice Lumumba e Kwame Nkrumah, o mártir do Congo e o visionário da unidade continental.

Cabral propõe-se reconstituir o itinerário político intelectual do líder do PAIGC, passando pelos escritos da juventude até às intervenções mais significativas no período mais fulgurante e de maior apogeu das suas faculdades.

Pouco há a comentar ao que escreve sobre as raízes do líder. Julião Soares Sousa na sua indispensável bibliografia sobre Cabral já procurou dilucidar alguns mitos em que incorre Andrade e não só: o papel que tiveram na sua formação Juvenal Cabral e Iva Pinhel Évora, seus pais; a sua cultura assumida de caboverdianidade nos tempos de liceu, a sua clara preparação em moldes praticamente europeus, que se veio a acentuar em Lisboa, quando ele ingressa no Instituto Superior de Agronomia e frequenta a Casa dos Estudantes do Império. A primeira mulher de Cabral depõe sobre o recém-chegado do Mindelo, transcreve-se uma poesia que lhe foi recusada na Seara Nova e que acabou por ser publicada num boletim praticamente desconhecido, O Metalúrgico. Andrade cita a correspondência trocada com Cabral onde sobressai o seu desejo de regressar a África. Reflete profundamente sobre a condição cabo-verdiana, sabe que os mestiços são em número mais elevado que os brancos e num número três vezes maior do que os negros e escreve mesmo: “Um grupo de homens – seres humanos – comporá uma raça ou um grupo étnico na medida em que eles afrontam problemas comuns e lutam por aspirações comuns”. Estamos em 1949, ele começa a usar repetidamente na sua correspondência a palavra libertação. Volta a Cabo Verde e procura intervir em palestras radiofónicas, escreve sobre a erosão dos solos, continua a escrever poesia e no seu livro de curso vem o seu poema “O adeus à Tapada” e na página que lhe é reservada ele dedica uma tocante homenagem à sua grande referência, a Mãe Iva.

A sua formação em Lisboa, observa Andrade, decorre da leitura de obras marxistas ou de conotação social; milita no MUD juvenil e fala constantemente na identidade africana e na “reafricanização” dos espíritos. Estamos no tempo em que se fala nos meios intelectuais do new negro norte-americano, na negritude de Léopold Senghor e nos contactos estabelecidos com a revista Presença Africana. Andrade considera que Cabral tinha um relacionamento privilegiado em Lisboa com Marcelino dos Santos e Viriato da Cruz. Todos esses estudantes africanos faziam a sua formação ideológica e política inequivocamente junto da esquerda marxista-leninista.

Dá-se o regresso à Guiné, Cabral faz o recenseamento agrícola e estabelece contactos clandestinos. Está lançada a semente para mais tarde criar o PAI, a primeira designação do PAIGC. Todo o percurso subsequente analisado por Andrade é hoje matéria consensual: a frente conjunta anticolonial, a conferência das organizações nacionalistas das colónias portuguesas, a ida pra Conacri, a ascensão dos nacionalismos e o reconhecimento de muitos países independentes.

Debruçando-se sobre o pensamento político de Cabral, Andrade sublinha a sua abundantíssima produção constituída por notas, estudos e relatórios e, ao longo dos anos, textos de conferências, entrevistas, artigos e o rico material das suas notas relacionadas com o seminário de quadros do PAIGC, em 1969.
Primeiro, o escopo teórico da luta contra o colonialismo português, na sua ampla abrangência das diferentes lutas anticoloniais mas com a identificação das características específicas da Guiné, em termos socioeconómicos e culturais.
Segundo, a aliança entre a teoria e a prática, a implementação de uma estratégia que irá apanhar completamente de surpresa as autoridades portuguesas: os guerrilheiros não vêm das fronteiras, instalam-se no interior do território, conquistam a adesão de população, demarcam áreas de influência.
Terceiro, a construção do modelo de guerra popular acompanhado de um projeto revolucionário do poder, mediante um esquema que compreendeu a mobilização, a propaganda armada, uma organização social, uma supervisão do esforço militar pelos dirigentes políticos. Cabral não tem ilusões da extensão da guerra e de igual modo escreve sobre as taras e os desvios que surgem no seu do partido e que ele designa claramente: a regulundade, o espírito do chefe guerrilheiro que procura organizar clientelas; a catchorindade ou o servilismo e a mandjoandade, o espírito de clã, o resquício do tribalismo. E dirige-se continuamente aos seus quadros, alertando-os para o grande perigo de se ficar enquistado pelas tradições ou pelo desejo de um qualquer domínio étnico, verdadeiro fator desagregador do espírito da unidade.
Quarto, a capacidade e a dinâmica que imprime aos trabalhos do congresso de Cassacá e as consequências na organização política e das forças armadas. Com o avançar da luta, desenhou e fez com que se praticasse os princípios de um poder popular através de comités de base e da submissão do chefe guerrilheiro ao comissário político. Entretanto o pensamento de Cabral era dominado por uma ideia central: a luta teria que se traduzir por uma melhoria real das condições de vida e repetiu para quem o quis ouvir: “Não serve de nada libertar uma região ou um país se o seu povo não puder dispor de artigos de primeira necessidade para a vida corrente". Isto saldou-se durante a luta pela criação de armazéns do povo e pela tentativa de distribuir equitativamente os produtos provenientes da ajuda internacional, bem como pela criação de equipamentos para a saúde e educação.
Quinto, a sua teoria política, se bem que revelasse uma enorme flexibilidade quanto à relação com todos os povos, era inequivocamente socialista, anti-imperialista e equidistante dos blocos erguidos pela Guerra Fria. Sabia que o proletariado agrícola/camponês não dispunha de condições para ser a força mobilizadora, mas alertou a pequena burguesia dirigente que devia estar permanentemente atenta às expectativas do povo em armas. E por isso mesmo foi atribuindo um papel de primordial importância à cultura como a força galvanizadora do movimento de libertação, o homem novo iria liquidando progressivamente os restos da mentalidade tribal e feudal, os tabus e até as crenças animistas.

No termo da sua biografia política, Andrade considera que o pensamento de Cabral era suficientemente forte para manter a sarça-ardente do processo revolucionário.

Este texto foi concluído em Março de 1980, em Bissau. Sabe-se o que aconteceu depois do 14 de Novembro.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10754: Notas de leitura (436): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10770: O Nosso livro de estilo (7): Cerca de 400 abreviaturas, siglas, acrónimos, expressões idiomáticas, gíria, calão, crioulo... Para rever, aumentar, melhorar...







Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Duas fotos do álbum do fur mil, amanuense,  José Carlos Lopes, que mora em Linda A Velha e que foi meu camarada durante quase um ano, em Bambadica  (entre julho de 1969 e maio de 1970)... 

Na foto de cima, o Lopes, em 8 de junho de 1970, no Xime, na LDG que o levaria  a Bissau, no final da comissão,  ostenta um pano com os dizeres "Guarda de honra à velhice...Piriquitos desejamos-vos sorte"... Os "piras" era o novo batalhão, o BART 2917 (1970/72) que os foi render, ao pesssoal do BCAÇ 2852.

Na segundo foto, vê-se uma chapa, pintada, pregada a uma árvore, com os dizeres: "Termas del Xime" com setas apontando Café, hotel, piscina, ténis, bowling, berlinde,  e com "stands" de vendas: cachorros, farturas, mancarra, gelados, pregos, sumos... Um macaco-cão, à direita, em primeiro plano, tem por detrás uma seta que  diz "Reclamações"... O bom humor de caserna foi imprescindível para se sobreviver a quase dois anos de comissão nas duras condições da Guiné... A capacidade de reinventar o português também fazia parte dessa estratégia de adaptação e  sobrevivência,,,

Fotos editadas por L.G., com a devida autorização do José Carlos Lopes (a quem já foi formulado o convite para ingressar na Tabanca Grande).

Fotos: © José Carlos Lopes (2012). Todos os direitos reservados.

1. Ao fim de quase nove anos a blogar, já juntamos aqui cerca de quatro centenas de abreviaturas, siglas, acrónimos, etc., que utilizávamos nas nossas comunicações militares (relatórios, transmissões...), mas também no nosso dia a dia, na caserna, no mato, na tabanca, na guerra e na paz...

Pedimos aos nossos editores, colaboradores permanentes, autores e leitores para reverem, melhorararem e aumentarem este fabuloso património linguístico, que é de todos. Podem fazê-lo, através das caixas de comentários, ou através do nosso endereço de email. Novos contributos serão  bem vindos, apreciados, acarinhados, editados e divulgados. A lista que se segue já tem uns anos, não tem sido atualizada e sobretudo está longe de esgotar o linguajar (escrito e falado) do "tuga" da Guiné, dos seus aliados e do(s) seu(s) adversário(s) (no passado, dizia-se IN)... 

Amigos e camaradas: É para uma boa ação... Sei que faltam ainda muitas expressões castiças que usávamos na Guiné, umas do nosso calão de caserna, outras do nosso delicioso crioulo... Bem como abreviaturas, siglas, acrónimos, os mais diversos... Cada arma e especialidade tinha o seu léxico... Aceitam-se sugestões, comentários, reclamações, críticas... Já vamos em 400 termos, mas há mais... Bom fim de semana. Xicorações (que no Natal gastam-se mais do que os Alfa Bravo)... Luis Graça.


BLOGUE LUÍS GRAÇA & CAMARADAS DA  GUINÉ > MAIS DE 400 ABREVIATURAS, SIGLAS, ACRÓNIMOS, EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS, 
GÍRIA, CALÃO, CRIOULO... (de A a Z)

1º Cabo Aux Enf - Maqueiro, auxiliar de enfermagem
2TEN FZE RN - 2º Tenente Fuziilerio Especial da Reserva Naval
5ª Rep - Café Bento, de Bissau



A/C - Mina anticarro
A/D - Autodefesa (tabanca em)
A/P - Mina antipessoal
AB - Alfa Bravo, abraço (alfabeto fonético internacional, usado pelos nossos Op Trms)
Abo - Você, tu (crioulo)
ACAP - Assuntos Civis e Acção Psicológica (REP / ACAP)
ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas
Aero - Aerograma, carta, bate-estrada, corta-capim
Afilhado - Militar que tinha uma Madrinha de Guerra
Agr - Agrupamento
AKA - Kalash, Espingarda Automática Kalashnikov (AK) Cal. 7,62 mm
AL II - Alouette II, heli
AL III - Helicóptero Alouette III, de origem francesa (FAP)
Alf - Alferes
Alf Mil - Alferes Miliciano
Alf Mil Med - Alferes miliciano médico
Alfa Bravo - Abraço
Alfero - Alferes (crioulo)
Amura - Velha fortaleza militar colonial, em Bissau; sede do Com-Chefe; hoje Panteão Nacional da Guiné-Bissau
AN/GRC-9 - Rádio, equipamento de transmissões (NT)
AN/PCR-10 - Rádio transmissor-receptor (NT)
Animistas - Povos (balantas, manjacos e outros) que praticam o culto dos irãs
AOE - Associação de Operações Especiais
Ap - Apontador
Ap Arm Pes Inf - Apontador de Armas Pesadas de Infantaria (morteiro, canhão s/r, metralhadora 12.7...)
Ap Dil - Apontador de Dilagrama
Ap LGFog - Apontador de Lança-granadas-foguete
Ap Met - Apontador de Metralhadora
Apanhado - Diz-se do combatente afectado pela guerra e pelo clima; cacimbado (em Angola)
Arre-macho - Tropa de infantaria, tropa-macaca (termo depreciativo, usado pelas tropas especiais)
Arv - Arvorado (Soldado)
Asp Of Mil - Aspirante a Oficial Miliciano
At Art - Atirador de Artilharia
At Cav - Atirador de Cavalaria
At Inf - Atirador de Infantaria
ATAP - Missão resultante de um pedido de fogo imediato, com a saída da parelha de alerta (FAP)
ATIP - Missão de apoio de fogo, pré-planeada (FAP)


BA12 - Base Aérea nº 12 (Bissau, Bissalanca)
Bacalhau - Aperto de mão
Badora - Regulado da região de Bafatá; morteiro 120 mm (IN)
Baga baga - Termiteira
Baguera - Abelha (crioulo); Baguera, baguera!!!, era a expressão de aflição dos africanos quando atacados por abelhas, no mato
Bajuda - Rapariga, donzela, moça virgem (crioulo; lê-se badjuda)
Balafon - Instrumento da música afromandinga, antecedor do xilofone
Balaio - Cesto grande (crioulo)
Balanta Mané - Balanta islamizado
Banana - Rádio, equipamento de transmissões, AVP-1
Bandim - Mercado de Bissau
Bandoleira - Correia permitindo o transporte de uma espingarda ao ombro ou a posição de tiro a tiracolo
Bandoleira - Correia permitindo o transporte de uma espingarda ao ombro ou a posição de tiro a tiracolo
Barraca - Acampamento temporário no mato (PAIGC)
BART - Batalhão de Artilharia
Bate-estrada - Aerograma, corta-capim
Bazuca - LGFog (NT); cerveja de 0,6 l
Bazuca China - Lança Granadas-Foguete RPG-2 (IN)
BCAÇ - Batalhão de Caçadores
BCP - Batalhão de Caçadores Pára-quedistas
BENG - Batalhão de Engenharia
Bentém . Banco, baixo, onde os homens grandes se sentam, a conversar, em geral, sob um poilão
Biafra - Clube de Oficiais, em Santa Luzia, Bissau; Bar dos pilotos, na BA12, Bissalanca
Bianda - Comida; arroz, base da alimentação da população na época (crioulo)
Bicha de pirilau - Progressão, em fila, no mato, mantendo cada homem uma distância regulamentar
Bideiras - As vendedeiras ambulantes, que andam nas ruas Bissau
Bigrupo - Força IN equivalente a 50/60 homens
BINT - Batalhão de Intendência
Blufo - Rapaz balanta não circuncidado; rapaz inexperiente
Boinas Negras - Fuzileiros
Boinas Verdes - Pára-quedistas
Boinas Vermelhas - Comandos (depois de 1974); na Guiné, usavam a boina castanha do exército
Bolanha - Terreno alagadiço, próprio para a cultura do arroz
Bombolom - Intrumento musical, feito a partir do tronco de uma árvore; instrumento tradicional de comunicação entre aldeias balantas e manjacas
Bonifácio - Obus 11,4 cm, TR m/917, da I Guerra Mundial (Termo da gíria dos artilheiros)
BOP - Bombardeameno a picar (FAP)
BOR - Embarcação civil, que navegava no Geba, com umas estranhas pás na popa
Brandão - Família da região de Tombali (Catió)
Bunda - Cú, traseiro (crioulo)
Burmedjus - Mulatos, mestiços, crioulos, caboverdianos
Burrinho - Viatura automóvel Unimog 411, a gasolina (mais pequena que o 404, a gasóleo) (NT)
Bué - Muito, manga de (Não vem de Boé; termo do quimbundo de Angola; não se usava no nosso tempo)
Básico - Soldado dos serviços auxiliares (afecto sobretudo à cozinha)


Ca bai - Não vai (crioulo)
Cabaceira - Árvore e fruto do embondeiro (não confundir com Poilão)
Cabaço - Hímen, virgindade (crioulo)
Cabeça Grande - Bebedeira (crioulo)
Cabo Aux Enf - 1º Cabo Auxiliar de Enfermeiro
Cabo Enf - 1º Cabo Enfermeiro
Caco / Caco Baldé - Alcunha do Gen Spínola (mas também 'Homem Grande de Bissau')
Cal - Calibre
Camarigo - Camarada e Amigo (por contracção)
Cambar - Atravessar um rio (crioulo)
Candongas Transporte colectivo privado, usado no interior da GB
Canhota - A espingarda automática G3 (NT)
Canhão s/r - Canhão Sem Recuo
CAOP - Comando de Agrupamento Operacional
Cap - Capitão
Cap Mil - Capitão Miliciano
Cap QP - Capitão do Quadro Permanente
Capim - Nome comum de planta gramínea, típica da savana arbustiva; graveto, dinheiro
Capitão-proveta - Cap Mil, oriundo do CPC
Carecada - Castigo disciplinar, imposto pelo superior hierárquico, e que consistia no corte de cabelo à máquina zero
CART - Companhia de Artilharia
Casa Gouveia - Principal empresa colonial, fundada por António da Silva Gouveia em finais do Séc. XIX: em 1927 é adquirida pela CUF
Catota - Orgão sexual feminino; partir catota = ter relações sexuais (crioulo, calão)
Cavalos duros - Feridas no pénis e órgãos genitais e até na boca e no ânus, sintomas de doença venérea
Cavalos moles - Sintomas de sífilis, doença venérea (fendas no pénis)
CCAV - Companhia de Cavalaria
CCAÇ - Companhia de Caçadores
CCAÇ I - Companhia de Caçadores Indígenas
CCM - Curso de Capitães Milicianos
CCmds - Companhia de Comandos
CCP - Companhia de Caçadores Pára-quedistas
CCS - Companhia de Comando e Serviços
CEME - Chefe do Estado Maior do Exército
Cento e vinte - Morteiro pesado (IN)
Cesca - Pistola de 7,65 mm, de origem checoslovaca (IN)
CFA - Franco da Communauté Francofone Africaine, moeda actual da GB (1 Euro = 655,597 CFAA -
CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval
Checa - Pira, periquito (em Moçambique)
Choro - Conjunto de rituais celebrados por ocasião do falecimento de uma pessoa, parente ou vizinho (sobretudo entre os animistas)
Chão - Território étnico (vg, chão fula)
Cibe - Palmeira; utilizam-se rachas de cibe como barrotes na construção; é resistente à formiga baga-baga
Cilinha - Nome de guerra de Cecília Supico Pinto, a fundador e líder do MNF
Cipaio - Elemento nativo da polícia administrativa; sipaio, sipai, termo de origem indiana
Circuncisão - Vd. Fanado, MGF
CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria
CM - Cabo de Manobra (Marinha)
Cmdt - Comandante
COE - Curso de Operações Especiais
COM - Curso de Oficiais Milicianos
Com-Chefe - Comando-Chefe
Conversa giro - Fazer amor, ter relações sexuais (crioulo)
COP7 - Comando Operacional 7
Cor - Coronel
Corpinho - Sutiã, soutien
Corta-capim - Aerograma, carta, bate-estrada
Costureirinha - Pistola metralhadora PPSH (IN)
CPC - Curso de Promoção a Capitão do Quadro Complementar
CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
CSM - Curso de Sargentos Milicianos
CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné
CUF - Companhia União Fabril
CUF - Companhia União Fabril (representada pela Casa Gouveia)
Cupilom - Pilão, bairro popular atravessado pela estrada para o aeroporto; Cupelon, Cupilão
Cá - Não; negação em crioulo (Cá tem, não tem)
Cães Grandes - Oficiais superiores


DO 27 - Dornier 27 (Avioneta) (NT)
Dari - Chimpanzé (da mata do Cantanhez)
Degtyarev - Metralhadora ligeira 7,62 mm, de origem soviética (IN)
Degtyarev-Shpagim - Metralhadora pesada 12,7 mm, de origem soviética (IN)
Desenfianço - Escapadela (... até Bissau)
Dest - Destacamento
Dest A - Destacamento A
DFA - Deficiente das Forças Armadas
DFE - Destacamento de Fuzileiros Especiais
Diorama - Maqueta (v.g., aquartelamento de Guileje)
Djila - Vd. Gila
Djubi - Olha! (crioulo)
Djídio - Cantor ambulante que ia de tabanca em tabanca, transmitindo as notícias


Embondeiro - Cabaceira, baobá (Senegal)
Embrulhanço - Contacto pelo fogo com o IN, ataque, emboscada
Embrulhar - Ser atacado (pelo IN)
Enf - Enfermeiro

Enf Para - Enfermeira paraquedista
EP - Exército Popular (PAIGC)
EREC - Esquadrão de Reconhecimento de Cavalaria
Esp - Espingarda
Esp Aut - Espingarda Automática
Esp MMA - Especialista Mecânico de Manutenção Aeronáutica (FAP)
Esq - Esquadrão
Esq Mort - Esquadrão de Morteiro
Esquentamento - Blenorragia, doença venérea (corrimento de pus pela uretra)
Estilhaços de frango - Pouca comida


Fala mantenha - Partir mantenha, cumprimentar, saudar (crioulo)
Fanado - Festa da circuncisão, ritual de passagem da puberdade para a vida adulta
Fanateca - Mulher que pratica a MGF
FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo, a elite combatente do PAIGC
FBP - Fábrica Braço de Prata (Nome dado a uma pistola metralhadora portuguesa, usada no início da guerra)
Ferrugem - Serviço de Material; termo depreciativo, para o pessoal não-operacional, ligado ao SM
Festa, festival - Ataque aparatoso, ou flagelação, do PAIGC a aquartelamento ou destacamento das NT
Fiju - Filho (crioulo)
Firma - Estar, ficar, morar (crioulo)
Firminga - Formiga (crioulo)
Fogo de artifício - Flageações ou ataques, a aquartelamentos ou destacamentos vizinhos, vistos de longe
Fornilho - Armadilha com cordão de tropeçar
Fur - Furriel
Fur Enf - Furriel Enfermeiro
Fur Mil - Furriel Miliciano
Fuzos - Fuzileiros especiais

FZE - Fuzileiro Especial (Marinha)


G3 - Espingarda Automática G-3 (NT)
Gaita à bandoleira (Andar de) - Ter uma doença sexualmente transmissível, em geral blenorragia (ou 'esquentamento')
GB - Guiné-Bissau
Gen - General
Genti di mato - Turras, pop sob controlo do IN
Gila - (Lê-se djila) - Comerciante, vendedor ambulante, contrabandista (que circula pela Guiné e países vizinhos)
GMC - Viatura automóvel pesada, de rodado duplo atrás, de fabrico americano (NT)
GMD - Granada de Mão Defensiva
GMO - Granada de Mão Ofensiva
Gorro Novo - Metralhadora Pesada Goryounov, Cal 7,62 mm M-943 SG (IN)
Goss, goss - Depressa (vg, retirar no goss-goss) (crioulo)
Gouveia - Casa comercial ligada ao grupo CUF
Gr Comb (+) - Grupo de Combate reforçado
Gr Comb (-) - Grupo de Combate desfalcado
Gr Comb - Grupo de Combate; pelotão
Gr M Of - Granada de mão ofensiva
Grã-tabanqueiro - Membro da Tabanca Grande (blogue)


Heli - Helicóptero
Helicanhão - Helicóptero armado com canhão de 20 mm (vd. Lobo Mau)
HK 21 - Metralhadora Ligeira (NT)
HM 214 - Hospital Militar de Bissau
HMP - Hospital Militar Principal (Estrela, Lisboa)
Homem Grande - Chefe de Família


IAO - Instrução de Aperfeiçoamento Operacional
IN - Inimigo; guerrilheiros e população sob o seu controlo
INT - Intendência
Ir no mato - Fugir (ou ser levado) para uma zona controlada pelo PAIGC
Irã - Ser sobrenatural que, para os animistas (balantas, manjacos, etc.) habita as florestas (e em especial os poilões)


Jacto do Povo - Foguetão 122 mm; Graad (IN)
Jagudi - Abutre (crioulo)
Jambe (llê-se djambé) - Instrumento de percussão africano, em forma de cálice inverttido


Kacur - Cachorro (crioulo)
Kalash - Espingarda Automática AK 47 (IN)
Kasumai - Saudação em dialecto felupe
Kora - Instrumento musical mandinga, de cordas, tipo cítara, inventado pelos antepassados do mestre Braima Galissá (músico do Gabu, a viver em Portugal)


Lassas - Abelhas selvagens; alcunha por que era conhecido, pelo PAIGC, o pessoal da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66)
LDG - Lancha de Desembarque Grande
LDM - Lancha de Desembarque Média
LDP - Lancha de Desembarque Pequena
Lerpa - Jogo de cartas, geralmente a dinheiro
Lerpar - Perder (à lerpa), apanhar um castigo, morrer
LFG - Lancha de Fiscalização Grande
LGFog - Lança-granadas-foguete, bazuca (NT)
Lifanti - Elefante (crioulo)
Lion Brand - Marca de repelente de mosquitos

Lobo Mau - Helicanhão (FAP)
Lubu - Hiena (crioulo)


MA - Minas e Armadilhas
Macacada - Tropa, forças do Exército, tropa-macaca
Macaco-cão - Babuíno (Macaco Kom, em crioulo)
Macaréu - Vaga impetuosa que, no Rio Geba, precede o começo da praia-mar. É mais sentida no Geba Estreito
Madrinha - Madrinha de guerra, jovem do sexo feminino, maior de 16 anos, que se correspondia com um militar no Ultramar
Mafé - Acompanhamento da bianda, conduto (muitas vezes, peixe, peixe seco, kasseké) (crioulo)
Maj - Major
Maj Gen - Major General, Gen de 2 estrelas
Mama firme - Peito direito (bajuda) (crioulo)
Mancarra - Amendoim (crioulo)
Manga de ronco - Sucesso militar
Manga de sakalata - Muita confusão, muitos sarilhos (crioulo)
Manga di chocolate - Barulho, grande ataque, com muito fogachal, embrulhanço; corruptela de Manga di sakalata
Mantenhas - Saudades (crioulo); partir mantenhas = saudar
Marabu - Sacerdote muçulmano, de vida ascética, considerado sábio e venerado como santo, tanto em vida como depois da morte
Marmita - Mina A/C (Moçambique, Cancioneiro do Niassa)
Matador - Veículo automóvel pesado usado como reboque do obus (e transporte de tropas)
Mato (1) - Muito, grande quantidade, manga de (expressão comum, ´É mato')
Mato (2) - Zona de guerra, zona de controlo do PAIGC
Maçarico - Pira, periquito (Guiné); checa (Moçambique); termo mais usado em Angola
Mec Aut - Mecânico de viaturas automóveis
Med - Médico (vg, Alf Mil Med)
Meta - Bar e salão de jogos, em Bissau, no tempo colonial
Metro e oito - Alcunha do Ten Cor Manuel Agostinho Ferreira (BCAÇ 2879, 1969/71)
MG 42 - Espingarda-metralhadora, de origem alemã (usada por páras e fuzos)
MGF - Mutilação Genital Feminina; excisão do clitóris e grandes lábios; fanado
Mil - Miliciano; milícias
Mindjer - Mulher (crioulo)
Minino - Menino, rapaz (crioulo)
Misti - Querer, queres (bo misti) (crioulo)
ML - Met Lig / Metralhadora Ligeira
MNF - Movimento Nacional Feminino (fundado em 1961 por Cecília Supico Pinto, a Cilinha)
Morança - Casa, núcleo habitacional de uma família, alargada, com o respectivo chefe (de morança) e em geral com uma cercadura
Mort - Morteiro
Mort 81 - Morteiro 81 mm (NT)
Mort 82 - Morteiro 82 mm (IN)
Morteirete - Morteiro ligeiro, de calibre 60 (mm), podendo ser usado sem prato
MP - Met Pes / Metralhadora Pesada
MSG - Mensagem
Mudar o óleo - Ir às... putas
Mulas - Sintomas de sífilis, doença venérea (inchaços nas virilhas)
Mun - Municiador
Mun Mort - Municiador de morteiro


N/M - Navio da Marinha
Nharro - Africano; preto
NM - Número mecanográfico (do militar)
NNAPU - Normas de Nomeação e de Apoio às Províncias Ultramarinas
NRP - Navio da República Portuguesa
NT - Nossas Tropas


OB - Oscar Bravo, obrigado
Obus 14 - Obus, de calibre 14 cm (NT)
Oitenta - Morteiro (IN ou NT)
ONG - Organização não-governamental
Onze quatro - Peça de artilharia, de calibre 11,4 cm (NT)
Op - Operação (vg., Op Lança Afiada); operador)
Op Cripto - Operador Cripto
Op Esp - Operações especiais ou ranger


P2V5 - Avião de luta anti-sumarina, também usado no Guiné, no início da guerra, para ataque ao solo
Pachanga - Pistola-Metralhadora SHPAGIN Cal 7,62 mm M-941 (PPSH) (IN); costureirinha
PAI - Partido Africano para a Independência, fundado em 1956
PAIGC - Partido Africano Para a Indepência da Guiné e Cabo Verde
Panga bariga - Caganeira (crioulo)
Parafusos - Familiares, amigos ou vizinhos de pára-quedistas ou de fuzileiros, convivendo com ambos
Parte peso - Dá-me dinheiro
Partir catota - Dar o pito (expressão nortenha); ter relações sexuais (a mulher com o homem)
Partir punho - Ser masturbado por outrem, à mão (crioulo)
Pastilhas - Enfermeiro (em geral, Fur Enf)
Patacão - Dinheiro, pesos
Pau de Pila - Lança Granadas-Foguete Pancerovka P-27 (IN)
PC - Posto de Comando
PCV - Posto de Comando Volante
Pel Caç Nat - Pelotão de Caçadores Nativos
Pel Mil - Pelotão de Milícias
Pel Mort - Pelotão de Morteiros
Pel Rec Daimler - Pelotãod e Reconhecimento Daimler (Cavalaria)
Pel Rec Daimler - Pelo~
Pel Rec Fox - Pelotão de Reconhecimento Fox (Cavalaria)
Pel Rec Info - Pelotão de Reconhecimento e Informação
Pelicano - Café de Bissau, do tempo colonial
Pelicano - Esplanada em Bissau, na marginal
Peluda - Vida civil (depois da tropa)
Periquito - Militar novato; pira, piriquito (sic)
Peso - Unidade da moeda local; escudo guineense (no tempo colonial)
PG - Prisioneiro(s) de Guerra
Picador - Soldado ou milícia que faz a picagem
Picagem - Detecção de minas num trilho ou picada
PIDE/DGS - Polícia política portuguesa
PIFAS - Programa de Informação das Forças Armadas
Pil - Piloto (miliciano)
Pilav - Piloto aviador, saído da Academia Militar (Os milicianos são apenas Pil)
Pilão - Bairro popular de Bissau, muito frequentado pelas NT nas horas de lazer
Pira - Periquito, militar recém-chegado à Guiné; maçarico (Angola); checa (Moçambique)
Piurso - Pior que um urso, zangado
Piçada - Repreensão de um superior
Poilão - Designação comum a algumas árvores da família das bombacáceas. Ceiba Pentandra
Ponta - Herdade, exploração agrícola
Pop - População
Porrada - Contacto com o IN; punição disciplinar
PPSH - Metralhadora ligeira, 7,72 mm (a famigerada costureirinha) (IN)
Psico - Acção psicológica e social das NT junto da população (também Psique)
Páras - Pára-quedistas


QG - Quartel General
QP - Quadro Permanente (Pessoal)
Quebra-costelas - Abraço, AB, Alfa Bravo
Quico - Boné especial da tropa


Rabecada - Vd. piçada
Racal - Equipamento portátil, de origem americana, podendo ser usado em viaturas e aviões, transmitindo em fonia entre as frequências de 38 a 54,9 Mc/s.
RAL - Regimento de Artilharia Ligeira
RCacheu - Rio Cacheu
RCorubal - Rio Corubal
RCumbijã - Rio Cumbijã
RDM - Regulamento de Disciplina Militar
Ref - Militar na Reforma
Reforço - Aumento das medidas de segurança dos nossos aquartelamentos
Reordenamento - Aldeia estratégica, construída pelas NT, reagrupando uma ou mais tabancas
Rep - Repartição (do Quartel-General)
REP / ACAP - Repartição do QC / Assuntos Civis e Acção Psicológica
Res - Militar na Reserva
RGeba - Rio Geba
RI - Regimento de Infantaria
RN - Reserva Naval
Rockets - Granadas lançadas pelo RGP 2 ou RPG 7 (IN)
RPG - Lança-granadas-foguete (IN)
RVIS - Voo de reconhecimento aéreo
Rôz kuntango - (ou simplesmente Kuntango) Arroz cozinhado (bianda) sem máfé


SA-7 - Míssil Sam-7, Strela, de origem russa (IN)
Sabe sabe - Gostoso (crioulo)
Sakalata - Confusão, conflito, chatice (crioulo)
Salgadeira - Urna funerária, caixão
SAM - Serviço de Administração Militar
Sancu - Macaco (crioulo)
Sec - Secção; equipa (Um Gr Comb ou pelotão era composto por 3 Sec)
Setor L1 - Setor 1 da Zona Leste
Sexa - Sua Excelência, mas também Sexagenário
SGE - Serviço Geral do Exército; oficiais oriundos da classe de sargentos
Siga a Marinha - Embora, vamos a isto!
Sintex - Pequena embarcação, de fibra, com mortor fora de bordo, de 50 cavalos, usado para cambar um rio; parecia uma banheira (NT)
SM - Serviço de Material (vd. Ferrugem)
SNEB - Rocket antipessoal, de calibre 37 mm, que equipava o T-6 e que também era usado pelos pára-quedistas como LGFog
Sold - Soldado
Sold Arv - Soldado Arvorado
Solmar - Cervejaria de Bissau, do tempo colonial
SPM - Serviço Postal Militar
Srgt - Sargento
STM - Serviço de Transmissões Militares
Strela - Flecha, em russo (стрела); míssil russo terra-ar SAM 7 Strela
Suma - Como, igual (crioulo)
Supintrep - Relatório de informação suplementar
Supositório - Granada de obus (calão)


T/T - Navio de Transporte de Tropas
T6 - Avião bombardeiro, monomotor; equipado c/ lança-roquetes e metralhadora (NT)
Tabanca - Aldeia (crioulo); mas também morança, cubata, casa (NT)
Tarrafe - Vegetação aquática, típica das zonas ribeirinhas
Taufik Saad - Casa comercial, de origem libanesa, em Bissau
Tchora - Chorar (crioulo)
Tem manga di sabe sabe - Muito gostoso
Ten - Tenente
Ten Cor - Tenente-Coronel
Ten Gen - Tenente General, Gen de 3 estrelas
Tigre de Missirá - Nome de guerra (Alf Mil Beja Santos, Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)
TN - Território nacional
TO - Teatro de Operações
Toca-toca - Transporte colectivo, privado, nas zonas urbans (carrinha tipo Hyace, de cores azul e amarela)
Tokarev - Pistola de calibre 7,62 mm, de origem soviética (IN)
TPF - Transmissões Por Fios
Trms - Transmissões
Tropa-macaca - Por oposição a tropa especial (páras, comandos, fuzos)
TSF - Transmissões Sem Fios
Tuga - Português, branco, colonialista (termo depreciativo) (crioulo)
Turra - Terrorista, guerrilheiro, combatente do PAIGC (termo depreciativo)


Ultramarina - Casa comercial
Uma larga e dois estreitos - Galões de tenente-coronel
UXO - Unexploded (Explosive) Ordnance (em inglês); Engenhos Explosivos Não Explodidos (em português)


Velhice - Militares em fim de comissão
Vietname - Guiné, para lá de Bissau; mato


ZA - Zona de Acção
Zebro - Barco de borracha com motor fora de borda, usado pelos fuzileiros -
ZI - Zona de Intervenção (do Com-Chefe)

ZLIFA - Zona Livre de Intervenção da Força Aérea

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Nota do editor:

Ultimo poste da série > 20 de setembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10409: O Nosso Livro de Estilo (6): O que fazer com este blogue ? (Parte II ): Depoimentos de A. Pires, C. Pinheiro, D. Guimarães, L. Ferreira, B. Santos, C. Rocha, F. Súcio, B. Sardinha , T. Mendonça e JERO

Guiné 63/74 - P10769: Tabanca Grande (371): João Carvalho Meneses, ex-2º TEN FZE RN, DFE 21, 1972, grã-tabanqueiro nº 591



Notícia do juramento de bandeira do 19º CFORN, na Escola Naval, em 14 de abril de 1972... Foto: Revista da Armada, junho de 1972, p. 24 (Com a devida vénia...)


1. No passado mês de novembro, "assinou" o nosso livro de visitas o camarada João Meneses, na sua qualidade de 2º Ten FZE RA, antigo oficial do Destacamento de Fuzileiros Especiais 21, na Guiné, no ano de 1972, e DFA - Deficiente das Forças Armadas, ferido em combate na provincia do Cubisseco [, a sudoeste de Empada, vd.carta de Catió,] em 27 de Setembro desse ano (*).

Hoje mandou-nos a seguinte mensagem:

Caro Luís:

Já vi publicados os meus últimos mails, que muito agradeço. Junto agora algumas fotografias, duas em que é o meu juramento de Bandeira, outra a Imposição das Boinas, e outra em Homenagem ao Rebordão de Brito, com quem servi na Guiné, na data da sua medalha de Torre e Espada. Foram tiradas da Revista da Armada, exemplares que tenho em meu poder. Junto também uma fotografia "actual", cópia da que tenho no meu cartão DFA.

Com um grande abraço
2ºTen FZE Carvalho Meneses


 O João Meneses, ou Carvalho Meneses, como era conhecido na Guiné,  pediu formalmente o ingresso na nossa Tabanca Grande, tendo para o efeito entregue uma foto atual [ vd. acima, à direita,] e fotos de grupo do seu  tempo de tropa.

De seu nome completo João Frederico Saldanha Carvalho e Meneses, nasceu a 5/1/1948, fez parte do 19.º CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval, tendo sido alistado a 19/9/71, e jurado bandeira e promovido a aspirante em 12/4/1972.



Notícia da imposição das boinas a 130 novos fuzileiros especiais, do 27º Curso de FZE, em cerimónia que decorreu a 16 de março de 1972. Notícia dada pela Revista da Armada, maio de 1972, p,. 24.


19.º CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval


Segundo elementos informativos que recolhemos da página Reserva Naval, do nosso camarada Manuel Lema Santos, o 19º CFORN incorporou 115 cadetes assim distribuídos pelas várias classes: (i) 23 cadetes na classe de Marinha, (ii) 1 cadete da classe de Médicos Navais, (iii) 6 cadetes da classe de Engenheiros Maquinistas Navais, (iv) 32 cadetes da classe de Administração Naval, (v) 28 cadetes na classe de Fuzileiros e (vi) 25 cadetes na classe de Técnicos Especialistas.

Vinte 20 oficiais deste curso serviram no TO da Guiné, incluindo o João Menezes. Aqui vai a lista completa (Fonte: Reserva Naval)

2TEN RN Alfredo Augusto Cunhal Gonçalves Ferreira e 2TEN RN José Manuel Soares Dionísio na LFG “Sagitário”,

2TEN RN Emídio Branco Xavier na LFP “Alvor”,

2TEN RN Virgílio Manuel da Cunha Folhadela Moreira na LFP “Aldebaran”,

2TEN RN José Aparício dos Reis na LFG “Cassiopeia”,

2TEN RN José Alfredo Queiroga de Abreu Alpoim na LFG “Argos”,

2TEN RN Luís Alberto Moreira Pires e Pato na LDG “Alfange”,

2TEN AN RN José Manuel do Nascimento e Oliveira Covas,

2TEN AN RN Miguel Ângelo da Cunha Teixeira e Melo,

2TEN FZ RN António Patrício de Sousa Betâmio de Almeida e 2TEN FZ RN José Manuel Correia Pinto no Comando de Defesa Marítima da Guiné,

2TEN FZ RN Celestino Augusto Froes David na CF 12,

2TEN FZ RN João Pedro Tavares Carreiro e 2TEN FZ RN Manuel Maria Romãozinho Alves Ferreira na CF 2,

2TEN FZE RN João Carlos Cansado da Costa Corvo e 2TEN FZE RN José Manuel de Carvalho Passeira no DFE 22,

2TEN FZE RN João Frederico de Saldanha de Carvalho e Meneses e 2TEN FZE RN Manuel Maria Peralta de Castro Centeno no DFE 21,

2TEN FZE RN José Manuel da Silva Morgado e 2TEN FZE RN Luís Pereira Coutinho Sanches de Baena no DFE 12.


Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 21 (DFE 21)


O nosso novo grã-tabanqueiro Carvalho Meneses serviu no prestigiado DFE 21, mas por pouco tempo, dado ter sido ferido gravemente em combate e evacuado para o Hospital Principal, em setembro de 1972 (*).

Veja-se, entretanto,  o interessante apontamento sobre a história do DFE 21, escrito pelo Manuel Lema Santos. Aqui vão alguns pontos:

(i) Para ingressar nos quadros de Fuzileiros Especiais Africanos do Comando de Defesa Marítima da Guiné foram seleccionados 150 de um total de 900 voluntários (!);

(ii) Foi dada preferência aos assalariados do Comando de Defesa Marítima, dos Serviços de Marinha, guias das Unidades de Fuzileiros, impedidos das câmaras dos navios e das messes de oficiais, pessoal na generalidade familiarizado com a vida na Marinha; também foram admitidos estivadores e pessoal que já cumprira o serviço militar em companhias de milícias ou caçadores nativos;

(iii) Na formação do DFE 22 (inicialmente comandado por 1º TEN FZE Rebordão Brito, foto à esquerda,  cortesia da Revista da Armada) já teve em linha o critério étnico ou o chão, o que não aconteceu com o DFE 21 (, o que terá sido um erro, segundo Manuel Lema Santos);

(iv) O centro de instrução situava-se em Bolama; os oficiais e sargentos bem como alguns cabos e marinheiros eram metropolitanos, de rendição individual;

(v) O recrutamento inicial de elementos guineenses para integrar o DFE 21 ocorre em Setembro de 1969;

(vi) Depois de activado, em 21 de Abril de 1970, participou, até Maio, em diversas operações no sul da Guiné,  tendo sofrido pesadas baixas entre mortos e feridos, entre os quais se incluíram alguns oficiais e sargentos;

(vii) Juntamente com o DFE8, passou a estar sedeado na vila de Cacheu;

 (viii) Em Agosto de 1970, depois de uma curta passagem por Buba, o DFE 21 foi transferido para Brá, para se juntar aos preparativos que antecederam a organização da Op Mar Verde, já em curso na ilha de Soga e na qual viria a participar.

O comando do DFE 21 integrou maioritariamente oficiais da Reserva Naval. Na sua estrutura inicial, teve como Comandante o 1º TEN FZE Raul Eugénio Dias da Cunha e Silva que tinha ingressado nos Quadros Permanentes, na classe de Fuzileiros, depois de ter efetuado uma primeira comissão de serviço na Guiné, como terceiro oficial do DFE 4, de 1965 a 1967. Pertenceu originalmente à Reserva Naval onde integrou o 7.º CEORN.

Em 21 Junho de 1971 o comando do DFE 21, foi sendo parcial e progressivamente rendido, ainda que alguns dos elementos que o constituíam continuassem voluntariamente até 1 de Abril de 1973. Passou a ser Comandante o 1TEN FZE José Manuel de Matos Moniz, também ele originário da Reserva Naval (8º  CEORN) e, no final do curso foi integrado no DFE 1 (Moçambique, 1967/69), depois do que concorreu aos Quadros Permanentes na classe de Fuzileiros.

Composição do DFE 21:

Comandantes:

1TEN FZE Raul Eugénio Dias da Cunha e Silva, 7.º CEORN, ingressou nos QP's

1TEN FZE José Manuel de Matos Moniz, 8.º CEORN, ingressou nos QP's

Oficiais Imediatos:

1TEN José Maria da Silva Horta, QP's

2TEN Luis António Proença Maia, QP's

2TEN FZE RN António José Rodrigues da Hora, 11.º CFORN, ingressou nos QP’s

2TEN FZE RN Manuel Maria Peralta de Castro Centeno, 19.º CFORN, ingressou nos QP’s

Oficiais:

2TEN FZE José Carlos Freire Falcão Lucas, 13.º CFORN

2TEN FZE RN Eduardo Madureira da Veiga Rica, 14.º CFORN [, ferido em serviço em evacuado]

2TEN FZE Manuel José Fernandes Guerra, 15.º CFORN

2TEN FZE RN Jaime Manuel Gamboa de Melo Cabral, 16.º CFORN

2TEN FZE RN Francisco Luis Saraiva de Vasconcelos, 16.º CFORN

2TEN FZE RN João Frederico Saldanha Carvalho e Meneses, 19.º CFORN [, ferido em combate e evacuado; João Meneses passa a ser hoje membro da nossa Tabanca Grande]

2TEN FZE RN Cândido Alexandre Lucas, 20.º CFORN

2TEN FZE RN José Joaquim Caldeira Marques Monteiro de Macedo, 21.º CFORN [Zeca Macedo: nasceu na Praia, Santiago, Cabo Verde, em 1951; vive nos Estados Unidos, onde é advogado; é membro da nossa Tabanca Grande,foto à direita, quando jovem cadete da Escola Naval].


O João tem um grande orgulho de ter servido o país como fuzileiro, e uma especial preocupação pela sorte dos seus camaradas guineenses do DFE 21. Eis um excerto do seu último mail:

(...) Não deixarei de procurar saber se ainda tenho homens vivos e se ainda poderei fazer qualquer coisa por eles, pois aquela terra está ainda muito longe da calma e estabilidade, com sucessivos golpes. Infelizmente está-lhes na massa do sangue, tanto pela guerras étnicas, como pelo dinheiro fácil - a droga, como também por ganâncias pessoais. Mas isso são problemas que eles têm que resolver e amadurecer (infelizmente à custa de sangue), mas há histórias giras para contar. Vivências, pura e simplesmente.E é sobre isso que gostaria de contar mais.

Quanto ao nome que prefiro, a malta dos Fuzos conhecem-me por Meneses.  Mais acima era o Tenente Meneses, Gostaria no entanto de ter antes do nome próprio o FZE do DFE21, que me honra, dá peneiras, Eh Eh Eh!,  e tenho muito orgulho. Foi assim que servi Portugal quando era activo nas Forças Armadas. Meu Bisavô, meu Avô também morreu em Angola, etc. Família,  sabes. (...)


2. Comentário dos editores:

João, já te desejámos as boas vindas, esperamos que se te sintas confortável entre esta maltosa toda, filha das mais diversas mães (e pais), a grande maioria da qual serviu na Guiné, como tu.  Temos uma representação da Marinha, pequena, discreta mas condigna. (Vocês, embora bons, também não eram assim tantos...).

Agora é preciso que contes as histórias do teu tempo. E que tragas também mais camaradas, nomeadamente fuzileiros (**). O nosso blogue é  um como um animal  carnívoro que precisa de muitos milhares de calorias por dia para se alimentar... Não, não somos predadores: somos apenas um espaço de partilha de memórias e de afetos, e estamos todos aqui, numa boa, sem querer fazer ajustes contas com ninguém, nem sequer com o passado. Achamos, por outro lado, que blogar faz bem à saúde (mental). Também podes aparecer no Facebook, na nossa página Tabanca Grande...


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quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10768: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (4): Eu tinha dois doutores

1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) com data de 3 de Dezembro de 2012:

Meu Caro Luís Graça.
Camaradas Editores.
Em anexo, segue o 4º texto com que dou seguimento à série " furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".

Dado que somente após o Natal voltarei a dar o meu modesto contributo ao acervo histórico do nosso Blog, aproveito para a todos os camaradas envolver no meu desejo de que esta Festa seja o continuar da Glorificação da vossas Famílias.

Abraços do
armando pires


Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (4)

Eu tinha dois doutores

 "... Só com a criação das carreiras médicas, em 1971, é que se começou a melhorar a formação especializada dos nossos médicos e cirurgiões... Para muitos camaradas médicos, o HM 231 (Bissau) e o "tirocínio" no mato foram uma "grande escola"...
Luís Graça, em comentário ao P10622

Eu tinha dois doutores.
Era para ter três, mas perdi um mesmo à saída da escada de portaló.
Era um oftalmologista em quem alguém descobriu, logo ali, insuspeitadas capacidades para ver fundo na raiz dos dentes, razão porque ficou em Bissau para uma especialização de três meses em medicina dentária, findos os quais percorreu todos os quadrantes dessa Guiné, em socorro de algum militar carente dos seus serviços.
O que é preciso é que tudo tenha corrido bem. Portanto, o meu Batalhão ficou com dois médicos.
Os alferes milicianos médicos Chaves Ferreira e José Manuel Oliveira.
Tão parecidos e tão diferentes.

Dermatologista, o Ferreira, licenciado em psiquiatria o Oliveira. Ambos eram altos, muito altos, para a época. Andavam devagar, falavam como se sussurrassem, sorriam como se não houvesse amanhã, faziam amigos como se fosse obra fácil.

O Chaves Ferreira, lisboeta nascido no casco velho, gingava nas palavras que traziam consigo saudades da Madragoa.

Natural de Matosinhos, o Oliveira era todo ele sotaque. Afável no trato, senhor da fina ironia com que me respondeu daquela vez, em Bissorã, quando recebemos a visita do tal oftalmologista que se tornou dentista. Era um tipo moreno, de média estatura, onde ganhava destaque uns óculos com um par de lentes, daquelas que parecem fundos de garrafa.

- Mas ó dr., ele era mesmo oftalmologista?
- Ouve lá pá - respondeu-me – então não lhe estás na cara?

A minha amizade com o dr. Chaves Ferreira nasceu ainda no quartel de cá, quando descobrimos que ambos eramos sócios do C. F. os Belenenses.
A amizade com o dr. Oliveira foi cimentada no dia a dia da Guiné, e permanece tal qual ainda hoje.
Mal chegados à Guiné, o dr. Chaves Ferreira foi direitinho a Bissorã, e mais tarde a Binar, dividindo os seus cuidados, nomeadamente, entre as CCAÇ 2444 e 2464.
O dr. Oliveira ficou junto da CCS, mas a seu cargo tinha a vigilância médica de todas as unidades dentro do sector do BCAÇ 2861.

Quem esteve no Olossato, Biambe, Bissum ou em Encheia, por exemplo, naqueles anos de 69/70, deve lembrar-se da sua passagem por lá. Nestas suas andanças era o Chaves Ferreira que vinha substituí-lo à sede do Batalhão (ver P10629).

Fev. 1969 - Uíge - Algures no mar, entre Lisboa e Bissau, o alf. mil. médico Chaves Ferreira crava um cigarrinho ao fur. mil. Pires, tendo como testemunha o cap. Pratas, comandante da CCAÇ 2466. 

Não cuidem que cometo o atrevimento de aqui me debruçar sobre o perfil profissional destes dois homens. Era o que mais faltava. Evoco-os porque o comentário do Luís Graça me sugeriu que o fizesse, mas evoco-os como homens, sobretudo ao Dr. Oliveira, aquele com quem mais tempo e mais de perto trabalhei. Mais do que o médico que a tudo e a todos acudia, o dr. Oliveira, talvez face à sua especialidade, ganhou rapidamente a confiança dos homens sobretudo pela sua disponibilidade para os ouvir.

Ele era aquele em quem se podia confiar, o único capaz de tratar e compreender a mais grave doença que tolhia o corpo e a devorava a alma daqueles rapazes feitos homens. A saudade.

E também lhes ganhou o respeito quando certa noite, em Bula, enfrentou o capitão Pinto, comandante da CCAÇ 2466, que pretendeu passar por cima de ordem sua.
Três homens daquela companhia encontravam-se num estado de saúde que exigia repouso. O capitão, reclamando dos seus galões, pretendeu obrigá-los a sair para uma operação, porque “quem mandava era” ele. Lá do alto do seu metro e oitenta e picos, diz-lhe o Oliveira:
- E aqui o médico sou eu. Se aqueles homens saírem, o senhor capitão assume todas as responsabilidades e eu terei de participar.

Surpreendido pelo desafio “do alferes”, o capitão Pinto foi queixar-se ao major Candeias, então oficial de operações.

- Bem, se o doutor diz que estão doentes é melhor não brincar com a saúde dos homens. Se não estão em condições ficam aqui.

Naquele quartel, até as conversas mais secretas corriam velozes. A admiração pelo dr. Oliveira e a pouca estima que os homens tinham pelo seu capitão, foram silenciosamente festejadas com uma ovação na caserna.

1969 - Bula - A parada do aquartelamento era o consultório dilecto do alf. mil. médico J. M. Oliveira, na foto ouvindo as confidências do cabo Lamelas, da CCS do BCAÇ 2861. 

Ao longo da comissão, entre o enfermeiro que eu era e o médico que era ele, sempre existiu grande convergência na acção. Nem eu era capaz de me deitar cedo nem ele de se levantar tarde. Nem eu me importava que ele chegasse à enfermaria pontualmente às nove, nem ele se agastava por eu chegar à hora de assinar o expediente.

Certo dia, fui forçado a trocar-lhe as voltas. Cansado das queixas do Filipe, o furriel vagomestre que partilhava o quarto comigo e que naquela noite não me deixara dormir com as suas queixas gastro intestinais, levantei-me para ir à enfermaria buscar uma boa dose de bicarbonato de sódio, com o qual pretendia pôr fim ao sofrimento dele e, já agora, também ao meu. Boquiaberto, o Machado, o meu 1º cabo enfermeiro, ao ver-me entrar consultou o relógio, que marcaria para aí umas oito e meia da manhã, e com aquele sorrisinho sacana que Deus lhe tinha dado, cumprimentou-me:
- Muito bom dia, meu furriel.

Com o bicarbonato nas mãos preparava-me para sair quando avisa o Machado:
- Vem aí o chefe.
- Qual chefe? - perguntei eu.
- O doutor Oliveira.
- O doutor Oliveira agora é chefe? – atirei-lhe com a aspereza capaz de contrabalançar a sacanice do seu bom dia.
- Ó furriel, a esta hora já vem lixar a cabeça à gente? É o chefe, não sabe que a malta aqui na enfermaria trata-o por chefe? Pronto.

O chefe entrou, fez um compasso de espera entre a porta e a secretária, e perguntou-me:
- Estás doente, pá?
- Não doutor – retorqui-lhe – É o furriel Filipe que não se limita a envenenar o pessoal no refeitório e envenenou-se também a ele.

Como se não tivesse bastado a sacanice do Machado, também o doutor me despediu com aquele sorriso que ficava ali a meia distância entre o mercado de Matosinhos e o Bolhão. Nunca lhe disse que a malta o tratava por chefe. E reconheço hoje que fiz bem. Considero-me assim vingado por ele só muito mais tarde me ter contado o que se passou naquela distante noite de 18 de Novembro de 1970.

Estávamos a um passo de terminar a comissão. Já se encontrava em Bissorã o BCAÇ 2927, para nos render. Já noite, depois do jantar, cruzei-me com o doutor que me disse, “eles andam aí”.
Subi à enfermaria e avisei o Machado que não deixasse sair a nossa malta para as tabancas. Desci ao bar de sargentos, onde já todos tinham feito o mesmo que eu, isto é, prevenir os seus homens, e com o Johnnie Walker do costume, dei de beber à espera. Foi um pouco longa, mais longa do que era hábito, mas pelas 22h45 o IN fez saber da sua presença.

O ataque, felizmente, levou muito pouco trabalho à enfermaria. Meia dúzia de feridos, todos da população, sem gravidade por aí além, quase não deu para os “piras” enfermeiros do 2927 saberem o que era trabalho. Já íamos no rescaldo quando me veio à cabeça que o doutor não aparecera. Também, não havia nada de especial para o ocupar. Mas se mais depressa pensasse nele, mais depressa ele aparecia.

Vi-o assomar à porta e perguntar:
 - Está tudo bem?

Deu-me vontade de lhe responder que ele é que não parecia grande coisa. Assim num repente, pareceu-me vê-lo com a roupa algo “desarrumado”. Mas, c’os diabos, acabáramos de sofrer um ataque, era natural que tivesse entrado no abrigo que tinha mais a jeito. E como ali estava tudo bem, ele foi indo e eu nada disse.

Tempos depois, recordava-lhe o que fizera ele para salvar vida a uma mulher e aos gémeos que estavam em posição muito difícil para nascer, quando lhe ouvi:
- É pá! – se há expressão que se transformou em parte identitária do dr. Oliveira, foi esta.
- É pá, a pior não sabes tu.

E por entre desvairadas gargalhadas, eu ouvi-o fazer o relato que, com a sua autorização, aqui reproduzo no melhor que for capaz.

“Naquela noite do nosso último ataque em Bissorã, apareceu-me o Zé, aquele manjaco que era cozinheiro da messe de oficiais, a pedir-me que lhe acudisse a casa que a mulher estava para ter filho. 
- Qual mulher, ó Zé? – o gajo tinha três mulheres, pá. 
- Ó senhor doutor, é a mais nova. 
E eu, já tínhamos informações de que os gajos podiam atacar naquela noite, comecei a pensar – e se eles atacam e sou preciso na enfermaria, como é? -, digo ao manjaco: 
- Mas olha lá, ó Zé, achas que ela vai ter menino agora? 
- Vai sim, senhor doutor, ela já está muito aflita. 
- Ó Zé, e se eles atacam esta noite? 
- Ó senhor doutor, não tem preocupação. Eu tenho tudo preparado. A mulher já está dentro do abrigo, à espera. 

Estás a ver Pires, o gajo já sabia que íamos mesmo ser atacados. Mas como já passava das dez, pensei que se calhar o ataque já não era nessa noite e pronto, lá fui a casa dele. 
Entrei no abrigo, a mulher estava deitada na esteira, e à volta dela as duas outras mulheres do Zé. 
Ajoelhei-me na esteira para começar a ajudá-la, e não é começou mesmo o ataque? Ó pá, aquilo foi o fim do mundo. Ela a gritar, as outras duas mulheres a gritarem, as bombas a caírem e as galinhas, que o Zé também metera dentro do abrigo, doidas, a esvoaçarem por cima da mim, e à volta da mulher a parir, penas por todo o lado… o fim do mundo, pá. Já viste, Pires, e logo comigo, que a última coisa que gostava de fazer era partos.”

Pronto, Chefe, já passou.

1970 - Binar - Depois de uma semana passada em Binar, onde estava sediada a CCAÇ 2464, o alf. mil. médico J. M. Oliveira despede-se do soldado maqueiro Lopes, à esquerda, e do Patricio, soldado que era seu conterrâneo.

O Dr. José Manuel Soares de Oliveira, foi Assistente de Psiquiatria na Faculdade de Medicina do Porto e reformou-se quando era Chefe de Serviço de Psiquiatria do Hospital de S. João.
Na sua juventude jogou voleibol na equipa do Leixões e, mais tarde, foi médico da equipa de futebol sénior leixonense, na época dos famosos “Bebés de Matosinhos”.
No passado dia 28 de Novembro, a ilustre Tabanca de Matosinhos convidou-o para um dos seus almoços.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10629: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (3): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte II)

Guiné 63/74 - P10767: Convívios (485): Almoço/Convívio de Natal da Tabanca dos Melros, dia 15 de Dezembro de 2012 no Restaurante Choupal dos Melros - Quinta dos Choupos - Fânzeres - Gondomar


 Mensagem da Tabanca dos Melros, a propósito do Almoço/Convívio de Natal que vai acontecer no próximo dia 15 de Dezembro de 2012 no local apropriado, o Restaurante Choupal dos Melros, nas Quinta dos Choupos, do nosso camarada Gil Moutinho, ex-Fur Mil Pilav:

Amigos e Camaradas
Junto anexo o cartaz publicitário do almoço de Natal da Tabanca dos Melros.


Já agora, apela-se para a boa compreensão da rapaziada e pede-se para se inscreverem com a devida antecedência para o almoço para sermos bem servidos como é timbre do nosso amigo e camarada Gil.

Os anarquistas têm de compreender que o restaurante onde a Tabanca assenta, não é um restaurante que serve refeições com menu diário e só abre para eventos [como o nosso] aos sábados e domingos. Portanto, não façam comparações com o que não é comparável e sejam compreensivos com esta situação não desestabilizando.

O Gil agradece-vos apela vossa compreensão.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 3 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10753: Convívios (484): Jantar de Natal da Tabanca de Matosinhos, dia 8 de Dezembro de 2012, na Junta de Freguesia de Bonfim - Porto

Guiné 63/74 - P10766: Antologia (77): Os heróis da LDM 302, atacada e afundada no Rio Cacheu em 19/12/1967: banda desenha de Malheiro do Vale e Baptista Mendes (Revista da Armada, nº 8, maio de 1072, pp. 16-17)









Banda desenhada dedicada ao episódio do ataque à LDM 302, no Rio Cacheu, em 19 de dezembro de 1967, de que resultou o seu afundamento e a morte do patrão da lancha, o marinheiro de manobra Domingos Lopes Medeiros. Esta banda desenhada via-a, pela primeira vez, no sítio do nosso camarada Manuel Lema Santos, Reserva Naval (poste de 15 de dezembro de 2008 > Guiné, LDM 302, atacada e afundada).

Este episódio heróico da nossa marinha e dos bravos seis marinheiros que constituíam a guarnição da LDM 302, toca-me muito em especial por entre esses heróis estar um amigo meu, colega de escola, conterrâneo e vizinho, o marinheiro fogueiro Ludgero Henriques de Oliveira, precocemente desaparecido aos 64 anos. Eramos da mesma colheita, a de 1947.

Em sua homenagem e aos restantes camaradas da tripulação da LDM 302, já aqui reproduzimos, com a devida vénia, dois postes do sítio Reserva Naval, um espaço na Net que é de visita obrigatória para os camaradas da Guiné (*). Hoje tomo a liberdade de editar e publicar esta  interessantíssima banda desenhada, com texto do próprio contra-almirante Malheiro do Vale, diretor da Revista da Armada,  e desenho de Baptista Mendes. (Reprodução com a devida vénia).


Capa (parcial) do nº 8, ano I,  da Revista da Armada, maio de 1972,  36 pp. Legenda da imagem da capa: "Marinheiros dos navios  brasileiros da escolta  ao N/M  «Funchal »  que conduziu os restos mortais  de D. Pedro, vestindo uniformes  da época".

Esta "publicação oficial do Ministério da Marinha" tinha como diretor e editor o Comodoro António de Jesus Malheiro do Vale. A orientação gráfica era de... Hernâni Lopes. Cada número, avulso, custava 3$00. A assinatura anual era de 24$00 para o Continente, Ilhas, Ultramar e Brasil (via marítima); 59$00 para as Ilhas (via aérea); e 113$00 para o Ultramar (via aérea).


Sumário (parcial) da edição nº 8 da Revista da Armada,. maio de 1972, donde consta a "banda desenhada" de M. do Vale e B. Mendes, "Heróis dos Rios da Guiné", pp. 16/17.

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Nota do editor:

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10765: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (31): Dr. Abel Gandra

1. Em mensagem do dia 30 de Novembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas memórias do seu tempo de estudante, desta vez lembrando o seu professor Abel Gandra:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (31)

Dr. Abel Gandra

O insigne mestre, Dr. Abel Gandra, era natural de Moçambique, região de Lourenço Marques, hoje Maputo; o pai era europeu e a mãe africana, de etnia Landim.
Era um professor extremamente culto; dava aulas e/ou explicações sobre todas ou quase todas as cadeiras do 7º ano e de todas as alíneas daquela época. Explicava cada matéria com precisão e saber, fazendo-se entender perfeitamente pelos alunos, o que nem sempre acontece. Era um grande psicólogo; a sua maior pecha era não ser tão bom disciplinador como era ensinador: não conseguia dar um “murro em cima da mesa”, sempre que um aluno descarrilava no seu comportamento durante a aula, pondo em causa o bom aproveitamento dos colegas bem comportados e predispostos a cultivar-se.

Perante uma turma de alunos disciplinados com vontade firme de assimilar sempre mais e mais, ele era uma máquina bem lubrificada a ensinar, a elogiar, a encaminhar, a incentivar os alunos para que conseguissem ir sempre mais além e mais acima.

Este nosso ilustre mestre concluiu o ensino liceal em Moçambique; veio de seguida para a chamada Metrópole, a mãe do Império, para frequentar os estudos superiores. Como cadeira opcional, creio que no Instituto dos Estudos Ultramarinos, escolheu o dialeto Landim, sem nunca manifestar que era oriundo dessa etnia. Na prova oral, o examinador cumprimentou-o em andim; ele ”gaguejou“ propositadamente, um pouco como se tentasse escolher cuidadosamente as palavras uma a uma. Aí o professor entrou a pés juntos (ou de “chancas”)! Perante uma nova resposta desenvolta e precisa do examinando, o mestre perguntou-lhe:
- De que raça provém?
- Landim! - Respondeu o jovem Gandra, secamente.
- Acabou o seu exame! Pode seguir. - Concluiu o avaliador.

Provavelmente terá sido neste exame que adquiriu aquele gosto especial de ver um aluno “enrolar” (ou tentar) um professor! Na universidade tornou-se um “profissional do estudo”: concluia um curso e iniciava logo outro.

O pai não gostou! Saturou-se de gastar tanto dinheiro nos estudos sem fim de seu filho e decidiu fechar definitivamente a torneira.

Vendo-se sem dinheiro para “alimentar” seu vício… de estudar, avançou como voluntário para a Guerra Civil de Espanha. Fechadas as portas da guerra, voltou à Pátria e começou a ganhar a vida no ensino, tendo sido colocado no Liceu Camões, em Lisboa.

Um dia, num exame oral história, do 7º ano, ele fazia parte do júri mas não era o examinador. Apareceu um aluno que fez uma prova “bombástica”, “anormal”, (anormal para cima, pela positiva, como afirmava jocosamente o saudoso Leonel Castro Nunes).
O examinador perguntou aos colegas de júri:
- Que nota hei-de atribuir a este aluno?

O Dr. Abel Gandra respondeu curto e grosso:
- Vinte! Não há mais!
-Vinte é para o professor! Comentou o examinador.
- E se o aluno souber mais que o mestre?! - Replicou o Dr. Gandra

Não sei qual foi a nota final atribuída àquela dita “bisarma” mas o mote estava lançado.

Um dia teve conhecimento que a Penitenciária de Lisboa pedia professores para ensinar naquele Estabelecimento Prisional; ele concorreu e foi selecionado. Combinaram a matéria a lecionar, o salário e o horário a praticar. No dia e hora aprazados ele compareceu no local para ministrar a sua primeira aula a presidiários. Pretenderam, logo à chegada, colocar-lhe à volta do cós das calças um cinturão com uma pistola pendurada e verdadeiramente municiada; ele recusou, terminantemente, dar aulas armado.
Alegaram que era altamente perigoso andar desarmado entre prisioneiros tão perigosos. Não se deixou convencer e iniciou o seu novo trabalho… sem arma à cintura..

O pessoal da segurança deve (?) ter-se colocado, estrategicamente, espingarda em riste, de modo a poder proteger eficientemente o mestre em caso de emergência.
Vale mais prevenir… que remediar – segurança acima de tudo!
Nada de mal aconteceu!

Passados uns meses ele comunicou a um dos encarcerados que gostaria de conversar com ele no fim da aula. No momento oportuno o mestre perguntou:
- O que é que o senhor mais gostaria que lhe acontecesse nesta época de Natal que se aproxima?
- O que eu mais adorava, na vida, Sr. Doutor, era passar a noite de Natal com a minha mulher e os meus filhos!

No fim de mais uma aula, na ante-véspera de Natal, chamou junto de si o mesmo prisioneiro. Conversaram durante largos minutos até que os mestre lhe transmitiu, com pompa e circunstância:
- O senhor cai trocar de roupa comigo; seguidamente sai com os meus livros debaixo do braço e vai passar a noite de Natal com a sua família.

No dia X, antes da hora de início da aula, o senhor entra calmamemnte na Penitenciária, com a minha roupa vestida e os mesmos livros debaixo do braço como se viesse dar a “sua aula”. Tudo vai correr bem, espero!
- Esteja descansado, doutor, que eu cumprirei com a minha parte da melhor maneira possível! Acredite! Só tenho uma palavra! Nunca “roí a corda”!

O prisioneiro saiu da sala, passou pelos guardas sem qualquer complicação… e reentrou no dia e hora aprazados. Aconteceu tudo como fora concebido!
Encarcerado pode ser (terá sido) criminoso e até perigoso… mas este não deixou de ser honesto, cumpridor e reconhecido!

O Dr. Gamba foi contratado para dar aulas no C.O.A. à volta do ano de 1959. Foi meu professor de História no 7º ano; a turma era pequena e todos o admirávamos muito. Éramos todos bons rapazes! Assim tinha de ser!

Uma ou duas vezes por semana ele perguntava-nos:
- Amanhã, a que horas?

Ele pretendia saber a que horas da “madrugada” estávamos disponíveis para ele dar mais uma longa aula extra a toda a turma; normalmente sugeríamos que estaríamos prontos às 6 horas. Àquela hora ele lá estava, ledo e fagueiro. Juntávamo-nos no terraço do ginásio e andávamos ali ás voltas durante cerca de 3 horas. Ele explicava a matéria, e fazia perguntas; e assim se aprendia história.
Ele afirmava que nós (mestre e alunos) éramos os peripatéticos do século XX! Reeditávamos os “passeios” de Pitágoras e seus aprendizes no jardim de Academo, proximo de Atenas
Cumpre informar que estas aulas não eram remuneradas: nem nós nem pelo Colégio; pagavam o que quer que fosse por este trabalho; pelo menos para nós ele trabalhava gratuitamente.

Numa das primeiras aulas, informámos o mestre que nos exames do ano anterior, o Dr. José Bento, professor do Liceu de Aveiro, havia “enrolado” todos os examinandos do C.O.A. com determinado tipo de perguntassempre idênticas: - Quais os costumes dos Lusitanos? Cortavam o cabelo? O que comiam? De que se ocupavam no dia-a-dia?
Fazia o mesmo tipo de inquirição sobre os Gregos, os Romanos e outros povos. Ninguém soube responder a tais perguntas, cujo conteúdo não constava dos calhamaços por onde os alunos tinham estudado. O Dr. Abel Gandra colocou logo à nossa disposição uns volumes da História Universal da autoria do francês Mâle, onde o Dr. José Bento “teria bebido” aquele tipo de informação .

Lembro-me que acerca dos costumes dos gregos o autor advogava que eles “costumavam repousar e conversar, deitados sobre uma espécie de cama/cadeira, chamado de triclínio, apoiados sobre o cotovelo esquerdo, comendo bolos de cevada/aveia temperados com cebola e alho e saboreando uma bebida “fermentada” que estaria, provavelmente, na origem da cerveja”.

O Dr. José Bento veio de novo ao C.O.A. examinar os alunos da nossa turma de História. O primeiro a ser interrogado foi o Ângelo Carvalho – creio que era um ex-seminarista e que entrou no C.O.A. apenas no 7º ano. O examinador iniciou o interrogatório, tal como no ano anterior:
- Fale-me sobre os costumes dos Romanos!

O Ângelo “desbobinou” quase uma página do Mâle; o professor mudou de assunto e não fez tais perguntas a nenhum dos outros alunos, mas algo havia de acontecer para pôr em pé os já poucos cabelos do Dr. José Bento.

O Dr. Gandra incitava-nos imenso; apregoava que eu “estava obrigado” a “esticar” aquele examinador.
Quando respondíamos a uma pergunta do Dr. José Bento “com palavras da nossa lavra” mesmo que devidamente enquadradas, normalmente ele replicava: “no livro (único) não está bem assim!

Ele também gostava que nós aprendêssemos a lição “de carreirinha”. Mas no 7º ano não havia livro único! Que falta - digo eu - ele (livro) faz nestes tempos conturbados imensa falta para tonar os calhamaços mais baratos e o ensino mais uniforme em todas as escolas!

Era permitido estudar pelas obras de um ou vários autores e podíamos justificar qualquer resposta nossa apresentando a versão de determinado mestre. Quando fui chamado para a prova oral, logo o nosso Abel Gandra colocou “descaradamente” sobre a carteira que se encontrava atrás de mim, vários “alfarrábios” de História para que, com eles, eu pudesse (abalizadamente), fundamentar qualquer divergência que, casualmente, surgisse.

1ª Pergunta: - Como foram colonizadas as ilhas do Atlântico?
Ele não permitiu que eu dissertasse sobre o tema, exigindo que eu respondesse diretamente à pergunta.
Assim teve de ser! - As Ilhas dos Açores e da Madeira foram colonizadas por meio de capitânias.
- Esse sistema foi utilizado noutra parte.
- Mais tarde foi abundantemente, utilizado no Brasil, mas foi primeiramente experimentado nas Ilhas do Atlântico que foram divididas em capitanias e confiadas aos descobridores.

Passou à frente com nova pergunta: - Quais eram as classes sociais em Atenas?
- Segundo uns autores: Eupátridas, Zeugitas e Tetas; outros incluem também os Hipeis; segundo outros ainda, temos: Pentacosiomedimnienses , Triacosiomedimnienses, Zeugitas e Tetas.

De seguida pretendi explicar o que significava cada um destes “palavrões” mas ele não permitiu; passou a outra pergunta: - Quem foram os representantes na Conferência de Berlim?
- Citei uns três ou quatro nomes e acrescentei: - “e, voltando a página, o cardeal Bembo.”
- Acabou o seu exame! Replicou o Dr. José Bento

Ao fundo da sala (aquela onde o Arqº José Alberto (Betinho) filho segundo dos donos do C. O.A nos mostrou o vídeo, interesantissímo sobre o Colégio, no dia 9 de Junhos de 2012), o Dr. Gandra delirava… por todos os poros; desfez-se em elogios. “É o corolário dum longo mas eficaz ano de trabalho árduo”, apregoava ele eufórico.
Nunca o vi tão exuberante! Tão entusiasmado.

O sr. Almeida transportava, os professores de Aveiro para o Colégio e vice-versa, no seu ”boca de sapo”; durante a viagem, o Dr. José Bento contou ao nosso Diretor:
- O nº 7, Belmiro, sabia pouco de Filosofia e pouco também de Organização Política… mas sabe muito de História!

O dr. Gandra foi também nosso professor de História da Literatura; explicava-nos eficientemente qualquer parte daquela disciplina um tanto diversificada e complicada.
Antes do início duma aula conversávamos displicentemente sobre religiões; o Dr. Gandra pretendeu ser apenas mediador ou mesmo apaziguador (quando o ambiente aquecia “lançava” água na fervura); hoje chamar-lhe-íamos moderador.
Ouviu opiniões mais ou menos diversas e até, certamente disparatadas; a dado momento pôs termo à conversa do seguinte modo:
- Todas as religiões são boas! Nenhuma manda praticar o mal! Mas também são muito complexas! Umas mais que outras prestam-se a interpretações mais díspares! Uns prosélitos são mais acérrimos, mais intransigentes (hoje fundamentalistas) mas, seja como for, somos levados a concluir, sabiamente, que “não há religião melhor que a nossa!”

Mais tarde soubemos que ele, afinal, não era católico, como todos os alunos ali presentes; nunca nos manifestou que religião professava!

Um dia ordenou que escrevêssemos um texto (não uma curta redação como acontecia em anos anteriores) sobre o seguinte tema: “ Cada dia que passa é um passo para a morte!”

Quase todos os alunos emitiram opiniões mais ou menos diversas, mas todos concluíam que era difícil, complicadíssimo, trágico até, escrever sobre tema tão verdadeiro mas incomum e incómodo.

Perante uma objeção mais arrojada do Tó Zé Almeida (o filho mais velho dos diretores), o Dr. Gandra insistiu na veracidade do tema.
O Tó Zé redarguiu:
- Isso nem sempre é verdade, Sr. Doutor!
- Oh António José! Não me diga que hoje o senhor não está mais perto da morte do que ontem?!
- Eu estarei, certamente! Mas continuo a defender que isso nem sempre é verdade!
- Não entendo o seu raciocínio, mas… explique-se!
- Ontem Caryl Chessman estava mais perto da morte que hoje!

Obs: Caryl Chessman era um presumido criminoso (assassino), o “lanterna vermelha”, que havia sido condenado à morte pela Justiça Americana; nunca aceitou ter sido tal personagem (lanterna vermelha) e conseguiu adiar a execução algumas vezes. Entretanto, enquanto aguardava a execução ou a comutação da pena, escreveu (ou alguém o terá feito por si) a obra: “2455 – Cela da Morte”.

Ouvindo tal justificação, o Dr. Gandra ficou pasmado, mudou de cor (passou a ser branco por breves instantes) mas logo recuperou e encontrou a seguinte saída salvadora:
- Na verdade, somos levados a aceitar que, não há regra sem exceção!

O Dr. Abel Gandra terá sido, em meu modesto entendimento, um dos melhores – talvez mesmo o melhor e mais completo – professor que passou pelo COA, no meu tempo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10692: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (30): Colégio de Oliveira de Azeméis (3) (Belmiro Tavares)

Guiné 63/74 - P10764: (In)citações (47): Em louvor dos bravos marinheiros da LDM 302 e dos mártires do meu DFE 21 (João Meneses)

1. Já aqui foi apresentado, como leitor e visitante, o nosso camarada, 2º ten FZE RA, João Meneses, que pertenceu ao DFE 21, e que pretende ingressar na nossa Tabanca Grande  (*), estando nós a aguardar o emvio das duas fotos da praxe para a sua apresentação formal.

Antes disso, a 6 de novembro último, ele já tinha respondido a um mail do Carlos Vinhal, nestes termos:

Caro amigo Carlos

Amizade expontânea, unidos pela Guiné. Brevemente enviarei, via mail, o que me foi pedido. Blogue que veio (e continua a) trazer luz ( na sua grande maioria com casos reais, outros, como o pescador que apanhou um peixe de 8 metros !!!!) que ajuda a reviver, a fazer-nos falar, do que alguns NUNCA conseguiram falar, a desabafar e, porque não, a recordar amizades unidas pelo sangue.

Parabéns pela iniciativa e por manterem vivo este Blog

Com amizade
João Carvalho Meneses

2. Em 26 de novembro último, o João Meneses manda-nos a seguinte mensagem:

Caros amigos

Venho agora corrigir um erro ao identificar a suposta LFG a que se fez referência anteriormente (*).

A memória atraiçoa-nos pela acção do tempo, tornando difusa a exactidão, mas grava sempre no subconsciente, que se aclara por vezes em “flashes” .

Assim escrevi que não era uma LFG na Tabanca Nova da Armada e sim uma LFP. Na realidade tratava-se da LDM 302, (cuja história está descrita e muito bem,neste Blogue ) (**), então abatida ao servíço, de onde se retirou a Oerlinkon, da qual existem fotografias no livro do Luís Sanches Baena.

Essa mesma fotografia de “ronco” foi tirada com elementos do meu DFE21. Serve pois para completar ou complementar a história desta LDM
Alguma nomenclatura:

LFG - Lancha de Fiscalização Grande
LFP - Lancha de Fiscalização Pequena
LDG - Lancha de Desembarque Grande
LDM – Lancha de Desembarque Média
LDP – Lancha de Desmbarque Pequena

Isto leva-me para outro assunto: É um estado de Alma e Coração que transformou todo o meu futuro:

Alguns deles (Praças do DFE21), direi, quase todos, assassinados após o “exemplar” incompetente abandono e traição, pelos nossos “internos” libertadores, que não respeitaram as vidas humanas que ao seu serviço ofereciam a deles. 

Não está em causa a independência da Guiné. Está em causa sim, a forma como foi feita. Em nenhuma guerra da história se abandonaram elementos das respectivas forças armadas, que se sabia irem ser fuzilados,(não só por razões de crenças étnicas como por vinganças políticas). Não se poderá atribuir a “escolha” individual a sua permanência na Guiné. Não se lhes deu, sequer, a hipótese de, como Portugueses que eram, virem para a então “metrópole”. Eram soldados Portugueses inscritos nas suas fileiras e como tal obrigatoriamente  de nacionalidade Portuguesa. Não eram mercenários. 

Vergonha, Vergonha e Revolta  minhas, que não tive a hipótese e a possibilidade de interferir por eles nesse processo. (No entanto falei disto ao Nino, quando o transportei, muito mais tarde, de avião de Lisboa para Bissau). Pedi, na altura do meu internamento no INAB após ter sido ferido, para trazer para Portugal o enfermeiro Fuzileiro Pedro, que demonstrou vontade em vir, mas foi-me negado o pedido, por ser muito complicada uma transferência de um militar.

Esta revolta acompanha-me há quase 33 anos. Lembro-me de ver o Augusto Có a chorar, quando fui evacuado pelo Héli. Bem haja,  Augusto. Entrei em coma logo a seguir.

Não falo aqui de convicções políticas, que as tenho, mas sim de convicções morais, que as mantenho

O que consente é conivente com o executante. Daí que .... a conclusão é triste e chocante
Um abraço a todos,

2º Ten FZE João Meneses (***)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de novembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10659: O nosso livro de visitas (152): João Meneses, 2º ten FZE RA, DFE 21, gravemente ferido na península do Cubisseco, em 27/9/1972


(**) Vd. poste de 28 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10084: Antologia (76): Vida e morte da gloriosa LDM 302, a cuja heróica guarnição pertenceu o marinheiro fogueiro Ludgero Henriques de Oliveira, natural da Lourinhã, condecorado com a Cruz de Guerra em 1968 (Manuel Lema Santos / Luís Graça)

(***) Último poste da série > 3 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10755: (In)citações (46): O cadete Lima, do último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra, em 1964, a juventude do império... (Rui A. Ferreira)