1. Mensagem do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422/BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3,
1965/67), com data de 29 de Dezembro de 2012:
Caros amigos editores
Aí vai mais um pedaço de lembranças. Se acharem que não se encaixa, rasguem.
Abraços para vocês amigos e Bom 2013, cheio de felicidades e saúde para nós todos e também para os nossos familiares.
Veríssimo Ferreira
OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA (21)
GUINÉ 65/67 - MEMÓRIAS AVULSAS (2)
UMA BANHOCA EM BISSORÃ
Não passam sem mim? Bora lá...
Acompanhámos um pelotão dos ali residentes, ainda e também com fatiota amarela, e quase no fim da comissão.
A operação foi tremenda e ainda não percebi como findou sem que ninguém se aleijasse, pois que até no
paintball acontecem acidentes. Isto do
"pintarcombólinhas" é um jogo com que e também alguns matulões brincam à guerras, morrem e matam de mentira, atiram bolinhas de várias cores como o próprio nome dá a entender, assim do género: agora borro-te de verde e depois borras-me tu de vermelho. (cruzes canhoto... t'arrenego... digo eu).
"pintarcombólinhas", ou brincar às guerras
Fiquei pensando quantos destes aperaltados com camuflado passado a ferro, não se tornariam objectores de consciência se lhes pusesse uma verdadeira canhota na mão, em vez daquela bem imitada e em plástico espingardinha de "sniper" ou quantos não desertariam se colocados perante a dolorosa realidade duma mobilização.
A dois, expus este meu pensamento e no fim fingi-me de convencido, (pois que se me acabou a pachorra para os aturar), que afinal eles é que sabem. Explicaram-me que fazem guerras no
playstation e ganham e que o tempo aqui passado, nestes terrenos que deveriam ser apenas para a reprodução das lebres, lhes desenvolve o raciocínio, a coragem, a tenacidade... a resistência.
Na Guiné - A guerra a doer
Foto de © Amílcar Ventura (2006)
E lá me pus eu de novo a pensar e disse-lhes:
Pois é, no meu tempo íamos para a tropa terminar a nossa formação como HOMENS.
Último olhar para ver se já tinham barba, mas mirando aquelas cútis bem tratadas apenas vi que estavam cheias de cremes embelezantes, esparralhadas de cores, mas nem pelos, nem acne se topava por ali.
E mais pensei e percebi porque é que cada vez se passam menos certidões de nascimento.
Lá que senti saudades dos tempos de escola onde até as pedras e as fisgas eram a sério... lá isso senti.
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Já me perdi... onde é qu'eu ia?
"Ainda não percebi como findou, sem que ninguém se aleijasse"...era aqui.
Estivemos debaixo de intenso fogo, pr'ái mais d'uma hora e sem sabermos bem como dar a volta à critiquérrima situação. Dum lado o IN e do outro o rio que atravessáramos quase seco mas que aliado à maré, subira... subira... e a raivosa corrente parecia até querer morder.
Não havendo melhor hipótese, porque os emboscadores eram bem mais do que deviam ser, decidiu o Senhor Oficial, distinto comandante da força em presença, cavar dali em passo de corrida e tacticamente em retirada estratégica, forçando a que investíssemos contra o impetuoso aguaçal.
Um amigo Fur Mil do meu pelotão, indigitado e treinado para chefiar a Secção de metralhadoras Dreyse, que não tínhamos, pede-me ajuda para atravessar, porque não sabia nadar.
Peguei na coronha da sua G3 e aconselhei-o a que pegasse no cano e lá fomos.
Quase a salvo, escorregou e foi uma carga de trabalhos para lhe deitar a mão, mas lá o coloquei em lugar seguro.
Fosse dos nervos... ou... do que fosse, sussurrou-me:
- Já sei nadar... aprendi hoje pá..."
Fora o seu primeiro baptismo debaixo de fogo e d'água, tal como acontecera com alguns de nós, mas para ele não houve repetições devido a ter sido requisitado para a locução da Rádio em Bissau.
Prenunciando desgraças, andavam por ali na margem, dezenas de abutres, que como sabem se trata duma espécie de pardal de telhado mas muito maior e a quem chamam jagudis, passarões proibidos de apanhar (o que só soube depois de já ter aparafusado o pescoço a um), dada a profiláctica actividade que desenvolvem na limpeza de tudo o que é carne e não mexe.
Um Jagudi
Foto de © João Santiago com a devida vénia
No solo deslocam-se aos saltinhos e foi muito triste para mim não os poder caçar, dada que esta gulodice alimentar (passarinhos fritos) era e continua a ser, uma das minhas dietas preferidas.
Lá no K3 e com a pressão d'ar, muitos me passaram pelo estreito, caídos dos cajueiros que frequentavam e onde faziam os ninhos. Da cor do respectivo fruto, cabecinha verde e peitaça assaz gorda com'á dos piscos, que lá no meu burgo metropolitano apanhava com as costelas, debaixo das figueiras em Outubro, com os figuitos já meio-passados e usando o tradicional isco, as agúdias.
No quartel para que esquecêssemos o mau bocado passado, ofertaram-nos uma especial mistela, que eu já conhecia dos filmes de cow-boys mas que nunca houvera provado e tomei um trago, depois outro e outro.
Aquilo provoca habituação... ninguém me avisou e o resultado foi, que nunca mais e desde então até hoje e ainda porque foi também o xarope que me foi receitado pelo meu veterinário de família,
"nunca mais e desde então até hoje..." consegui deixar o desbragado vício, sendo a dose diária feita em três tomas, ao almoço, ao jantar e... ao jantar.
Recentes pesquisas médicas, concluíram ser um produto natural, biológico e com propriedades vaso-dilatadoras e deve ser ministrado diariamente sem águas nem gelos.
Responde pelo nome de Whisky, se o chamarem.
Claro que também nos homenagearam com um opíparo jantar: bifinhos de cebolada com batatinhas fritinhas e cortadinhas às rodelinhas, molhança à parte e feita de mostarda e cola e estando tão apetitoso... até repeti.
É que quando me enervo e mesmo quando não, fico com uma fomeca de todo o tamanho.
As bebidas estiveram consentâneas com a ocasião, a quantidade qb (qb significa: quanto mais melhor) e os digestivos também não estiveram mal, não senhor.
Veio depois o toque de silêncio e três horas depois fui-me à deita. Havia que descansar pois já tinha ordem de marcha para o regresso a Mansabá, pela matina, onde me aguardaria o TGV para Manhau.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 27 de Dezembro de 2012 >
Guiné 63/74 - P10870: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (19): 20.º episódio: Memórias avulsas (1): Eu, turista em Mansabá