sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12033: Notas de leitura (519): "País Sem Rumo", por António de Spínola (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
O intuito é compendiar a documentação que contribua para entender a guerra e o processo de paz, neste caso o Acordo de Argel e o reconhecimento da Guiné-Bissau por Portugal.
O que Spínola escreve neste seu livro é hoje matéria que se dissemina por muitas obras, mesmo que não se formule o contraditório. Em termos militares, Spínola é a favor do recuo do dispositivo da manobra; como o governador, é manifestamente hostil. Sabe que “Portugal e o Futuro” já vem tarde mas é imperativo da sua consciência.
Na sua explanação, é tudo luminoso quanto às suas intenções, nunca se toma o pulso da impetuosidade que foi o 25 de Abril nem se busca o entendimento porque logo, em 26 de Abril, se começaram a tomar medidas para a liquidação da guerra.
É por estas e por outras que todo este estudo é poliédrico e não pode argamassar-se em palpites ou paixões.

Um abraço do
Mário


“País sem rumo”: A Guiné, por António de Spínola

Beja Santos

É certo que as justificações apresentadas pelo primeiro presidente da República do pós-25 de Abril sobre as questões mais prementes da Guiné e da respetiva descolonização têm aparecido publicadas por diferentes autores, mas aqui a intenção é de deixar compilados os argumentos que ele utilizou, alguns dos quais já não é possível o contraditório, mas a História não pode prescindir das suas tomadas de posição, mesmo aquelas que decorrem de suposições ou conjeturas. A obra intitula-se “País sem Rumo, Contributo para a história de uma revolução”, por António de Spínola, Editorial SCIRE, 1978.

Primeiro, passou a entrevista com Salazar, tendo como ponto de partida a sua posição crítica face ao desenvolvimento da guerra e à tese da defesa do Ultramar pela força das armas, Spínola diz que se pronunciou junto de Salazar de que o conceito de unidade estava ultrapassado, que o fundamental na Guiné era a batalha do desenvolvimento, mediante uma “dinâmica revolucionária”, única hipótese de sustar o processo subversivo. Qual não foi a sua surpresa quando Salazar respondeu, sem quaisquer comentários ao que proferira: “É urgente que embarque para a Guiné”.

Segundo, dedica um capítulo aos seus esforços de estabelecer contactos com chefes de guerrilha do PAIGC, relata o seu encontro secreto com o presidente de Senghor e qual a reação de Marcelo Caetano. Na ótica de Spínola, era a derradeira oportunidade, já tinham sido pedidos novos meios ofensivos à URSS, naquele preciso momento, em 1972, havia notícia de um sério desgaste, ou era naquela ocasião ou nunca. Assim se queimou a última oportunidade, suspenderam-se os contactos com Senghor, Amílcar Cabral teria proposto, em Outubro de 1972 encontrar-se com Spínola em território português, eventualmente em Bissau. É nestas conversações que surge a expressão “derrota militar” se necessário, acordo político nunca.

Terceiro, desaparecido Cabral, a guerra recrudesceu a partir de Março de 1973, em Maio Spínola dirige-se a Costa Gomes dando-lhe conhecimento da gravidade da situação e da necessidade inadiável de mais meios de toda a ordem e é nesse contexto que escreve ao ministro do Ultramar e usa a expressão “aproximamo-nos, cada vez mais, da contingência do colapso militar”. Costa Gomes visita a Guiné em Junho e delibera a redução do número de guarnições do dispositivo. Spínola volta a escrever ao ministro do Ultramar: “Esta alteração da manobra obriga, porém, necessariamente, a abandonar áreas geográficas e, o que é bem pior, a entregar à sua sorte populações a que não podemos fornecer meios adequados de defesa, populações que confiaram em nós e haviam aderido a uma política que visa a realização das suas legítimas aspirações”. E conclui: “Não poderei ser eu a abandonar áreas e as correspondentes populações em cuja proteção, justa administração e desenvolvimento socioeconómico me empenhei pessoalmente. A aceitação de tal manobra – que como Comandante-Chefe considero absolutamente necessária – lançaria o rótulo amargo de demagogia sobre a autenticidade do ideário nacional que prossegui, até agora, com isenção e fé”. Em Setembro, tomou posse o novo governador. Spínola irá escrever “Portugal e o Futuro”, com base no documento que enviara a Marcelo Caetano, anos antes, quando fora convidado a pronunciar-se sobre a revisão constitucional. Spínola atribui a Costa Gomes razões perversas sobre a “manobra em retirada” dizendo que se integravam numa maquiavélica manobra política mais tarde claramente revelada, não diz qual nem apresenta documentação plausível. Sobre o seu ideário recomenda um extrato da ata da sessão do Conselho Legislativo da Guiné, de 16 de Outubro de 1972, que vem em anexo, aí se refere a ampla autonomia, a institucionalização de Congressos, seria estas as formas renovadas para uma duradoura unidade nacional.

Quarto, no capítulo sobre a descolonização, Spínola tece críticas amargas aos condutores pela descolonização da Guiné embora confesse que “Quando escrevi Portugal e o Futuro tinha verdadeiramente a noção de que já era tarde. Mas o grito de alerta era exigido pela minha consciência, pois, apesar de tudo, sonhava ainda na edificação de um Mundo de raízes portuguesas”. Spínola confiara em Carlos Fabião, dera-lhe diretivas claras e concisas para a Guiné: pôr termo aos desmandos que ali se estavam a praticar; negociar com o PAIGC, mas continuara o esforço defensivo de guerra até à assinatura do acordo de cessar-fogo; dar continuidade ao processo político de autodeterminação iniciado por Spínola e que apontava para uma consulta popular; e preparar a visita de Spínola à província com vista a assegurar o respeito total por decisões tomadas em congresso do povo. Na conceção de Spínola, eram objetivos praticáveis, o único perigo militar que ele considerava no imediato era o agravamento das fronteiras, devido ao apoio que o PAIGC recebia dos países vizinhos. Não há uma palavra à doutrina das Nações Unidas quanto ao reconhecimento do PAIGC como único interlocutor dentro da Guiné-Bissau.

Responsabiliza a Comissão Coordenadora do MFA como responsável pela campanha de anarquização e o descalabre das forças armadas e insinua que Costa Gomes lhe dava beneplácito. E escreve: “A situação interna da província agravara-se sensivelmente. O brigadeiro Fabião não só se revelara incapaz de dominar a situação como se havia transformado, praticamente, num mero agente do PAIGC. A própria rádio oficial difundia mensagens do PAIGC apelando para a expulsão dos portugueses, incitando os africanos a fazer correr o sangue dos “colonialistas portugueses” e a “violarem as mulheres brancas”. Considera ter havido um clima de generalizada cobardia moral e traição. Acrescia, dentro desta atmosfera de gravidade, que o Conselho de Segurança se iria em breve pronunciar sobre a admissão da Guiné-Bissau. Assim se chegou aos acordos de Argel, o Estado português viu-se obrigado a reconhecer de jure a Guiné-Bissau.

Spínola refere o anexo do acordo onde se diz taxativamente quais as medidas prescritas para salvaguardar o que ainda regressava da honra e dignidade da Pátria, haveria a reintegração na vida civil de todos aqueles que tinham prestado serviço nas Forças Armadas Portuguesas, "em especial os graduados das Companhias e Comandos Africanos". Carlos Fabião, neste texto de Spínola, é considerado o mau da peça, tudo ali foi possível pela despersonalização de Fabião que chegou a envergar uma farda semelhante à do PAIGC e escreve que esta atitude “foi objeto da mais veemente reprovação por parte da população civil que assistiu a tão indecorosa afronta”.

Esta descolonização, escreve, foi planeada pela fação “progressista” do MFA e localmente conduzida por um grupo de militares marxista sobre a responsabilidade direta de Carlos Fabião. Conclui dizendo que a descolonização da Guiné terminou num quadro de traição, de ignomínia e de indignidade, a cujo julgamento da história os seus responsáveis não poderão furtar-se.
Em anexo, junta a síntese do trabalho programático “A Descolonização e as Nações Unidas” e o teor do Acordo de Argel.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12019: Notas de leitura (518): "Crónica dos Novos Feitos da Guiné", por António Ferra (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12032: Convívios (529): XVIII Encontro dos ex-combatentes da Guiné da Vila de Guifões/Matosinhos, dia 5 de Outubro de 2013 em Lousada (Albano Costa)

1. Mensagem do nosso camarada Albano Costa (ex-1.º Cabo da CCAÇ 4150, Bigene e Guidaje, 1973/74), com data de 12 de Setembro de 2013:

Caros amigos
Gostaria, se fosse possível, que se publicasse a notícia do encontro dos ex-combatentes na Guiné-Bissau da Vila de Guifões - Matosinhos, que já vai na sua XVIII edição. .
Este encontro tem sempre lugar em locais diferentes de ano para ano, e desta vez vai realizar-se em Lousada, na Quinta do Caseiro.
A deslocação é sempre feitas em dois autocarros.
Segue circular em anexo.

Sem mais de momento,
Albano Costa

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12020: Convívios (528): 15.º Encontro do pessoal da CCAÇ 4544/73, levado a efeito no passado dia 8 de Setembro de 2013 em Miranda do Corvo (António Agreira)

Guiné 63/74 - P12031: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (31): "Deixem-nos trabalhar"

1. Em mensagem do dia 2 de Setembro de 2013, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, CatióCabeduGandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta "boa memória da sua guerra", mais uma vez apimentada qb:


Memórias boas da minha guerra

31 - "Deixem-nos trabalhar!"


Antigo RAP 2 

- Ó Silva, estás tramado para este fim-de-semana. Estás de serviço de Ronda no Domingo. – Gritou o Mariz de Anadia.
- Não vou a Lisboa, este fim-de-semana, mas não olhes para mim, porque não te vou fazer esse serviço. Quero ir até ao Minho, conhecer alguma coisa. E espero encontrar uma garina. – Interveio o Machado.
- E qual é o meu papel? – Perguntei a quem me quisesse responder.

Logo o Sargento Bagaço:
- Fazer o percurso das Pontes D. Luís, Vila Chã, Sé, Rua Escura, Bainharia, Ribeira…
- …Zona das putas. – Interpôs o Delfim Nora, de Matosinhos, que aproveitou para fazer o convite:
- Não caias nessa merda. Vem, mas é, até Matosinhos para visitarmos as casas de trabalho da Rua Brito Capelo.

Deixei-me cair na cama e, em silêncio, de olhos no tecto, pus-me a pensar. Ou melhor, a “ver o filme” de uma visita que tinha feito àquela zona.
Foi em princípios de 1958.
Eu ainda não tinha 15 anos quando o meu tio de Trás-os-Montes (Boticas) veio visitar-nos. Depois da devida autorização paternal para o acompanhar na visita a “uma pessoa amiga do Porto”, seguimos num autocarro da Feirense, directamente para junto do Café Derby.

Edifício onde esteve o Café Derby na Rua Chã. 

Logo ali verifiquei o à-vontade do meu tio no relacionamento com aquelas mulheres.
Ele, um rapagão de bom aspecto e cheio de saúde, já tinha perto de 40 anos e não mostrava namorada nem intenção de casar. Parecia que aquele ambiente o satisfazia plenamente.
Na Sé, descemos por umas ruas estreitas em direcção à Ribeira.
Enquanto descíamos, eu ia ficando pasmado pelos “polícias” de humanos, de cães e de outros animais que via pelos cantos da rua. A dada altura, passámos por duas miúdas (aparentando cerca de 10 anos) que conversavam em voz alta. Uma delas pôs-se de cócoras, sem cuecas e começou a mijar, ao mesmo tempo que ia falando.
Como me demorei a olhar para a cena, a miúda perguntou:
- Oube cá, ó morcon, nunca bistes uma c____ sem pelos?

Quando me viu meio aparvalhado, o meu tio aproveitou para me dizer que aquela gente era igual à da minha aldeia e que fazia aquilo porque, normalmente, não tinha casas de banho, e que, ao contrário de nós, não tinha mato, pinhal ou campo para nos imitar. Como bem me lembram aqueles momentos de arejar o “material”! Quem é que não gosta de dar uma mija (ou mais) e deixar o “badalo” sacudido lentamente a observar a natureza e a absorver aquela límpida aragem rural?
Ah, e daquelas mulheres de carrego à cabeça, na conversa, que abriam as pernas, puxavam as saias para a frente e deixavam cair o mijo direitinho, sempre no mesmo sítio!

Logo que entrámos na casa da Micas fixei os olhos nas suas exuberantes mamas, pouco escondidas debaixo de uma blusa muito desapertada. Enquanto ele falava para uma moça, a quem pediu uma cerveja, a D. Micas puxou-me e disse:
- Anda aqui que eu arranjo-te outra “coisa”.

Não sei o que deixou cair. Vergou-se demoradamente, possivelmente para me mostrar o traseiro e o pername. De seguida foi-se aproximando, tocando-me e aconchegou-me a cara ao centro daqueles peitos avantajados. E eu, que nem sou muito de leite, quando me apercebi, já estava com vontade de mamar.

Nove anos depois, vejo-me com vontade de repetir o percurso.
Estava uma linda tarde de sol daquele mês de Janeiro de 1967 quando descemos do RAP2, da Serra do Pilar. Seguimos o tabuleiro superior da Ponte D. Luís em direcção a Vila Chã.

A Ponte Luís I, hoje dedicado ao Metro e a peões

Depois, chegados à Sé, fui aconselhado pelo meu adjunto de que deveríamos seguir pela Rua Escura, em direcção à Bainharia e Ribeira, zona mais frequentada pelos militares.
Era bem visível o trânsito lento dos magalas, a divagar e a observar tudo e todos mas mais focados no mulherame. Entravam e saíam dos tascos ou de portas manhosas, vindos não sei de onde.
De repente, cai uma penicada mesmo na nossa frente. Então, oiço de lá de cima, em voz alta:
- Ai Birgem Nossa Senhora de Fátima, que ia molhando a Ronda da Tropa! Descuuuuulpem! Descuuuulpem!

Rua Escura - Pormenor

Não percebi que aquilo era um aviso (não só para nós), continuámos a descer e, enquanto observávamos se acaso teríamos sido atingidos com a dita penicada perfumada, surge nova remessa. Desta vez, fomos atingidos ligeiramente. Ficámos atordoados e sem saber o que fazer.
Foi, então, que um sujeito (talvez o Júlio) saiu de um bar e veio ao nosso encontro para nos acalmar, elucidar-nos e pedir desculpa. E logo uma catraia, bem boa, por sinal, encostando-se exageradamente à minha pistola, pousou as mãos no meu ombro esquerdo e melosamente acrescentou baixinho:
- Senhor Meleciano, num benha p’ráqui assim armado porque a tropa gosta de estar à buntade e as donzelas querem trabalhar. Por fabor deixem-nos trabalhar! Deixem-nos trabalhar!

Forçados a regressar ao Quartel, rapidamente me lavei e mudei de roupa.
Quando ia a atravessar a rua, em frente do Café Mucaba, parou um carro de onde me chamaram.

Avenida de Gaia. Antigo Mucaba à direita 

Era o Neca Folhetas, que namorava uma vizinha e que insistiu para ir com ele para o Porto. Mal entrei, disse-me que queria ir dar uma volta pela zona do métier. Disse-lhe que não ia. Só se fosse lá para os lados da Cadeia, Clérigos, cimo dos Caldeireiros, etc.
Corremos três ou quatro bares e viemos para o cimo dos Caldeireiros.

Perante um aglomerado de gente, aproximámo-nos e constatámos que lá dentro do bar havia confusão. Abeiramo-nos da porta e perguntei a um militar o que se passava. E ele respondeu:
- É o caralho do Mirandela. Anda apaixonado por uma gaja e não a larga.
- E não o conseguem trazer? - perguntei.
- Foda-se!!! É que ele já está com os copos e de naifa é um perigo! Ninguém se aproxima dele.

Ouve-se, então, uma mulher a lamentar-se:
- Uma galdéria cheia de bida, podia ganhar umas coroas e o gajo não ajuda nada. É mesmo morcon!

E logo outra acrescenta:
- Filha da puta da Ronda que nunca mais chega! Assim, não temos condições para trabalhar! Ó meu Deus, o que mais pedimos é que nos deixem trabalhar. Deixem-nos trabalhar!!!

Silva da Cart 1689

 -*-

Zona histórica do Porto

Fotos: © Jorge Teixeira (Portojo)

ADENDA
Significado de palavras usadas no texto, tal como extraído do “Manual do Morcon”, integrado no “Dicionário da Lingua Romontica Portuense”:

- À maneira – De longe a mais portuense de todas as palabras e expressões e que significa: “como debe ser”, “com categoria”,”com qualidade”, enfim, “à maneira mesmo”.
- Foder – Bocábulo pouco utilizado na región e raramente referido a sexo. No caso da expresson “Bouta foder” ou “touaqui toutafoder” pode significar: “Bou-te esvaziar dois pneus da biatura e tu só tens uma roda sobressalente”.
- Donzela – Qualquer baca que f__a mais de dez vezes ao dia.
- Fdp – Expressón raramente usada. Usa-se mais “grande filha da puta”. Na zona de Campanhã acrescenta-se sempre “bouta foder”.
- Galdéria – Tola. Que podia ganhar muito mais se tivesse juízo (para o “negócio”).
- Garina – Debe ser de Lisboa, a puta.
- Puta – Palabra que se emprega em manifestações de amizade e carinho, tais como: “Meu belo filho da puta”.
- “Deixem-nos trabalhar!” – Frase muito bulgarizada entre as putas e, também, entre os políticos, quando nos querem endrominar.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11981: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (30): O Jorge Ribeiro era um "gentleman"

Guiné 63/74 - P12030: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (7): Os meses seguintes, até Bafatá

1. Sétimo episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:

A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado

No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.


CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES

7 - Os meses seguintes, até Bafatá

Ainda com a cabeça, mais lá do que cá, ainda a pensar nas férias, dei-me conta da enorme carga de trabalho que ficara às costas do meu camarada. Mesmo com a ajuda do nosso ajudante, um jovem futa-fula de seu nome Galé Djaló que gostava de ser tratado por António Galé, a tarefa de cuidar da saúde de uma companhia e da população não era nada fácil.

Um mês depois do meu regresso, “alinhei” em mais uma operação, uma vez mais por Galo Corubal, Seco Braima e Satecuta, a que se chamou “Quadrilha Sagaz”. A nossa companhia na progressão para o objectivo, num só dia, teve três contactos com o inimigo, felizmente sem feridos graves. Para este resultado, foi determinante o comportamento de um dos nossos camaradas que, com a sua acção arrojada, contribuiu para que as armas do PAIGC se calassem. Este nosso camarada viria a ser distinguido com o Prémio Governador que lhe deu o direito a umas merecidas férias na Metrópole. De Satecuta, eu e mais dois camaradas, trouxemos cada um o seu cachorrinho, ainda bebés. Transportei a minha cadelinha, sim era uma “mulher”, aconchegada ao meu peito na abertura da camisa, que fui alimentando com a bisnaga do leite condensado da minha ração de combate. Desafortunadamente só a minha “Gudhiu”, que em fula significa cão, chegaria com vida ao Xitole. Era o meu troféu de guerra.

O trabalho era intenso, quase não dava descanso. Depois dos insistentes pedidos, o Comando do Batalhão decidiu-se a enviar mais um elemento para reforçar a equipa de Saúde. Viria, na próxima coluna de reabastecimentos que iria até ao Saltinho, um camarada maqueiro de Bambadinca, que era natural do Porto. Quiseram os deuses que esse camarada não ficasse no Xitole.

Esta coluna ficou marcada por um episódio insólito e dramático.
Após a paragem no Xitole, seguiria para o Saltinho. O retomar da marcha fez-se de forma muito desorganizada. Logo à saída do Xitole a coluna ficou “partida”. Algumas viaturas, militares e civis, já haviam seguido, e outras ficaram para trás. Um Unimog, na tentativa de se reaproximar da viatura seguinte, terá excedido a velocidade para uma picada cheia de cavernas e curvas apertadas, o que provocou o seu despiste, tendo-se voltado e projectado os seus ocupantes.

Dado o alarme, desloquei-me ao local do acidente e deparei-me com uma cena muito triste. Todos os militares estavam estendidos e espalhados pelo chão, embrulhados na vegetação do local. Alguns gemiam, outros não davam acordo de si e um outro, o condutor africano, estava morto. Todos os militares europeus apresentavam sinais de fracturas diversas e o africano, tinha o crânio desfeito por uma bala. Tinha-se suicidado com a sua G3, talvez porque pensou ter morto toda aquela gente e a sua consciência não aceitasse o peso desse fardo.

O corpo do condutor africano, depois de autopsiado no Xitole, foi entregue à família. Todos os feridos foram evacuados e entre eles, por ironia do destino, estava o camarada que tinha vindo para integrar a nossa equipa de enfermagem. Má sorte a dele e, também a nossa que continuamos os mesmos para tanto trabalho.

Por estas alturas, falava-se que o nosso Capitão estaria preocupado com o excessivo número de caninos que habitava o quartel. Era um drama, cada abrigo queria o seu. Quase todos baptizados com nomes de clubes de futebol, era uma delícia quando na época do cio se assistia ao Porto a f…….. o Benfica e outros encontros caninos.
Por mais absurdo que pareça, este espectáculo tinha assistência garantida em dias ou horas de pasmaceira, quando não por outras razões.

E eu afeiçoei-me à minha Gudhiu, a quem dava vitaminas e o melhor da minha ração do rancho. Tinha uma pelagem brilhante, mesmo sedosa. Era o meu orgulho e a dona dos meus afectos mais próximos. Até que um dia, quando a GMC que estacionava defronte do Posto de Socorros se pôs em marcha, atropelou a minha cadelinha que se abrigava do sol debaixo da viatura. Era o fim. Por mais que me custasse admitir, a minha Gudhiu estava condenada. Os camaradas do abrigo dos condutores, sabendo do estado do animal, esperaram que me ausentasse e, no fim da pista, abateram o animal. Foi duro perder aquela que sonhei trazer comigo no fim da comissão.

Já assumíamos que o tempo entrara em contagem decrescente.

Chegados aqui, já sabíamos porque é que o Domingo era quase sempre diferente dos outros dias. Seria, porque o nosso Capitão reunia semanalmente o pessoal da Companhia na parada, ali ao lado da capelinha e, nos transmitia as suas preocupações quanto às questões da nossa segurança, nos alertava para os cuidados a ter com a saúde e nos incutia a obrigação de sermos respeitadores das tradições dos guineenses. Seria porque, quase sempre, saíam nesse dia três a quatro viaturas com destino a Cusselinta, com passagem pelas tabancas. Eram os grandes saltos do cimo da rocha para a piscina natural criada pelos rápidos, eram os mergulhos em que íamos armados de faca de mato à “caça” das ostras, eram os lançamentos de granadas para se recolher uma sacada de peixes e, na época, comiam-se as laranjas doces de casca verde, surripiadas do cima das viaturas á passagem por Sinchã Madiu. Eram os nossos Domingos, quase sempre, quase sempre.

E nesse, como nos outros dias, era também a atenção aos nossos camaradas que se encontravam acamados nos abrigos, quase sempre com a malária. Até que um dia, nessas andanças de cuidar dos nossos, saía eu do Posto de Socorros levando nas mãos uma caixa que continha seringas e agulhas esterilizadas para aplicar a um camarada ali nos fundos do quartel, junto da cozinha, quando deparei com um ajuntamento da nossa malta, formada em círculo. Quando tentava perceber o que se passava, ouvi uma voz que me chamava; “o nosso militar aonde vai?”.

Soou-me estranha aquela voz e levantei o olhar tentando identificar a origem do chamamento. Era o nosso Comandante-Chefe, General António Spínola, que nos fazia uma visita relâmpago. Mal fardado, sem boné, de chinelos e de barba descuidada dirigi-me para o local. O círculo partiu-se para eu entrar. Estava apreensivo e expectante. Perfilei-me respeitosamente. O monóculo e o bengalim impunham muito respeitinho. O General Spínola percebeu o óbvio quando verificou o que eu tinha nas mãos. Com aquele timbre de voz, serena e pausada disse-me:
- Continue o que estava a fazer.

Respirei fundo e retirei-me. Este encontro, tão inesperado e tão próximo, marcou-me de tal maneira que fiquei admirar o Homem e o Militar. Passei aceitá-lo como um dos nossos, mais próximo e atento aos nossos problemas e despido das suas estrelas.

E os dias iam passando. A vida no quartel era preenchida aqui e ali com uns acontecimentos mais ou menos pitorescos. Os jogos de futebol ao final da tarde entre os pelotões, quantas vezes debaixo de trovoadas, marcavam a nossa principal forma de enganar o tempo.
Até que um dia, dois pelotões acertaram mais uma peladinha de tira-teimas. Era quase como que uma desforra entre os melhores e, muito aguardada pelo pessoal. Estávamos nas nossas tarefas diárias quando, o Alferes de um dos pelotões chega ao Posto de Socorros e nos pede para lhe fazermos umas massagens. Era a vedeta da equipa, e queria estar à altura das expectativas. Talvez por excesso de trabalho, talvez porque se aceitássemos a excepção seria o "fim da macacada” com todos a bater-nos à porta, talvez porque talvez ou, não sabendo bem porquê, a resposta saiu pronta: - Nem pensar.

A reacção do Alferes veio embrulhada nos seus galões e em ameaças subtis. Fizemos saber ao oficial que, dentro do Posto de Socorros só entrava quem viesse tratar-se e que os galões ficavam fora da porta. O bom senso imperou, o assunto ficou encerrado e com o passar do tempo o episódio foi esquecido.

Outro episódio bem pitoresco tem como protagonistas o mesmo Alferes, o seu cabrito e alguns “malandrecos” do seu pelotão.
O oficial mantinha preso próximo do seu quarto um cabrito que havia adquirido nas tabancas. Mas, alguns membros do seu grupo, e não só, entenderam que o rancho estava muito repetitivo e vai daí, se bem pensaram melhor o fizeram, abotoaram-se durante a noite ao cabrito e, com a cumplicidade do cozinheiro do rancho abateram o animal e prepararam um lauto assado. O principal convidado do repasto era naturalmente o dito cujo oficial. Quando do animal só eram visíveis alguns dos fragmentos do seu esqueleto e todos se encontravam já bem bebidos, alguém solta uma “boca” deixando entender a proveniência do animal. Foi a risada geral.
No primeiro momento o oficial passou do encarnado ao rubro, mas acabou por achar piada à partida do seu pessoal. A malta esteve à altura da brincadeira e do respeito pelo seu superior e ofereceram-se para lhe repor o animal, o que não aceitou.

Dentro e fora do quartel a equipa de saúde dedicava-se com empenho no apoio às populações. Tínhamos conquistado a sua estima e disso nos davam testemunho com a oferta de ovos, frangos, carnes, frutas etc. O sentimento era recíproco. Entre tantos momentos vividos com as populações destaco a tarefa de apoio às parturientes.
Sem preparação técnica e sem qualquer experiência prática, só a vontade de ajudar e alguma intuição me permitiram ser útil nesses momentos. De entre os vários casos, um caso em particular mereceu o registo na minha memória.

Ali para os fundos do Xitole, à saída para as tabancas, vivia uma família que incluía uma jovem e bonita mulher. Esta jovem era de quase todos conhecida porque, caso raro, tinha um peito bastante maior que o outro. Um dia, sou chamado a prestar assistência a essa jovem que entrara em trabalhos de parto e que as mulheres grandes que a acompanhavam consideravam difícil.
Munido de injectáveis para facilitar a dilatação, deitei mãos à obra. Sempre na presença das “parteiras” ministrei a medicação e esperei, deixando que a tradição e a ciência funcionassem. Mas a criança teimava em não querer ver a luz do dia. Repetida a medicação e depois de nova espera o resultado seria o mesmo.

A criança estava sujeita a sofrimento e, depois de nova tentativa, acabaria por nascer sem vida. Segundo a voz da tabanca, dizia-se que a criança poderia ser filha de um branco e que a jovem dificultou o parto para esconder esse facto.

Enquanto acontecia mais um ataque à Ponte dos Fulas e às tabancas de Cambêssê e de Sinchã Madiu, a Comissão caminhava para o fim. Estávamos no início de 1972 e, para minha surpresa, fui informado de que iria ser colocado em Bafatá. Explicaram-me que iria para descansar, simplesmente. Custava-me o afastamento dos meus camaradas, mas a ideia agradou-me.

Piscina natural em Cussilinta – Corubal

Na esplanada da messe dos oficiais

Entrada do posto de socorros do Xitole

Picada Xitole/ Saltinho na época das chuvas

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12010: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): As férias na Metrópole e o regresso ao Xitole

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12029: Um encontro em férias com um embaixador da UE que esteve em Bissau no pico do conflito político-militar 1998-1999 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2013:

Carlos,
Foi uma grande surpresa, de vez em quando temos o choque das grandes alegrias, puras e inesperadas.
[...]
Como é evidente, pedi autorização ao embaixador para publicar as fotografias e aonde.
Recebe um abraço de um amigo que te quer sempre bem,
Mário


Encontro inesperado com um embaixador da UE em Bissau

Beja Santos

2 de Setembro, cerca das 19 horas, Praia Grande, região de Sintra. Tarde magnífica, estive uma hora no banho, ondulação inocente, dava gosto, água quase tépida, as vagas sucessivas da ondulação massajavam, uma maresia de sal e iodo, nem havia vontade de sair tão cedo da água. Depois passeei-me à beira-mar, sequei-me, subi para o passeio e limpava afanosamente os pés quando um vozeirão estoirou ali ao lado:
- O que é que você faz aqui nos meus domínios, ó Beja Santos, há quanto tempo não nos vemos?.

Não fiquei estupefacto muito tempo, quem me aborda assim de supetão está praticamente como quando o conheci, no final de 1977. Abraçámo-nos, era o Miguel Amado, e quando nos conhecemos foi no Ministério do Comércio, ele na rede nacional de frio e eu já nos consumidores. Viajamos pela Dinamarca, em 1978, e quando nos separámos em Copenhaga, no aeroporto, eu seguia para Amesterdão e ele para Lisboa, preguei-lhe uma pequena partida, pedi-lhe para trazer duas pesadas malas com a documentação e filmes que trazia numa visita à Suécia, ele que tivesse pena de mim, ia agora para Haia buscar vários sacos com bobines para os filmes que iria apresentar na RTP. Ele já esquecera essa partida, quase 40 quilos de papelada e película que trouxera até minha casa.

Foi uma alegria este reencontro. Bebemos uma imperial e cavaqueámos pelas várias décadas em que andámos dispersos. A Guiné veio à baila. Ele percebeu que eu tinha os olhos em alvo, bebia tudo quanto ele dizia. Ele foi embaixador da União Europeia, apanhou o conflito político-militar da Guiné em cheio. Já tínhamos falado de Madagáscar, do Burundi, da República Dominicana e do Congo Brazaville, algumas das paragens onde fez diplomacia, conheceu cinco golpes de Estado. Pedi-lhe para voltarmos à Guiné.
- Ó Beja Santos, há muito para contar, venha jantar comigo na quarta-feira, trato-o bem, vamos marcar um ponto de encontro.

E assim foi, encontrámo-nos na Ribeirinha de Colares, pegou em mim e de jipão seguimos para um morro onde ele tem a sua casa. E que panorâmica, meu Deus! Fiquei sem fala, avista-se o espinhaço pétreo onde assentam o Castelo dos Mouros e o Palácio da Pena, avista-se perfeitamente Monserrate, a Quinta da Piedade, em escadaria a Eugaria, pode divisar-se a Estrada Nova da Rainha, estávamos a saborear um fim de tarde cálido, avistava-se uma neblina que tecia cogitações românticas, havia para ali um silêncio monástico, que inibia a conversa. Feita a apresentação do lugar, percorri a sua bela casa, mexi nos livros, obras de arte, bibelôs, como me atrevo a fazer quando me sinto em intimidade.

Aos solavancos, voltámos à década de 1970, percorremos as suas missões, lá o fui manipulando até chegarmos à Guiné.
- Espere lá, vou buscar os álbuns, tenho ali fotografias que o vão entusiasmar. Olhe para esta, a comissária Emma Bonino, que apareceu ali acidentalmente na Guiné, forçou o aperto de mão entre o Ansumane Mané e o Nino Vieira, não percebeu patavina do que eles disseram, e depois veio cá para fora dizer que se tinham dado passos extremamente importantes para a reconciliação… e temos aqui esta fotografia histórica.

Continuou a remexer no álbum, vi a sua residência em derrocada, vi os vestígios das bombardas que o assolaram, ele lá está, sorridente e lampeiro, como sempre.

- Há muito mais a conversar sobre a Guiné, voltaremos ao assunto em próximo encontro.

Aquiesci prontamente. É claro que nos vamos encontrar mais. A Guiné é interminável, ele esteve lá dois anos e meio, tem mesmo muito para contar.

Para não cansar muito o confrade, junto só três fotografias, a de um aperto de mão que não ficou para a História, e as ruínas de uma casa no fragor de uma guerra civil, com os sinais do metal da morte.




Fotos: © Embaixador Miguel Amado

É muito bom conversar com o Miguel Amado, é um homem crente e tem o vigor dos apóstolos, a solicitude dos generosos e, como todos os justos, não há para ali azedumes, rancores nem insinuações pestilenciais. Estou mesmo a aguardar uma nova oportunidade de lá ir a casa, ele recordou a luz de Outubro, quase mística, naquele cenário transcendente. Eu vou. E voltaremos a falar da Guiné.

Guiné 63/74 - P12028: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (8): O Clube de Oficiais

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia 

8 - O Clube de Oficiais




Instalado no Clube de Oficiais, em Santa Luzia, próximo do Quartel-General, iniciei a 21 de Abril de 1970 a minha actividade nos Serviços de Reordenamentos Populacionais no Comando Chefe (Amura).

Durante a minha estadia nesse clube tive contacto com vários oficiais do quadro permanente e do quadro de complemento (milicianos) que também lá se encontravam instalados ou que, estando sediados fora de Bissau, por lá passaram para tratar assuntos relativos às companhias que comandavam.

Em finais de Abril o General Spínola reuniu numa grande sala do Palácio praticamente todos o capitães em serviço na Guiné.
Eu, praticamente acabado de chegar, também estive presente nessa reunião.

O General traçou novos rumos no que dizia respeito à luta contra a subversão.
Deu a entender que se estavam estabelecendo negociações com os chefes terroristas no sentido da resolução política do diferendo.
Ordenou que as Companhias Operacionais não mais tomassem atitudes ofensivas, mas simplesmente defensivas. Mandou que se procedesse sem ódio nem brutalidade contra os prisioneiros de guerra e as populações afectas ao inimigo, de modo a que se possibilitasse a sua apresentação às autoridades e se pudesse caminhar para a pacificação.

Com a vinda a essa reunião dos capitães que se encontravam espalhados pelo território, pude conhecer alguns e rever o Espinha de Almeida, do meu tempo da Escola Prática de Artilharia, que se encontrava no Xitole (Bambadinca).

Este capitão miliciano, embora de pequena estatura, era corajoso.
Chamavam-lhe, por ser baixo, Capitão Pitaitas.
Mostrou, no entanto, valor militar, uma vez que nunca deixou de acompanhar os seus soldados em diversas missões, expondo-se ao fogo do inimigo.

Em dada altura sabedor do local, na mata, onde estava estacionado um numeroso grupo de "terroristas" fora do alcance do seu obus, resolveu desmanchá-lo e transportá-lo em peças para um lugar donde fosse possível bombardear a posição inimiga.
Depois de montar devidamente as peças do canhão atingiu com êxito a posição "terrorista" causando-lhe diversas baixas.
Pela sua bravura, o Capitão Espinha de Almeida foi galardoado com a medalha de serviços distintos com palma.

Na referida reunião dos capitães com o General Spínola, fui surpreendido pela forma descontraída, directa e muito incisiva, como o Capitão Vasco Lourenço procurou saber do General mais pormenores sobre o modo como actuar futuramente face às novas directivas. Directivas que passados alguns dias foram canceladas, dado que foram mortos três majores e um alferes que, desarmados, procuravam o contacto com chefes terroristas de que havia indicação de se quererem entregar.

Um dos majores (Pereira da Silva) conhecia-o muito bem, pois havia privado com ele no GACA 3 tendo ele, na altura, o posto de Tenente.

A minha vida ia correndo sem grandes sobressaltos entre o Comando-Chefe e o Clube de Oficiais. Aqui no Clube, havia uma piscina e à noite por vezes havia cinema e outros espectáculos ao ar livre.
Lembro-me de ter visto espectáculos de música, de ilusionismo e uma vez de hipnotismo. Neste último um soldado, depois de hipnotizado, foi convencido que estava uma noite gélida (ao contrário do que acontecia, pois tratava-se de uma cálida noite africana) e recordo-me como ele tremeu de frio e se agasalhou o mais que pôde com as roupas que tinha por perto.

Estando à beira da piscina, no dia 19 de Maio de 1970, ouvi pela primeira vez a artilharia dos independentistas em acção.
Eram cerca de 23 horas quando foi desencadeado um ataque com artilharia ao Quartel de Tite.
Os rebentamenros era perfeitamente audíveis em Bissau. O poder de fogo era grande, tendo havido lançamento, por parte das forças inimigas, de cinco mísseis.

No Clube de Oficiais fazia a minha vida depois de findo o meu serviço no Comando-Chefe. Era a minha casa. Lá tinha tudo: alimentação, dormida e até barbearia.
Foi justamente na barbearia onde certo dia fui cortar o cabelo que se deu este episódio com o Capitão Vasco Lourenço que vou passar a contar.

Encontrando-me uma vez sentado numa das cadeiras da barbearia do Clube de Oficiais de Bissau, acomodou-se a meu lado o Capitão Lourenço.
Imediatamente solicitou que lhe cortassem o cabelo. Este pedido surpreendeu o soldado da barbearia que, tartamudeando, se aprontou para o atender.
- Mas... meu capitão, ainda nem há uma hora lhe cortei o cabelo!
- Pois é. Mas vais cortar-mo de novo.

O rapaz não replicou, mas muito em surdina, ainda conseguiu pronunciar duas palavras que só eu pude entender, embora com dificuldade.
- Está "apanhado".

Também fiquei intrigado com o que se passava, pelo que procurei esclarecer o assunto mais tarde.
Quando ambos abandonamos o Clube de Oficiais, o Capitão Lourenço satisfez a minha curiosidade.
Segundo me explicou, havia-se cruzado, após o primeiro corte de cabelo, com um dos chefes militares de Bissau.
O Coronel Onze, como era conhecido e não me perguntem porquê, era muito rigoroso com o atavio e o porte dos seus subordinados, principalmente com os oficiais. Quando se cruzou com o Capitão Lourenço te-lo-á interpelado com severidade, chamando-o à atenção para o facto de o seu corte de cabelo não ser o regulamentar.
- O Senhor Capitão é miliciano?
- Não, não, meu Coronel. Eu pertenço ao quadro permanente.
- Mas isso é indisculpável. Faça o favor de ir cortar o cabelo imediatamente. Essa melena na testa é uma vergonha. Depois apresente-se no meu gabinete.

Seguidamente a este relato, que tentei aproximar tanto quanto me foi possível da realidade, o Capitão Lourenço teceu várias considerações e deu curso à sua revolta interior.
Explicada a razão pela qual o Capitão Lourenço teve necessidade de cortar o cabelo, pela segunda vez no mesmo dia, o referido oficial encaminhou-se para o gabinete do Coronel Onze.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12007: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (7): Relato do ataque à capital da República da Guiné feito pelo Tenente Januário na Rádio Conacry

Guiné 63/74 - P12027: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (27): Vídeo "Piriquito vai pró mato", gravado recentemente em Gadamael Porto


Vídeo (1' 03''): Piriquito vai pró mato. Alojado em You Tube > ADBissau

1. Gravação feita há dias em Gadamael Porto, e enviada ontem pelo nosso amigo e parceiro Pepito, diretor executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau.

Letra: Piriquito vai pró mato, oh lé, lé, lé /  Piriquito vai pró mato, oh, lé, lé, lé ,lé / Passarinho di gazela, oh lé, lé, lé,  / Piriquito vai pró mato, oh, lé, lé, lé lé /, Velhinho vai prá Lisboa, olé, lé, lé, lé ... 

Acompanhamento: realejo, palmas, vozes.
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Guiné 63/74 - P12026: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (26): Começou a criação do Museu Memória de Gadamael Porto (Pepito, AD - Bissau)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Sede do futuro museu 


 Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Estado de conservação do interior (1) 


 Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Estado de conservação do interior (2) 


 Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Vestígios de marcas lá deixadas (1): uma pintura de parede


Guiné-Bissau> Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Vestígios de marcas lá deixadas (2): CART 6252/72, Os Indiferentes,  1972-74


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Vestígios de marcas lá deixadas (3): os nomes de MARTINS, GUERREIRO, JONATA, MACEDO, FERREIRA e MIRANDA


Guiné-Bissau> Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Conhecido pela tropa como o “Oh Alexandre”... Um dos dois guias de hoje.


 Guiné-Bissau> Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Conhecido pela tropa como Mamadú Mané, o outro dos dois guias de hoje

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > Setembro de 2013 > Houve peregrinação até ao local... As mulheres da população local fazem a festa.

Fotos (e legendas): © AD - Acção para o Desenvolvimento (2013). Todos os direitos reservados [Edição: L.G.]

COMEÇOU A CRIAÇÃO DO MUSEU MEMÓRIA DE GADAMAEL PORTO

Em Setembro de 2013, a AD, conjugando as vontades da população de Gadamael Porto e dos antigos militares portugueses que lá prestaram serviço, decidiu assinalar uma parte da história dos dois povos: o guineense e o português.

Esta iniciativa inscreve-se no programa de ecoturismo de Cantanhez, na componente histórica, sob a designação de “turismo da saudade”. Com ela pretende-se voltar a colocar Gadamael no mapa das tabancas com pleno direito ao desenvolvimento, tirando-a do isolamento e abandono em que ela se encontra.

A população local está entusiasmada, tendo escolhido o local onde o Museu será instalado (antigo abrigo e caserna dos soldados) e assegurando o seu envolvimento na reconstrução.

Todos os que pretendam apoiar esta iniciativa com fotografias de boa resolução, documentos, relatos, aerogramas, outras recordações e mesmo contributos para as obras de reconstrução, podem contactar o Embaixador do Museu de Gadamael em Portugal, companheiro Manuel Vaz, mais conhecido por Alferes Vaz,  quando por lá esteve em 1965-67; ou então contactar diretamente a AD (adbissau.ad@gmail.com).
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terça-feira, 10 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12025: Efemérides (142): Inauguração do Monumento aos Combatentes em Avintes, dia 14 de Setembro de 2013 (Antero Santos)

1. O nosso Camarada Antero Santos (ex-Fur Mil Atirador/Minas e Armadilhas da CCAÇ 3566 e da CCAÇ 18 - - Empada e Aldeia Formosa -, 1972/74), enviou-nos o seguinte programa/convite:

INAUGURAÇÃO DO MONUMENTO AOS COMBATENTES DE AVINTES

Dia 14 de Setembro de 2013 (próximo Sábado)

Caro Luís Graça

Já o devia ter feito há algum tempo mas somente na passada semana ficou decidida a data de inauguração do Monumento aos Combatentes de Avintes.

Agradeço o favor de dar publicidade a este evento no blogue...

Junto foto da localização e ainda o texto em que o autor Arquitecto Octávio Alves descreve o Monumento. 


MONUMENTO AOS COMBATENTES

No próximo Sábado, dia 14, vai realizar-se a inauguração do Monumento aos Combatentes de Avintes.

O programa é o seguinte:

10:00 - Concentração junto ao Monumento;
10:30 - Recepção dos convidados;
11:00 - Cerimónia de inauguração.

"OS QUE TOMBARAM DEIXARAM EM ABERTO UM VAZIO" 

Vamos prestar a homenagem que é devida a todos os que participaram da Guerra do Ultramar, especialmente aos nossos dez conterrâneos que tombaram ao serviço da Pátria:
04/08/1961 -ANGOLA - Joaquim de Sousa Ferreira - CCAÇ 168/BCAÇ 159
05/09/1965 -GUINÉ - José Rocha da Silva - CCAÇ 1421/BCAÇ 1857
23/06/1967 -GUINÉ - Francisco Monteiro Almeida - CCAV 1616/BCAV 1897
20/10/1968 -MOÇAMB - Manuel Ferreira de Almeida - BCP 12
01/07/1970 -MOÇAMB - António Manuel R.Ferreira - CART 1646/BART2901
16/12/1970 -MOÇAMB - José Franc. Campos Costa - CART 646/BART2901
15/07/1972 -GUINÉ - Idílio Costa Moreira - 38ª CCMDS
26/09/1072 -GUINÉ - José Costa Oliveira - DFE
02/01/1973 -MOÇAMB - Joaquim Costa Gonçalves - CCAÇ 3310/BCAÇ 3834
10/07/1974 -GUINÉ - António dos Santos Sousa - CENG 9147


Associação de Combatentes de Avintes

Antero Santos 


MONUMENTO AOS COMBATENTES DE AVINTES

Os que tombaram deixaram em aberto um vazio, rasgando vãos que nunca serão em vão. Deles se aprende a olhar o futuro e a gritar bem alto a voz da consciência colectiva, que se foi construindo, deitando por terra juízos de valor dum determinado tempo.

Não é de pedras mortas nem de pesadas baixas feito o MONUMENTO, mas de corpos com sangue vivo a pulsar e pureza de alma a abrir o espírito e a dar corpo às perdas, que a história se encarrega de transformar em ganhos, após apuro da máxima responsabilidade, concedendo o devido perdão ao passado e colocando em estado de alto teor de alerta o futuro.

Talhados somos para o construir.

Não se pretende tosco, mas sim revelador de planos de identidade com as três dimensões (comprimento, largura e altura) fiéis ao princípio da unidade universal.

O MURO NÃO CRIARÁ BARREIRA INTRANSPONÍVEL, mas será a sobreposição ordenada de valores, na justaposição do singular com o plural e do plural interesse na singular forma de o construir.

As fronteiras são traçadas para desafiar a passagem.

Aproveitam-se oportunidades de ampliar horizontes, avaliando o pisar dos riscos, e incentivando a sua transposição.

Quando o corpo já não o consegue fazer, o espírito encarrega-se de prosseguir viagem até que o pacto de sangue de corpo e espírito se estabeleça e em comum possam manifestar firmes convicções na existência.

Acidentes de percurso podem levar tudo a perder.

Na Perda se encontra o vazio mais profundo, aí se iniciando uma luta titânica, corpo a corpo, instante a instante, juízo a juízo de princípios de vida que hão-de ajudar a encher a alma até transbordarem fins dignos de condição Humana.

Guerra aberta de princípios e fins (desde o início aos fins dos tempos), gera significações com rodagem constante de sujeitos, predicados e complementos a céu aberto, pela conquista das razões primordiais, na primeira linha de combate.

No plano concreto da existência, surgem ataques em toda a amplitude do ser... Cegos, se levados às últimas consequências.

Em legítima defesa justificam ataques.

Em ataque, se defendem, na barricada oposta.

Cerrando fileiras, abre-se fogo, no posto de trabalho forçado pelas circunstâncias, atraiçoando postos de vigilância lúcida e justa dos tempos.

ALGUNS TOMBARAM,

Dizem que tombaram, dando corpo ao manifesto, mas em terrenos movediços consolidaram posições.

Viva voz se ergue e com dor de alma se aponta o dedo ao vazio resultante do acerto de pontaria, no desacerto do alvo.

Terá valido a pena a queda na Primavera da vida, pela posse indevida da terra?

Debruçam-se interrogações a tentar decifrar nomes e razões pelo sucedido, para encontrar explicações credíveis.

Erguem-se vozes aos céus, a apelar que a trajectória da bala tracejante do passado, não se propague ao futuro.

Presente, O ESPÍRITO COMBATENTE, em silêncio e profundo respeito pelo MONUMENTO aos que tombaram longe, continuando a ser exemplo, situado bem no íntimo do peito, ensinando a entoar, precisamente neste momento a canção da PAZ.

Octávio Alves 

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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:



Guiné 63/74 - P12024: Blogoterapia (234): É muito difícil para mim falar da guerra da Guiné (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 6 de Setembro de 2013:

É muito difícil para mim falar da guerra da Guiné.
Porque eu não quis essa guerra nem as das outras colónias.

Três ou quatro anos antes de ser mobilizado comecei a fazer uma reflexão sobre a sua justiça e sobre a sua utilidade e cheguei à conclusão que humanamente não era justa nem sequer útil para Portugal.

Para esse estudo baseei-me em jornais e revistas menos afectos ao regime que a censura permitia e nalguns livros poucos, recordo um livro escrito por um exilado romeno que defendia as ideias do regime (ainda tenho esse livro, na aldeia, já não sei onde). Nesse tempo nunca pertenci a nenhum grupo politico ou associação ideológica de qualquer tipo. As conclusões a que cheguei foram pois independentes e autónomas, naturalmente influenciadas pelas leituras que fiz.

Atendendo a isso travei uma batalha muito desgastante comigo mesmo para decidir qual a melhor atitude a tomar. Quando não se toma nenhuma atitude, os outros tomam-na por nós. Foi o que me aconteceu, obrigaram-me a ir para a tropa e a ir para a Guiné lutar por uma causa que eu considerava perdida.
Outros já tinham entendido o mesmo e muitos outros entenderam isso depois, incluindo estrategas políticos e militares.

Foram muitos, que eu não conheci, que fugiram para a Europa livre, muitos por caminhos difíceis de contrabandistas.
Alguns deles só por medo, e outros porque resolveram votar (e ter voz) da única forma que o regime lhes permitia, com os pés.
Estes últimos admirei-os a par dos outros, esses foram um milhão ou mais, que na década de sessenta fugiram em massa à miséria a que estavam condenados.
Outros houve, encontrei alguns na Guiné, que com mil pretextos ou cunhas procuraram a paz e a segurança de Bissau, não eram maus tipos, talvez só tivessem medo e não tivessem tido a coragem de fugir para a França.
Por causa desses, tendo eu já 17 meses de "mato" em Buba, quando a CCAÇ 2616 regressou, fui empandeirado para a CART 2732 em Mansabá.

Na altura não me queixei porque talvez eu não quisesse mesmo ficar em Bissau, a aturar os burocratas da guerra, Não gostei foi do abuso e falta de consideração das chefias de Bissau.
Aos beneficiários "activos" desses atropelos das regras, sem os apreciar tolero-os.

Lisboa > 4 de julho de 2012 > A lista infindável de mortos... 1969, 1970, 1971, 1972...
Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.

A minha homenagem vai sobretudo porém para todos os camaradas que morreram ou ficaram estropiados no fogo cruzado do regime e dos movimentos de libertação, alguns deles pouco crentes nessa luta.
Vai igualmente para todos os outros combatentes que, por convicção própria, se bateram com coragem por Portugal pois foi como um chamamento da Pátria que entenderam a sua ida para as várias frentes de combate. Muitos deles pertencentes às tropas especiais também por lá ficaram e outros regressaram com marcas terríveis duma guerra atroz.

Continuo a pensar em todos eles com muito respeito e admiração.

Um abraço a todos
Francisco Maria Magalhães Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11868: Blogoterapia (233): A Bem da Nação!... A Medalha Comemorativa das Campanhas das Forças Armadas Portuguesas, Guiné 1968/70... (António Azevedo Rodrigues, Comando de Agrupamento 2957, Bafatá, 1968/70)

Guiné 63/74 - P12023: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (10): Alô Bissorã, cheguei!!!

1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70), com data de 6 de Setembro de 2013:

Caro Carlos Vinhal.
Camarada e Amigo.
Meu caro Editor.
Conforme acordámos, aqui tens o episódio número 10 da série "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".
Dele farás o que melhor for julgado.
Quero explicar a razão daquela cor sépia que apresentam as duas fotografias de Bissorã. Naquele tempo eu fotografava em slides. E deu-me para colocar (esperteza a minha...) um filtro laranja na lente da máquina. O resultado foi aquilo, não há nada a fazer, não há Photoshop que as salve.

Um abraço que estendo a todos os camarigos.
Armando Pires


FURRIEL ENFERMEIRO, RIBATEJANO E FADISTA

10 - ALÔ BISSORÃ, CHEGUEI!

Portanto, o DO aterrou em Bissorã eram nove da manhã.

Nem fanfarra nem guarda de honra à minha espera.
Apenas um Unimog para me levar a mim, mais ao correio e outras mercadorias que o avião transportara.

Sem esquecer, evidentemente, o Machado, o meu cabo enfermeiro, que viera receber-me, dar-me as boas vindas, e levar-me ao comando onde era devida a minha apresentação ao comandante da companhia.
Duas ou três centenas de metros após termos saído da pista de aviação, seguindo por uma estrada pejada de tabancas de um lado e do outro, primeira surpresa. Entrámos numa enorme rotunda, cuja, ao centro, tinha um monumento em honra de Raimundo António Serrão, que foi governador da Guiné entre 1949/53, na qual desaguavam, contou-me o Machado, as estradas que vinham de Mansoa, a sul, de Mansabá e Olossato, a leste, do Barro, a norte, e onde havia, na tal rotunda de que vos venho falando, o edifício, pasmei, dos correios.
- Ó Machado, mas aqui há correios?
- Há sim, furriel, quando quiser telefonar à família vem aqui – começou ele a “ciceronear” – e aquela casa ao lado é a enfermaria civil, onde nós vamos dar consultas.
- Nós?? - Gritei eu, já a pensar em que trabalhos me ia meter.
- Ó furriel, não comece já a enervar-se que ainda é cedo. Depois explico-lhe tudo.

E como quem quer desviar conversa, o Machado, que tinha esse condão de me irritar primeiro para me acalmar depois, apontou para um enorme casarão que ficava na outra extrema da rotunda e anunciou:
- Ali é a casa do administrador de Bissorã.

Bissorã – 1969/70 – A rotunda de Bissorã. Ao centro, o monumento a Raimundo Serrão. Depois, e da direita para a esquerda, os correios, a enfermaria civil e a sede da administração da vila.

O Unimog fez a rotunda em direcção à casa do administrador e, mesmo em frente à escadaria do edifíco, havia uma rua para a esquerda, vedada por uma cancela que ergueu para nos dar passagem. Era uma rua longa, sempre a descer, ainda que ligeiramente, que começava com duas vivendas, uma à esquerda, “é a casa do comandante”, disse o Machado, outra à direita, “aqui é a messe dos oficiais”, precisou o meu inestimável cicerone, e continuando por aí abaixo foi dizendo, “aqui são as casernas e o refeitório do pessoal… aqui a igreja (como se fosse preciso dizer)… esta casa à sua direita é a secretaria da CCS… também lá fica o posto de rádio, o centro cripto e o centro de mensagens… tudo ali… atrás é o paiol das munições… tá a ver, furriel, os espaldões dos morteiros?”, e já estávamos no fim da rua, com o Unimog outra vez a virar à esquerda mas a parar logo ali.

Tínhamos chegado ao edifício do comando do batalhão.

Era outro casarão, composto de rés-do-chão e primeiro andar. Em cima dormiam os oficiais, em baixo, um enorme espaço preenchido com secretárias onde trabalhava o pessoal da secretaria, e dois gabinetes para os comandantes. Num deles estava o capitão Alcino, comandante da CCS, a quem pedi licença para entrar e me apresentei.

- As férias foram boas, ó Pires?

Bissorã – 1969/70 – À entrada do quartel, as duas árvores que davam sombra às vivendas do comandante e da messe de oficiais. As casernas e o refeitório dos praças, a capela, à direita a secretaria e as transmissões, e lá no fim, onde se vê frondosa árvore, a secretaria do batalhão.

Faltava-me cumprimentar o “meu doutor” Oliveira para ir ao que mais ansiava. Saber das minhas coisas que, recordo, tinham ficado em Bula quando eu parti para férias.
- Ó Machado, onde é que está o doutor Oliveira?
- Está lá em cima, na enfermaria.
- Vamos lá.

E seguimos, agora por uma rua mergulhada na sombra de enormes mangueiras, e o Machado, sempre na sua função de cicerone, a dizer-me que “aqui à esquina é o clube, onde se junta a gente fina cá da terra e onde à noite, quando calha, a malta vem ao cinema… aqui é que o furriel tem de vir comer, é o tasco do Lavinas, um português que fez aqui a tropa (CCAÇ 1419) e ficou cá… aqui é a oficina de armamento e já chegámos”.

"Chegámos onde?" – perguntei cá para dentro de mim, acabado de entrar numa espécie de beco onde só via, ao fundo, as oficinas auto e, ao lado, uma casita azul com uma porta mal amanhada a que se tinha acesso subido três degraus de cimento.

Pois. Era aí a enfermaria.

Entrei e à direita, atrás de um secretária, rodeado de prateleiras com medicamentos, estava o doutor Oliveira a dar consultas.
- Viva, doutor!
- É Pires! Então pá, como é que estava lá a nossa terra?

Não sei se também vos aconteceu, mas parecia não haver ali ninguém que, ao ver-me, não perguntasse “como estava a nossa terra”.
Cumprimentei o resto do meu pessoal, João, Maltez e Teixeira, fiquei a perceber que naquele cubículo, além da secretária do doutor só cabia mais uma marquesa, vi que havia uma ligação para outro espaço atrás daquele, mas tão acanhado quanto ele, com lugar para seis camas montadas em beliche.

- Ó doutor, então isto é que é a nossa enfermaria?
- Já viste pá, com o barulho das oficinas ao lado, está aqui uma merda jeitosa para um gajo recuperar de uma carrada de paludismo.
- Bem, se o doutor dá licença, preciso de me desfardar, tomar banho e saber das minhas coisas.

Não foi necessariamente por esta ordem. Eu queria, acima de tudo, saber das minhas coisas.
E esclareçamos.
As minhas coisas, para além das pouco relevantes, para o caso, peças do fardamento que ficaram em Bula, eram os livros, as fotografias que decoravam a cabeceira da minha cama, as bonecas em miniatura como amuletos, o corno do Aleixo, o cinto do “Rapina” (ver foto em P11567) e, ainda mais importante, a minha mala.

Importante pelo valor afectivo que lhe tinha, ou melhor dizendo, pelo valor afectivo que lhe tenho.

É uma pequena mala de cartão, dentro da qual a minha mãe meteu a roupa com que eu aos quatro anos de idade… repito, aos 4 anos de idade… fui entregue, em Santarém, aos cuidados do revisor do comboio que me levou com destino ao Porto, cidade que adoro e onde fiquei 2 anos, até à idade de entrar para a escola.

Não sei o que levou a minha querida e saudosa mãe a guardar aquela mala, sei que foi dentro dela que eu levei para a Guiné o que me era precioso, que dentro dela tais preciosidades regressaram a casa, e é dentro dela, dentro da “minha caixa dos segredos”, como já por duas vezes aqui lhe chamei, que guardo os meus tesouros.

Com os amigos partilhamos o que de melhor temos. Aqui têm a mala dos meus tesouros, a “minha caixa dos segredos”. No fundo da mala existem mais tesouros. Mas esses respeitam a outras vidas.

Pois quem levou a mala para Bissorã foi o Filipe, furriel miliciano vagomestre, a quem ainda hoje me liga uma sólida amizade, nascida em Chaves, onde formámos batalhão, quando ele, futebolista de pé quente, disparou de fora da grande área um tal pontapé que a este, que sou eu, guarda-redes de mãos rôtas, virou ao contrário o polegar da mão esquerda.

Apanhei o Filipe à porta do comando e avançámos em direcção à casa dos sargentos, ali a três dezenas de metros, num caminho que levava a Missirá.

Era uma habitação com uma ampla sala de entrada, onde se distribuíam doze camas. Ao centro uma porta de acesso a um estreito corredor que fazia separação a três quartos interiores. O Filipe conduziu-me ao quarto mais próximo da casa de banho e disse-me, “este é o nosso”.
Nosso porque só lá cabia a cama dele e a minha.

O Filipe tinha seguido a velha máxima do quem parte e reparte…
Sentámo-nos frente a frente na beira das camas e eu disse-lhe:
- Ó Filipe, mas isto não é um quartel. Bissorã não tem quartel.
- Pois não, Pires. Isto foi uma terra muito importante, um grande entreposto agrícola. Não sei se viste que todas as casas tem em anexo espaços que ou foram armazéns ou lojas. As casernas dos soldados eram enormes armazéns onde se guardavam as produções de arroz, mancarra e castanha de cajú. Quando começou a guerra, aos poucos, os portugueses foram embora, para Bisssau, ou até mesmo de volta a Portugal. Como o exército precisava de instalações, foi ocupando o que ficou vazio.
- E está cá muita malta?
- Não Pires, só estamos nós e uma companhia operacional, a CCAÇ 2444.
- E também ficam aqui connosco?
- Não, eles têm instalações separadas. Têm casa lá em cima, junto à casa do administrador, e também do outro lado do rio, no destacamento da Outra Banda. Se quiseres, a seguir ao almoço, damos lá um salto.
- Ó Filipe, estou podre de cansado. A seguir ao almoço quero é dormir um bocado.

A modos que a conversa terminava ali, posto que fomos almoçar à D. Maria, mulher do Sr. Maximiano, dois cabo-verdianos que recebiam uma subvenção da companhia para nos dar de comer.

Saímos de casa, e, quando íamos a atravessar a rua, quase fui abalroado por um gajo em grande velocidade numa motorizada que fez duas “chicuelinas” para me evitar, seguindo em frente sem dizer água vai nem água vem.

- Que é isto, ó Filipe?

Com um largo sorriso na cara, responde-me ele, “é pá, é o maluco do Rebola, furriel da 2444”.

Apresentado assim pelo Filipe, a espantação passou-me e pensei para com os meus botões:
- Queres ver que já estou com a minha gente?
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11994: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (9): Um reencontro para agasalhar a idade

Guiné 63/74 - P12022: Parabéns a você (625): Rui Baptista, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3489 (Guiné, 1971/74) e Tony Grilo, ex-Soldado Apontador Obus do BAC-1 (Guiné, 1966/68)

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12018: Parabéns a você (624): Filomena Sampaio, amiga Grâ-Tabanqueira e Raul Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 2.ª CART/BART 6522 (Guiné, 1972/74)

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12021: (In)citações (54): Revista do Expresso, de 24/8/2013, traz artigo sobre a vida e a obra do nosso camarada João Crisóstomo (Eduardo Jorge Ferreira)... E o nosso blogue gostaria muito de o ver condecorado num próximo 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas (Luís Graça)


Vilma Kracun e João Crisóstomo, no dia do seu casamento em Nova, 20/4/2012.  A história de amor de Vilma, cidadã eslovena, e do nosso camarada João Crisóstomo, já tinha sido publicada em The New York Times,de 28/4/2012, e antes disso no nosso blogue. . E chega também agora à imprensa portuguesa (Expresso, 24/8/2013).

O João Crisóstomo, natural de A-dos-Cunhados, Torres Vedras, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/66), vive em Nova Iorque desde 1975 e integra a nossa  Tabanca Grande  desde 26 de julho de 2010.


Foto: LusoAnmericano, 24 de abril de 2013 (Reproduzida com a devida vénia...)



1. Mensagem do Eduardo Jorge Ferreira [, foto à esquerda,] ,ex-alf mil da Polícia Aérea (BA12, Bissalanca, 1973/74), natural de A-dos-Cunhados, Torres Vedras, e amigo pessoal do nosso editor Luís Graça:

Data: 2 de Setembro de 2013 às 16:33

Assunto: Artigo do Expresso sobre o nosso camarigo João Crisóstomo

Caríssimos Luís  Graça e co-editores:

Regressado de umas curtas férias,  só ontem dei uma olhadela ao Expresso, de 24 de agosto,  e em cuja revista  me deparei com uma reportagem sobre o nosso camarada João Crisóstomo.

A par do muito que já se escreveu no Blogue sobre esta personalidade ímpar,  julgo que não seria demais voltar a falar dele a propósito de mais uma notícia na imprensa acerca da sua vida fascinante.

Como já foi descrito trata-se de um Português com P grande, de quem muito nos orgulhamos, pelo seu contributo para a defesa de grandes causas [, Gravuras Rupestres de Foz Coa, Memória de Aristides Sousa Mendes, autodeterminação de Timor Leste e do Sará Ocidental. .], e um ser humano de imenso coração e ao mesmo tempo de uma simplicidade e generosidade cativantes.

Em boa hora o João Crisóstomo começou a fazer parte da nossa Tabanca Grande e já todos conhecemos a sua história que agora vai chegando também ao grande público nacional. Foi um privilégio muito grande para mim tê-lo conhecido e à (agora) sua Vilma Kracun, bem como poder ter confraternizado com ambos, embora por muito pouco tempo, em companhia do nosso comum amigo Luís Graça e esposa.

Eduardo Jorge [Ferreira]

2. Comentário de L.G.:

Eduardo, obrigado pela tua oportuna mensagem. Também li o referido artigo na Revista do Expresso, edição de 24 de agosto último, e tinha intenções de fazer sobre ele um pequeno poste. O João e a  Vilma aparecem fotografados no Central Park, com um brilhozinho nos olhos, sinal de que estão felizes.

Para os seus amigos e camaradas, como nós, é um motivo de orgulho as elogiosas referências ao João Crisóstomo, na imprensa (nacional e internacional). Só agora, acabadas as férias, é que disponho de um pouco mais de tempo para publicar e comentar a tua mensagem. Para já, mando-te um abraço e um xicoração para a tua gentilíssima esposa, que só conheci recentemente, justamente no passado mês de agosto, na casa da Abelheira, Lourinhã, do casal Marteleira, Glória e Laurentino, nossos amigos comuns. (Não está esquecida a promessa de a tua querida esposa nos contar histórias do tempo da sua infância e juventude, em Bissau, ou pelo menos nos mandar fotos do seu álbum).

E o que eu queria dizer e reiterar, a propósito do nosso João, teu conterrâneo e meu vizinho, é que ele é um português da diáspora que nos honra a todos. Já fez por nós e por Portugal provavelmente muito mais do que muitos diplomatas de carreira juntos.

É pena que a casa civil do Presidente da República, a nossa diplomacia, os membros do Governo e os membros das ordens honoríficas portuguesas andem distraídos e ainda ninguém tenha proposto ou referenciado, ao que eu saiba, o nome do João Crisóstomo, como elegível para uma possível (, justissima, quanto a mim!) condecoração no 10 de junho.

Este ano, o 2013,  essa distinção teria sido a cereja no bolo. Que seja ao menos no 10 de junho de 2014. A nossa Tabanca Grande vai fazer força para isso!...  (Como se sabe, "a concessão de qualquer grau das Ordens Honoríficas Portuguesas é da exclusiva competência do Presidente da República como Grão-Mestre das Ordens", segundo leio no sítio oficial da Presidência da República).

As nossas mais calorosas saudações bloguísticas para o casal nova-iorquino João e Vilma, que espero poder rever e abraçar para o ano!
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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11825: (In)citações (53): Bem haja quem fundou o blogue, bem haja quem apreciou as crónicas do meu pai, e tu, pai, continua a escrever, peço-te. Da filha que te adora (Paula Ferreira)