terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12427: Boas Festas (2013/14) (2): Álvaro Vasconcelos, Amaral Bernardo, Eduardo Estrela, J. C. Lucas, J. Mexia Alves, João Lourenço, José Colaço, Tony Levezinho



Lisboa > Praça do Comércio > 1 de dezembro de 2013 > A "árvore de Natal" de 2013

Foto: © Luis Graça (2013). Todos os direitos reservados

1. Mensagens de boas festas (*), recebidas hoje até ao fim da tarde,  dos nossos bons amigos e camaradas  a seguir listados, por ordem alfabética



[ex-1.º Cabo Transmissões do STM, Aldeia Formosa e Bissau, 1970/72]

Obrigado, Luís. Retribuo com todo o carinho e adiciono saudações fraternas para todo o universo da família para as famílias!

Um abraço

 do Vasconcelos

(ii) Amaral Bernardo [ex-alf mil médico, CCS/BCAÇ 2930, e CCAÇ 5, Catió, Guileje, Bedanda, 1970/72]

Comungo o teu singelo e profundo sentimento em mais esta efeméride circadiana, como dizes.

Na verdade já estamos todos na fase das perguntas menos cómodas e com respostas... conhecidas, quer queiramos quer não! Mas nós ,apesar de tudo, já tivemos o privilégio de chegar até aqui! Pensemos nisto nos momentos menos bons.

Que no "outono" de uns e no "inverno" de outros esteja sempre a esperança e o apoio deste sentimento fraterno que nos une a todos (nesta Tabanca Grande que tu ergueste e governas) os que partilhamos as vivências de uma fase traumática e desestruturante das nossas vidas.

Que os teus votos e desejos formulados se concretizem TODOS!

Um quebra ossos forte, Amaral Bernardo
(iii) Eduardo Estrela
[ ex-Fur Mil da CCAÇ 14, Cuntima, 1969/71]

Luís!

Li atentamente a tua mensagem. Projecto em ti os meus votos de Boas Festas a todos os Tabanqueiros e suas familias. Acima de tudo e como referes no final do texto, torna-se necessário ter esperança.

È PRECISO ACREDITAR NO HOMEM!

Um grande e fraterno abraço, 

Eduardo Estrela




[ex alferes miliciano,  op esp, CCAÇ 2617, 
Magriços de Guileje, 
Pirada, Paunca, Guileje, 
1969/71]

Agradeço e retribuo os votos natalícios

J.C.Lucas 
Magriços de Guileje

(v) João Lourenço [, ex-alf mil, PINT 9288, Cufar, 1973/74]

Meu caro Luís, sem jeito para a prosa resta-me desejar-te, a ti,  e a todos os nossos “associados”… umas Boas Festas e que 2014 nos traga alguma esperança, que começa a faltar a quem está na reta final, muito longa,  esperamos, sem trabalho, somos demasiados...  

E, já agora,  que só conseguiu sair da guiné em Outubro de 74 e teve de pagar o bilhete na TAP…. Que 5 contos tão bem gastos, para não esperar ainda mais!...
Um alfabravo natalício, com alguma esperança,  João Lourenço


[ex-alf mil op esp,  CART 3492/BART 3873, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73] 

Meus amigos

Agradeço os votos e devolvo-os com o coração.

Um Feliz Natal e um Óptimo Ano Novo é o que vos desejo.

Abraços amigos do 

Joaquim Mexia Alves


(vii) José Colaço  [ex-Soldado Trms, CCAÇ 557, 
Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65]

Luís, só tu podias escrever esta bela, linda mensagem de Natal sobre o nosso blogue... 

Quanto ao resto, prognósticos só podem ser como no futebol; aqui não há resultados encomendados ou comprados. As nossas vidas não há dinheiro que as pague.

Um braço amigo.
José Botelho Colaço

(viii) Tony  Levezinho 

[ex-fur mil at inf, CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71]
JÁ NÃO TEMOS VINTE ANOS…

Correspondendo ao desafio que o texto, vertido pelo coração do meu velho camarada e, acima de tudo, amigo Luis Graça, titulo estas despretensiosas linhas com uma frase que retive do mesmo.

Na verdade, esta teve o condão de me fazer recuar aos já longínquos anos de 60-74, numa altura em que a vida da maior parte dos jovens portugueses foi abruptamente desviada e encaminhada para um rumo incerto, pleno de medos e sem a menor garantia de um seguro retorno ao ponto de partida.

Se com vinte e tais anos somos de tudo capazes, muitas vezes até, sem sabermos bem porquê, a verdade é mesmo essa: Já não temos vinte anos!

E dentro desta, tão inegável como irrecusável, realidade, aqui fica a expressão do meu profundo desapontamento pelo facto de, uma vez mais, estarmos a ser vítimas de um abrupto e violento desvio das nossas vidas, igualmente para um rumo incerto e, tal como então, sem a menor garantia de retorno, agora, não ao ponto de partida, porque a nossa caminhada já vai longa, mas ao natural trilho a que nossa respeitável idade vai, inexoravelmente, conduzindo o resto das nossas vidas.

Afinal, como podemos ser bons alunos se somos REPETENTES ?

Nesta quadra de tão forte simbolismo para a maioria de nós, os meus sinceros e amigos votos de Boas Festas. Tony Levezinho

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P12426: Tabanca Grande (414): Ainda o "zorba" Mário Gaspar (ex-fur mil, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), natural de Sintra, residente em Lisboa, e lapidador de diamantes reformado


Guiné > Região de Tombali >  Gadamael Porto> O Mário Gaspar,  em fins de Julho de 68, com população de Sangonhá e Cacoca, após a dasativação dos mesmos aquartelamentos. Esta população passou a viver em Gadamael Porto.

Foto: © Mário Gaspar  (2013). Todos os direitos reservados.

 1. Mensagem do nosso novo membro da Tabanca Grande, Mário Gaspar [, foto atual, à direita]

 Data: 9 de Dezembro de 2013 às 15:37
Assunto: Envio de foto tipo passe


Homem Grande da Tabanca, Camarada Luís Graça:_

Envio-te uma foto - o que envelheci! - e depois tento encontrar alguma em que esteja fardado.

Normalmente andava de calções, chinelos e tronco nu. Inventava dias diferentes, vestindo-me à civil ou sem o camuflado, e nestas circunstâncias aproveitava as fotos para enviar para a família, porque para eles...  "eu encontrava-me de férias em terras africanas". Até consegui enganar o meu pai!... Quanto à minha mãe o assunto era mais complicado.

Informo-te também que nasci na freguesia de Santa Maria e São Miguel, concelho de Sintra e distrito de Lisboa no dia 9 de Abril de 1943.

Depois de regressar da Guiné,  ingressei em Janeiro de 1969 na DIALAP - Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, como Lapidador de Diamantes. Eram mais de 600 trabalhadores na empresa, foram despedindo os "melhores lapidadores do mundo", a pouco e pouco, e já na parte final tocou-me a mim, fui dos últimos, isto em 1996.

Moro em Lisboa desde o dia que me casei.

Um abraço para o Homem Grande da Tabanca, Luís Graça & Camaradas da Guiné
Mário Vitorino Gaspar


2. Comentário de L.G.:


Grande Mário, obrigado!... Obrigado pelo envio da tua foto atual [e, mais uma, fardado, em Gadamael, meados de 1968], que irá servir-nos para identificar os teus escritos, associando o teu nome à tua imagem...

Já agora, temos que nos encontrar um dia destes... Eu trabalho no Lumiar, a seguir ao estádio do Sporting, junto ao Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, mais exatamente na Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP/UNL)...

E, já agora também, por  teres trabalhado na Dialap até 1996 e teres sido um dos melhores "lapidadores do mundo", imagina que eu, ultimamente, tenho feito formação para pessoal de saúde, na Ilha de Luanda,  na clínica do grupo angolano Endiama, herdeira da Diamang...

Como vês, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!... Mas tenho pena que talentos como os teus e os dos teus colegas da Dialap sejam assim deitados fora, com o fim de um empresa... Quanto saber, quanto saber-fazer, quanta experiência, quanto capital humano é desperdiçado todos os dias neste pequeno país que o melhor que tem são... os portugueses e as portuguesas!

Bom, depois da tua breve apresentação à Tabanca Grande, prepara aí mais umas histórias dos Zorbas, que a malta adorou!... Luís Graça

[Foto acima, à esquerda: edifício fabril e administrativo da Dialap/Diamang, fachada principal, atual sede da RTP, Av Marechal Gomes da Costa, nº 37, Lisboa....Projeto de 1960/66, dos arquitetos Carlos Manuel Ramos e António Teixeira Guerra, notável exemplo da moderna arquitetura industrial portuguesa. Foto: DE/IPPAR, reproduzida com a devida vénia, disponíve,l no sítio do IGESPAR > Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico.]
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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12412: Tabanca Grande (413): Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art, MA da CART 1659 - Zorba (Gadamael e Ganturé, 1967/68)

Guiné 63/74 - P12425: O nosso livro de visitas (171): Manuel Vitorino, ex-Fur Mil do BCAÇ 4518 (Cancolim, 1973/74)

1. Mensagem com data de 29 de Novembro de 2013, enviada ao Blogue pelo nosso camarada Manuel Vitorino (ex-Fur Mil do BCAÇ 4518, Cancolim, 1973/74), jornalista, editor do Blogue Mau tempo no Canal, a propósito da sua recente viagem à Guiné-Bissau:

Amigo Luís Graça, boa noite
Acabei de chegar da Guiné-Bissau onde estive quase um mês. E estou a escrever várias crónicas no meu blogue: Mau tempo no Canal
Se puder poderá partilhar no seu cobiçado blogue as crónicas. Agradeço. Sou Jornalista e tenciono escrever mais textos sobre o país e suas gentes.

Fui Furriel miliciano Atirador (mais Minas e Armadilhas) e fiz parte do BCaç 4518, em Cancolim, frente Leste, próximo de Bafatá. Estive na guerra entre 1973 e 1974.

Agora, 40 anos depois, regressei ao país de Cabral. Sem saudosismo, memórias de guerra, ou qualquer tipo de catarse. Fui em missão de paz através de uma ONG, o Mundo a Sorrir e porque aquela gente merece ser feliz.
O resto vem nas crónicas do blogue. No futuro outros trabalhos darão à estampa.

Grande abraço
Manuel Vitorino


2. Comentário do Editor:

Já fui espreitar o Blogue "Mau tempo no Canal" do nosso camarada Manuel Vitorino.
Além de outros temas, a ler, tem uma série de textos e fotos imperdíveis relativas à Guiné-Bissau, fruto da sua recente viagem àquele país irmão. As postagens dividem-se entre o dia 1 - Regresso à pátria de Cabral -, aqui reproduzido com a devida vénia, e o dia 18 de Novembro de 2013 - Futebol e circo, mais circo do que pão.
Aconselho vivamente uma visita e leitura atenta.

Aceitando a oferta do nosso camarada, partilhamos hoje o poste do dia 1 de Novembro.
Prometemos voltar lá e dar à estampa os restantes artigos sobre a Guiné de hoje.

Aproveito para deixar aqui o convite ao Manuel Vitorino para fazer parte da nossa tertúlia. Poderá colaborar connosco com textos e fotos do seu tempo combatente na Guiné, assim como da Guiné-Bissau de hoje.

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Em Bafatá, num casa humilde nasceu Amílcar Cabral. O edifício é hoje um centro de estudo e memórias. 

Estou a pouco menos de 24 horas de aterrar na pátria de Cabral, um dos heróis da minha juventude, o único merecedor de honrarias em toda a história (trágica) da Guiné-Bissau, o líder incontestado deste pequeno país de África. Cabral não foi só o líder do PAIGC que desafiou a Ditadura de Salazar/ Caetano ao declarar a independência nas matas de Medina de Boé, antes o visionário e sonhador de um país livre, fraternal e independente, o guerrilheiro e intelectual admirado pela comunidade internacional. Infelizmente, a Guiné-Bissau volatizou-se. Em golpes e contragolpes, transformou-se numa placa giratória do tráfico internacional de droga com níveis de pobreza extremos, onde a esperança média de vida ronda os 50 anos, onde falta quase tudo. Só a palavra esperança não foi riscada do mapa.

Um aviso à navegação: não vou à Guiné-Bissau por nostalgia ou recordação de alguma façanha de guerra. Sou anti-herói. Estive na guerra colonial entre 1973/74 (Batalhão Caçadores 4518, 2ª Companhia de Caçadores, Cancolim, Bafatá) mas o destino e a sorte andaram de mãos dadas: durante o tempo em que por lá andei nunca dei um tiro, nunca o aquartelamento teve um ataque do PAIGC, nunca a companhia sofreu uma emboscada. Nada de nada. Adianto um pequeno pormenor: caso o PAIGC tivesse colocado as suas armas na mira de Cancolim as nossas tropas não tinham qualquer hipótese de sobrevivência. Morríamos todos. Não tínhamos preparação, estratégia, força anímica, capacidade de resposta. Por isso, quando aconteceu o 25 de Abril – o dia mais feliz da minha vida – e meses depois zarpei de Bissau em direcção a Lisboa (onde a bordo do Uíge ouvi vezes sem conta “Wild World”, de Cat Stevens) senti um enorme alívio, um sentimento único de Liberdade, a certeza que os dois povos tinham muito a aprender em termos de cultura, conhecimento, partilha, história. E um património linguístico que os sucessivos governos até hoje têm desbaratado.

Quarenta anos depois vou regressar, finalmente, a Bissau. Na bagagem transporto muitas memórias deste pedaço de África, um povo maravilhoso, humilde, fraternal, amigo, mais as cores e aromas da paisagem, as mangas e as papais que saboreei em doses duplas para enganar a fome e revejo as lavadeiras com os seus trajes coloridos a caminho da bolanha, a luta diária pela vida travada pelas mulheres, as crianças subnutridas à entrada do aquartelamento e por instantes, recordo a manhã onde escutei pela primeira vez os gritos lancinantes da jovem vítima de circuncisão genital. Está tudo gravado na minha memória. Como o futuro começa hoje decidi voltar à Guiné-Bissau com vontade de aprender, ajudar quem mais precisa e perceber como se pode viver com tão pouco a troco de quase nada. Se calhar vou ficar mais rico. Cabral ka muri/mori (Cabral não morreu).



Publicado 1st November por Manuel Vitorino
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12391: O nosso livro de visitas (170): O crachá da CCAÇ 1498, Có, Binar e Bissau (Joaquim Vidigueira Ferreira, ex-fur mil, Amadora)

Guiné 63/74 - P12424: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (27): Mandela só houve um, infelizmente só um... Provavelmente o homem africano mais certo, no momento certo, no país do oiro...



O novo sítio da Fundação Nelson Mandela, o projeto de arquivo digital Nelson Mandela, com apoio do Google > Nelson Mandela Centre of Memory


1. Mensagem de  António Rosinha [, fur mil em Angola, 1961; topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979: ou, como ele gosta de dizer, colon, em Angola, de 1959 a 1974; cooperante na Guiné-Bissau, de 1979 a 1993] [foto à direita, Pombal, II Encontro Nacional da Tabanca Grande, 2007]


Data: 10 de Dezembro de 2013 às 00:20

Assunto: Ouro da terra de Mandela e os "invejosos"


Envio, com a devida vénia ao © Google Earth (2013), uma imagem geral e um pormenor de uma das montanhas de solos doirados, retirados por mais de 100 anos das minas sul-africanas. (É possível calcular aproximadamente os metros cúbico daqueles montes.)

Durante 24 sobre 24 horas, ouro de 24 kilates saíu das minas e do esforço dos milhares de "carcamanos" e de milhões de negros vindos de Namíbia, Moçambique, Angola, Rodésia, Botsuana, Malawi , Zâmbia e mais países que a indiferença dos meus vinte e trinta anos esqueceu.

Até me admiro como me ficou tanto nome na cabeça. Mas agora aqui entra a explicação que se ouvia constantemente em Angola por muitos angolanos, moçambicanos e guineenses justificarem uma das razões para quererem ser independentes.

Principalmente brancos e mestiços em Angola diziam, nos anos da "paz colonial" antes de 1961, que se fossem independentes como os sul-africanos...!

E já falavam nas "paletes", "resmas" de oiro, que o Salazar e os portugueses atrasados escondiam e não deixavam explorar, principalmente em Angola que ainda era "mais rica" que a África do Sul. Sem falar no petróleo e nos diamantes e cobre que já eram conhecidos e explorados em Angola mas pouco!... Porque se fossem eles a tomar conta da terra deles...! [Não adivinhavam(mos) que haveria um ouro mais valioso de muitos kilates que foi Mandela.]

Claro que nunca se ouviam estas conversas aos milhares de velhos régulos, sobas que com seus filhos de zagaia na mão, e suas mulheres de enxada na lavra e filho às costas, também eram gente,

No tempo da "paz colonial" de Salazar,  e de certa maneira de Norton de Matos, de Henrique Galvão que também calcorreou um pouco de Angola, e foi governante, até parecia que era fácil fazer mais e melhor do que aquilo que se fazia com Salazar a mandar para lá o cólon.

Até se dizia que no caso de Angola ainda se faria de Luanda uma Nova York.

Os angolanos sempre tiveram a mania das grandezas e, lá está, Luanda até parece uma coisa descomunal. (Tabancas na vertical deve ser fantástico.)

Estas conversas não eram habituais em caboverdeanos, e no caso de Angola, onde eram muitos milhares, enchiam tudo quanto é repartição, e não se pronunciavam, principalmente de ilhas que não talvez Santiago.

Os caboverdeanos em Angola eram tantos e ocupavam tantos espaços, que quem tivesse um amigo caboverdeano, nem precisava de se dirigir às repartições tratar de qualquer assunto,  era um simples telefonema. Desde Notários, Alfandega, Finanças (fazenda),  Registos, Judiciária, Câmaras...lá estava um amigo verdeano para tratar do assunto, não era preciso ir para a forma.

As conversas naquela "paz colonial",  por exemplo quando foi das eleições de Delgado, em 1958, muitos falavam abertamente na perspectiva que sem o Antoninho a independência era possível. Não sei se pensavam qual seria o papel dos sobas e sua família.

Isto digo eu hoje, porque com 19/20 anos, sem direito a voto, eu só pensava em coisas mais interessantes.

O que era mais habitual ouvir a quem era funcionário, era o desejo de ver Salazar caír com a eleição de Delgado, pois há muitos anos que o Antoninho não n(os) aumentava.

Evidentemente que havia muitos angolanos, guineenses e moçambicanos que pensavam numa independência não só a pensar nas riquezas que "Salazar" não deixava explorar.

Mas havia muitos a misturar salazarismo e colonialismo, como se com outros como Delgado seria diferente, o que não era uma certeza, mas que havia na cabeça de muitos a ilusão que se fosse como na África do Sul, sem apartheid, era uma maravilha, havia muito "branquinho e mesticinho" com uma grande, enorme, descomunal ilusão.

E,  a provar isto, podemos constatar hoje, mas também logo em Março de 1961, foi o aparecimento no norte de Angola, de Holden Roberto e a sua UPA com suas chacinas racistas,  tribalistas, e até mesmo com laivos de separatistas, que marcou a luta do MPLA, PAIGC e FRELIMO.

Holden Roberto era mais pró Mugabe do que pró-Mandela. Mandela só houve um, infelizmente só um. Provavelmente o homem africano mais certo, no momento certo na país do oiro.

É bom que assim seja. Muitos outros homens africanos foram errados no momento errado no país certo. Mais do que o ouro, o grande valor da África do Sul foi Mandela.

Todos os Africanos deviam ser Mandelas, mas há muitos que são mais Mugabe.

Cumprimentos e fico-me por aqui,

Antº Rosinha





África do Sul > Joanesburgo > Soveto > Restos de explorações mineiras ("mine dumps") > Imagens do © Google Earth (2013), selecionadas pelo nosso topógrafo António Rosinha, e  reproduzidas aqui  com a devida vénia...

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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12373: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (26): Nós, tugas, somos mesmo estranhos...

Guiné 63/74 - P12423: Memória dos lugares (258): Bissau, 1968, aquando da visita do Presidente da República à Guiné (José António Viegas)



1. Em mensagem do dia 3 de Dezembro de 2013, o nosso camarada José António Viegas [foto à esquerda] (ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 54, Guiné, 1966/68) enviou-nos estas fotografias históricas da visita do então Presidente da República, Almirante Américo Tomás, à Guiné, no ano de 1968. Nelas vemos a cidade de Bissau limpa e bonita, em festa, como era timbre na época, para receber o mais alto magistrado da Nação.





O segurança da direita foi o Director da Pide em Faro, tinha um filho Furriel que estava na altura na Amura, e que mais tarde foi jornalista do Jornal o Jogo, chamava-se Murilho Lopes. O repórter é o Artur Agostinho.





O individuo que se vê a cabeça no enfiamento do carro era o dono da Kodak perto do escritório da TAP na Amura


Ronco dos Felupes


Fotos (e legendas):  © José António Viegas  (2013). Todos os direitos reservados.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12383: Memória dos lugares (257): Ilha das Galinhas em 1968 (José António Viegas)

Guiné 63/74 - P12422: O que é que a malta lia, nas horas vagas (14): a 2ª CART/BART 6523, atirada para Cabuca, nas profundezas da mata do Leste, teve de facto uma Bibliioteca (com 400 livros), um jornal (O Abutre) e uma Rádio!... (Ricardo Figuiredo)

1. Mensagem de Ricardo Figueiredo (ex-fur mil, 2ª CART / BART 6523, Cabuca, 1973/74), membro da nossa Tabanca Grande desde 19/1/2011


Data: 5 de Dezembro de 2013 às 20:04

Assunto: Biblioteca. O que se lia durante a Comissão


Meu Caro Camarada e Amigo Luís Graça,

Não pude deixar de responder ao teu desafio e,  recorrendo ao meu arquivo, posso afirmar com orgulho que a 2ª CART/BART 6523, atirada para Cabuca, nas profundezas da mata do Leste, teve de facto uma BIBLIOTECA, um JORNAL e uma RÁDIO.

Publicado no primeiro número do nosso jornal "O ABUTRE", passo a transcrever ipsis verbis ( por impossibilidade de o digitalizar com alguma qualidade) um artigo por mim assinado e então com o título "A NOSSA BIBLIOTECA":

"Desde que cheguei a Cabuca logo pensei em criar uma biblioteca para assim,nas horas vagas, nos podermos dedicar um pouquinho à leitura e, consequentemente,  aumentar a nossa cultura geral. Sim, porque isto de estarmos destacados no mato tem por vezes certos inconvenientes e um deles é o nosso apaixonamento gradual pela literatura destrutiva ou ainda pelas célebres histórias aos quadradinhos. Efectivamente assim tem vindo a acontecer.

"Assim, um dia falei com o Comandante da Companhia e expus-lhe o meu plano respeitante àfundação de uma biblioteca. Ele aceitou-o com a melhor das boas vontades e logo se prontificou a apoiar-me dentro das suas possibilidades.

"Mas logo um problema surgiu: onde instalar a biblioteca ? Claro que tivemos de ponderar bem sobre o assunto,uma vez que não dispunhamos de instalações apropriadas nem possibilidades de construção.

"Mas pensando bem, se uma criança em qualquer lugar se faz, uma  biblioteca em qualquer lugar se há-de instalar! Vai daí não estivemos com meias aquelas. À sala do soldado,  como era enorme, facilmente se poderia roubar um bocadinho. E assim foi! Arranjou-se um entreleado de canas e aqui se faz jus aos habilidosos africanos pela maneira simples e funcional como as fazem,e vai de fazer a divisão da sala. Arranjaram-se umas prateleiras com os caixotes dos géneros, pintaram-se e colocaram-se na parede. Arranjaram-se quatro mesinhas e outras tantas cadeiras, pintou-se o distintivo da Companhia numa parede, decorou-se a outra com peças africanas, desde o colar à celebre catana e...agora será melhor ir mais devagar: arranjaram-se alguns livros, poucos, mas bons. Verdade! Uns gentilmente oferecidos pela FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN a uma Companhia que já por aqui passara, outros da RTP e também generosamente oferecidos pela EDITORIAL VERBO por intermédio do MOVIMENTO NACIONAL FEMININO a uma outra Companhia que por aqui igualmente passou e alguns conseguidos pelo FUR MIL MARQUES.

"Mas para que a biblioteca possa atingir aquele nível satisfatório será necessário que mais alguns livros cheguem até nós e que todos procurem dar a sua colaboração,não só na indicação desta ou daquela obra, como também procurar mandar vir de lá de casa, do canto do sótão ou da cave, debaixo daquele ferro velho, aquele livro que lá está esquecido e que tanta falta aqui nos faz.

"A biblioteca é nossa! Ela é para nós! A ela vamos buscar nos nossos momentos de ócio, um bocadinho de cultura e distracção.

"Aqui vos deixo pois este apelo, certo de que convosco continuarei a poder contar e que assim o meu sonho,que afinal é o vosso se tornará uma realidade. "

Este artigo, como já referi,  fazia parte do primeiro número do jornal "O ABUTRE", também por mim coordenado,  teve uma edição de 120 exemplares ( O 1º Sargento AZÓIA, é que não gostou muito do número de exemplares, pois dei-lhe cabo do papel e do stencil) e para além da distribuição nos abrigos e messe, foi enviado para as Escolas Práticas,  MNF, Editorial Verbo, FCG e outras entidades, para além de alguns dos nossos familiares. E de retorno chegaram-nos alguns livros, chegando a nossa biblioteca a ter cerca de quatrocentas obras,de quase todos os Autores Portugueses: Eça, Garret, Castelo Branco, Júlio Dinis, Aquilino e até Nemésio, entre outros.

E porque referi o 1º Sargento Azóia, não posso deixar de
. transcrever parte de um artigo por ele assinado e publicado
no nosso jornal "O ABUTRE" , para que possam ver que após algum tempo também ele comungou com os Milicianos o dinamismo que discretamente lhe "impusemos":

"Parece-me mentira mas é pura verdade.

"Eu que já ando nestas andanças desde 1961 e tendo já cumprido duas Comissões em Moçambique e uma em Angola e sempre estive no mato integrado em Companhias Operacionais,  nunca encontrei um punhado de bons rapazes que,  em vez de pensarem em si próprios, pensam antes de mais nada nos outros, que por motivos vários não tiveram a felicidade de poderem ir mais além na sua cultura. Pois graças a esse punhado de rapazes, que arregaçaram as mangas e sem olharem a sacrifícios de toda a ordem, especialmente pelo isolamento em que vivemos, esses rapazes dizia eu, já puseram a funcionar aulas para a 4ª Classe e Ciclo Preparatório, uma Biblioteca ondejá temos um número de livros muito engraçado e onde todos nós podemos requisitá-los para melhor passarmos os nossos momentos de ócio e iremos ter um jornal diário do Porto,o Jornal de Notícias (não esquecer que 80% do pessoal é nortenho) e três vezes por semana o jornal A Bola. Montaram um Posto Emissor interno, que quando só podemos estar nos respectivos abrigos nos proporciona umas horas de boa música. Um campeonato de Futebol inter-pelotões e ainda o nosso jornal "O Abutre".
"Foi só isto que este punhado de rapazes já fizeram e segundo parece ainda não querem parar aqui."

Como vês, a 2ª CART/BART 6523 , apesar da sua muita actividade operacional, procurou sempre ocupar os tempos mortos da melhor forma possível, minorando o sofrimento e o isolamento de todos os seus elementos.


Os textos transcritos foram-no ipsis verbis,para respeitar a memória dos factos.


Portanto, o P12393 [em que se diz que não havia bibliotecas no mato]  ficou sujeito ao contraditório !

Um grande abraço e obrigado por tudo quanto nos têm dado !

Ricardo Figueiredo
Ex-Fur Mil At Art
 2ªCart/Bart 6523,
Cabuca, 1973/74

[Foto acima, à direita: um jagudi. Foto: © João Santiago & Paulo Santiago (2006). Todos os direitos reservados]

2. Comentário de L.G.:

Uma obra notável para menos de um ano de comissão no leste (agosto de 1973/junho de 1974)!... É pena é que não tenhas mandado uma capa do vosso jornal de caserna, "O Abutre"... Não o encontrei na coleção de capas de jornais de unidades que constam no sítio da biblioteca do Exército (, um total de 240 capas, das quais 40 são referentes a unidades do CTIG). Quando puderes, manda digitalizar as edições que tiveres...  Presumo que sejam poucas. Fazer um jornal a stencil dava muito trabalho...

Quanto ao apoio da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), é interessante o que escreves. Sabemos muito pouco da acção da FCG no eventual apoio (oferta de livros, essencialmente...) às "miniblibliotecas" militares, existentes nos teatros de operações, em África, durante a guerra colonial. Não sabemos se esse apoio era institucional, ou se era meramente casuístico, resultante de pedidos isolados ou se era feito através do Movimento Nacional Feminino. Também havia o apoio da RTP, da editorial Verbo...

Em contrapartida, é de sublinhar e louvar a iniciativa (histórica) da FCG,  substituindo-se ao Estado, ao criar o Serviço de Bibliotecas Itinerantes, em 1958... Eu próprio beneficiei muito desse serviço, quando adolescente e jovem, na minha terra.

Leia-se aqui, a propósito, no sítio Bibliotecas Itinerantes:

(...) "Fundação Calouste Gulbenkian: Ainda em 1958, baseado na experiência pioneira de Branquinho da Fonseca e sob a sua direcção, foi criado pela Fundação Calouste Gulbenkian, instituição privada, o Serviço de Bibliotecas Itinerantes, com o intuito de tentar resolver um problema: o da educação pós-escolar dos cidadãos.

"As bibliotecas itinerantes ou carros-biblioteca levavam a bordo cerca de dois mil volumes arrumados nas estantes. Nas prateleiras de baixo, encontravam-se os livros para crianças, nas prateleiras do meio a literatura de ficção, de viagens e biografias e, por fim, nas de cima os livros menos procurados, de filosofia, poesia, ciência e técnica.

"Em 1962 existiam 47 bibliotecas itinerantes, o número de leitores rondava os trezentos mil e os livros emprestados atingiam os 3 milhões.

"Durante a ditadura salazarista, que assentava a sua acção na manutenção da censura e do obscurantismo da sociedade portuguesa, o livro e a leitura eram um luxo e também, uma actividade arriscada. Foi, no entanto, a acção levada a cabo pela Fundação Calouste Gulbenkian que dotou o país de uma rede de bibliotecas coerente, com o objectivo principal de alcançar e promover o gosto pela leitura."(...)


Para saber mais sobre  o Serviço de Bibliotecas Itinerantes da FCG, lert aqui uma comunicação, de fevereiro de 2004, de Daniel Melo, do ICS/UL: "Leitura e leitores das bibliotecas da Fundação Gulbenkian (1957-1987)".

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Nota do editor:

Último poste da série >  9 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12418: O que é que a malta lia, ns horas vagas (13): No meu caso O Alviela, de Alcanena, o Popular como era aqui o caso, a República, o Século ou o Diário de Noticias, O Mundo Desportivo, o Record ou a Bola, a Plateia, o Mundo de Aventuras, etc. (Carlos Pinheiro)

Guiné 63/74 - P12421: Parabéns a você (662) Fernando Barata, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2700

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12415: Parabéns a você (661): Amaro Samúdio, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3477 e Armandino Alves, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 1589

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12420: Memórias da minha comissão em Fulacunda (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, 1972/74) (Parte V): Rezando ao mesmo Deus... e (sobre)vivendo num ambiente concentracionário e claustrofóbico como eram os nossos aquartelamentos...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 1 > Cerimónia religiosa muçulmana, o Ramadão.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >Foto nº 1A > Cerimónia religiosa muçulmana, o Ramadão  (pormenor)



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 2 > Cerimónia religiosa muçulmana, o Ramadão


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 2A > Cerimónia religiosa muçulmana, o Ramadão (pormenor)


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 3 > Cerimónia religiosa muçulmana, o Ramadão


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 3A > Cerimónia religiosa muçulmana, o Ramadão (pormenor)

 

Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 4 > Soldados construindo a capela cristã.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 4A > Soldados construindo a capela cristã (pormenor)

Fotos (e legendas): © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição; L.G.]


 1. Continuação da publicação das Memórias da minha comissão em Fulacunda (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, 1972/74) (Parte V)


[Foto do Jorge Pinto, na época, à esquerda]


Em Fulacunda não havia igreja nem capela cristã. Também não havia mesquita apesar de a população,  maioritariamente Beafada, ser islamizada.

Durante o Ramadão, a população fazia as suas cerimónias religiosas debaixo de um frondoso mangueiro (fotos nº1, 2 e 3, publicadas acima).

Na foto nº 4, vê-se soldados construindo uma capela... Por iniciativa de alguns soldados houve permissão para a construção de um espaço católico de oração, no quartel junto ao refeitório.

Muitas vezes ao final do dia vi grupos de soldados a rezar o terço neste espaço por eles construído. Penso que nunca chegámos a receber a visita do capelão do batalhão, que vivia na sede em Tite, nem de qualquer outro clérigo católico.

2. Comentário de L. G.: 

Já no poste anterior (*), eu comentei o seguinte: vendo a serenidade com que tu, Jorge, apareces nas fotos, e ao mesmo dando-nos conta, pela informação que temos sobre Fulacunda, que estava praticamente isolada por terra, permito-me perguntar-te como é que o pessoal (guineense e continental) lidava com um ambiente concentracionário e claustrofóbico como deveria ser o desse "campo fortificado"... Ainda para mais vocês fizeram a comissão inteirinha em Fulacunda...

Em suma, qual foi o vosso segredo [, para além da fé, para os que eram crentes...] para poder manter a saúde física e mental ? E, em última análise, "sobreviver" ?

Eu sei que havia situações parecidas, mas o vosso isolamento físico terá sido um dos piores... (embora houvesse barco quinzenal, pelo lado sul; embora houvesse população; embora houvesse a FAP, etc.). Fico impressionado ao ler que nem sequer o capelão do batalhão, ali ao lado, em Tite, vos terá ido ver ou rezado uma simples missa... Um alfabravo. LG

PS - Já agora, lembras-te como é que passaste o teu primeiro Natal em Fulacunda ?  Em boa verdade, deves lá ter passado lá dois Natais: 1972 e 1973...
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Guiné 63/74 - P12419: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (7): Os macacos vermelhos

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 7

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

“Os macacos vermelhos”

Os elementos da base de Canjambari chamavam-nos “macacos vermelhos”, vim a saber isso mais tarde, por confissão de um desses combatentes do PAIGC, em conversa com um dos nossos, que, finda a guerra, visitou Jumbembem.

Não se sentiam muito seguros connosco por perto, com a nossa actuação eficaz. Temiam-nos, pelo menos, tanto como nós a eles. Mas não desalojavam. O terreno era-lhes propício, com muitos pântanos em volta. Foi nessa estrada que, pouco depois de vir passar férias a casa em Junho de 1964, ver meus pais, irmãos e família, mas também a Lili e família e outros amigos, um pequeno estilhaço, já mortiço, me fez um risco no supercílio direito. Dia 9 de Outubro de 1964. Coisa de nada, sem importância, só um primeiro susto, apagou-se com o tempo. Ainda tive no entanto que me haver com algumas formigas que tinham subido a farda por dentro e já exploravam as partes de um homem. Só sosseguei, quando a refrega terminou e baixei a roupa e toca a caçar e a matar… Nesta mesma emboscada, havia de ser ferido também o capitão da 488, Manuel Correia Arrabaça.

As férias haviam acontecido no mês de Junho, tempo de festas e romarias, nomeadamente a de Santa Luzia, em Nariz, onde fomos de bicicleta, eu e a Lili, e outros amigos. Custosa foi a despedida. Agora, já sabia para onde ia, para a fronteira mais próxima de perigos, alguns letais. Já não tinha a vantagem da inocência do sangue, nem desconhecia nada, já havia experimentado tudo na minha pele, na pele e no sangue dos outros. Lembra-me a Lucília Oliveira que, quando me fui despedir dela, chorei. Talvez as lágrimas também que não convinha mostrasse à Lili. As lágrimas de um coração que andava batendo asas dentro de outro, tão novo e tão cândido.

Em Jumbembem, construiu-se, a partir de um celeiro e de uma casa de habitação de um cabo verdiano que ali montara serração e havia dado de frosques, um dos mais pobres quartéis de toda a Guiné, e até esteve à beira de ir pelos ares. No dia 14 de Dezembro de 1964, um soldado por distracção, carregou um candeeiro com gasolina, em vez de petróleo. Ao acendê-lo, deu-se a explosão e o fogo logo se propagou. Foi o pânico geral. Toda a gente tentou retirar da camarata o que pode. Eu consegui salvar a máquina fotográfica, uma Olimpus Pen, dinheiro, o Diário e alguma poesia. Resultado imediato: fiquei sem calções, farda, uns óculos contra o pó e toda a roupa da cama. Mas o perigo maior estava no fogo a rondar os bidões de gasolina. Todavia, lá conseguimos extinguir o incêndio que poderia ter proporções desastrosas.

Não sei se nesta altura, quando se declarou o incêndio, usava barba, de cor dourada, cobrindo o rosto anguloso, onde sobressaía um nariz aquilino mais disfarçado no seu tamanho ou se apenas bigode normal, sem quaisquer pontas. Também cheguei a andar de cabeça rapada, coberta de iodo que supostamente evitava a queda de cabelo que se prendia naturalmente com a água que corria de bidões guindados numa armação. Sei é que, assentando arraial em Jumbembem, onde, por longe ou perto, volta e meia, rebentavam negros e perigosos arraiais de fogo, diurno e nocturno, conforme a disposição dos guerrilheiros, deu-me, não só para vestir as alvas túnicas dos fulas, gente boa e esperta, como para mudar de visual. Não para me disfarçar perante o inimigo, que, raras vezes via, mas que existia e mexia com os nossos nervos, mas para encobrir, no caso das barbas, alguma calacice e, no caso do bigode, sugerir um rosto diferente para enviar à madrinha de guerra. Divertia-me assim, deste modo e com estes detalhes, sem importância para o que andávamos ali fazendo. Mas uma coisa é certa. Como os caminhos e carreiros eram de terra vermelha, tanto o bigode como a barba depressa ganhavam a cor do barro. E não só, todo o corpo descoberto. Com o farto suor, o corpo era quase um lamaçal.


As barbas havia-as de rapar, quando consegui ir até Bissau para um tratamento ao estômago. Ao fim de não sei quantas tentativas e previsões, transcorrendo nisto vários meses. Diga-se que a proposta para a consulta externa fora feita em 27 de Dezembro de 1964 e previa que tal viesse a acontecer no princípio do próximo ano. Mas até que chegasse assinada… Tinha bastante tempo de mato e era natural que a luta e o desgaste tivessem causado alguns danos a nível do sistema nervoso que logo se repercutia no estômago. Não é que estivesse realmente muito doente, mas era o verdadeiro pretexto para para passar alguns dias no remanso de Bissau. De Março fiquei para o mês de Abril. Escrevia à Lili já no dia 1 de Abril, dia das mentiras, mas era a verdade mais desejada como aos muçulmanos a leitura do Alcorão. No entanto, o estômago não andava, de verdade, muito bom. Iria aproveitar para tirar radiografias, fazer análises ao sangue, também às fezes. A radiografia ao estôamgo estava marcada para o dia 2 de Abril

Jumbembem, 1964 - Um refeitório improvisado

Em Bissau me encontrei com o alferes Manuel Pires de Oliveira, de Oiã, e o furriel Victor Manuel Dias Santos, da Silveira, gravemente ferido em combate em 17 de Janeiro de 1964 na guerra do Como. Ambos estão já na terra da verdade. E foi aqui que quebrei o jejum do vinho, que se arrastava há sete meses. Bebi vinho verde, que acompanhava uma encomenda, destinada a um furriel do meu pelotão, que ia de vez para a metrópole, a fim de sujeitar-se a uma cirurgia que consistia na extracção de um estilhaço que lhe restava de uma última operação, feita há mais de um ano, na Ilha do Como, precisamente no dia 16 de Fevereiro, quando o nosso pelotão tinha a (má) intenção de envenenar a água de um poço. O capitão Arrabaça estava a fazer a cobertura com a Breda… e uma bala de “fogo amigo” atingiu-o. Era o afilhado da Professora Fátima Moreira, do Silveiro, o furriel Albano Jorge de Oliveira, de Braga.

Foi uma bela patuscada. Onde havia presunto e queijo, entre outros mimos do Minho. A mim cabia-me pedir-lhe desculpa e dizer-lhe que tudo estava muito bom.

Em Bissau, graças ao furriel Victor Seabra, do Troviscal, vagomestre, que tinha a trabalhar na rádio de Bissau a namorada, bela rapariga libanesa, com quem veio a casar mais tarde, tive oportunidade de ser entrevistado nos meados de Março, falar da escrita, sobretudo de poesia, e dizer algumas produzidas na Guiné, nomeadamente uma de amor, dedicada à Lili. Quem conduziu a entrevista foi o jornalista Carlos Barra.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12397: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (6): O casamento do Jaime e da Manuela, A macaca ciumenta e O dia de santo avião

Guiné 63/74 - P12418: O que é que a malta lia, nas horas vagas (13): No meu caso "O Alviela", de Alcanena, o "Popular" como era aqui o caso, a "República", o "Século" ou o "Diário de Noticias", "O Mundo Desportivo", o "Record" ou a "Bola", a "Plateia", o "Mundo de Aventuras", etc. (Carlos Pinheiro)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 3 de Dezembro de 2013:

Camarigo Luis Graça
Correspondendo ao teu desafio aqui vai a minha escrita sobre a minha leitura nos tempos da Guiné.

Um abraço
Carlos Pinheiro



O que é que a malta lia, nas horas vagas

… e onde, a certa altura, descreve, por exemplo, na noite de 28 de Fevereiro de 1969, estava eu numa dessas conversas, quando se deu o sismo em Lisboa que, sem ter causado vítimas, mesmo assim provocou estragos de monta. No BT chegaram a cair paredes. E o operador que estava a falar comigo ficou gago, tal foi o susto, ficámos sem falar alguns momentos e, por esse motivo, fui certamente a primeira pessoa a saber em Bissau que Lisboa estava a tremer

05 de Novembro de 2013

Depois do Post 12379 do Grande Chefe Luís Graça, não podia ficar insensível ao desafio e por isso aqui estou a dar nota do que lia, e não só, porque também se escrevia e até se telefonava, nos chamados momentos de ócio.

De facto, a vida passada dentro de quatro paredes não era propriamente agradável, porque muito monótona, entrecortada muitas vezes, vezes demais com as mensagens RELÂMPAGO/ZULO, a pedirem evacuações ou apoio aéreo, sinal de que camaradas nossos estavam em perigo, portanto, mesmo assim, em princípio, a nossa missão era nada, nem pouco mais ou menos, comparável com o que a maior parte dos camaradas passava no mato.

E disse em princípio, porque um dia também nos foram lá levar uma FBP, uma arma fantástica que até era capaz de disparar sem se dar ao gatilho – mas isso para aqui não interessa – porque “estava” previsto um ataque ao QG. E éramos nós, dentro das tais quatro paredes, com uma FBP na mão, que íamos defender aquilo. Mas, adiante, vamos em frente.

Ali lia-se tudo e mais alguma coisa, porque a nossa missão era ler e encaminhar as mensagens que nos mandavam pelo “buraco”, ou vinham do Posto de Rádio, mas nas tais horas mais descansadas também conseguíamos ler o que aparecesse e quando aparecesse e especialmente quando os nossos familiares nos mandavam um jornal da terra, no meu caso O Alviela, de Alcanena, o Popular como era aqui o caso, a República, o Século ou o Diário de Noticias, O Mundo Desportivo, o Record ou a Bola, a Plateia, o Mundo de Aventuras, etc.

Por exemplo, numa noite de Agosto de 1969, estava a ler o Diário Popular, já com algum tempo, como abaixo a foto exemplifica.



É certo que diariamente lia e relia Presse Lusitânia depois de ter interpretado os hieróglifos que o grande Radiot Irineu apanhava a uma velocidade estonteante, depois de passar as notícias de todo o mundo à máquina – Messa - a stencil e depois pelo duplicador AGestener a fim de a ir distribuir pelas Unidades de Bissau.

Tudo isto porque o Noticias da Guiné saía de vez em quando, quase sempre com notícias requentadas e as notícias da Presse, mesmo que passadas por vários crivos, eram notícias fresquinhas da costa.





Aqui estou eu, compenetradíssimo, a passar a stencil a Presse para depois fazer o resto.

Mas aqueles tempos também se passavam a ler o correio da família, porque “bate estradas” tinha sempre nos dias em que o Boeing da TAP chegava a Bissau, logo pela manhãzinha. E depois, como o S.P.M. era ali ao lado do S.T.M., até nisso éramos uns privilegiados na recepção do correio.

Mas os privilégios, se assim se pode dizer, não se ficavam pela recepção e leitura do correio mais em cima do acontecimento.



Também, de vez em quando se fazia uma exploração do rádio telefone com o B.T., a nossa Unidade mãe das Transmissões, na Graça em Lisboa, como se pode ver a seguir, aproveitava-se quando se apanhava um camarada porreiro e colaborante para se saberem novidades, como é que estava o tempo e tudo e mais alguma coisa. Por exemplo, na noite de 28 de Fevereiro de 1969, estava eu numa dessas conversas, quando se deu o sismo em Lisboa que, sem ter causado vitimas, mesmo assim provocou estragos de monta. No BT chegaram a cair paredes. E o operador que estava a falar comigo ficou gago, tal foi o susto, ficámos sem falar alguns momentos e, por esse motivo, fui certamente a primeira pessoa a saber em Bissau que Lisboa estava a tremer


Mas nas horas vagas não era só ler e escrever. Havia sempre momentos interessantes que a camaradagem sabia aproveitar. E Bissau não sendo uma cidade excepcional era o que de melhor por ali havia. E por isso todos os momentos livres eram aproveitados o melhor que se se sabia e se podia.

Por exemplo, na foto abaixo, lá estava este grupinho, numa feira do Sporting de Bissau a tirar a medida a esta “garrafita” de cerveja Sagres, depois de algumas “bazucas”, mais ou menos acompanhadas, já terem sido absorvidas com toda a calma da vida, mas sem se perder a oportunidade de se acompanharem os companheiros para que não ficassem registados nem vencidos nem vencedores.

Mas ainda sobre esta “garrafita”, devo dizer que mesma tinha cerca de dois metros e meio de altura e o diâmetro também era apreciável e proporcional à altura, mas estava vazia porque era de cartão, feita à mão no artesanato local e só servia de apelativo para as fresquinhas que por ali estavam à disposição de quem tinha “patacão”.


Os artistas desta foto, para além de mim próprio que estou de facto a tirar a medida ao objecto, à direita está o Eduardo, à esquerda está o Alves dos Santos e ao meio não me lembro já dos nomes. Mas à excepção do segundo a contar da esquerda, éramos todos do Centro de Mensagens.

Portanto, depois disto que dizer mais? A malta, sempre que podia, lia, escrevia, comia e bebia, para além de também resolver outros assuntos de carácter mais pessoal e sempre de acordo com a carteira de cada um.

A terminar, como já estamos em Dezembro, um Bom Natal para todos apesar da guerra anormal com que nos vão cercando nesta fase adiantada das nossas vidas quando no final de contas precisávamos de saúde e paz para os dias que nos restam, o que de todo em todo cada vez é mais difícil.

Bom Natal e que o 2014 não seja muito mais violento e nos deixe continuar a viver.
Carlos Pinheiro

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12414: O que é que a malta lia, ns horas vagas (12): O JN - Jornal de Notícias, que eu assinava... às vezes chegava-me à dúzias de cada vez Jorge Teixeira (ex-fur mil art, CART 2412, Bigene, Guidage e Barro, 1968/70)

Guiné 63/74 - P12417: Notas de leitura (542): "Na Nha Manera Di Odja", de Fernando Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Preparem-se para uma surpresa, temos aqui um poeta de primeira água e um doce cantar sobre as gentes, as rias, as fainas e os grandes valores guineenses. É bom ser surpreendido por um livro ignoto, um saber poético de grande calibre, capaz de nos perturbar com tanto amor, tanto intimismo, com tais e tantos estados de alma ligados a essa devoção guineense.
Pergunto-me como é que é possível escrever-se tão bem e ficar-se praticamente ignorado. E não têm razão em não conhecer este poeta Fernando Antunes, ele está disponível e a preço muito acessível.

Um abraço do
Mário


Na nha manera di odja (na minha maneira de ver)

Beja Santos

A literatura luso-guineense passou a ser uma realidade incontornável, é constituída por escritores guineenses que se debruçam sobre a realidade do seu país, em todos os géneros da ficção, editam ou não em Portugal, recorrem amiudadas vezes ao crioulo, a amargura e o desencanto são manifestos, em verso ou conto; e também por escritores portugueses, quase sempre rendidos à terra guineense e suas gentes, cantando, louvando, esperançando. É o caso de Fernando Antunes, cronista e poeta dotado de um fortíssimo afeto pela Guiné onde trabalhou e continua a visitar. Atento ao bulício, embasbacado pelas maravilhas da natureza, a observar a chuva, a ouvir os sons da tabanca e assim resumindo o que faz e porque escreve:
“Espanto-me ainda e sempre, com os cajueiros, papaeiras e tantas outras árvores de fruto, até ontem desconhecidas, com os palmeirais ou com os estranhos seculares e sagrados poilões.
É a fome na busca do silêncio e da intensidade do mundo que me rodeia, que observo e oiço, deixando que o pensamento mastigue e absorva todas as suas realidades.
Escuto a alma da Guiné como um branco que nada sabe, mas sente”.

E este livro de poesia “Na Nha Manera Di Odja”, Chiado Editora, 2011, é um assunto muito sério nos negócios do feitiço africano, um espantoso acasalamento de palavras e fotos, como alguém escreveu, “Um compêndio de geografia, gastronomia e antropologia, com valências de almanaque de artes e dicionário”. Um guia turístico que dá para ver (melhor, sentir) quanto a Guiné traz enamoramento a este branco que canta a bolanha, o baga-baga, as catervas de meninos, o trabalho, o Bissau Velho, os guineenses em Lisboa, o poilão sagrado, as marcas da presença portuguesa, os ofícios, até as conversas ao entardecer.

Provavelmente a pensar em Amílcar Cabral, assim arranca o poema “Uma notícia importante corre como o vento”:
Esta é a terra que um dia ouviu a palavra
Palavra prenhe, nascida em Bafatá
gestação de uma vida ansiosa de liberdade no seu chão
E correu nesta terra de diversas etnias, no povo de muitas ilhas
Calada, dita pelos olhos e atos, gritada lá fora para se fazer ouvir.

No termo do poema, a esperança ou vaticínio salta como uma mola:
A palavra procura a terra humana que lhe dará força
onde se há de fundir em dias límpidos de cristal
espalhar a sua verdade
Então far-se-á linguagem na universalidade das etnias
será pão e vinho, livro aberto na página da liberdade.

Fernando Antunes explora sensorialmente a previsão dessa esperança onde ele investe a luta da palavra, para ela concorrem palavras luminosas, uma escrita sossegada, de alguém que domestica o tempo, a saudade, a habitação dos lugares e a promessa dos devires. Aí representam-se, esses devires, por belezas do presente, são os meninos a quem ele designa por “semente na demanda da doçura do orvalho/ da fertilidade do solo, para germinar em sã árvore de fruto”. A força desta poesia serena é nada ali aparecer rebuscado ou com trabalho de dicionário para substituir o talento, a imanência criativa. As crianças são faladas e enquadradas pela pobreza que as espera mas o voto é pujante, a exultação absoluta: “cresçam na alegria de um tempo seguro/ caminhem em frente pois deixou de ser tempo/ de olhar para trás, e um dia, talvez, descubram a utopia”. A Guiné é medida com os filhos da terra, o tchon, e o poeta enfeitiça-se de prodígios: uma imensa mancha verde, terra suculenta, mãe extremosa, terra de veredas, densas florestas, terra de sol intenso e de chuvas copiosas, e poeta acentua que se está a falar da Guiné: “Terra onde acarinha mininu e se ouve respeitosamente/ conselho de omi garandi, se venera todas as coisas vivas/ onde a vida é curta e o sonho arde nas veias”.

Poesia dos elementos, das cores, dos aromas e do peso do tempo, como ele escreve no poema “Desde que o mundo é mundo” e por ordem arbitrária: vento húmido viscoso, rios em ziguezague que procuram o oceano, no silêncio ouve-se a brisa, o balancear da vegetação… e como a sua poesia é costurada com paciência e tenacidade, assim se exalta o trabalho, que tanto o comove: “Os homens são gigantes pacientes, lançando as redes nos rios/ vergando as costas nos arrozais, ouvindo os ancestrais/ este é o seu reino, o pano que lhes cobre corpo e alma”. Mas é também um português magoado, há para ali um amargor ou ressaibo de indignação quando percorre o Bissau Velho, então salta-lhe o pensamento, vem-lhe à memória outros lugares: “Habito Bissau pelo equívoco dalgumas atitudes/ entregue ao acaso, sem vontade de rumo traçado/ no esquecimento doutros amores, doutras latitudes”. E que belo poema sobre esses guineenses que se espalham ali para a sombra da Igreja de S. Domingos, onde turistas curiosos e gentes da Guiné se misturam no Rossio, estão para ali os homens da diáspora, as conversas correm, há notícias da distante pátria que aquecem os corações, aterraram nesse canto de Lisboa como num mar de lembranças, estão ruídos de saudades, procura uma realidade que por vezes já não é a sua, são acima de tudo filhos de uma pátria madrasta, enredados na teia dos seus sonhos mais íntimos.

Enfim, o poeta compraz-se com a picada, o encantamento arquitetónico das moranças, o movimento da mulher que caminha na bolanha, questiona o santuário nos animistas, ali reina o poilão sagrado, ali Deus está em toda a parte, ali se entregam segredos e se regressa mais leve e tranquilo. Fernando Antunes trava confronto com as situações simples de onde extrai uma lírica grave: a condição da mulher velha, a presença portuguesa na ponte do Saltinho, uma canoa escavada que segue no Geba, questiona um homem sentado à porta de casa, enaltece o costureiro, detém-se diante de uma escola guineense numa remota aldeia e por vezes a sua lira extrai acordes por pequenas cidades, a Bafatá quase mourisca, Cacheu depósito de estátuas de ilustres do passado, mas também Bolama, a esquecida, Catió tão longe, Mansoa tão perto. Não esquece a estação das chuvas, onde o céu se abra em grossas e abundantes lágrimas, há para ali relâmpagos que parecem espadas de fogo a que se sucedem sons roucos dos trovões. E o caju? Vejamos o seu poder inebriante em Fernando Antunes: “Na densa floresta dos cajueiros me perdi/ sentindo seu perturbante cheiro vagabundo/ em sua sombra descansei, alguns frutos colhi/ Sequioso, os frutos mordi/ avultou o cheiro húmido e doce da terra/ Um soluço de ser feliz, senti”. E também inebriado com a beleza da mulher, não se deixa tolher pela sensualidade, uma lascívia no olhar: “Pernas esguias, negras, coxas suculentas/ promontórios siameses, de mão cheia, doces, eretos/ em teus olhos a confissão de entregas totais, lentas/ sorriso de satisfazer os desejos mais secretos/ Corpo de mulher/ ondulando em modo de rendição/ herdeira genuína das tardes preguiçosas, fim de entardecer/ meu caminho indeciso, minha sede, minha perdição/ minha ânsia sem limite, meu desejo de me perder”.

Comove-me este poder elegíaco, este poder intimista, este gosto de passear os olhos pela crosta da terra, pela fileira das árvores, ouvir as águas a correr e até apreciar a comida, é uma gastronomia que lhe está tão entranhada que ele canta o óleo de palma, a siga de carne com mariscos, a galinha à cafreal, a sopa de cacre, o chabéu. Mas o prazer de exaltar artistas plásticos guineenses que sempre o surpreendem, como o Diamantino, o Carlos Barros, Luís Lacerda e os irmãos Júlio.

“Na nha manera di odja” é um belíssimo livro, garanto-vos eu, há humores de poeta que cintilam por aquela gente, por aqueles veios líquidos e por aquelas lalas e bolanhas que nos fazem suster a respiração, tal a sinceridade, o ímpeto neste doce canto que se evola da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12399: Notas de leitura (541): "Contos de Guerra", de Guilherme Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira (2) (Mário Beja Santos)