sábado, 9 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13478: Bom ou mau tempo na bolanha (61): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (1) (Tony Borié)

Sexagésimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.




Olá companheiros, ainda se lembram de mim?

Estou de novo convosco, tenho acompanhado, na medida do possível, o nosso blogue, o comandante Luís, de férias, que espero já caminhe bem e coloque a sua máquina fotográfica, em posição de “acção”, dispare fotos “a torto e a direito”, às vezes em frente a um espelho velho, partido e usado”, que até ficam “originais” e, acompanham aqueles poemas, que, ao lê-los, (não sei se é assim que se escreve), até parece que estamos lá no “sítio”, de onde eles falam, o Carlos Vinhal, que me manda, de vez em quando, algumas notícias do pessoal ou de coisas da Guiné, saia por alguns momentos do seu “posto de controle”, que deve de ser alimentar o nosso blogue no seu computador, vá lá à praia de “Massarelos”, (com a sua esposa), pois não vá alguma “girl”, apanhá-lo em “fato de banho”, apanhar algum sol, nem que seja por algumas horas por dia e, os restantes companheiros, alguns, muito bons colaboradores do nosso blogue, que com os seus resumos de guerra, críticas, lembranças, comentários, alguns “maldosos”, outros “confortáveis”, nos vão passando alguns momentos gratificantes, neste mundo, que se vai indo, cada vez pior, pelo menos para os mais jovens, pois nós, habituados à “guerra e ao sofrimento”, já pouco nos “apoquenta”, porra, não sei outra vez, se é assim que se escreve!.!.


Uff, já cheguei a casa, só de loucos, que viagem, pensava fazer 14.000 milhas e fiz mais de 15.000!
Não sei como vos vou explicar todos os pormenores, vai ser uma “coisa por alto”, espero que não digam “é só umbigo”, pois nada mais me move, do que a intenção de compartilhar com todos os meus companheiros, esta experiência, por favor não vão dizer, “é só americanices”, (e se disserem ou pensarem, também compreeendo, pois as coisas do dia a dia, são difíceis de obter, pelo menos na nossa idade), mas companheiros, nunca usei hotéis de luxo, comi a maior parte das vezes do que cozinhava e, dormia também a maior parte das vezes na caravana, só quando o tempo não permitia, pagando algumas vezes o espaço que ocupava nos parques de campismo. O resumo que tento escrever é sincero, foi mais ou menos o que se passou, os principais momentos vão saber, pois vocês, que lá andaram, comeram o “peixe e arroz da bolanha”, merecem saber, talvez vos faça vir “ao de cima”, as célebres “colunas” para Mansabá, Bissorã ou Olossato.



Já chega de blá, blá, blá, cheguei, estou em casa, na Florida e, lá vai mais uma lembrança portuguesa, agora aquela cantiga do folclore alentejano que anda na boca de toda a gente, ou quase toda agente, que é mais ou menos, “Às quatro da madrugada, o passarinho cantou”.

Mais ou menos dois séculos depois, não tendo nada a ver com “exploradores”, “descobridores”, “pescadores” e “achadores”, foi a essa hora que acordámos, fazendo os últimos preparativos para a viagem, saindo de nossa casa, no estado da Florida, que foi explorada e colonizada pelos espanhóis, que a controlaram até 1819, quando foi comprada e anexada pelos Estados Unidos e, que fica localizada na região sudeste do país, sendo o estado mais meridional dos 48 estados da parte continental dos USA e, como quase toda a gente sabe, a principal fonte de renda da Flórida é o turismo.
O estado é conhecido mundialmente pelas suas diversas ofertas turísticas, que atraem anualmente mais de 60 milhões de visitantes, principalmente no inverno, vindos de outros estados americanos e de outros países. Estas atrações incluem inúmeras praias, aliadas ao clima relativamente ameno o ano inteiro., o parque de diversões Walt Disney World, a que muitas pessoas chamam “Disneylândia”, ou ao Centro Espacial Kennedy, que fica situado numa região a que chamam Space Coast, pois é lá que se situa uma Base da Força Aérea, de onde saem a maioria das naves espaciais dos USA, rumo ao espaço. Cabo Canaveral foi escolhido como local para o lançamento de naves espaciais, porque se situa muito próximo do equador e, desta forma, conseguir lançar uma nave espacial com a menor energia possível, aproveitando o movimento de rotação da Terra. Assim, as naves espaciais são sempre lançados para o leste, sobre o oceano, distante de centros populacionais.
Com aquele sentido de orientação que talvez tivéssemos herdado dos nossos antepassados navegadores portugueses, também tomámos um rumo de sul para norte, de leste para oeste, passando cidades vilas e aldeias, que nos levariam do estado da Florida até ao do Alaska, no mínimo espaço de tempo, e claro, despendendo a menor energia possível!.



Revisámos os últimos preparativos, tudo em ordem e saímos de nossa casa, às 6 horas da manhã, tomando a estrada número 95, no sentido norte, de seguida a estrada 10, de leste para oeste, atravessando um pouco do norte do estado da Florida, até à estrada número 75, que atravessa o longo estado da Geórgia que é o maior estado do país em área terrestre, a leste do rio Mississippi, embora o Michigan, a própria Flórida ou o Wisconsin, sejam maiores se a área ocupada por água for incluída, sendo a maior parte da Geórgia coberta por florestas, primariamente pinheiros, pessegueiros e magnólias. Quando entrámos no estado o terreno é plano e menos acidentado, já no norte é primariamente montanhoso. Dizem que o turismo e a indústria madeireira são importantes fontes de renda da Geórgia. À hora que atravessámos a cidade de Atlanta, tivemos alguma dificuldade com o tráfico, pois existe uma grande rede de estradas que se cruza nesta área e, se se não vai com muita atenção, não existe GPS que nos valha, e para os menos precavidos, são capazes de tomar a direcção do norte, quando a sua rota era o sul.

Já agora, não ficava bem se não vos explicássemos que a região que constitui atualmente a Geórgia fora disputada durante o final do século XVII e o início do século XVIII, entre o Reino Unido e a Espanha, quando então fazia parte de uma colónia chamada de Carolinas, que incluía também os atuais estados de Carolina do Norte e Carolina do Sul, depois por volta de 1724, os britânicos criaram a colónia de Geórgia, onde se instalaram na região, no que atualmente constitui a cidade de Savannah. Dizem que a Geórgia foi a última das Treze Colónias criada pelos britânicos e, claro, após a vitória americana na Revolução Americana de 1776, se tornou-se o quarto estado americano.


Já o sol ia alto, quando entrámos no estado de Tennessee, onde entrámos na estrada 24, com um tráfico, algumas vezes lento, com montanhas suaves em algumas zonas e agressivas em outras e, nós como levávamos um “atrelado”, que era nossa “casa ambulante”, que nos havia de valer “milhões”, em muitas situações onde havia zonas, (lá mais para o norte, ou já no Canadá e perto do estado do Alaska, onde a estrada seguia por mais de duzentas milhas sem qualquer alojamento, ou simples estação de serviço), fomos atravessando parte do estado do Tennessee, passando por algumas vilas ou cidades do actual Tennessee, que durante o período da colonização britânica da tal região das Treze Colónias, que na altura fazia parte do atual estado da Carolina do Norte e, era facilmente a região mais ocidental das antigas Treze Colónias britânicas. O Tennessee, por causa da cordilheira de montanhas dos Apalaches, era isolado do restante da Carolina do Norte. Após o reconhecimento da independência dos USA, por parte do Reino Unido, em 1783, os habitantes da região passaram a pedir a separação da região do atual Tennessee do restante da Carolina do Norte. Assim sendo, em 1796, o Tennessee separou-se da Carolina do Norte, tornando-se o 16.º estado norte-americano.


Sempre seguindo na estrada 24, no sentido sul norte, leste-oeste, entrámos no estado de Kentucky, que muitas pessoas acreditavam que a origem do nome do estado vinha de uma palavra “ameríndia” que significa "terreno de caça escuro e sangrento". Porém, atualmente, acredita-se que a palavra Kentucky possa ser atribuída a numerosos idiomas indígenas, com vários significados possíveis. Alguns destes significados são "terra do amanhã", "terra de cana e perus" e "terras pradas".

A região onde está localizado atualmente o Kentucky, como não podia deixar de ser, foi colonizada originalmente por colonos da colónia britânica de Pensilvânia, em 1774, mas passou a ser controlada pela Virgínia ao longo da guerra de independência, e tornou-se o décimo quinto estado norte-americano a entrar na união. Atravessámos a fronteira pela ponte sobre o rio Ohio, e dormimos na cidade de Marion, no estado de Illinois, cujas primeiras cinquenta milhas é deserto com algumas quintas com muitas vacas e com aquele cheiro característico dos currais que aquelas quintas têm.

Neste primeiro dia percorremos 868 milhas, com o preço da gasolina que variava entre $3.24 e $3.65 o galão, que são mais ou menos 4 litros.

Tony Borie,
Agosto de 2014.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13254: Bom ou mau tempo na bolanha (59): O Alferes Miliciano Bobone (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P13477: "Francisco Caboz", um padre franciscano, natural de Ribamar, Lourinhã, na guerra colonial (Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1913, Catió, 1967/69): Parte I: Passagem pela Academia militar aos 32 anos












1. Começamos hoje  a reproduzir aqui o testemunho de um camarada nosso, grã-tabanqueiro (*), que foi alf graduado capelão no BART 1913 (Catió, 1967/69), Horácio Fernandes.  

[Foto á esquerda, tirada pelo nosso saudoso Victor Condeço, 1943-2010, que foi fur mil mec armam, CCS/BART 1913]

Tenho  a  autorização verbal do autor (que  de resto  é meu parente e conterrâneo), nais de 50 anos depois do nosso último encontro, para reproduzir um excerto do seu livro autobiográfico, "Francisco Caboz; a construção e a desconstrução de um padre" (Porto; Papiro Editora, 2009, pp. 127-162), relativamente  à sua experiênciade como capelão militar na Guiné, muito marcante e decisiva para o seu futuro como homem e como padre.

O livro já aqui foi objeto de recensão crítica por parte do nosso camarada Beja Santos (**).

Francisco Caboz é o "alter ego" do Horácio Fermandes (n. 1935, Ribamar, Lourinhã). O  livro começou por ser uma tese de dissertação de mestrado em Ciências da Educação, pela Univeridade do Porto (1995): Francisco Caboz: de angélico ao trânsfuga, uma autobiografia.

O Horácio Fernandes vive no Porto.  Deixou o sacerdócio. É casado, tem 3 filhos. Foi o nosso camarada e amigo Alberto Branquinho quem descobriu o paradeiro do seu antigo capelão (***).

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Notas do editor:

(*) Vd poste de 12 de julho de  2012 > Guiné 63/74 - P10145: Tabanca Grande (348): Horácio Neto Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1911 (setembro de 1967 / maio de 1969) e BCAÇ 2852 (Bambadinca, maio/dezembro de 1969), nascido Maçarico, natural de Ribamar, Lourinhã, grã-tabanqueiro nº 565...

(**) Vd. psote de 3 de fevereiro dfe  2012 > Guiné 63/74 - P9439: Notas de leitura (329): Francisco Caboz, A Construção e a desconstrução de um Padre, por Horácio Neto Fernandes (Mário Beja Santos)

(..) “Francisco Caboz, A construção e a desconstrução de um Padre”, por Horácio Neto Fernandes (Papiro Editora, 2009), é um relato ímpar pela simplicidade do que documenta, pela coragem em pôr por escrito recordações por vezes pungentes da criança sofrida que o adulto guardou em bom recato. Algures, na Lourinhã [, Ribamar,] num ambiente de pobreza austera, um menino solícito e participativo nas fainas duras do campo e das pescarias do pai, guardou esculpido a cinzel as memórias de um meio rústico, das brincadeiras das crianças e da religiosidade dos actos litúrgicos, dos bodos e da catequese. Terá sido na escola primária, no princípio dos anos 40, que se sentiu impelido a ser padre. Com 11 anos partiu para o Colégio Seráfico, em Braga, partiu com o enxoval mínimo (...)

O padre construiu-se a partir deste colégio que era um pesado e frio edifício de quatro pisos, circundado por densa e verdejante mata (...)

Francisco não esqueceu a composição do pequeno-almoço, do almoço e do jantar, as diversões, os passeios, as orações e a composição dos estudos. É uma descrição por vezes arrepiante, o leitor segue-o pelos lugares, envolve-se nos sacrifícios e nas medidas disciplinares, Francisco é tão evidente que aceitamos que se tenha habituado a cumprir sem pestanejar, sentindo-se sempre devedor dos padres. Cresce e habitua-se a afastar as tentações da carne. Aliás, segundo o director espiritual, as mulheres catalogavam-se da seguinte maneira: as freiras que se tinham consagrado a Deus; as mulheres casadas, sobretudo as mães dos padres, porque tinham dado um filho a Deus; depois as outras mulheres que procriavam; e as solteiras eram sempre um perigo porque causavam maus pensamentos aos homens. No final do 5º ano partiu para o Convento do Varatojo, agora era um rapaz de fato preto e chapéu na cabeça, é aqui que ele vai fazer um ano de noviciado, aqui também há castigos e penitências para as faltas. A nova etapa serão três anos de curso filosófico e depois quatro anos de curso teológico, no Seminário da Luz, em Carnide. De vez em quando, Francisco corre o risco de ser expulso, uma vez enviam uma carta anónima denunciando um tio que vivia amancebado, era o suficiente para a sua expulsão, felizmente que tudo se esclareceu. Temo-lo agora padre, em Agosto de1959, começa a sua missão, reza missas em casas senhoriais, presta serviço religioso nas igrejas, é professor.

A desconstrução de um padre começa nas suas hesitações ou vacilações: está apto a exercer a sua missão de sacerdote? Se o autor carpinteirou admiravelmente o contexto onde nasceu um padre e o modo como ele foi construído, há que confessar que esta desconstrução é descosida, frouxa, perdeu o nervo, é uma narrativa arrancada à força, um testemunho que não agarra o leitor pela gola.

Imprevistamente, é indigitado para capelão militar, frequenta a Academia Militar, aprende a manejar a G3 e ouve o bispo de Madarsuma a explicar a razão do compromisso com a pátria e a razoabilidade da guerra aos terroristas, Portugal estava a defender a civilização cristã contra as agressões externas. É nomeado capelão militar no BART 1913, segue para Catió num DO pilotado pelo lendário sargento Honório. É logo praxado na sala de oficiais, à mesa, no almoço, o major passa-lhe fotografia com mulheres nuas e Francisco pergunta-lhe se eram fotos da mulher dele, valeu o médico do batalhão que conseguiu que o caso ficasse abafado. Temos uma descrição de Catió como uma vila isolada e cercada de florestas e rios com um administrador cabo-verdiano, um administrador adjunto alentejano e uma dúzia de cipaios; havia duas casas comerciais e um comerciante conservava o seu estabelecimento na outra margem do rio, num local chamado Ganjola, onde esteve um destacamento que depois veio a ser abandonado com consequências sérias para Catió. É uma descrição cuidada mas pouco vibrante, sabemos que houve ataques à sede do batalhão mas ele é praticamente omisso quanto ao seu relacionamento com os militares. Há igualmente uma descrição de Cabedu, um aquartelamento mais a sul onde Francisco apanhou um susto quando os guerrilheiros invadiram a pista e entraram na povoação. 


Pouco também ficamos a saber do seu múnus apostólico fora do quartel, ele é lacónico: “Francisco nunca foi visita assídua nem das populações nem dos comerciantes brancos. Naturalmente reservado, nunca actuou como se fosse o pastor do rebanho com as obrigações inerentes. Tinha o papel de capelão, procurava desempenhá-lo, mas pouco mais do que isso”. As suas homilias eram obrigatoriamente para falar do heroísmo dos nossos soldados e da vida difícil da Guiné. O BART 1913 foi rendido, Francisco foi colocado em Bambadinca, numa zona que ele classifica como a mais cobiçada pelo inimigo. Adoece e entretanto a sua comissão chegou ao fim, regressa em Dezembro de 1969. Com o dinheiro que juntou, vai estudar e ajuda a irmã, que está a tirar o curso de contabilidade. (...)

(***) Vd. poste de  17 de junho de  2011 >  Guiné 63/74 - P8437: Contraponto (Alberto Branquinho) (36): A construção e a desconstrução de um Padre

Guiné 63/74 - P13476: Parabéns a você (768): Anselmo Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 2315 (Guiné, 1968)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13473: Parabéns a você (767): Henrique Martins de Castro, ex-Sold Cond Auto da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13475: Manuscrito(s) (Luís Graça) (39): A felicidade ? É onde nós a pomos e onde nós estamos...












Tabanca de Candoz > 14 de julho de 2014 > O ninho das andorinhas residentes na Quinta de Candoz (1ª foto de cima)... E outras imagens que podem ser facilmente associadas à arte de ser feliz...

Fotos: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.



Não sei se as aves do paraíso são felizes…
por Luís Graça


Não sei se as aves do paraíso
são felizes.
Mas em Candoz poderiam  sê-lo.
Não há aves do paraíso em Candoz
porque Candoz fica no hemisfério norte,
longe dos trópicos e longe do paraíso
(se é que ele existe).
Dizem que as aves do paraíso
são as criaturas mais lindas do mundo.
Em Candoz, há outras aves, outros pássaros,
daqueles que rasgam os céus
e nidificam na terra:
não há perdizes,
ou, se existem, são poucas e loucas;
mas há verdes pombos bravos dos pinhais,
e rolas, de outras paragens,
alegres pintassilgos,
ruidosos pardais do telhado,
andorinhas, cada vez mais,
no vaivem das suas viagens,
mas também toutinegras, popas, verdilhões.
Há coros de rouxinóis,
outras aves canoras e canastrões,
melros de bico amarelo
que fazem seus ninhos nas ramagens 
das videiras do vinho verde.
Não há guarda-rios, de azuis e rubras plumagens,
à cota trezentos,
com o rio Douro ao fundo do vale,
a serra de Montemuro em frente.
Eça de Queiroz,
meu vizinho, da Quinta de Tormes,
deveria ter gostado de conhecer Candoz
onde os pássaros são livres,
e, se são livres, logo serão felizes.
Pelo menos têm grandes espaços para voar,
os pássaros de Candoz.
Claro que há os predadores,
o gaio, o corvo, o búteo, o mocho, o milhafre…
A liberdade é a primeira condição da felicidade.
Triste é o melro na gaiola,
mesmo que esta seja forrada a ouro.
A outra condição é a equidade.
E eu aqui presumo
que haja igualdade de oportunidades
na busca de alimentos,
de sítios para nidificar
e de parceiros para acasalar.
As andorinhas que por cá ficaram,
há mais de uma década,
parecem ser felizes.
São inteligentes, as andorinhas,
e façam análises de custo-benefício,
como qualquer economista.
Passam todo o santo dia a caçar insetos
num raio de 500 metros à volta do ninho
que fizeram no alpendre de uma das casas
em redor do fio da lâmpada exterior.
É uma insólita construção,
herdada de geração em geração
e todos os anos retocada ou reconstruída.
Já não voltam para o norte de África,
Ficam por cá,
as andorinhas de Candoz.
Se calhar fogem de Alá,
do alvoroço do povo
e dos tiros das Kalash.
Afinal, a felicidade está onde nós a pomos,
mas nós nunca a pomos onde nós estamos.



Lourinhã, 7/8/2014.

PS - Há 38 anos casei-me na Tabanca de Candoz,
com a Chita,
a minha “ave do paraíso”.
Foi o primeiro casamento civil do ano,
no Marco de Canaveses.
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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13459: Manuscrito(s) (Luís Graça) (38): Que viva la (mo)vida... e o choco frito do Bar da Peralta!

Guiné 63/74 - P13474: Notas de leitura (620): “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, por Artur Augusto da Silva (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2014:

Queridos amigos,
Era timbre de todos os trabalhos de Artur Augusto da Silva explicar o homem no meio, a sua identidade, a sua consciência cultural. Sempre pedindo aos curiosos e estudiosos que procurassem ver o africano sem o olhar redutor do europeu, a modos do “civilizado” que busca interpretar o pobre aborígene, de tanga e descalço, um troglodita que precisa de ser trazido para o asfalto.
Desta feita, o objeto de estudo são os Mandingas e os Felupes.
O autor possuía uma curiosidade insaciável, a Guiné foi a suprema doação do seu trabalho.
Homem sensível, escreve na dedicatória deste livro: “À Clara, a melhor das companheiras, lembrando-lhe que tudo quanto faço a ela o devo”.
Trata-se de Clara Schwarz, aqui tão saudada no blogue.

Um abraço do
Mário


Direitos civil e penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau (1)

Beja Santos

Artur Augusto da Silva foi um conceituado jurista que deixou vasta bibliografia nos campos jurídico, literário, artístico, etnológico e etnográfico, nomeadamente os seus trabalhos sobre etnias da Guiné-Bissau continuam a ser um ponto de partida para curiosos e estudiosos. É o caso de “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, 4.ª edição, DEDILD, Bissau, 1983.

Comecemos pelos Mandingas, um povo sempre viveu em regiões de savana, abertas ao ataque dos inimigos, cujos reis possuíram riqueza porque exploravam minas de ouro, chegando a possuir na corte um numeroso exército. O autor dá-nos um esquisso sobre a história dos Mandingas e a sua interceção com os diferentes grandes impérios africanos. Por exemplo, o reino dos Mandingas era tributário do Império Ganês, e no tempo de Sundiata Queita, aproveitando-se da fraqueza do suserano, atacou Gana, destruindo-a em 1240. Observa também o autor: “A capital do reino do Mali, dos Mandingas ou dos Malinqués, porque por estes três nomes é designado, parece ter sido a atual povoação de Cangaba, junto à nascente Baoulé, afluente do Senegal. Não longe desta povoação, existe a de Niani, na margem do Sankarani, afluente do Níger, e que também é apontada como a primeira capital do Império Mandinga”. Enfim, os Mandingas aparecem como portadores de uma civilização brilhante, dominaram os Estados vizinhos até ao Atlântico, o seu declínio começa em 1473 e no século XVI as invasões árabes dos Beni-Hassan, de Marrocos, levaram ao desmembramento do império. Praticamente os grandes escritores dos Descobrimentos falam dos Mandingas, caso de Duarte Pacheco, Valentim Fernandes, João de Barros e Álvares de Almada.

A progressão dos Fulas levou ao declínio dos Mandingas. No século XIX os Mandingas ocupavam as regiões de Farim e Gabu, em 19 de maio de 1867 os Fulas atacaram os Mandingas em Gan-Salá (também conhecida por Kansala), vencendo-os na batalha conhecida por Tura-bã. Passou o Gabu a ser uma dependência do reino Fula de Labé e os Mandingas aceitaram os novos senhores.

A expansão islâmica teve consequências de grande peso: a conquista de regiões que se muçulmanizaram e a fuga, para as costas oceânicas, das populações que não se queriam submeter. No Futa-Djalon, os Fulas desalojaram os Sossos, empurrando-os para a costa; estes, por sua vez, entraram em luta com os Nalus, obrigando-os a procurar refúgio na região costeira. Em confronto com o cristianismo, percebe-se porque é que os africanos aceitaram com maior facilidade o islamismo: permitia-lhes o casamento com mais de uma mulher e não hostilizava frontalmente as crenças ancestrais.

O Mandinga nos bilhetes-postais da Guiné portuguesa

Escreve o autor: “O comportamento islâmico não conhece qualquer separação entre aquilo que para um cristão é moral civil, direito e religião. Na estrutura teocrática desta religião, todos os elementos estão incindivelmente ligados enquanto nas sociedades ocidentais os princípios do bem e do mal foram definidos pelos teólogos, a responsabilidade e as sanções das obrigações laicas são objeto reservado aos juristas. Entre os muçulmanos, todo o comportamento humano é julgado, punido ou premiado unicamente pela religião (…) os povos animistas baseiam todo o comportamento humano no exemplo legado pelos antepassados. O direito nasce na comunidade e tem como fundamento a vontade daqueles que já morreram (…) Para os Mandingas islamizados, porque vivem numa simbiose das duas crenças, a lei é a vontade de Alá e aquilo que os nossos pais sempre fizeram, enquanto para os animistas a lei é somente aquilo que os nossos pais sempre fizeram".

Tece o autor considerações sobre classes sociais e castas e lança-se na organização familiar Mandinga. A família elementar é composta pelo marido, sua mulher e os filhos que desta tivera; a família composta compreende o marido, as suas diversas mulheres e os filhos destas e finalmente a família extensa que comporta todos os que estão ligados por laços de sangue e os que estão sujeitos ao mesmo chefe. Uma família Mandinga reconhece-se pelo uso de apelidos: Mané, Camará, Tchamo, Cassamá, Turé, Fati, entre outros. Quando o Mandinga fala na família tem em mente todas as pessoas que portadoras do mesmo sangue vivem sob a autoridade do chefe da morança (…) Os graus de parentesco não coincidem com os do direito Ocidental pois que todos os familiares da mesma geração se consideram irmãos, embora existam gradações diferentes entre os do mesmo pai, os dos mesmos pais e os de pais diferentes. Analisa sucessivamente o casamento e a sua dissolução, as interdições, obrigações, questões relacionadas com a compra e venda, o assalariamento, prova das obrigações, direitos reais, as diferentes formas de aquisição da propriedade, sucessões e Direito Criminal. Neste campo do Direito, passa em revista o homicídio, a resistência e revolta, a desobediência, elenca os crimes contra as pessoas (parricídio, infanticídio, homicídio, envenenamentos, assalto, violação e rapto…) e crimes contra a propriedade. Ao longo do estudo, Artur Augusto da Silva examina sucessivamente no campo das obrigações o que é permitido e interdito, a natureza dos contratos, os mecanismos da sucessão, os direitos reais.

Na apreciação que faz à propriedade, o autor recorda que quando uma família Mandinga abandona uma região para se ir fixar noutra e se apropria de um solo livre, procede-se a uma invocação dos espíritos do antepassados e só depois é que se iniciam as construções. A tal respeito, Artur Augusto da Silva deixa uma curiosa nota de rodapé: “Quando uma família Mandinga pretende fixar-se num local, procede à cerimónia denominada baco-mutó, que significa agarrar a terra, há que consultar a vontade dos donos do chão, o chefe da família ou da povoação pede licença ao dono do chão para se ficar ali, semeia a vagem de uma planta semelhante ao feijão que é regada todos os dias, durante sete dias. Se o feijão germinar, é sinal que o dono do chão não se opõe à ocupação". A propriedade foi sempre coletiva entre os Mandingas, mas observa o autor que hoje não há nenhum agregado Mandinga que respeite na sua pureza o conceito tradicional de propriedade.

Como sempre nos habituou nos seus trabalhos, Artur Augusto da Silva começa por tecer o pano de fundo, mostrar os homens no espaço e no lugar, confronta-o com a religião, as hierarquias, as estruturas sociais e as atividades produtivas e só depois desta contextualização socioeconómica e cultural é que se trava de razões com o direito, sempre numa perspetiva de que o europeu muitas vezes ilude as características primaciais do africano, daí o pano de fundo e daí a leitura se tornar tão atrativa e luminosa. Não terá sido por acaso que o livro abre com um provérbio Mandinga: “Quanto mais souberes, melhor compreenderás que nada é inútil”.

(Continua)

Um dos primeiros grandes trabalhos de António Carreira, historiador maior da Guiné
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13461: Notas de leitura (619): Revista África - Literatura e Cultura - “Três provérbios em crioulo, uma aproximação à universalidade dos ditos” da autoria de Teresa Montenegro e Carlos Morais (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13473: Parabéns a você (767): Henrique Martins de Castro, ex-Sold Cond Auto da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)


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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13460: Parabéns a você (766): José Nunes, ex-1.º Cabo Mec Electricista do BENG 447 (Guiné, 1968/70) e Rui Alexandrino Ferreira, TCor Reformado (Guiné, 1965/67 e 1970/72)

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13472: Efemérides (170): João Augusto Ferreira de Almeida - o único português fuzilado na I Grande Guerra (Benjamim Durães)

Tropas portuguesas desembarcam em Brest, França (1917).


1. Em mensagem do dia 3 de Agosto de 2014, o nosso Camarada Benjamim Durães (ex-Fur Mil Op Esp do BART 2917, Bambadinca, 1970/72), Presidente do Núcleo de Setúbal da Liga dos Comabatentes, enviou-nos este texto relatando a situação em que foi julgado e condenado, o único português fuzilado na I Grande Guerra.


JOÃO AUGUSTO FERREIRA DE ALMEIDA
O único Português fuzilado

JOÃO AUGUSTO FERREIRA DE ALMEIDA, solteiro, nascido a 03 de Abril de 1894, na Rua Alto da Vila, freguesia de Foz do Douro, concelho do Porto, filho de José Ferreira Almeida e de Angelina Augusta que trabalhava como chauffeur para um cidadão alemão de nome Höfle radicado na Foz do Douro – Porto conservando do patrão óptimas recordações, facto que porventura teria influenciado o seu comportamento de rebeldia e posteriormente a resolução que viria a tomar de se passar para o campo do inimigo.

Mobilizado como Soldado chauffeur n.º 956 pela Secção Automóvel de Transporte de Água da Unidade Territorial do 1.º Grupo de Companhias de Administração Militar.

É integrado no Regimento de Infantaria n.º 14 do Corpo Expedicionário Português (CEP), que embarca para França, por via marítima, dado que a Espanha não autorizava a passagem de militares pelo seu território por ser neutral, em 16 de Março de 1917 e desembarca em Brest – França em 21 de Março de 1917, que combateria na I Grande Guerra ao lado do XI Corpo do Exército Inglês.

Em Julho de 1917 é punido com 60 dias de pena correccional por mau comportamento, sendo transferido compulsivamente para a 1.ª Companhia do Regimento de Infantaria 23 para cumprir o mesmo na primeira linha.

No dia 29 de Julho de 1917 pelas 11 horas, e ao fim de 7 semanas na linha da frente, no sector de Neuchapelle, não muito longe da fronteira com a Bélgica e junto às trincheiras com os militares alemães a escassos metros, manifesta o seu descontentamento com a punição que estava cumprir, aos soldados Adelino Alves, de Pomares - Arganil, António Rei, de Vale de Pedra - Soure, e Francisco Alves Carneiro, de Álvares - Góis, todos do Regimento de Infantaria n.º 23, que não tenciona cumprir o castigo até ao fim e que só não desertara para os alemães por não conhecer o caminho até eles.

Armado com uma pistola “Savage”, que mostrou, abriu e exibiu os mapas que lhe viriam a ser apreendidos. E apontou-lhes a localização de pontos estratégicos, o Quartel-General, depósitos de munições, de gasolina, batalhões de infantaria, fortes de artilharia.

Nessa mesma noite de 29 de Julho, o soldado João Augusto Ferreira de Almeida abordou mais nove soldados, em separado, solicitando de novo, e com promessas de dinheiro, oferece entre 60 e 100 francos franceses, a quem lhe apontasse a direcção em que ficavam as trincheiras inimigas, exibindo na ocasião e de novo a pistola e os mapas do sector.

Quanto ao valor exacto variam, mas, embora se tratasse de uma verba considerável para quem cumpria o serviço militar – uma galinha adquirida aos camponeses franceses para fugir à ração de combate atingia os seis francos.

A 30 de Julho de 1917 foram levadas ao conhecimento dos superiores pelo soldado António Rei as declarações estranhas e altamente graves do soldado João Augusto Ferreira de Almeida, acrescentando que, quando se encontrava no sector de Neuchapelle, o companheiro o abordara a pedir indicações acerca do caminho que conduzia às linhas alemãs.

Nesse mesmo dia, o Capitão Mousinho de Albuquerque mandou apresentar o soldado António Rei no Batalhão de Infantaria n.º 23 por este ter prestado declarações de excepcional gravidade contra o soldado João Augusto Ferreira de Almeida e organizar de imediato o processo-crime, tendo sido inquirido o soldado António Rei e mais nove testemunhas, 7 soldados e 2 sargentos, pelo Tenente Artur Barros Basto em processo de averiguações.

O processo foi rapidamente organizado com os dados fornecidos pelas testemunhas e remetido em 07 de Agosto de 1917 ao Juiz Auditor Joaquim de Aguiar Pimenta Carreira, a fim de que este emitisse parecer nos termos do artigo 337.º do Código do Processo Criminal Militar. (aprovado por Lei de 13 de Maio de 1916).

O Juiz Auditor Joaquim de Aguiar Pimenta Carreira, concluiu que o arguido (soldado João Augusto Ferreira de Almeida) tentara passar para o inimigo, achando-se por isso incurso na caução do n.º 1 do art.º 54.º do Código da Justiça Militar e a quem, pelo art.º 1.º do Decreto n.º 2867 de 30 de Novembro de 1916, publicado no Diário do Governo n.º 243 da I Série, cabia a pena de morte. Por isso, parecia ao Juiz auditor que o arguido poderia ser julgado sumariamente como dispunha o art.º 337.º do Código do Processo Criminal Militar.

Com base nos elementos apurados, o Comandante do Corpo Expedicionário Português, General Fernando Tamagnini de Abreu e Silva, despachou para processo disciplinar com intuito de que o soldado João Augusto Ferreira de Almeida, respondesse perante o Tribunal de Guerra a fim de ali lhe ser feita a respectiva aplicação da lei militar.
Para tal atendia a que soldado João Augusto Ferreira de Almeida, cometera os seguintes factos criminosos:
1.º - Tentara passar para o inimigo, para o que perguntara a várias praças o caminho a seguir, chegando até a oferecer dinheiro com o fim de obter essa informação; e,
2.º - Quereria indicar ao inimigo os locais ocupados pelas tropas portuguesas, constando em duas cartas itinerárias de que a praça era portadora.

Ultimadas as diligências necessárias, foi marcado o Conselho de Guerra para as 14 horas do dia 15 de Agosto de 1917, em Roquetoise, o julgamento do soldado João Augusto Ferreira de Almeida.

CONSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL
Presidente – Coronel de Infantaria, António Luís Serrão de Carvalho;
Juiz Auditor - Dr. Joaquim de Aguiar Pimenta Carreira;
Secretário - Tenente José Rosário Ferreira
Promotor - Capitão Herculano Jorge Ferreira.

Júri
- Major Joaquim Freire Ruas
- Capitão Adriano Augusto Pires
- Capitão David José Gonçalves Magno
- Alferes Joaquim António Bernardino, e
- Alferes Arnaldo Armindo Martins

Defensor Oficioso - Capitão Joaquim Baptista Leone Júnior

Feita a chamada dos jurados e das testemunhas, lidas as principais peças do processo, identificado o réu e feitos os interrogatórios e alegações, o Juiz auditor ditou os seguintes quesitos:

1.º - O facto de o arguido em 29 de Julho, encontrando-se na primeira linha, tentar passar para o inimigo perguntando a várias praças o caminho e oferecendo a um dinheiro para que lhe prestasse essa informação;
2.º - O facto de o arguido querer indicar ao inimigo os locais ocupados pelas tropas portuguesas, constantes de duas cartas itinerárias de que era portador;
3.º - O mau comportamento do réu;
4.º - O crime ser cometido em tempo de guerra;
5.º - O réu ter cometido o crime com premeditação;
6.º - O crime ter sido cometido, tendo o agente a obrigação especial de o não cometer; e,
7.º - O estar ou não provado o imperfeito conhecimento do mal do crime.

O acusado, soldado João Augusto Ferreira de Almeida, negou o crime e apresentou como atenuante o imperfeito conhecimento do mal que do facto poderia resultar.

Sobre os sete quesitos, o Júri pronunciou-se do seguinte modo:

1.º - Provado por maioria (viria a decidir a condenação) com o voto vencido do Alferes Arnaldo Armindo Martins;
2.º - Provado por maioria;
3.º - Provado por unanimidade;
4.º - Provado por unanimidade;
5.º - Provado por maioria com o voto vencido do Alferes Arnaldo Armindo Martins;
6.º - Provado por maioria com o voto vencido do Alferes Arnaldo Armindo Martins;
7.º - Provado por maioria com o voto vencido do Alferes Arnaldo Armindo Martins.

Tendo considerado provadas as circunstâncias agravantes, o promotor de justiça conclui:
- “Julgo, pois, procedente e provada a acusação e nos termos do artigo 1º do decreto de 30 de Novembro de 1916 condeno o réu à morte com exautoração”.

Na audiência o Defensor Oficioso - Capitão Joaquim Baptista Leone Júnior - recorreu da sentença proferida para o General Comandante do CEP, Fernando Tamagnini de Abreu e Silva porquanto a pena acessória de exautoração militar em que o réu havia sido condenado desaparecera da nova legislação, em virtude do que dispunha o artigo 5.º do decreto de 16 de Março de 1911

Sobre o recurso formulado, pronunciou-se o Auditor Geral do CEP, Dr. António Augusto de Almeida Azevedo, concluindo que "a lei de 30 de Novembro de 1916, n.º 2867, decretou no artigo 1.º que fosse condenado à morte o militar que praticar qualquer dos crimes a que corresponda esta pena nos termos dos artigos 52.º, 53.º, 54.º e outros do Código de Justiça Militar, mas não preceitua a condenação à morte com exautoração”.
Foi por isso opinião do Auditor Geral que se desse provimento ao recurso, devendo ser proferida nova sentença por outro Auditor.

Em face deste parecer, o presidente do Tribunal marcou novo julgamento para 12 de Setembro, com novo Juiz Auditor Dr. José Maria de Magalhães Pais Pinheiro, não sem que um dia antes o Defensor Oficioso tenha solicitado a junção ao processo de um novo requerimento, decerto com a intenção de obrigar ao adiamento da audiência. Este requerimento baseava-se em que o soldado Ferreira de Almeida era filho de um doido (facto que, segundo o recurso, podia ser provado pelo Juiz Auditor do Tribunal de Guerra); tinha dado indícios de alienação mental, pelo menos depois da sua condenação e teria mesmo dado tais indícios antes desse facto. Tais circunstâncias tinham sido referidas em público pelo próprio chefe do Serviço de Saúde, Tenente-Coronel Médico, Dr. José Gomes Ribeiro, pelo que o requerente solicitava que fosse feito exame médico-legal às faculdades mentais do soldado João Augusto Ferreira de Almeida.

Assim, no próprio dia 12 de Setembro o General-Comandante do CEP solicita por despacho ao Auditor Geral uma informação sobre o assunto do requerimento. E este, de imediato, refere que “não juntou o requerente documento comprovativo do facto de dar indícios de alienação mental após a sua condenação, o que leva a concluir que é menos exacta semelhante alegação” e que, tendo o pedido “manifestamente por fim protelar a resolução de um crime gravíssimo”, era seu entender que deveria ser indeferido.

Não foi o julgamento assim adiado. E o novo Auditor Dr. José Maria de Magalhães Pais Pinheiro, articulando a sentença de forma semelhante à anterior, concluiu:
“Julgo procedente e provada a acusação e, consequentemente, condeno o réu à morte, com expulsão”.

Quatro dias depois, a 16 de Setembro, pelas 07 horas e 45 minutos, cumpria-se a sentença na localidade de Picantin, próximo de Levantie..

Foi difícil encontrar um oficial que se prestasse a comandar o pelotão de fuzilamento, pois todos se esquivaram a isso, sob diversos pretextos.

O soldado João Augusto Ferreira de Almeida, alimentou até à última hora a esperança de não ser executado, pois muitos oficiais lhe garantiam que não o seria. Talvez por isto, a sua atitude foi de arrogância e zombaria até ao último momento, pois estava convencido que não seria executado. Quando viu que a sua execução era inevitável demorou-a quanto pôde, agarrando-se ao Capelão Joaquim Batista de Aguiar, que era Pároco nas Oficinas de São José, no Porto, e que se ofereceu como Capelão voluntário em 12 de Março de 1917, e embarcou para França em Junho de 1917, que o acompanhava e que persistia em não se retirar do seu lado, e tirando constantemente a venda que lhe tinham posto sobre os olhos. Isto levou cinco minutos.

A sentença foi executada por 3 Sargentos (entre eles o Sargento Teófilo Antunes Saraiva), quatro 1.ºs Cabos e 4 Soldados, sob o comando do Major Horácio Severo de Morais Ferreira.

No final do fuzilamento e de acordo com os regulamentos, procedia-se à revista do armamento. Precisamente a arma do sargento Teófilo Saraiva não tinha sido disparada - o que configurava um procedimento muito grave - sujeito a Conselho de Guerra. Felizmente para o Sargento provou-se que o facto foi devido "à deficiente colocação do fecho de segurança da espingarda" - o que o ilibou.

Momentos depois, no cemitério de guerra de Lavantie, próximo do lugar do fuzilamento, do lado de lá da Estrada de Bacquerot, num campo de cultura, cercado de arame farpado, descia à cova o cadáver do Soldado João Augusto Ferreira de Almeida, que a justiça condenara a morrer sob a infamante acusação de traidor à Pátria.

Inicialmente foi sepultado no coval n.º 18, sendo posteriormente transferido para o Cemitério de Richebourg, Talhão B, Fila 6, Coval 19, onde ainda se encontra.

Um abraço
Benjamim Durães
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13462: Efemérides (169): A primeira guerra total 1914-18, Revista do Expresso 12-07-2014: tiive o privilégio de ser um dos entrevistados, e de falar do meu tio avô, ten-cor Manuel Carmona Gonçalves, que esteve em África (Luís Gonçalves Vaz)

Guiné 63/74 - P13471: Blogpoesia (385): É preciso libertar o homem (José Teixira, ex-1.º Cabo Aux Enf)



1. Em mensagem do dia 5 de Agosto de 2014, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos este belíssimo poema:


É preciso libertar o homem

Numa manhã de sol radioso. Esperança.
Olhava o futuro pela janela da vida,
E, ansioso, esperava as palavras do Profeta.
Ainda acreditava num jardim de paz e de bonança,
Quando os senhores do mundo tiraram a espoleta.

Para-me de repente o pensamento,
E vejo sangue, vejo lágrimas, vejo gente,
Caminhando no trilho, em fuga. Sem lamento.
Vejo o inferno vomitando chamas
De enxofre enegrecido pelo tempo.
São as armas a troar continuamente.
Vejo corpos desfeitos e sem vida.

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E vejo sangue, vejo lágrimas, vejo gente,

Vejo homens e mulheres. Faces rugosas,
Sentados na relva do jardim, o olhar perdido,
Vejo velhos, mãos trémulas, ansiosas.
Vejo crianças chorando os pais – vidas
Violentamente ceifadas
Pelo mortífero sopro das granadas.

Vejo corpos cansados e em sofrimento.
Perdidos nas ruas de Alexandria e da Panfília,
Trazem réstias de vida, saudades da família,
E lágrimas do tormento.
Fundem-se com as paredes frias e sombrias da cidade,
Bebem as migalhas do pão, avidamente,
Que lhe dão por caridade.

******

E vejo sangue, vejo lágrimas, vejo gente.

Não posso, indolentemente, ficar assim parado.
A vida está nas mãos daqueles que têm a coragem de sonhar.
E lutar por um mundo bem diferente.

É preciso libertar o homem da crisálida, doce embalo
Onde o meteram os meios de comunicação social,
Para o tornarem seu vassalo.

É preciso libertar o homem da mortalha do poder económico,
Que lhe abafa a razão, o sentimento,
Impedindo a mente do livre discernimento.

É preciso quebrar a redoma em que abafam o medo e o silêncio.
Libertar o silêncio e gritar ao som do vento a verdade.

É preciso mudar as correntes do pensamento,
Antes que o cosmos fique moribundo.

É preciso saber conjugar o verbo Ser em vez do Ter,
Porque SER pessoa é mais importante que possuir o mundo.

É preciso encontrar a alegria, na alegria dos outros. Rica herança,
E conquistar de novo o sorriso da esperança.
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13374: Blogpoesia (384): Recriação do mundo (J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13470: Fotos à procura de... uma legenda (32): A arte xávega... que está a morrer (Luís Graça)


Vídeo: Uma barco da arte xávega.... 


Foto nº 1

Foto nº 2

Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5

Foto nº 6

Foto nº 7

´
Foto nº 8


Foto nº 9

Há ainda um velho Portugal por (re)descobrir... São cenas antiiquíssimas, estas, agora com um toque de modernidade... Os tratores substituiram as juntas de bois e a força de braço de homens, mulheres, crianças e velhos (que outrora puxavam as redes, ou melhor o saco, o xalavar,  que é largado a centenas de metros da praia)... Os barcos, com a sua típica proa fenícia,  são motorizados, já não puxados a remos, e são mais compridos... Os homens são  os mesmos, gente brava, que a crise está  a atirar novamente para o mar onde nasceram... Filhos e netos de homens que fizeram a guerra colonial, e que são descendentes de outros que foram (e continuam a ser!)  atores da nossa imensa história trágico-marítima... Aqui mesmo morreram, há mais de cem anos, em 1909, 13 pescadores, leio numa pedra que serve de monumento funerário a esses bravos que o mar engoliu...

 São fotos datadas de 15 de junho de 2014. Não é difícil adivinhar onde forma tiradas... A arte xávega está a morrer, e apenas subsiste em meia de dúzia de sítios da nossa costa, da Costa da Caparica para cima.. Ou melhor: estão a matá-la: (i) os "tubarões" da pesca de arrasto;  (ii) Bruxelas, a toda poderosa capital da Eurolândia e dos seus tecnocratas sem rosto nem alma; (iii) os donos deste país, ou aqueles que julgam que mandam neste país, ou que ainda mandam, ou que julgam que sempre mandaram.... Sem esquecer a ASAE,  e todas as nossas patéticas e diligentes polícias que são fortes com os fracos e fracas com os fortes... Os "fascistas sanitários", por exemplo,  reprimem a venda direta ao público, em nome da sacrossanta "saúde pública" que tem as costas largas... Como dizia o povo antigamente, gemendo e chorando, sob a canga dos poderosos, "livrai-nos, senhor, da fome, da peste e da guerra... e do bispo da nossa terra!"... LG. 

Fotos e vídeo: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]
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Nota do editor:

Último poste da série > 21 DE JULHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13426: Fotos à procura... de uma legenda (31): O mosteiro e o quartel da Serra do Pilar (onde esteve, no tempo da guerra colonial, o famoso RAP 2) vistos de um dos melhores (mas menos conhecidos) miradouros do Porto... Adivinhem qual?...O Jorge Portojo sabe mas não vai responder... (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P13469: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (5) - Reportagens da Época (1967): Guidaje

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 4 de Agosto de 2014:

Prezado Luís Graça:
Em primeiro lugar, votos de boas férias, e de bom repouso, no sossego da Lourinhã.
Depois, procedo ao envio de mais umas dicas, - relato do que aconteceu em Guidage, à distância de, precisamente, 47 anos -, que se o entender conveniente, poderá publicitar.

Um abraço amigo para todos os navegantes do blogue,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967) 
- REPORTAGENS DA ÉPOCA


5 - GUIDAJE 1967

Mês de Agosto
Dia 5

O tempo continua muito chuvoso. O destacamento não passa de um autêntico lamaçal.
Os abrigos transformaram-se em verdadeiras covas escuras, húmidas e insalubres.
As valas que fazem a ligação entre esses abrigos são verdadeiros pântanos. A água aparece em todos os lados e coloca em perigo todas as construções que por aqui se foram fazendo... Os tipos que substituíram a Engenharia Militar para fazer isto, ou que orientaram quem aqui trabalhou, estão todos chumbados... Não passam de uns incompetentes... Autênticos nabos.


Dia 6

Às seis horas e meia da manhã levantei-me. Às sete, como aliás quase todos os dias, peguei na caçadeira e fui às rolas.
Pelas oito, o Patron (nosso interprete) foi procurar-me nas imediações do arame farpado, para me dizer que durante a noite Guidage esteve cercada por mais de duzentos turras.

Fiquei incrédulo. Custou-me a acreditar. Como é que isso podia ser! O pessoal do destacamento nunca os tinha incomodado! Depois, como podia ser possível que um grupo tão numeroso, carregado de armas e munições, tivesse cercado Guidage, instalado as armas e, de seguida, sem disparar um tiro, tivesse ido embora? Não. Aquilo não podia ser verdade. Mas, como o Patron insistiu, ainda cheio de muitas dúvidas, entrei no aquartelamento, troquei a caçadeira pela G3, e acompanhado por dois soldados fui confirmar o que se tinha passado.

Efectivamente, verifiquei-o com os meus próprios olhos, a informação era verdadeira. Durante a noite, três grupos de turras, provenientes da área do Dungal, de Cumbamory e de Samboyá, tinham cercado Guidage. Pelos vestígios que deixaram calculei que, efectivamente, deveria tratar-se de um grupo constituído por cerca de 150 a 200 homens. A aproximação que fizeram tinha sido perfeita. Pelos vestígios que deixaram no terreno, capim e culturas calcadas, verifiquei que nos tinham feito um cerco perfeito, em meia lua, com o intuito de dirigir o fogo directamente sobre o aquartelamento, no sentido da linha de fronteira.

Regressei ao aquartelamento, e com mais pessoal e armamento, fui seguir-lhes o rasto. Confirmei que retiraram pela estrada que leva a Samoje e Facã, por onde, parte deles, tinham feito a aproximação a Guidage. O grupo que veio do Dungal retirou também para o mesmo lado.
O território do Senegal foi o destino que escolheram após terem desistido de nos atacar.
A cerca de dois quilómetros, já do outro lado da bolanha, na estrada que segue para Bigene, encontrei uma granada de morteiro 82mm, abandonada pelos gajos durante a retirada.

Todos os vestígios que recolhi indicavam que eles retiraram calmamente, sem qualquer precipitação. Em rigor, não efectuaram um ataque em força porque não quiseram. Poderiam, se tivessem atacado, ter destruído outra vez Guidage, ter queimado tudo e, quem sabe, ter mandado alguns de nós para o outro lado da vida. Mas não o fizeram. Não nos atacaram. Retiraram ordeiramente, sem quaisquer problemas, quando quiseram e como quiseram. E tudo isto aconteceu ali mesmo, a cerca de 400 metros do arame farpado, precisamente no local onde os holofotes da iluminação externa já não iluminam nada. Estiveram ali, nas nossas barbas, sem que as sentinelas se apercebessem do que se estava a passar. Tudo tinha sido feito discretamente, com todo o rigor táctico, dentro do cumprimento quase perfeito dos ensinamentos que a gente estudou nos manuais da guerrilha. Estes turras estudaram mesmo numa boa escola!

Apenas há uma coisa que não consigo entender:
- Qual a razão que os terá levado a retirar, sem terem disparado um único tiro sobre o meu reino?

É um mistério que me vai acompanhar para sempre. Efectivamente, só uma razão muito forte pode estar na origem desta desistência de última hora, e desta retirada ordeira sem uma razão aparente. Mas, felizes de nós pela decisão acertada que eles tomaram. Que nos cerquem quando muito bem entenderem, desde que, depois, calmamente, se retirem.

Antes de regressar ao aquartelamento, na área da referida estrada, mas do outro lado da bolanha, coloquei, por precaução, três potentes armadilhas (minas). Tanto podiam ser úteis, como não servir para nada. Que eles voltariam, não me restavam dúvidas. O local por onde iriam fazer a aproximação é que eu não poderia adivinhar. Como, regra geral, a partir do entardecer ficamos quase sempre confinados aos limites estreitos do arame farpado, eles podem aproximar-se sem qualquer receio, escolhendo o local que lhes parecer mais seguro. A noite é praticamente deles. Quando nos atacam dentro dos aquartelamentos fazem-no quase sempre de madrugada, para lhes restar tempo para se retirarem ainda a coberto da noite.

Ao fim da manhã, vindo do Senegal, chegou um informador a dizer que os tipos, durante a retirada, tinham passado por Secunaya e Corumbo, e que não concretizaram o ataque pelo facto de não ter chegado um outro grupo que também deveria participar na festa que desejavam fazer em Guidage.
É uma razão.
Mas eles já dispunham de tanta gente à nossa volta! Tinham da parte deles o efeito surpresa e a escuridão da noite, um grupo numeroso de combatentes e sei lá quantas armas. E não quiseram aproveitar nada disso...

Durante o dia nada mais aconteceu de anormal. A população trabalhou serenamente a terra, e a tropa permaneceu mergulhada na doce estupidez de cada dia.
À noite recomendei a todos, soldados e população, que se mantivessem junto dos abrigos e que ficassem atentos. O perigo não tinha passado. Tínhamos de ser prudentes e cautelosos.

Pelas dez horas da noite, sensivelmente, explodiu uma das armadilhas que deixei do outro lado da bolanha, precisamente a que tinha mais potência. A explosão teve lugar a cerca de dois quilómetros, mas pareceu-nos que aconteceu mesmo ao lado do arame farpado. Efectivamente, para além da carga normal, eu coloquei ao lado da armadilha bastantes granadas velhas e garrafas de cerveja cheias de munições de G3, já fora de uso. Daí que o rebentamento, de todos aqueles explosivos, tenha causado um barulho terrível Mesmo brutal...
As casas dos nativos estremeceram e as paredes largaram caliça. Foi um barulho enorme. Medonho...
Depois, disparei para o local algumas granadas de morteiro 81mm, os soldados e a população mantiveram-se nos abrigos, armas em punho, tudo pronto a abrir fogo ao mais pequeno sinal, à espera que o pior acontecesse.

E um silêncio profundo dominou a tabanca e o aquartelamento durante algumas longas horas, feitas de stress e angustiosa expectativa. Aquela foi para todos uma longa noite, em que o tempo dava a sensação de estar parado. Mas nada de anormal aconteceu. Mesmo nada. Foi mais uma noite igual a tantas outras. Mantivemo-nos é certo, mais atentos, à espera, mas não fomos minimamente incomodados. Apenas o medo nos incomodou... O medo que obriga as pessoas a estar despertas, sempre à espera, o medo que nos rouba o sono e que faz todos os homens corajosos e heróis.
Heróis que só desejam vivamente que não aconteça nada daquilo que se é obrigado a esperar indefinidamente ao longo destas intermináveis noites.
Heróis que apenas desejam que permaneça sempre longe a oportunidade de praticar actos irracionais, capazes de fazer deles esses homens invulgares que as páginas da história vão registando.
É que, ninguém deseja ser herói, nem mesmo aqueles que de facto o foram. O herói é um produto do acaso, ou talvez da irracionalidade da vida.

Já de madrugada, antes de adormecer, eu apenas me interrogava:
- Será que foi um bicho a detonar a armadilha? Será que foram os tipos que vinham de novo com a boa intenção de fazer uma festa nas imediações de Guidage?

E o meu pensamento, ou a minha imaginação, ficaram-se por esta dúvida, na expectativa, aguardando que algo de pior pudesse ainda acontecer.
E, apesar de tudo, ainda dormi um sono, não muito longo, mas suficientemente repousante.


Dia 7

Pela manhã, levando comigo mais de metade dos homens de que dispunha, bem armados e municiados, fui verificar a causa do rebentamento da armadilha. Efectivamente tinha sido accionada pelos turras que, outra vez, e por certo a sério, se dirigiam para Guidage, no intuito de efectuar um ataque.

A explosão da armadilha deixou no chão um buraco enorme. Ao lado, por entre o capim calcado, havia muito sangue, pedaços de vestuário e vestígios da presença de muitos feridos, ou mortos. Perto do local da explosão, encontrámos um ferido abandonado. Tratava-se de um rapaz novo, que não teria mais de 15 anos. Encontrava-se totalmente nu. Era, por certo, um dos muitos carregadores utilizados no transporte das armas e das munições. Pensando que estava mesmo morto, deixaram-no abandonado entre o capim, absolutamente despido, sem qualquer elemento que o pudesse identificar.

No meio de todo aquele ambiente pesado, ouviu-se a voz de um soldado que, mesmo a meu lado, satisfeito, dizia:
- “Os filhos da puta vinham cá para nos foder, mas eles é que foram pró caralho.”

E, mais baixinho, outros soldados foram murmurando:
- Sim... desta vez eles é que foram pró caralho. Esses caragos, bem que nos podiam deixar em paz. Mas, desta vez quem lerpou foram eles.

Levámos para o aquartelamento o rapaz que os tipos abandonaram e tratámo-lo o melhor possível. Depois, pediu-se uma evacuação para o Hospital Militar, que não chegou a concretizar-se porque, entretanto, ele morreu.
Aparentemente ele tinha apenas algumas escoriações. Devia, no entanto, ter algum traumatismo interno a cujas consequências não resistiu. Deve ter sido projectado pelo sopro causado pela explosão da armadilha e, ao embater no chão, os órgãos internos devem ter ficado muito afectados.
A população quando nos viu chegar com o prisioneiro ficou satisfeitíssima.
Fizeram festa. Bateram palmas. Afinal, ele era dos que vinham atacar e destruir as suas casas, matar pessoas e destruir bens.

Enterraram-no.
Verifiquei com tristeza que a população efectuou o funeral sem qualquer cerimónia, com desprezo e ódio, como que se de um simples animal se tratasse. Intimamente senti-me chocado com toda aquela frieza.
O que ali estava era o cadáver de um homem ainda muito jovem, obrigado, por certo, a colaborar com a guerrilha. Um jovem a quem a guerra acabava de destruir...

De tarde voltei à estrada de Samoje e coloquei novas armadilhas. Na estrada de Binta fiz a mesma coisa. Eu sei que mais dia menos dia os tipos vão tentar de novo... Temos que estar sempre atentos...

O objectivo deles, é dar cabo de nós.
O nosso objetivo, é dar cabo deles.
Somos todos loucos.
Era preferível acabar de vez com isto, com esta guerra que não vai levar a lado nenhum.

Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13444: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (4): A morte do Furriel Moreira