A triagem de Manchester
e o paciente português
por Luís Graça
Na sala de espera
do banco de urgência
há pacientes que desesperam
com paciência,
pacientes com paciência de santo,
leia-se com a compostura do santo,
sentado num banco.
Gente que não conhece
a porta do cavalo do hospital.
Muito menos tem santo-e-senha
para entrar no paraíso
no dia do juízo final.
– Mais logo, eu estou de banco, apareça!–
...Ou então esqueça e desapareça,
arre!,
da lista dos (im)pacientes vivos,
que só atrapalham quem trabalha
e quem se empenha!
Sangrai-o e sangrai-o
e, se morrer, enterrai-o.
Há um jovem casal
de apaixonados,
just married,
ela de fitinha amarela, no pulso,
lívida, branca, exangue, gravidíssima,
no banco do hospital.
Há dois negros que dormitam
e que devem sofrer de paludismo.
Estão ali há horas, quiçá dias,
semanas, meses, anos, séculos,
Poderiam ter vindo dos arrozais do Sado,
há décadas atrás,
tremendo de sezonismo.
Estão de fita verde, ecológica...
Mas... mal por mal,
antes cadeia que hospital
e antes justiça que misericórdia.
Há um casal de paquistaneses
ou de indianos,
eu sei lá,
hindus ou muçulmanos.
Ele é o (im)paciente,
de fita laranja,
que o sistema de Manchester
é quem mais ordena
e não olha à cor ou ao tom da pele,
muito menos à raça
que, no reino, foi abolida por decreto real:
– Racista, eu, sra. enfermeira ?
Até tive um amigo preto da Guiné,
ex-combatente da guerra colonial,
meu camarada,
de saudosa memória.
Trabalhava, no gosse gosse,
no estaleiro do subempreiteiro,
que dizia que não era mal nenhum aquela tosse,
que o matou,
mas isso é outra história,
era da tísica,
era da sida,
era do catarro,
era do tabaco,
era do bagaço,
era do tempo
que fazia no hemisfério norte.
Afinal, foi o trabalho que o matou,
dizendo-lhe, esses, sim, os racistas,
que o trabalho era bom p´ró preto!
E quem tem trabalho tem sorte!...
Há velhos.
Muitos.
Azuis.
Em saldo.
Doentes de solidão,
abandono,
exaustão.
Doentes de Alzheimer,
Parkinson,
fim de estação.
Chegam ambulâncias,
de Almoçageme, Alcáçovas, Alcácer, Almargem...
Da outra margem,
tristes lugares ao sul,
Há dois negros que dormitam
e que devem sofrer de paludismo.
Estão ali há horas, quiçá dias,
semanas, meses, anos, séculos,
Poderiam ter vindo dos arrozais do Sado,
há décadas atrás,
tremendo de sezonismo.
Estão de fita verde, ecológica...
Mas... mal por mal,
antes cadeia que hospital
e antes justiça que misericórdia.
Há um casal de paquistaneses
ou de indianos,
eu sei lá,
hindus ou muçulmanos.
Ele é o (im)paciente,
de fita laranja,
que o sistema de Manchester
é quem mais ordena
e não olha à cor ou ao tom da pele,
muito menos à raça
que, no reino, foi abolida por decreto real:
– Racista, eu, sra. enfermeira ?
Até tive um amigo preto da Guiné,
ex-combatente da guerra colonial,
meu camarada,
de saudosa memória.
Trabalhava, no gosse gosse,
no estaleiro do subempreiteiro,
que dizia que não era mal nenhum aquela tosse,
que o matou,
mas isso é outra história,
era da tísica,
era da sida,
era do catarro,
era do tabaco,
era do bagaço,
era do tempo
que fazia no hemisfério norte.
Afinal, foi o trabalho que o matou,
dizendo-lhe, esses, sim, os racistas,
que o trabalho era bom p´ró preto!
E quem tem trabalho tem sorte!...
Há velhos.
Muitos.
Azuis.
Em saldo.
Doentes de solidão,
abandono,
exaustão.
Doentes de Alzheimer,
Parkinson,
fim de estação.
Chegam ambulâncias,
de Almoçageme, Alcáçovas, Alcácer, Almargem...
Da outra margem,
tristes lugares ao sul,
onde a morte se veste de branco e azul
em paredes caiadas:
– Tentativa de suicídio –
diz o bombeiro para o securitas,
e p’rós mirones, voyeuristas
e tabagistas,
que estão lá fora,
ao relento da noite.
– A velha quis matar-se com comprimidos,
imaginem, a maluca!
Digam-me lá se tinha alguma necessidade de fazer isso ?!–
pergunta,
entre raiva e a mágoa,
a nora que chora,
como a nora que range
sob os alcatruzes ajoujados de água.
Alentejanos, ciganos,
mouros, sefarditas, africanos,
jovens de brinquinho,
colarinhos azuis, muitos,
brancos, poucos,
dourados, nenhuns,
ativos e não ativos,
pescadores, traficantes,
toxicodependentes,
mães solteiras, aflitas,
domésticas em robe de dormir,
famílias monoparentais,
doentes pré-terminais...
E até um um cão,
um canito, magricela,
a quem os (im)pacientes dão bolachas.
Há um português emergente
em cada dez.
Vermelho.
Doente,
(im)paciente,
dormente,
pouco ou nada eloquente,
muito menos inteligente,
quiça moribundo,
diz o sistema de triagem de Manchester.
Há um português muito urgente
que vem na ambulância do 112,
da emergência médica pré-hospitalar.
De um triste lugar ao sul.
Há um português laranja,
que fica em segundo lugar,
e que tem direito a subir ao pódio
no jogo da sorte e do azar.
O resto não conta,
são verdes, azuis e amarelos,
fura-greves,
racha-sindicalistas,
proletas,
marretas,
hipocondríacos,
em paredes caiadas:
– Tentativa de suicídio –
diz o bombeiro para o securitas,
e p’rós mirones, voyeuristas
e tabagistas,
que estão lá fora,
ao relento da noite.
– A velha quis matar-se com comprimidos,
imaginem, a maluca!
Digam-me lá se tinha alguma necessidade de fazer isso ?!–
pergunta,
entre raiva e a mágoa,
a nora que chora,
como a nora que range
sob os alcatruzes ajoujados de água.
Alentejanos, ciganos,
mouros, sefarditas, africanos,
jovens de brinquinho,
colarinhos azuis, muitos,
brancos, poucos,
dourados, nenhuns,
ativos e não ativos,
pescadores, traficantes,
toxicodependentes,
mães solteiras, aflitas,
domésticas em robe de dormir,
famílias monoparentais,
doentes pré-terminais...
E até um um cão,
um canito, magricela,
a quem os (im)pacientes dão bolachas.
Há um português emergente
em cada dez.
Vermelho.
Doente,
(im)paciente,
dormente,
pouco ou nada eloquente,
muito menos inteligente,
quiça moribundo,
diz o sistema de triagem de Manchester.
Há um português muito urgente
que vem na ambulância do 112,
da emergência médica pré-hospitalar.
De um triste lugar ao sul.
Há um português laranja,
que fica em segundo lugar,
e que tem direito a subir ao pódio
no jogo da sorte e do azar.
O resto não conta,
são verdes, azuis e amarelos,
fura-greves,
racha-sindicalistas,
proletas,
marretas,
hipocondríacos,
daltónicos,
queixinhas,
refratários,
fujões,
desertores,
contribuintes ilíquidos,
grafiteiros,
com camisas às florinhas,
cidadãos de segunda,
gente que não presta,
feios, porcos e maus,
vítimas de todas as gripes sazonais,
uni-vos!,
gente de baba e ranho,
pouca honesta,
que fuma
e que bebe
e que come a street food,
as bifanas de Vendas Novas
ou as sandes de coiratos,
e que vive da economia subterrânea,
paralela,
informal,
e dos subsídios da exclusão social,
que anda sempre com o credo na boca
e a crise na algibeira,
e que nunca ouviu o professor Pádua
a dizer que no andar é que estava o ganho!...
Que já não há o azul
nem o verde
do meu país,
nem as outras cores do arco-íris,
na paleta das cores do gestor
dos doentes e das doenças.
Que há fé,
e até caridade,
mas pouca, muito pouca, esperança,
Senhor;
por isso, seja paciente,
tenha compaixão de nós,
ponha lá isto na sua lista
de recados e lembretes,
e não nos deixe cair em tentação
de fugir ao fisco.
E muito menos nos deixe expor ao risco
de perder a cabeça
quando ela um dia for precisa para pensar.
Queimaram-lhe os ossos,
depois de morto,
ao pobre do Garcia d' Orta,
o patrono.
Ironia, mau sinal, pior prenúncio.
Não se põe nome de cristão novo
na porta,
na tabuleta,
no anúncio!
Haja Deus!,
implora o bravo pescador português,
quando a medonha tempestade
parece querer engolir
o seu barco, casca de noz.
Haja saúde!,
Senhor,
Senhor Ministro.
com a sua licença,
Senhor Ministro da Doença,
que eu vou escrever no livro amarelo de reclamações,
que a palavra vem do latim minister,
de minus,
menos, servidor,
aquele que serve alguém, superior,
um mestre, magister,
que, esse sim, vem de magis, mais, maior...
E esse alguém, aqui,
só pode ser o povo,
o pobre do paciente português,
perdido no labirinto
do sistema de triagem de Manchester.
E a não ser assim,
queixinhas,
refratários,
fujões,
desertores,
contribuintes ilíquidos,
grafiteiros,
com camisas às florinhas,
cidadãos de segunda,
gente que não presta,
feios, porcos e maus,
vítimas de todas as gripes sazonais,
uni-vos!,
gente de baba e ranho,
pouca honesta,
que fuma
e que bebe
e que come a street food,
as bifanas de Vendas Novas
ou as sandes de coiratos,
e que vive da economia subterrânea,
paralela,
informal,
e dos subsídios da exclusão social,
que anda sempre com o credo na boca
e a crise na algibeira,
e que nunca ouviu o professor Pádua
a dizer que no andar é que estava o ganho!...
Que já não há o azul
nem o verde
do meu país,
nem as outras cores do arco-íris,
na paleta das cores do gestor
dos doentes e das doenças.
Que há fé,
e até caridade,
mas pouca, muito pouca, esperança,
Senhor;
por isso, seja paciente,
tenha compaixão de nós,
ponha lá isto na sua lista
de recados e lembretes,
e não nos deixe cair em tentação
de fugir ao fisco.
E muito menos nos deixe expor ao risco
de perder a cabeça
quando ela um dia for precisa para pensar.
Queimaram-lhe os ossos,
depois de morto,
ao pobre do Garcia d' Orta,
o patrono.
Ironia, mau sinal, pior prenúncio.
Não se põe nome de cristão novo
na porta,
na tabuleta,
no anúncio!
Haja Deus!,
implora o bravo pescador português,
quando a medonha tempestade
parece querer engolir
o seu barco, casca de noz.
Haja saúde!,
Senhor,
Senhor Ministro.
com a sua licença,
Senhor Ministro da Doença,
que eu vou escrever no livro amarelo de reclamações,
que a palavra vem do latim minister,
de minus,
menos, servidor,
aquele que serve alguém, superior,
um mestre, magister,
que, esse sim, vem de magis, mais, maior...
E esse alguém, aqui,
só pode ser o povo,
o pobre do paciente português,
perdido no labirinto
do sistema de triagem de Manchester.
E a não ser assim,
sou eu que minto,
ou então é porque é cínica
a declaração da missão vigente,
é blá-blá a acreditação clínica,
é treta o novo organograma, afinal:
Em cima o utente,
Em baixo o presidente!
...É triste e feia e fria
a sala de espera da urgência
do hospital.
Luís Graça
v8 29 jan 2015
Nota do editor:
ou então é porque é cínica
a declaração da missão vigente,
é blá-blá a acreditação clínica,
é treta o novo organograma, afinal:
Em cima o utente,
Em baixo o presidente!
...É triste e feia e fria
a sala de espera da urgência
do hospital.
Luís Graça
v8 29 jan 2015
O sistema de triagem de Manchester, adotado em Portugal em 2004. Fonte: Cortesia de Governo e Portugal > Ministério da Saúde > Centro Hospitalar de Leiria
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Último poste da série > 21 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14170: Manuscrito(s) (Luís Graça) (43): Um dia hei-de ir a Porto Azzurro