segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14965: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (14): Contos da Guiné: Ansumane, o caçador de crocodilos (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando)

1. Publicamos hoje o conto "Ansumane, o caçador de crocodilos", enviada, a nosso pedido ao Blogue, pelo camarada Virgínio Briote (ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67), em mensagem do dia 28 de Julho de 2015:

Contos da Guiné

Ansumane, o caçador de crocodilos*

A inquietação que sentia contrastava com a calma daquela noite de lua cheia nas margens do rio. Boa noite, patrão, o Braima, camisa a arrastar pelo chão, gorro de lã na cabeça, cachimbo há que tempos nos dentes. Braima Dáfé, pés grandes, seco, resistência incomum, dia a dia a remar a canoa entre as margens, levando a mancarra que os nativos tinham para vender aos comerciantes. Patrão, tem canoa ali na margem, quer passar?


Rio acima, a brisa fresca e mansa a dar-lhes, o chlap chlap do remo, a agitação a dissipar-se, pouco e pouco a vida a ficar para trás até desaparecer, dobrada a curva do rio. E logo ali, entre os tufos das palmeiras, duas árvores despidas, encostadas uma à outra, ramos entrelaçados de tal forma que àquela distância, lhe pareciam duas pessoas abraçadas uma à outra, uma delas com um braço erguido como se pedisse auxílio ao céu. O que é aquilo, Braima? Eh, patrão, aquelas árvores são pessoas! Sim, patrão, há muito tempo.

Nem tinha ainda nascido o avô do meu avô. Quando as mulheres adúlteras eram castigadas com o desprezo, às vezes até com a morte. No tempo em que havia respeito pela honra, não era como agora. Pois nesse tempo, uma bajuda chamada Kadi foi prometida ainda menina ao poderoso Bacar Seidi, um velho rabugento já com oito mulheres.

Kadi a crescer, o coração fraco a palpitar começou a inclinar-se para Ansumane, caçador de crocodilos, o mais famoso da região. Ansumane correspondia, queria mesmo casar com ela, mas o pai já a tinha prometido a outro, mais dotado que o caçador, a coragem como único dote. Olhavam-se com aqueles olhos que toda a tabanca via, nos batuques Kadi a dançar, seios para cima e para baixo, as ancas fartas, os olhos de Ansumane. Ele bem gostava de satisfazer o seu corpo, ela de casar com ele, ai dela, tinha que cumprir a palavra de seu pai, casar com Bacar Seidi.

Passaram tempos, muitos mesmo até que um dia, com grande desgosto de Ansumane, Kadi foi entregue a Bacar Seidi, e outras luas passaram. Ansumane sem conseguir desviar-se para outra, rodeava a morança, procurava nem que fosse só vê-la, os dias a passarem-se, ele sempre a magicar como a havia de convencer a ser dele, a vontade de caçar crocodilos a passar. O homem dela, conhecedor da amizade que os unia, vigiava as redondezas, nunca se sabe. Até que um dia as febres tomaram conta de Bacar Seidi. Ansumane, na sua ronda nocturna como era costume, viu a adorada Kadi, ao ar fresco da noite na varanda. Kadi, como um assobio baixo, ela a correr, o impulso do coração mais forte que o chamamento dele, para os braços do amado. Tens que ser minha, não posso Ansumane, eu sou do Bacar, ele é o homem a quem Alá me entregou! Mas ele é velho e tu não gostas dele, tu gostas de mim, eu sei! É verdade, Ansumane, mas ele é o meu homem e eu a sua mulher, Ansumane a apertá-la mais contra o seu peito, mãos nervosas nos redondos de Kadi, aquele corpo jovem, ela a estremecer, um delírio, ele a insistir Kadi, vem comigo, fujamos, tenho a canoa na margem, se atravessarmos pela bolanha depressa chegamos! Vamos Kadi, para um lugar que ninguém nos conheça, onde o teu homem nunca nos alcance. Kadi mesmo junto ao coração dele, a tentação mais forte, o corpo a palpitar, Ansumane sim, é um homem jovem, viçoso, meu homem é velho.

Mão na mão, a passos largos na estreita vereda, a serpentear pelas palhotas, a bolanha, a seguir a margem do rio. Junto à sebe da purgueira, o sussurrar da brisa agitou as ramagens do arbusto. Não contavam, estremeceram, abraçaram-se como se estivessem mais protegidos. Acharam que não podiam esperar mais. E no silêncio da noite, deram-se um ao outro, as estrelas a brilharem como testemunhas. Ficaram esquecidos, a onda de loucura passara, Kadi em si, o erro agora sem remédio, não podia voltar para o seu homem, tinha mesmo que fugir com Ansumane. Vamos depressa antes que Bacar dê pela minha falta, vamos.

Na morança, Bacar há muito que despertara a arder em febres, se tomasse um chá de buco talvez ficasse melhor, diria a Kadi que lho preparasse. Kadi, Kadi, a voz dele a voltar para trás. Ergueu-se um pouco para ver a esteira de Kadi, devia estar a repousar, não a viu, Kadi, outra e outra vez, o eco sem resposta. Onde estaria Kadi a esta hora que ninguém está fora das moranças, obra de Ansumane, seria? A cólera deu-lhe forças, levantou-se, a espada de gume curto na mão enrugada, correu para o rio, o que as pernas deixavam, um pressentimento estranho.

Não queria acreditar, as febres, Kadi mão na mão de Ansumane a caminho do rio a dois passos. Não conseguindo alcançá-los, Kadiii, um grito áspero de gelar a chegar até eles. Estacaram, tolhidos sem poder mexer-se! Que Alá os livrasse da vingança no fio da espada, tão cortante como a voz que os fizera deter, incapazes de mais um passo que fosse! Morrer! Não, ela não queria morrer às mãos de Bacar, os braços a rodear o corpo forte de Ansumane, mais protegida da fúria de Bacar. Morrer! Não, ele não queria, nem a morte de Kadi que agora mais que nunca era sua. E erguendo-se para o céu pediu a Alá que os protegesse.

A prece foi ouvida. Quando Bacar já a curta distância, a espada no ar prestes a abater-se sobre as cabeças, Alá livrou-os da morte, transformou-os em árvores! Foi assim que um pedaço de pau encontrou a espada de Bacar! Dizem que hoje, tantas luas passadas, em noites de tempestade ainda escorrem gotas de sangue daquele lanho já seco pelos tempos!

Quando Braima acabou a história, fixou melhor as estranhas árvores, a ver se via nelas a infeliz história de Ansumane, o caçador de crocodilos, a fantasia das palavras de Braima ainda no ar. O silêncio daquela noite brilhante foi subitamente quebrado por um uivo, sinistro de um cão. Braima respondeu com um prolongado eh! eeeeh! E estalou repetidamente com a língua… Quando os cães uivam é sinal que algum mal está para acontecer! Vamos embora, patrão, é melhor! Duas remadas fundas viraram a canoa em direcção à vida.

Uma lenda que ouvi lá.

VB
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Notas do editor

(*) Este conto havia já sido publicado, na I Série do nosso Blogue, em 17 de Outubro de 2005 no poste > Guiné 63/74 - P223: Tabanca Grande: Virgínio Briote (ex-Alf Mil Comando, Cuntima e Brá, 1965/67) e a história de Ansumane, caçador de crocodilhos (conto tradicional)

Último poste da série de 1 de Agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14957: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (13): O meu amigo e camarada Joaquim Jorge, da CCAÇ 616 / BCAÇ 619 (Empada, 1964/66), que vive hoje em Ferrel, Peniche, e que eu não vejo há 50 anos (João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66)

Guiné 63/74 - P14964: (Ex)citações (288): Estações dos CTT na Guiné (Jorge Araújo)


1. O nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), a seguinte mensagem com data de 29JUL2015. 



ESTAÇÕES DOS CTT NA GUINÉ

Caro Camarada Luís,

Ainda que não seja minha a foto em anexo, mas sim do meu/nosso camarada Acácio Correia (ex-Alf. Mil. da CART 3494, que me a facultou e onde está em primeiro plano), aqui deixo mais um testemunho - o do GABÚ - para incluir no «Roteiro das Estações dos CTT na Guiné».

De referir que esta imagem, datada de 1998, foi obtida durante uma visita realizada por um grupo de ex-combatentes da CART 3494 à Guiné-Bissau, ou seja, vinte e quatro anos após o nosso regresso a casa.

Ainda assim, é de considerar como válida a hipótese de tratar-se de um edifício do nosso tempo no CTIG. 


Com um forte abraço de amizade.
Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494
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Nota de M.R.: 

Vd. Também o último poste desta série em: 

Guiné 63/74 - P14963: Notas de leitura (743): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2014:

Queridos amigos,
É uma obra magnífica, duríssima, questiona-se a todo o momento como é que um romance desta envergadura não voltou à guerra, seja no romance, conto ou poesia. É facto que leu muito, em todos os quadrantes da guerra, o que lhe permitiu elaborar uma obra de referência, “Os Anos da Guerra”, de 1988, foi o pioneiro e devemos-lhe obra muitíssimo asseada.
Falando por mim, deu-me pistas valiosas para o livro que escrevi sobre a literatura da guerra da Guiné. No meio da brutalidade e das descrições horrendas, João de Melo ascende ao volteio poético, e permitam-me este exemplo magnífico, em jeito de quase despedida: “Eu, soldado ocidental, demoro aqui os olhos: uma seta voa ao encontro dos sítios, do seu conhecimento. sirvo-me dos morros de Calambata, da Canda (a serra azul), da Binda (as tagarelas árvores-garrafas) e bebo a invenção destes nomes. sentei-me na noite, em Calambata, com um cigarro suspenso da ferida visível do rosto e de lá vos mandei escrito de toda a memória que há sobre os dias desta guerra”.

Um abraço do
Mário


Autópsia de Um Mar de Ruínas (3), por João de Melo

Beja Santos

Em Calambata, vai crescendo a tensão emocional, os mortos por ali andam, em bolandas, aguardam transporte que tarda em chegar. Na sanzala sonha-se, estão a chegar os dias de pesar o café e receber nas mãos o dinheiro quente. Já se sabe que vão chegar as grandes bebedeiras, o que sobrar não dará para o ano todo. É nisto que uma espetacular queimada vem alvoraçar Calambata. E volta o ramerrão, a mansidão dos dias, tal como vai ser vivida na messe de sargentos:
“O Furriel Silvares sorvia e mastigava a cerveja morta, com a repugnância de quem estivesse bebendo a própria urina – e o carão habitualmente rubro de Octávio enchera-se de covas vivas. Apenas o furriel das transmissões dormitava no seu canto, de novo desesperado, sem saber por que motivo a cortiça do cérebro não cedia já ao torpor e à hipnose do álcool, ao uísque e ao martini, ao gin tónico com uma rodela de limão; Tavares escrevia uma nova página do seu diário de campanha, memórias de guerra sobre o título de De Como Nos Fomos A Eles Em África E Asinha Os Tornámos Escravos Nossos E De Nossa Única Vontade; escrevia em duplicado, com um químico, sendo o original para a mulher e a cópia para guardar num cofre de folha retangular. De uma forma geral, estavam para ali, tardes inteiras, e não falavam, por quanto já nada havia para dizer, nem o jogo das cartas servia de pretexto para empurrar o tempo e as palavras”.

E abruptamente a guerra reacendeu-se, as minas rebentavam em todas as picadas matando homens e Berliets. Chegaram tropas de intervenção de Luanda, tomaram conta de todo o Norte, parecia que a guerrilha queria aniquilar a cidade de São Salvador, a população pôs-se ao trabalho, construiu abrigos e valas. Começa a espera, prevê-se que a próxima grande flagelação será Calambata. É neste contexto que João de Melo escreve belíssimas páginas sobre o amor, antológicas:
“Nas mãos incertas do meu amor repousarão algumas das palavras. Escrevo-as nuns transparentes, levíssimos aerogramas de um azul de anjos, porque vem avião, são três da tarde e o amor desespera tanto. Ninguém melhor do que tu, amor, lembrará vivo. São três da tarde e eu de ti tão sedento como da água que pudesse caber nos mares do deserto. Sou porém um homem com mãos de cedro (…). Porque demoram tanto os abomináveis sargentos-de-dia a distribuição do correio? Não sabem, não saberão nunca, amor, que uma carta não tem só a importância de ser escrita. Abre-me os lençóis para que o sono te doa como um címbalo acordado em Lisboa. Falas-me de um país às três da tarde, 1972, e nunca foi tão triste o mês de Novembro (…). … eis meus dias serenos, parados iguais: um exílio de homem na guerra, enquanto acredita no amor, amor, tem seus recados e não conhece outros países. Por isso te digo que em tudo há um tempo e um lugar para ele até que o amor ausente seja um canto. Este canto ausente és tu, amor, e só a ti o digo, escrevendo-o com o abandono e o desamparo de um sentimento de amor que há de ser sempre maior do que a minha vida”.

A brutalidade começa a tomar conta dos militares de Calambata, são as lavadeiras quem pagam, as chuvas são imensas, as gentes das sanzalas andam apressadas a proteger o café. Cresciam as nuvens, uma bravia tempestade rebentou, tal e qual um estrondo de guerra. “E quando, finalmente, essa chuva rompeu, as pessoas calaram sua boca de repente e ficaram a pensar as pedradas de granizo davam gozo ouvir no silêncio porque adormeciam por dentro. Pouco a pouco, pelo chão, a água formava poças, levava consigo o lixo e as areias e ficava tão avermelhada como o sangue que podia escorrer das feridas das pessoas”. O envolvimento do escritor com a vida dura dos nativos é permanente, pela sua voz ouvimos os anseios, as promessas e as esperanças nos dias melhores. A realidade é dura, a comida falta e os meninos lá vão ao quartel buscar a comida para o jantar.

Os meses passam, a fadiga toma conta de todos, é bem patente naqueles patrulhamentos de vários dias:  
“Eram vinte e sete homens destroçados, vencidos pelo cansaço de três dias de marcha através da selva. Trazida na memória do corpo, e vinda de todos os meses que levavam já daquelas andanças, a fadiga reduzira-os à condição de peregrinos da própria terra que pisavam. À ordem de parar, deixaram-se logo cair para o chão, com tudo o que transportavam às costas: armas e granadas, bornais de campanha com panos de tenda e um cobertor, algumas caixas de ração de combate, colchões pneumáticos, os cantis, uma ou outra lata de cerveja. Colava-se-lhes o cabelo à testa e ao pescoço – e nos rostos empoeirados, com sulcos de transpiração que pareciam mascará-los, alastrava agora um fogo convulso e sanguíneo, de uma cor afiambrada”.
São patrulhamentos incessantes, evita-se a todo o transe que a guerrilha esfarele quem vive em Calambata. E num desses patrulhamentos encontram os guerrilheiros, há fogo confuso e depois o silêncio. E João de Melo pincela primorosamente a descrição de um rasgo de bravura, a alucinação e o destemor que nada faz prever:
“Viu o olhar alucinado do furriel Octávio e teve logo a certeza de que ele ia desatar a correr pela mata fora, disposto a enfrentar o risco de ser atravessado pelas balas dos guerrilheiros. Tentou agarrá-lo por uma perna, mas falharam-lhe os dedos. O furriel caiu, levantou-se, pôs-se a rolar no chão, como uma bola, até se estatelar ao comprido numa plataforma baixa da mata. Aí, despejou o primeiro carregador de munições sobre o chapinhar invisível daqueles passos lançados na fuga. Sacou a Breda das mãos do soldado Monteiro e desfez-se rapidamente de uma fita de balas. A seguir, correu de novo pela mata e recomeçou a disparar às-cegas. Acreditou que faria alguns mortos: os cadáveres teriam de ser iguaizinhos aos dos companheiros mortos nas outras emboscadas, com aqueles estranhos braços rígidos apontados a um céu sem altura. Sempre jurara vingá-los. Com um pouco de sorte, o seu nome constaria em breve dos relatórios de guerra, ficaria indissoluvelmente ligada à história de um Batalhão martirizado. Quando se viu sem balas, assumiu um ar idiota. Meio atordoado, puxou da única granada que trazia enganchada no cinturão e retirou-lhe a cavilha com os dentes. Ficou a seguir com os olhos o gesto circular da mão que a atirava para longe, por cima da copa das árvores, e esperou a explosão. A mata encheu-se logo de ecos. Regressou cabisbaixo, de cócoras e olhos no chão, porque tão-pouco podia oferecer o espetáculo de trazer consigo um prisioneiro de guerra, uma arma ou mesmo as orelhas de um cadáver”.
O alferes anda por ali descorçoado, já só pensa nas férias. É nisto que se ouve ao longe o zumbido dos helicópteros.

O romance avança rapidamente para o fim, vem a caminho uma coluna civil com gente de Makela do Zombo, vêm fazer negócios de café e outras coisas mais, e vem também a caminho a tropa especial ávida por matar os combatentes da revolução.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14954: Notas de leitura (742): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 2 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14962: O segredo de... (20): Fernando Brito (1932-2014), ex-1º srgt, CCS/BART 2917 (1970/72): quadro, em "folha de capim", do seu infortunado filho (, morto mais tarde num trágico acidente, em 2001), pintado pelo caboverdiano Leão Lopes, em Bambadinca, 1971 (Cláudio Brito, neto)



Ano de 1971, quadro pintado e assinado por Leão Lopes, em #folha de capim" (sic), com o retrato  de Fernando José Gonçalves de Brito, filho de Fernando Brito (1932-2014) e pai de Cláudio Brito, Detalhes.


1. Mensagem, com data de 28,  do corrente de Cláudio Brito,  neto de Fernando Brito (1932-2014) (foto de avô e neto, à esquerda) 
 


Olá, boa noite, Caro Sr. Luís Graça,

Saudações ao senhor e a toda a sua família e aos camaradas da Guiné.

Sem mais delongas passo a encadear o conteúdo deste mail.


Já passou quase 1 ano e meio desde que o meu avô faleceu (*).

Neste período de catarse, mas nunca de esquecimento, além do trabalho que, graças a Deus, é consistente e me tem comido os dias e as noites, penso bastante em toda a vida que o meu avô levou. Uma vida de aventuras e desventuras, de guerra, de tropa e de camaradagem, a lidar com tantos seres humanos que só os limites da razão e da paixão nos podem fazer equilibrar no ténue comportamento da sanidade (especialmente atendendo a circunstâncias beligerantes).

Por essas razões, assim que o meu avô faleceu, não fiquei de braços cruzados e a empresa de reunião dos materiais de uma vida não ficou por acabar. De facto, tenho-o feito. Lentamente, nos meus tempos livres e com ajuda da minha companheira.

Já tinha prometido a mim mesmo que partilharia fotografias com os vários amigos do meu avô que passaram com ele o tempo da guerra e da tropa e que, além de fotografias, esperaria, deliciado, que eles partilhassem comigo a história por detrás delas.

Porquê? Porque sim! Porque me interesso por isto. Porque os Homens não são nada sem a sua História, aliás, não são Homens. E não há que negá-la. Há, sim,  que fazer como uma casa depois de um desastre natural...  arrumá-la.

Pois bem, nas minhas arrumações, encontrei algo que quero partilhar, esperando que alguém do outro lado se possa rir ou talvez chorar, não sei. O objeto em questão é um quadro, um quadro enormíssimo feito pelo pintor/artista cabo-verdiano Leão Lopes. Corria o ano de 1971 e o meu avô pediu a Leão Lopes que pintasse, em folha de capim, o retrato do filho (o meu falecido pai), Fernando José Gonçalves de Brito.

Poderá ser porque sou filho (e serei sempre suspeito), mas acho o quadro lindíssimo. Tantos anos pendurado na parede, causando-me fascinação em criança, para, agora, reconhecer que tem que ser partilhado com o mundo. Tendo em conta as circunstâncias da sua criação, é para mim um dos mais belos exemplares da troca intercultural e da criação artística em cenário de guerra. Mas, para julgamentos, deixemos a História e os Homens ocuparem-se disso.

Que este artista possa rever uma obra que não sei se terá par, mas também que seja partilhada uma memória tão fascinante num tempo tão negro. Com certeza terá sido um momento bem passado.

E assim partilho uma história, prometendo mais e despedindo-me com um grande abraço para o Sr. Graça e todos os camaradas.

Aguardo notícias, esperando que todos se encontrem bem.

Cláudio Brito


2. Comentário de LG

Cláudio, é uma belíssima e comovente homenagem ao teu avô e ao teu pai... Como te disse por email, decidi rapidamente publicar este teu texto na série "O segredo de...", embora estando de férias...

Não sei exatamente em que o ano o teu pai nasceu, talvez por volta de 1960... Teria então cerca de 10/11 anos quando o Leão Lopes pintou o seu retrato, em Bambadinca, a partir de  uma fotografia cedida pelo teu avô...


Guiné > Zona Leste > Bafatá > "Foto tirada no dia 30 de Março de 1971 em Bafatá, onde o grupo foi jantar, para celeberar os meus 24 anos. Na foto, e da esquerda para a direita temos: Leão Lopes (fur mil, BENG 447, e ex-esposa Lucília; fur mil op esp Benjamim Durães, Fernando Cunha (Soldado condutor), Rogério Ribeiro (1º cabo aux enfermeiro), Braga Gonçalves (alf mil cav) e ex-esposa Cecília; Isabel e o marido José Coelho (furriel mil enfermeiro), e o 1º cabo condutor auto José Brás". O Benjamim Duraes diz que ele, o artista, tambem lhe pintou o seu retrato em 1971

Foto (e legenda): © Benjamim Durães (2009). Todos os direitos reservados. [Edição: LG].

Recordo-me, mal, do  Leão Lopes... Era furriel do BENG [Batalhão de Engenharia] 447. Em contrapartida, recordo-me bem do Coelho e do Durães...  Julgo que o Durães. por ser casado, não comia connosco na messe de sargentos. Não tenho a certeza.

De qualquer modo, este quadro também vai um surpresa para ele. Hoje é uma figura pública (vd. aqui entrada na Wikipedia), conhecido como pintor e cineasta em Cabo Verde.  Já foi Ministro da Cultura e Comunicações de Cabo Verde, deputado, professor universitário de Assuntos Africanos em França e também fundador e animador da ONG AtelierMar,  em Cabo Verde... Enfim, não o vejo desde então, Bambadinca, 1970/71 (**), e para ele vai um grande alfabravo...

 Já aqui escrevi que a morte do teu avô. por ter sido inesperada, foi um duro golpe para ti. Tu eras o seu neto querido. Ele parecia gozar de excelente saúde, apesar dos seus 82 anos, e as suas várias comissões em África. Mas a vida foi lhe madrasta: há poucos anos tinha perdido a sua companheira de uma vida, a Natacha, tua avó, de que ele falava sempre com tanta ternura e orgulho em Bambadinca. E em 2001, perdera o filho, num trágico acidente de automóvel, o teu pai.

Como sabes, privei/privámos com ele (alguns de nós, grã-tabanqueiros), em Bambadinca, em 1970/71, como 1º srgt da CCS/BART 2917.

O Fernando Brito tinha entrado há pouco para o nosso blogue. Eu falara com ele há menos de um mês, ao telefone. Tinha ficado  entusiasmado com a hipótese de nos podermos reencontrar, ele e a malta da CCAÇ 12, com quem se dava particularmente bem (*), Falou-me, um pouco, dos tempos duros que passou na 2ª comissão, na Guiné, em Madina Mandinga, no setor de Nova Lamgo. E,  claro, pressenti a dor, nunca curada,  da grande perda que foi a morte do seu filho e da sua esposa.

Curiosamente, não sabia da existência deste quadro. Possivelmente foi um encomenda posterior à minha / nossa partida de Bambadinca, em março de 1971, depois de finda a minha /nossa comissão em rendição individual.

Obrigado, Cláudio, pela partilha.(***)

Quando quiseres e puderes, manda-me então fotos digitalizadas, com boa resolução, do álbum do teu avô e meu/nosso amigo e camarada Brito... È a melhor forma de o homenagearmos.

E, claro, que preenchas o vazio deixado pelo teu avô. O seu lugar, na Tabanca Grande, deve ser ocupado por ti. Abraço e coragem para ti. Luís Graça
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12747: In Memoriam (180): Fernando Brito (1932-2014), major art ref, ex-1º srgt, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e 1ª C / BART 6523 (Madina Mandinga, 1972/74)
(**) Vd. poste de 22 de maio de  2009 > Guiné 63/74 - P4399: Em busca de... (74): O caboverdiano Leão Lopes, meu antigo camarada de Bambadinca, BENG 447, 1970/72 (Benjamim Durães)

[Resposta do Leão Lopes ao apelo do Benjamim Durães em maio de 2009:]

Caro Durães,

Ainda me visto de Leão Lopes, apenas isso. Mas o ex-camarada de Bambadinca envaidece-me e é uma grande honra responder por ele.

Não imaginas a emoção que ainda sinto por este reencontro. Já ninguém poderá duvidar que eu também lá estive. Vocês existem e a memória colectiva também. Eu próprio duvidei por vezes desta parte da minha história, quando alguns episódios vividos se confundiam com uma projecção ficcional não tendo por perto quem mos pudesse reavivar, corrigir, confirmar.

Imagina que eu me lembro sempre do nosso capelão Arsénio Puim, do dia em que a PIDE o levou, da minha / nossa revolta. E como eu gostaria de o reencontrar para lhe dar o abraço que não pude dar-lhe nesse dia. A PIDE tinha-me levado antes o Joãozinho e mais outros dos melhores operários nativos que eu tive no destacamento de engenharia. Destes nunca mais soube.

Há alguns anos estive em Bambadinca e, nas ruínas do que foi nosso quartel, encontrei Mariana, a nossa lavadeira, que me avivou na memória muita coisa difusa e talvez esquecida. Por exemplo, que eu pintei o retrato de um camarada. Quem seria?

Sim, lembro-me de alguns de vocês. De ti, do Braga Gonçalves, do Coelho, do Brás. Lembro-me do Vinagre, de Coruche (?) com quem fiz algumas traquinices inventando coisas para driblar o tempo. Chegamos a ser sócios numa moto e nunca contei a ninguém que por um triz teriam hoje que me juntar aos homenageados no minuto de silêncio dos vossos encontros. Sabem dele?

Ainda canto Zeca Afonso e as músicas popularizadas por Adriano Correia de Oliveira que nos ajudavam a resistir e a manter a moral acima de tudo.

As minhas condolências pelo Rebelo.

Parabéns a Luís Graça pelo blog. Um belíssima iniciativa, um belo slogan, um esforço de trabalho imenso.

Um dia destes, numa das minhas passagens por Portugal, tentarei abraçar-vos. Muito obrigado pela fotografia e por me teres procurado e achado.

Até breve,  Leão Lopes

(***) Último poste da série > 29 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14945: O segredo de... (19): António Medina (ex-fur mil, CART 527, 1963/65, natural de Cabo Verde, mais tarde empregado do BNU, e hoje cidadão norte-americano): Desenfiado em Bissau por três dias, por causa dos primos Marques da Silva, fundadores do conjunto musical "Ritmos Caboverdeanos"... Teve de se meter num táxi, até Teixeira Pinto, que lhe custou mil pesos, escapando de levar uma porrada por "deserção"!

Guiné 63/74 - P14961: Convívios (700): Encontro do pessoal da CART 1659 (Gadamael - 1967/68), a levar a efeito no dia 26 de Setembro de 2015, na Batalha (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 26 de Julho de 2015:

Caro Camarada Carlos 
Como o combinado, envio um Cartaz sobre o Almoço de Confraternização da CART 1659, realizar a 26 de Setembro de 2015, na Batalha.

Abraço
Mário Gaspar


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Nota do editor

Último poste da série de 28 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14939: Convívios (699): A Magnífica Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, 23 de julho de 2015 - Parte II: Três vídeos (LG) e mais fotos (de casais) (Manuel Resende)

Guiné 63/74 - P14960: Libertando-me (Tony Borié) (28): Pôr a carta no Correio, na guerra

Vigésimo oitavo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 27 de Julho de 2015.


Pôr a carta no correio... na guerra!

Os CTT’s em Mansoa estavam localizados na rua onde, ao fundo, existiam aqueles riachos enlameados que despertavam as canoas do nosso amigo Iafane, que andavam à deriva por altura da maré cheia, talvez querendo fugir, libertando-se dos sonhos do seu dono que estavam interligados num fluxo sinuoso, pois a sua Guiné era um refúgio seguro, onde podia ter relações legalmente, quase como se fosse um casamento, com três, quatro ou cinco mulheres, onde, como já dissemos em textos anteriores, a sua acção era ignorada, fazia parte da história colonial, daquele braço português de opressão racial e subjugação dos civis guinéus, longe da velha Europa, do resto do mundo, na altura, em algumas zonas, profundamente racista, mas felizmente, a simpática funcionária dos CTT’s em Mansoa era uma senhora africana que usava permanente, pintava os lábios, arranjava as unhas, usando roupas estilo quase europeu, mostrando, pelo menos para nós, um sorriso no atendimento e, cremos que não andaremos longe da verdade, se dissermos que devia de ser só ela a esposa do seu marido, pois ele acompanhava-a sempre quando iam à missa, pelo menos ao domingo, onde também iam as filhas do Libanês que inundavam a igreja com aquele perfume exótico.

Falar dos CTT’s de Mansoa é falar de jornadas de história do movimento que passou a ter com o nascimento da guerra colonial, com a presença dos militares, principalmente os vindos da Europa, os canteiros das ruas e os troncos de algumas árvores estavam pintados de branco, havia alguma ordem e arrumação pública, talvez fosse o lado menos mau da guerra, podemos dizer que era o outro lado da moeda, mas o aumento do seu movimento, tal como por aqui nos USA, quando surgiu o Pony Express, que foi estimulado pela ameaça da Guerra Civil e havia necessidade de uma comunicação mais rápida com o Ocidente.


Não queremos, mais uma vez, lembrar o furriel Honório que rasava, com a sua avioneta do correio, a árvore grande que existia no aquartelamento, que foi baptizada por “a mangueira do Setúbal”, que tinha na sua base muitas gaiolas de macacos e periquitos, que faziam um barulho estrondoso, anunciando a chegada do correio, pois isto era lembrar cenário de guerra, mas podemos dizer que quase todas as semanas íamos aos CTT’s de Mansoa comprar selos para enviar cartas com fotografias para familiares e amigos, não só para nosso uso como para companheiros que estavam nas suas tarefas e nos pediam. Cremos que os aerogramas que eram entregues no aquartelamento, com a ajuda do furriel Honório, viajavam mais rápidos que as cartas que se entregavam nos CTT’s e, mesmo assim, deviam demorar muito menos tempo do que o serviço do Pony Express, que consistia em homens montados a cavalo transportando alforjes de correio, através de um trilho de mais de 2000 milhas, serviço que abriu oficialmente em Abril de 1860, que começou a ter carreiras simultaneamente a partir de St. Joseph, no estado de Missouri, e Sacramento, no estado da Califórnia. A primeira viagem no sentido oeste foi feita em 9 dias e 23 horas e a viagem em sentido contrário, em 11 dias e 12 horas.

Na altura, eram as colunas militares que levavam as cartas e encomendas para Bissau, daí não devia haver muito perigo para irem de barco ou avião para a Europa, não como o Pony Express, que naquele percurso, tinha mais de 100 estações, cerca de 90 homens treinados para andarem a cavalo, assim como entre 400 e 500 cavalos, cuja via expressa era extremamente perigosa, todavia nunca foi perdida uma entrega, mas este serviço durou apenas 19 meses, até Outubro de 1861, quando a conclusão da linha Pacific Telegraph terminou com a necessidade da sua existência. Era uma novidade, todos invocavam as notícias do Pony Express, principalmente durante os primeiros dias da Guerra Civil e, esta linha a cavalo, nunca foi um sucesso financeiro, levando os seus fundadores à falência, no entanto, o drama romântico em torno do Pony Express tornou-se uma parte da lenda do Oeste Americano.

Telefonar dos CTT’s de Mansoa talvez fosse possível, a nós nunca nos passou pela cabeça tal aventura, pois na nossa aldeia, na vertente da montanha do Caramulo, onde a crosta terrestre, lentamente começava a ser plana, flutuando por perto as zonas ribeirinhas do rio Águeda, onde pela noite, não havendo luz eléctrica, se a terra tremesse, nascendo dos céus uma pequena luz, que seria uma qualquer estrela, mas talvez uma estrela nova, daquelas que fazem oscilar um continente, ninguém dava por isso, talvez na reunião da capela, na missa do próximo domingo, o senhor padre, com ar muito responsável, vestindo um traje preto, nos dissesse que o “Nosso Deus”, lá nas alturas, não gostava do nosso procedimento, estava zangado e teríamos que rezar, fazer mais sacrifícios, contribuir com mais donativos, baixar a cabeça, render homenagem aos senhores da aldeia e da vila, que eram os bons, os melhores, que só tinham intenção de nos fazer bem, pois todos os habitantes da aldeia não sabiam que o resto do mundo existia, pois não havia telefone.

Tony Borie, Julho de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14933: Libertando-me (Tony Borié) (27): Todos temos um rio, eu tenho quatro: o Águeda, em Portugal; o Mansoa, na Guiné e os Passaic e o Yukon, nos Estados Unidos

Guiné 63/74 - P14959: Álbum fotográfico de Jaime Machado (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70) - Parte X: Bafatá



Foto nº 1  > O burro, que já estava em extinção


Foto nº 2 > Estrada (alcatroada) Bambadinca-Bafatá que aqui, se não me engano, atravessava o Rio Cofule,l afluente do Rio Geba,.


 Foto nº 3 > Mercado de Bafatá (1)


Foto nº 4 > Mercado de Bafatá (2)


Foto nº 5 > Mercado de Bafatá (3)



Foto nº 6  > Mercado de Bafatá (4), visto do exterior.  (recorde-se que o nosso especialista de Bafatá, o Fernando Gouveia, já llhe dedicou um poste, P4769, comsideramdo este edifício, de estilo neo-árabe,  como o verdadeiro ex-libris de Bafatá)


Foto nº 7 > Loja da libanesa,a  Dona Vitória  (, se não me engano)


Foto nº 8 > Porto fluvial de Bafatá


Foto nº 9 > Rua principal de Bafatá, vista da piscina; em primeiro, o parque com a estátua do governador Oliveira Muzanty, do princípio do séc. XX, e a casa Gouveia


Foto nº 10 > O Jaime Machado na prancha de saltos da piscina


Foto nº 11 > O Jaime Machado, na esplanada da piscina, tendo atrás de si o Rio Geba


Foto nº 12 > A mesquita de Bafatá


Fotos (e legendas): © Jaime Machado (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG]


1. Continuação da publicação do magnífico álbum fotográfico do Jaime Machado, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, maio de 1968/fevereiro de 1970, ao tempo dos BART 1913 e BCAÇ 2852) (*):

[foto atual à direita; o Jaime Machado reside em Senhora da Hora, Matosinhos; mantém com a Guiné-Bissau uma forte relação afetiva e de solidariedade, através do Lions Clube; voltou à Guine-Bissau em 2010]
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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de julho de  2015 > Guiné 63/74 - P14943: Álbum fotográfico de Jaime Machado (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70) - Parte IX: Os meus rios, Geba e Udunduma

sábado, 1 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14958: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (19): Samuel e os amores desfasados

1. Em mensagem do dia 27 de Julho de 2015 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), reaparece com uma bonita história de amor para a sua série "Outras Memórias da Minha Guerra".

Caro amigo Vinhal
Aí vai mais uma história. Possivelmente a última para o livro.
Agradeço mais uma vez a tua colaboração no arranjo dos trabalhos

Grande abraço
JF Silva da Cart 1689


Outras memórias da minha guerra

18 - Samuel e os amores desfasados

Em Maio de 1968 conheci o pára-quedista Luís Samuel. Eu estava de regresso (de férias), esperando transporte para Catió e ele contava regressar a Vila Nova de Gaia dentro de poucos dias. Ali, na baixa de Bissau, bebemos umas cervejolas, convivemos e falámos da nossa proximidade geográfica, partindo do princípio de que eu estava destinado a vir a ser seu conterrâneo, lá para o interior leste do concelho de Gaia.
Com ele andava sempre o colega Martins, de Rio Tinto, formando uma dupla de amizade indiscutível. Tive a oportunidade de ir com eles aos Bijagós, à boleia de amigos marinheiros e dar uns mergulhos espectaculares.
Enquanto eu matutava sobre os riscos do regresso à guerra, eles falavam muito sobre o seu futuro próximo. O Martins estava determinado a ir para a Venezuela, onde contava com o apoio de um vizinho e o Samuel parecia mais inclinado para retomar os estudos.


***

Há cerca de cinco anos, com a minha adesão ao Facebook, retomei contactos interessantes com ex-combatentes, com quem tenho convivido frequentemente.
Num desses convívios encontrei o Samuel. Já pouco se lembrava de mim. Todavia, foi fácil reatar um relacionamento, que potenciava alguma empatia. Falámos várias vezes sobre estes quarenta e tal anos passados desde aqueles dias vividos em Bissau. No entanto, só numa recente deslocação a Lisboa tivemos tempo suficiente para ouvir a sua interessante história.

***

Quando o Samuel regressou da Guiné, arranjou emprego facilmente, talvez porque, conforme se verificava naquele tempo, muitos dos seus amigos estavam ausentes: uns na guerra e outros emigrados. Como empregado de escritório, entendeu que deveria frequentar o Instituto de Contabilidade. Depois meteu-se no negócio do imobiliário e chegou a ter uma vida financeira bastante folgada. Casou e fez-se pai de 2 filhos.

***

No dia 23 de Maio de 1984, dia da “Festa dos Páras”, em Tancos, o Samuel encontrou o Martins. Estava acompanhado da mulher e da filha.
- Então, como tens passado, que não te vejo há tanto tempo?
- Vim matar saudades. Cheguei ontem da Madeira e tenciono ir lá a cima, a Rio Tinto, passar uns dias. Ia procurar-te, para pormos a escrita em dia.
- Madeira?
- Sim, estou na Venezuela, casei com esta madeirense, a Conceição. Vou ver os meus velhotes que vêm de férias de França e convencê-los a irem à Madeira, passar uns dias. Praticamente já não tenho família em Rio Tinto, porque o meu irmão também está lá para a França, para onde levou os meus pais.
E adiantou:
- Antes do mais, dá-me o teu telelé, para não te perder mais.

Foto, com a devida vénia a Pára-Quedistas casa mãe BETP

Dois dias depois, o Samuel apresentou-lhe a sua família, em ambiente familiar e bastante amistoso. Por sua vez, o Martins abriu-se e falou da sua vida.
- Estou muito bem na Venezuela. A minha mulher é filha única. Trabalhámos nas duas padarias dos meus sogros e temos ganho umas coroas. Aquilo está a mudar e nós não queremos lá ficar. Estou inclinado para regressar às origens, embora não seja essa a vontade da Conceição. Mas, o que mais nos preocupa, é esta filhota. A Naíde já está com 12 anos e aquilo não é o ambiente que lhe desejamos. E ela é tudo para nós.

De tempos a tempos, estes dois amigos contactavam-se telefonicamente, especialmente por altura das festas anuais.

Dois ou três anos depois, voltaram para deixar a Naíde num colégio de uma ordem religiosa, como aluna interna. Regressaram deixando tudo acertado, inclusive o apoio da família do Samuel.
O apoio foi tal que a miúda confessou que, apesar da ausência dos pais e da disciplina religiosa no colégio, se sentia muito bem aqui, no Porto.
Sempre que saía do colégio era para acompanhar a família do Samuel. E foi assim que conheceu bem não só o Porto como outros pontos importantes do norte de Portugal.

***

A Naíde tornara-se uma jovem simpática, bastante formosa, de cabelos lisos aloirados e muito bonita.
Feito o Liceu, passou a frequentar as aulas da Faculdade de Economia e, quando terminavam, regressava ao seu ambiente austero de interna no Colégio Central.
Foi nessa altura que conheceu um rapaz, saído do seminário, que frequentava também a mesma Faculdade, mas com um ano de avanço.
O Aníbal era um jovem de bela figura. Andava sempre asseado, bem barbeado e bem penteado. Para as meninas de bem (e suas mães), que o viam, regularmente, a sair da igreja do Salvador, ele era o partido desejado. No entanto, também se aperceberam de que, ele e a Naíde, pareciam formar o par perfeito.

Quando casaram, ela foi viver para Lisboa, onde ele trabalhava.
Pouco tempo depois, a Naíde enviava fotos do pequeno Joel, fruto do seu matrimónio.
Entretanto, nesses últimos 10 anos o Martins, já sem sogros, vinha investindo no Porto, na compra de imóveis, com a colaboração do Samuel. No ano de 2000, tinha já quatro apartamentos, quatro lojas e duas moradias gémeas.
Porém, a situação política e económica na Venezuela começou a piorar, pararam os investimentos e o Martins preparou-se para regressar a Portugal. O Samuel tratava de gerir os bens. A filha, mantinha-se em Lisboa, com o marido.

O Martins já estava a viver na Madeira quando teve um AVC e apagou-se em poucos dias. A mulher, presa aos haveres herdados na Madeira, decidiu por lá ficar.
Por essa altura a Naíde acentua os contactos com o Samuel e manifesta desejo de viver no Porto. Confessa que não consegue adaptar-se àquele ambiente social cosmopolita, tão do agrado do marido. Ele apaixonara-se por Lisboa e ela não troca o Porto nem pela Madeira.
Com a crise do sector imobiliário, o Samuel entrou num período financeiro bastante difícil. A desvalorização repentina dos imóveis, a escassez de construção e as dificuldades nas vendas, provocaram o incumprimento das obrigações bancárias. Em pouco tempo, as hipotecas foram accionadas e o Samuel entrou em falência.
Os filhos já bem arrumados não tinham carências. Porém, a mulher, habituada a uma vida “à larga”, não aceitou a situação e martirizava-o, culpando-o e chamando-o incompetente. Na hora em que mais apoio precisava, ela massacrou-o, afastou-se dele e divorciou-se. Hoje ele confessa que essa desgraça teve o condão de o fazer entender muita coisa que nunca imaginara.
Passou a concentrar-se na sua actividade de Contabilista, assumindo uma atitude que o fez recuperar a estabilidade. Mais liberto, passou a dedicar-se mais ao para-quedismo, sua grande paixão, onde se destacara como Instrutor. Voltou a visitar e participar em vários eventos, alguns de nível internacional.

Em 2004 foi diagnosticado ao Samuel um tumor na bexiga. Dado como incurável, entregou-se com toda a força a um regime especial de tratamento difícil e muito controlado. Ele, que tanto sofrera e que tanto de mal já experimentara, não aceitava perder a vida aos 60 anos. Antes pelo contrário, ele sente que tem, ainda, muito por fazer e muitíssima vontade para viver.

Eram mais de 11 horas daquele dia cinzento de finais de Junho. O Samuel acabava de chegar do IPO. Vinha a pé. Saíra da Batalha em direcção a Gaia, passando pelo tabuleiro superior da Ponte D. Luís.
Sempre que podia, saboreava esse prazer de sentir as alturas, agora mais limitado à brisa marítima do alto da ponte. Já perto de casa, reconhece a Naíde.
- Ei, Princesa, por aqui?
Mal o Samuel a interpelou, ela aproximou-se e abraçou-o a chorar.
- Temos muito que falar e vamos aproveitar enquanto o Joel está a dormir no carro.
E continuou:
- Samuel, vou fazer 33 anos mas, tu que me conheces bem, diz-me que defeitos terei para ser rejeitada?
- Estás doida, rapariga? Toda a gente te vê como uma bela mulher. Uma mulher desejada por qualquer homem, por mais exigente que seja.
Agora, a balbuciar, a Naíde confessa:
- O meu marido… trocou-me. Eu… não lhe… agradava o suficiente… A culpa deve ser minha.
- Tem juízo, Naíde, deve haver confusão. O Aníbal não fazia isso. Onde é que ele ia arranjar uma mulher melhor que tu?
- Samuel, ontem como o Aníbal não atendia o telemóvel, quando fui buscar o miúdo ao Colégio, passei pelo Ginásio onde ele anda. Como o carro dele estava cá fora e já não se via ninguém, fui entrando. Quando empurrei uma das portas, encontrei o Aníbal, agarrado a outro homem, e a beijarem-se.
Após uma pausa, em que o Samuel ficou boquiaberto, continuou:
- Não quero ver mais esse homem nem quero que o meu filho esteja por perto dele.
O Samuel aconchegou-a, pediu-lhe calma e procurando atenuar a gravidade da situação, aconselhou:
- Vamos entrar, vamos descansar e vamos pensar o que fazer. Podes ficar aqui, se quiseres, ou ir para uma das vossas moradias que esteja vaga.

 Ponte Luiz I - Tabuleiro superior destinado a peões e Metro de superfície

Seguiram-se tempos de recuperação. Ela, porque ficara bastante afectada psicologicamente e ele, porque lutava pela superação do cancro da bexiga. Unidos na desgraça, experimentaram a evolução para melhores momentos. E mais estáveis.

A Naíde foi-se desligando do passado, foi-se ocupando a gerir os seus bens e a colaborar pontualmente na empresa de Contabilidade e Gestão do Samuel. Dentro das condicionantes criadas, as coisas iam correndo favoravelmente.
Por sua vez, o Samuel vivia momentos mais felizes, visto que parecia ter vencido o cancro. Lutava agora pela sua recuperação total e, muito em especial, pela sua capacidade na área sexual.
Viviam muito próximos. Para ele, ela era uma filha carente e merecedora de uma vida feliz. Para ela, ele era o pai ausente e, ao mesmo tempo, o pai que o filho precisava. O Samuel, sempre que podia, apresentava e proporcionava a Naíde possíveis namorados da sua confiança. Ele queria que ela perdesse a aparente relutância a qualquer novo relacionamento amoroso. Porém, quanto mais ele insistia na necessidade de ela se arrumar e de constituir família plena, mais ela parecia desvalorizar o assunto e acomodar-se à estabilidade presente.

Numa das deslocações à zona ribeirinha do Porto, para comer umas sardinhas, foram surpreendidos pelo Toni, um colega da Naíde, dos tempos da Faculdade, que viera ao Porto em rápida missão de serviço de Consultadoria. Foi um jantar agradável, onde se falou à vontade, sobre os seus passados recentes.
O Toni confessou que sempre se sentira atraído pela Naíde mas que ela não lhe havia dado hipóteses. Disse estar a viver bem em Paris mas que não tivera sorte no amor, e que já estava divorciado há uns anos. O Samuel pediu para se ausentar e levar o Joel para lhe comprar uma guloseima. E no dia seguinte o Samuel deixou-os à vontade.

Durante algumas semanas, a Naíde falou várias vezes do Toni. Por sua vez o Samuel aproveitava isso para promover algum interesse desse relacionamento. Porém, ela referia que o Toni ficara de telefonar e de voltar na semana seguinte, o que ainda não acontecera.
Uns dias depois, o Samuel interpelou a Naíde:
- Princesa, fui chamado a Paris para resolver um assunto de um cliente emigrado. Pensei que me poderias ajudar no assunto e aproveitarias para sair de casa.
E continuou:
- Podíamos levar o Joel à Disneyland. Teria muito gosto com a vossa companhia.

Logo que chegaram a Saint Denis, o Samuel, que já conhecia essa zona de Paris, procurou a casa de um amigo, conhecido desde a sua infância. Daí até à localização do Dr. Toni, um economista português bem referenciado entre os emigrantes, foi um rápido.
No dia seguinte, sem dizer nada à Naíde, o Samuel avançou por uma rua abaixo e parou mesmo junto de uma porta. Tocou à campainha e ninguém apareceu. Veio para o carro dizendo que a pessoa que procurava, não estava. Quando ia por o carro a trabalhar, apercebeu-se da chegada de uma senhora acompanhada por uma criança de uns 5 ou 6 anos. Foi ao seu encontro ainda a tempo de ela não fechar a porta.
- Minha senhora, desculpe. É aqui que vive o Dr. Toni?
- Oui, mais il est au Portugal. Je pense qu'il revient demain.
Respondeu o Samuel:
- Dommage. Nous allons retourner au Portugal. S'il vous plaît, dites-lui que nous sommes les amis avec qui il a dinné les sardines à Porto.
Ela voltou-se para a criança e disse:
- Dit un bonjour à les amis de papá.

Já com o carro a trabalhar, o Samuel olhou para a direita e vê a Naíde, muda, a olhar em frente e com as lágrimas a cair pelas faces. Nem um nem outro disseram uma palavra. Todavia, tudo estava perceptível: O Samuel pensava que ia fazer uma surpresa agradável à Naíde e as coisas correram mal e a Naíde ficou chocada com a situação esclarecedora sobre o Toni. Ao mesmo tempo, ficou espantada com a atitude do Samuel na insistente procura de lhe proporcionar a merecida felicidade.
Seguiram para a zona de Marne de la Valé, a caminho da Dieneyland.
A partir dali, direccionaram todas as atenções para o pequeno Joel, parecendo alhearem-se tacitamente da situação criada e, ao mesmo tempo, deixá-la amadurecer calmamente.
Mais tarde, o assunto foi bastante recordado, mas sem a carga emocional doutros tempos.

O tempo foi correndo e a ligação foi-se cimentando, como se se tratasse de uma família normal. Este relacionamento tornara-se cada vez mais íntimo. Um dia, sentados num banco do Parque de Serralves, após mais uma longa conversa sobre o mesmo assunto, a Naíde teve a coragem de dizer ao Samuel que seria muito difícil encontrar um homem como ele e que, caso ele a quisesse, poderiam viver juntos.
O Samuel reagiu, dizendo:
- Continuarei a fazer tudo que possa, para seres feliz. Sabes que gosto muito de ti, mas tens de ver a minha idade, a minha saúde e, até, o meu aspecto. Tu és uma mocetona e eu já não passo de um velhote.
A Naíde encostou-se a ele, abraçou-o, beijou-o e disse-lhe baixinho, ao ouvido:
- Podíamos experimentar. Por que não?

Dois dias depois, deixaram o filho Joel em casa de um amigo e resolveram dar um passeio pelo Minho. Visitaram Barcelos, Braga, Ponte da Barca e almoçaram o “arroz de sarrabulho” na Casa Encanada de Ponte de Lima. De tarde seguiram para Viana do Castelo e Monte de Sta. Luzia. Ela desafiou-o a subir o zimbório do Santuário e ele mostrou que, ainda, mantinha muita juventude. Lá em cima, maravilhados com a paisagem, percorriam com os olhos o brilho das águas límpidas do Rio Lima, para além de Darque e Sta. Marta de Portuzelo, com as suas ilhotas povoadas de vacas, a pastar. Mais ao longe e de fronte, a bela Praia de Moledo e a larga Foz do Lima. E do lado da cá, o Cais de Viana e o Castelo Fortaleza, de onde saíram muitos combatentes para a guerra. Mais a norte, para os lados de Areosa, um mar imenso limitado por praias extensas “manchadas” por lotes de sargaço a secar e por um grande tapete de parcelas de terrenos hortícolas, cada uma com a sua cor.

Monte de Santa Luzia - Viana do Castelo - Templo do Sagrado Coração de Jesus
Com a devida vénia a Portugal Tours

E foi lá nas alturas, onde a sensibilidade do Samuel mais se manifesta, que ele a acariciou de forma diferente. Inebriados pela paisagem, envolvidos pela suave brisa iodada e, talvez, abençoados pela proximidade do Céu, agarraram-se exteriorizando uma verdadeira paixão.
Quando se identificavam na recepção do Hotel, ela notou que ele tinha as calças molhadas abaixo da braguilha. Colocou-se na sua frente para disfarçar a situação até ao elevador.
A primeira reacção foi a de tirar as calças e pô-las a secar na varanda do quarto. O Samuel parecia afectado pela situação de incontinência motivada talvez por alguma pressão da bexiga. Todavia, a Naíde, conhecedora das suas possíveis limitações, reconfortava-o, desvalorizando o incidente, ao mesmo tempo que procurava criar ambiente de normalidade e de descontracção. Despiram-se, banharam-se e foram-se enrolando amorosamente e com prazer.

Perante aquela mulher tão bela e tão charmosa, o Samuel teria que sentir-se agradavelmente excitado. Confiante, fez questão de recuperar a sua condição de homem experiente, também em questões de amor. Tudo parecia correr pelo melhor. Porém, cedo se verificou que o pénis se tornara mole e insuficiente para a função desejada. Mesmo assim, ele procurava satisfazê-la o melhor possível. A Naíde não perdeu o entusiasmo e também fez tudo para que a boa relação se mantivesse. Aliás, a força da sua entrega parecia ter-se soltado de amarras muito antigas. Quando ele ficou deitado, virado para cima, ela encaixou a vagina sobre o pénis amolecido, onde se roçou a seu bel-prazer, durante largos minutos, vindo a atingir um prolongado e exuberante orgasmo.
Após um relaxante repouso, quando ele tentava culpar-se pelas suas forçadas incapacidades, ela não o deixou terminar. Aproximou-se mais e abraçando-o confessou baixinho:
- Queres saber uma coisa? Nunca senti tanto prazer numa relação sexual!

Nota:
Se um dia destes, ao viajares pela região do Porto, vires um casal um pouco atípico a caminhar calmamente, tendo ela cerca de 40 anos, discretamente bela e formosa (1,75) e ele (com cerca de 70 anos) mais baixo uns 10 centímetros, aparentando menos de 60 anos, podes estar a ver o Luís Samuel e a Naíde, sua mulher, e filha do seu grande amigo e colega pára-quedista, ambos heróis da Guerra da Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14478: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (18): Operação Bola de Fogo - Construção de Gandembel (O Inferno)

Guiné 63/74 - P14957: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (13): O meu amigo e camarada Joaquim Jorge, da CCAÇ 616 / BCAÇ 619 (Empada, 1964/66), que vive hoje em Ferrel, Peniche, e que eu não vejo há 50 anos (João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66)


Foto nº 1

Foto nº 2


Fotos: © João Sacôto (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]



1. Mensagem,  com data de 15 de julho último, do João Sacôto, ex-alf mil da CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66): 


Luís, lembro-me muito bem do Joaquim Jorge. 

Se o vires e já que é teu amigo e vizinho, ai do oeste (Lourinhã / Peniche), dá-lhe o meu endereço de email. Ficámos amigos mas há cinquenta anos que não nos vemos.



 Envio-te duas fotografias em que ele está:

(i) Luís, estes são alguns dos, ainda aspirantes, do Batalhão de Caçadores 619 , poucos dias antes do embarque para a Guiné (Foto nº 1): o  1º. da esquerda, sou eu, da CCaç 617; o 6º. é o médico da CCaç 617, Folhadela de Oliveira, o 7º. é o Montes, da CCaç 618 , o 8º. é o Joaquim da Silva Jorge, da CCaç 616;

(ii) na foto nº 2, já em Bissau, em janeiro de 1964, alguns oficiais do BCAÇ 619:  o 2º. sou eu e o 3º. é o Joaquim Jorge. 

Abraço, Sacôto.



Leiria > Monte Real  > Palace Hotel Monte Real > IX Encontro Nacional da Tabanca Grande >  14 de junho de 2014 > O Joaquim da Silva Jorge e a esposa Esmeralda, que residem em Ferrel, Peniche... Garantiu-me que ia mandar as fotos da praxe para poder integrar, de pleno direito, a nossa Tabanca Grande... o que até agora ainda não fez, certamente por lapso. A sua companhia,a  CCAÇ 616,  reune-se anualmente em Fátima.

É "velhinho" na guerra (ex-alf mil, CCAÇ 616, Empada, 1964/66, companhia que também comandou) e "pira" em Monte Real... Foi em Empada que a guerra começou, não foi em Tite... Estivemos a falar de episódios, ainda mal conhecidos e pior esclarecidos,  desses tempos e lugares... A CCAÇ 616 foi substituir malta açoriana.  

Foto (e legenda): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG]

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Nota do editor:

Último poste de 30 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14947: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (12): Há festa na aldeia!...O Grupo de Bombos do Grilo, Baião, na Tabanca de Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses

Guiné 63/74 - P14956: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (49): Relativamente ao desaparecimento do Alferes Leite, trata-se de um caso do qual ouvi falar desde a minha infância (Cherno Baldé)

1. Comentário do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, deixado, em 24 de Julho de 2015, no Poste 14922 do nosso camarada Virgínio Briote:

Amigo V. Briote,
Relativamente ao desaparecimento do teu colega Leite1, trata-se de um caso do qual ouvi falar desde a minha infância, pois o homem que lhes servia de interprete e facilitador era o meu tio Samba Baldé - vulgo Samagaia - (ver Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda).

O meu tio, confrontado com problemas de uma Guerra de sucessão, após a morte de Branjame seu tio, afastou-se da zona de Canhámina e foi viver em Sare-Bacar, onde teria entrado em contacto com o comandante do pelotão estacionado no local. Foram presos na localidade de Kumakara, escassos quilómetros de Sare-Bacar (uma bolanha separa as duas localidades) e o objectivo da missão, aparentemente, seria o de promover a paz entre os guineenses e convencer a população deslocada a regressar com todas as garantias de segurança.

Enfim, o relato é o mesmo que acabas de escrever. A única diferença é que na versão que conhecia, não seria só uma mas seis pessoas, das quais 4 soldados metropolitanos e dois civis guineenses (um dos quais o meu tio), que em Dacar estiveram presos em celas separadas. Pouco mais de um mês depois, seriam soltos na fronteira perto de Sare-Bacar conforme tinham solicitado, acompanhados do Governador da região de Casamança.

Na verdade, entre outras causas, é de prever que o Senegal, mesmo não estando interessado em ajudar abertamente a guerrilha dirigida por Amílcar Cabral, também não estaria interessado no regresso para o território português (?) das populações refugiadas numa região de Casamanca, quase despovoada.
De notar que entre os refugiados contavam-se ganadeiros e chefes religiosos importantes que nenhum país inteligente pode dispensar de ânimo leve.
O meu tio acabaria por juntar-se aos outros e levar toda a família para a área de Kolda, na pequena vila (prefecture) de Dabo com um estatuto especial de refugiado de guerra.

Com um abraço amigo,
Cherno
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Nota do editor:

1 - Recordemos Virgínio Briote no P14922: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VII Parte): Clara; Apanhado à mão e Entre eles

 O Leite era companheiro das mesmas lides desde há anos. De baixa estatura, magro, enfezado, aparência tímida e muita lábia, via-se que era desenrascado há muito. Estiveram no mesmo curso em Mafra, seguiram juntos no navio “Carvalho Araújo” para os Açores e separaram-se no cais de Ponta Delgada.

Encontraram-se, de novo no mesmo navio, no regresso ao continente.

Mobilizados para a Guiné, apanharam o comboio em Santa Apolónia, para o norte, para gozarem os dias de licença a que tinham direito e reencontraram-se em Campanhã para o regresso a Lisboa. Passaram os dias na capital, despedindo-se da vida boa que lá se vivia, até embarcarem no “Alfredo da Silva”. Na véspera do embarque fizeram questão de mandar vir lagosta e champanhe francês, no “Solmar”, ali nas portas de Santo Antão.

Davam-se, nem sempre ligavam às mesmas coisas, nem eram muito parecidos mas entendiam-se bem. O acaso fizera com que se juntassem nesse percurso. Já em Bissau, com o Capitão Marques, o Black e outros companheiros da viagem, separaram-se, até um dia destes.

Numa dessas visitas ao QG soube que o Leite tinha desaparecido.

A comunicação oficial era confusa, não se sabia ao certo se tinha desertado ou sido apanhado. Certo é que tinha sido levado para Dacar.

O Leite estava a comandar um pelotão reforçado em Sare Bacar, no norte, um pouco a leste de Cuntima, encostado ao Senegal, uma zona calma. O PAIGC, na altura, servia-se das fronteiras do Senegal como corredores de passagem para o interior que o Shenghor, problemas já tinha que chegassem.

Levava uma vida tranquila, mantinha boas relações com a população local. Terá sido abordado pela polícia, em território senegalês, quando, sentado a uma mesa, defrontava um frango de chabéu que lhe tinham preparado. Puseram-lhe as algemas e meteram-no num jeep a caminho de Koldá.

Depois de ouvido foi para a cadeia de Ziguinchor e por lá ficou umas semanas, enquanto se desenvolviam negociações, por intermédio da família, que o Estado Português não se meteu. A Igreja interessou-se, a Cruz Vermelha Internacional intercedeu, levaram-no para Dacar, onde foi presente a um juiz que decidiu recambiá-lo para Lisboa. Mas ele não queria, temia represálias, queria voltar a Sare Bacar. Semanas depois, acabou por ser entregue na fronteira às autoridades militares portuguesas. Soube isto da boca dele, dois ou três meses depois, na esplanada do tal Bento, momentos depois de ter sido chamado ao Governador-geral.

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Nota do editor

Último poste da série de 25 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14660: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (48): Avião amigo ou inimigo!?

Guiné 63/74 - P14955: (In)citações (76): Fiquei chocado com a Guiné que conheci em 17 de Janeiro de 1967 (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 18 de Maio de 2015:

Caros camaradas
Mesmo sabendo do atraso da Guiné, fiquei bastante chocado. Chegámos à barra do porto de Bissau, na noite de 17 de Janeiro de 1967. Estranhamente, apercebi-me ter chegado. Mais parecia um pesadelo. Negros de tanga e descalços pediam de mão estendida. Comecei a escutar, descarregavam a bagagem, transportando-a. Pediam. Foi um grande primeiro choque, embora conhecesse um pouco sobre aquela realidade.

Ouvíamos uma língua que desconhecíamos. Aqui e ali escutávamos os palavrões, esses em português, daqueles nativos. Como já imaginava, aquelas gentes viviam num mundo bem diferente do nosso paupérrimo mundo português. Imagem que os transportava muitos anos atrás, sem evolução. Não tinham avançado no tempo. Atrasados sempre, e não por culpa própria.
Depois do temporal a bonança, ouvia-se dizer, mas tinha sido um choque maior para mim, choque ainda maior do que seria possível imaginar. Aquelas gentes continuavam analfabetas, e nem falavam o idioma português. Via-os estendendo as mãos implorando tabaco e dinheiro.

Avistava-se a iluminação de Bissau e o pessoal da minha Companhia unida, quem sabe se para se proteger. Houve que juntar a bagagem, tendo-se procedido ao transbordo para uma LDM e Batelão BM-1.
Ficámos espantados, visto julgarmos desembarcar na capital… Deram-nos uma maçã, um quarto de pão, uma laranja, um ovo e um destino incerto.

Depois de encaixotados avançávamos por via fluvial estreita, o mato quase que nos tocava. O capitão desconhecendo a paragem final e o tempo… O calor queimava o nosso interior e porque não existia comida, começaram a abrir as malas e comemos então uns nacos de presunto e de salpicão. Os pitéus salgados? A sede? Problemas. O calor ia aumentando à medida que amanhecia. Dormia-se aos solavancos e, só no dia seguinte fomos informados do nosso destino.
A fome e a sede apoderaram-se de nós. O pessoal começava já a sentir a mudança do clima, e depois dos vómitos, depois da saída de Lisboa, quando se tinha fome a comida já não existia e, a água escasseava. Havia quem comesse as cascas das laranjas, rindo talvez para disfarçar.

Avistámos uma povoação, na margem direita do rio, tendo o comandante de companhia talvez, através dos fuzileiros que nos acompanhavam, dito tratar-se de Cacine. Uma “avenida” de palmeiras, e cá bem à frente, militares gritavam:
- Salta que é periquito!

Com um pequeno barco os fuzileiros chegaram a terra, trazendo sacas. Verificámos serem laranjas, bem sumarentas, mas mais pareciam vinagre. Segundo diziam, tínhamos que nos apressar devido à maré. A mata nas margens era densa e nós éramos não só uns intrusos, mas também periquitos, termo utilizado para designar todos os militares que estavam no início da comissão. Muito embora as azedas laranjas não matassem a fome, de algum modo ajudavam a enganar o estômago.
O capitão, falando com os oficiais e sargentos informou que se juntaria a um pelotão uma secção, ficando destacados num local de nome Ganturé. Os restantes ficariam instalados em Gadamael Porto.

Feito um sorteio, tocou ao meu pelotão ficar no destacamento. Desembarcámos em Gadamael Porto, e o termo “porto” não tinha significado, visto não existir porto algum. Nem sequer um simples cais.
- Salta, salta periquito! – Ouvíamos, enquanto um aglomerado de militares pulava de contente.

Entendia aquela alegria, mas a verdade é que se éramos os periquitos, e a CCAÇ 798 é que saltava. Juntava-se a população civil, esta olhava-nos, não expressando alegria.
De imediato tivemos que carregar as malas e saltarmos para cima de uma caixa de uma GMC, que substituía o cais que não existia. Houve quem escorregasse e caísse no lodo. Os gritos continuavam, e as viaturas militares preparadas para transportarem o pelotão e a secção para Ganturé, começaram a andar. Não houve tempo para analisar aquele local isolado no mato, e enquanto uns recebiam instruções e continuava a descarga, nós avançávamos, também para local incerto. Alguém avisou não ser necessário picar visto existir movimento de viaturas durante todo o dia.

Ganturé em 1967

A Companhia de Caçadores 798, começava a embarcar na LDM e no Batelão. Para eles era a alegria do fim da comissão.
Depois de passado o casarão à esquerda, onde funcionava o comando, ultrapassámos o abrigo, que funcionava como porta-de-armas e, mais ou menos percorridos três quilómetros, cortámos à esquerda e eis à nossa vista a “colónia de férias”. Saíam já outras viaturas com os militares da companhia rendida, que gritavam sorridentes em altíssimos berros:
- Salta periquito, salta periquito...

Árvores de alguma altura abundavam. A população civil aproximava-se, querendo conhecer os novos vizinhos, enquanto um Alferes se apresentava. Tinha ido em rendição individual e ficaria ainda com a nossa companhia, segundo afirmado pelo próprio. Um militar, praticamente sem farda, disse ficar também connosco, aproximou-se de mim:
- Quer comer uns borrachos fritos?

Olhei-o admirado. Afinal aquilo não era assim tão mau. Até existiam uns pombinhos para comer!
- Onde estão eles?
- Oh Furriel, venha comigo!

Olhei para cima dos ombros e vi as divisas camufladas e retirei-as colocando-as no bolso.
Enquanto reparava que aquele 1.º Cabo, não vestia nenhuma roupa do exército: uns calções de banho e uns chinelos de enfiar nos dedos.

Fritados os borrachos e umas batatas, iniciei a minha primeira refeição em terras de África. E que pitéu! Não sabia a razão da escolha ter recaído sobre mim, o prémio daquela refeição acompanhada por cervejas de seis decilitros. O nosso 1.º Cabo que nunca me vira, confortava-me dizendo para eu não me preocupar, porque aquelas aves que comêramos não chegavam para todos, e estava-se a fazer o jantar, bacalhau com grão.
Fora um milagre, uma bênção. E depois da primeira fome, a primeira fartura, porque estava disponível para trincar a bacalhoada, logo que estivesse pronta.

Começámos a instalar-nos e o Alferes que ficara esclarecia-nos, acompanhando-nos.
Fiquei numa barraca encostada ao abrigo onde ficou a minha secção, coberta com chapa zincada. Era decerto um forno. Havia uma cama e um caixote de munições que funcionaria como mesa-de-cabeceira, sobre a qual via uma garrafa de cerveja cheia de gasolina com um pavio enfiado no buraco da carica. Era a iluminação da minha nova moradia.

Comecei por conhecer a população. Lindas bajudas. Converti-me.
Não entendendo patavina do que diziam. Prometi a mim próprio não contribuir para um palavreado que não entendia, mas repleta da asneira, em bom português. Todos senhores e senhoras, o nosso Soldado de igual modo tratado. Fui avisado, mas segui a caminhada. Escutava das Praças “U”, e nos Caçadores Nativos, frases em português. Não respondia a ninguém que me falasse que dialecto fosse.

Ensinei em dias o português. Eles sabiam-no. Foi o meu percurso. “Portuga”, nunca me chamaram, se o fizeram, não sei… Fui professor, ensinei. Fiz o meu papel e cumpri o meu papel. Tive imensos contactos com a população, comi a “bianda” nas mãos enrolada, só para fazer a vontade.

Em relação aos filhos que lá deixámos. Tenho conhecimento que sim. Casos que eles próprios o desconhecem. Alguém me ajude nesta descrição. Uma negra, bem negra e bonita, de Guileje (ou Mejo?), julgo ter sido em Guileje, tinha um filho branco. Era vestido pelos Oficiais e Sargentos. Se nasceu em 65, tem hoje 50. Diziam ser filho de um Capitão que o quis levar e a mãe não permitiu. “Mas «portuga», não”! Nem o autorizava. Visto tratar todos por você e senhor, tal não admitia. Tanto cá como na Guiné, sempre o trato foi você. Éramos iguais… é o único modo que conheço de tratamento.

Na Tabanca Grande, é Camarada. Também é verdade que existem Camaradas e camaradas.
Cumpri, mas não romperam esse cumprimento. Sou combatente e não ex-combatente. Devem-me os meses riscados com uma esferográfica “bic” no cinto, não nos pagaram. Alguns receberam.
Ninguém me venha dizer que foi pela Pátria, mas que pátria-mátria que não reconhece os seus filhos?
Paletes de amigos, é verdade, mas analfabetos ou não, mesmo não fazendo política me disseram, era o seu padre e confessor, mas perguntavam:
- Meu Furriel, o que fazemos aqui?

Palavras sábias…

Cumprimentos
Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14515: (In)citações (75): Perspectivas sobre o 25 de Abril (José Manuel Matos Dinis)