sexta-feira, 24 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14928: Manuscrito(s) (Luís Graça) (62): "I want you, dead or alive"




Vídeo (0' 06'') > Alojado em You Tube > Luís Graça


Lourinhã, Vimeiro, 18 de julho de 2015_Reconstituição histórica da batalha de 21 de agosto de 1808 e mercado oitocentista. Vídeo: Luís Graça (2015)




"I Want you, dead or alive"
por Luís Graça (*)


À memória do Umaru Baldé, (que morreu de sida e tuberculose, no terminal da morte que dá pelo nome de Hospital do Barro, em Torres Vedras);

do Abibo Jau (, o gigante do 1º Gr Comb da CCAÇ 12., fuzilado em Madina Colhido);

do Abdulai Jamanca (, cmdt da CCAÇ 21, fuzilado em Madina Colhido);

do Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015);

do Iero Jaló (, o 1º morto em combate, da CCAÇ 12, em 8/9/1969);

do Manuel da Costa Soares (, sold cond, da CCAÇ 12, morto em Nhabijões, em 13/1/1971, por uma mina A/C, sem nunca ter chegado a conhecer a sua filha);

do Luciano Severo de Almeida ( que terá morrido de morte violenta, já como paisano);

e dos demais camaradas da CCAÇ 12 e da CCAÇ 21,
brancos e pretos,
mortos em combate
ou abandonados à sua sorte,
depois do regresso a casa
ou da independência da Guiné-Bissau;

ao José Carlos Suleimane Baldé,
felizmente ainda vivo, espero,
a morar em Amedalai, Xime
(e o único camarada guineense da CCAÇ 12
a integrar a Tabanca Grande);

a todos os demais camaradas da Guiné
que ainda hoje estão (sobre)vivos.




Foderam-te, meu irmão!
Enganaram-te, irmãozinho!
Traíram-te, amigo!
Deixaram-te para trás, camarada!

Não, não era este país milenário
que vinha no cartaz de promoção turística,
com montes, vales e charnecas,
com rios, praias e enseadas,
com fama de gente patriótica,
riqueza gastronómica
e forte sentido identitário.

“I want you”,
disseram-te eles,
e tu respondestes sem hesitar:
“Pronto!”.

Meu tonto,
disseste "presente!",
mesmo sem poderes avaliar
todas as consequências presentes e futuras
da tua decisão,
em termos de custo/benefício.

Decidiste com o coração,
não com a razão,
deste um passo em frente,
abnegado e generoso,
mesmo sem saberes
onde era o distrito de recrutamento,
e sem sequer conheceres
o teatro de operações,
o estandarte,
o fardamento,
a ciência e a arte da guerra,
o comandante-chefe
ou até mesmo a cara do inimigo.

Um homem não vai para a guerra
sem fixar a cara do inimigo,
sem reconhecer a voz do inimigo,
pode ser que seja teu pai,
mãe, irmão, irmã,
vizinho, amigo,
ou até mesmo um estrangeiro,
um pobre e inofensivo estrangeiro,
apanhado à hora errada no sítio errado.

Camarada,
um homem não mata outro homem
só porque é estrangeiro,
ou só porque não pensa ou não sente como tu,
um homem não puxa o gatilho
ou saca da espada,
sem perguntar quem vem lá!

Enfim, não se mata um homem,
de ânimo leve,
gratuitamente,
só porque alguém o elegeu como teu inimigo.

Não, meu irmãozinho,
não eram estes outdoors
e muros grafitados,
ao longo da picada,
não, não era este trilho,
que era pressuposto levar-te
do cais do inferno
às portas do paraíso.

Sim, porque no final, 
meu irmão,
há sempre alguém a prometer-te
o paraíso,
o olimpo,
o panteão nacional
ou cruz de guerra com palma,
em troca da dádiva suprema
da tua vida,
do teu corpo,
da tua alma.

Todos te querem,
todos te queremos,
“I want you”,
sim, quero-te, mas por inteiro,
quanto mais não seja
para tirar uma fotografia contigo,
não vales nada
cortado às postas,
decepado,
decapitado,
ou, pior ainda,
perdido, errático,
com stress pós-traumático
sem bússola nem mapa,
apanhado à unha pelo inimigo,
ou fuzilado no poilão de Bambadinca
ou de Madina Colhido.
Fuzilado, és um cadáver incómodo,
apanhado, és um embaraço diplomático,
pior do que tudo isso,
doente psiquiátrico.



Não, não foi este destino
que compraste,
com o patacão do teu sangue, suor e lágrimas,
enganaram-te, os safados,
os generais
e os seus ajudantes de campo,
os burocratas da secretaria,
os recrutadores,
a junta médica,
os instrutores
e até os historiadores.

“Guinea-Bissau, far from the Vietnam”,
alguém escreveu no poilão de Brá
ou na estrada de Bandim,
a caminho do aeroporto, tanto faz,
“Tuga, estás a 4 mil quilómetros de casa”.
Ou então foi imaginação tua,
pesadelo teu,
deves ter sonhado com essa placa toponímica,
algures,
numa noite de delírio palúdico,
deves tê-la visto
a sul do deserto do Sará.

Alguém sabia lá
onde ficava a Guiné,
longe do Vietname,
alguém se importava lá
com o teu prémio da lotaria da história,
mesmo que em campanha
te tenhas coberto de glória!

Acabaram por te meter
num avião “low cost”
ou num barco de lata,
ferrujento,
deram-te um pontapé no cu
ou cravaram-te a tampa do caixão de chumbo.
"Bye, bye, my friend.
Fuck you, man”.
Nem sequer te desejaram
"Oxalá, inshallah, enxalé,
que a terra te seja leve!"

País de merda"...
Tinha razão o polícia, racista,
que te quis barrar a entrada
no aeroporto de Saigão
(ou era Lisboa ?
ou era Amsterdão?).

Quem disse que os polícias
de todo o mundo
são estúpidos ?
Até o polícia racista
entende o sofisma
do país de merda:
“Pensando bem,
soletrando melhor,
país de merda,
país de merda,
só pode ser o meu”.

Os gajos estavam fartos de ti,
meu irmão,
meu camarada,
meu amigo.
Os gajos pagavam-te,
se preciso fosse,
para se verem livres de ti,
vivo ou morto,
devolvido à procedência.

“I want you, alive ou dead”,
porque na contabilidade nacional
tudo tem de bater certo,
diz o cabo arvorado.
Todo o que entra, sai,
é o deve e o haver
do escriturário, encartado,
mesmo que seja merda:
“Garbage in, garbage out”,
se entra merda, sai merda.

Procuraram-te por toda a parte,
do Minho ao Algarve
do Cacheu ao Cacine,
só te queriam bem comportado,
escanhoado,
ataviado,
de botas engraxadas,
se possível herói de capa e espada,
medalhado, condecorado,
de cruz de guerra ao peito,
mesmo que viesses amortalhado.

E tu ?
Sabias lá tu
o que era a pátria,
onde ficava a tabanca da pátria,
onde começava e acabava o chão da pátria ?
Muito menos sabias
a geografia da guerra,
Aljubarrota,
Alcácer Quibir,
Vimeiro,
Waterloo,
La Lys,
lha do Como,
Guidaje,
Gadamael,
Dien-Bien-Phu,
Madina do Boé,
Ponta do Inglês,
Madina Belel...

Conhecias lá tu
da pátria a anatomia e a fisiologia ,
o intestino grosso e delgado,
o que é que a pátria comia,
o que é que a pátria defecava,
ou até mesmo o que é que a pátria sentia e pensava,
se é que a pátria deveras sentia e pensava.

Queriam-te sedado,
anestesiado,
amnésico, de preferência,
sobretudo amnésico.
alienado,
aculturado,
desformatado,
paisano,
só assim eles te queriam de volta
ao teu anódino quotidiano,

Meu irmão,
meu pobre camarada,
fizeste por eles
o trabalho sujo
que compete a qualquer bom soldado
em qualquer guerra.
Mas nem como soldado eles te trataram,
nem sequer como mercenário
te pagaram,
em espécie ou em géneros.

Afinal a guerra acabou,
como todas as guerras acabam,
até mesmo a guerra dos cem anos
teve um fim
com o seu rol de mortos, feridos e desaparecidos.
“Para quê mexer agora na merda, ó nosso cabo ?”,
pergunta o sorja da companhia.
“Boa pergunta, meu primeiro,
mas há muito já que eu não cheiro,
a guerra embotou-me os sentidos”.

Luís Graça
Lourinhã, Vimeiro, 18/7/2015,
Reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21/8/1808)
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14846: Manuscrito(s) (Luís Graça) (61): Poema interpretativo da batalha do Vimeiro (, dedicado ao Eduardo Jorge Ferreira)

Guiné 63/74 - P14927: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (11): Vimeiro, Lourinhã, 17 a 19 de julho de 2015: recriação histórica da batalha do Vimeiro (1808) e mercado oitocentista - Parte II: Fogo à peça!... Oxalá, inshallah, enxalé a gente se possa voltar a encontrar para o ano!



Vídeo (0' 35''). Alojado no You Tube > Luís Graça



Vídeo (2' 00''): Alojado em You Tube > Luís Graça


Lourinhã, Vimeiro > 18 de julho de 2015 > Reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21 de agosto de 1808) e mercado oitocentista > O "valente soldado" Eduardo  Jorge Ferreira, nosso grã-tabanqueiro, amigo e camarada... No "bar do soldado 1808",  depois da "batalha"...

Foto e vídeos: © Luís Graça (2015) Todos os direitos reservados.


1. Lourinhã, Vimeiro > 18 de julho de 2015 > Reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21 de agosto de 1808) e mercado oitocentista.(*`)

O nosso grã-tabanqueiro Eduardo Jorge Ferreira e o seu grupo de recriadores históricos do Vimeiro, tiveram  o seu "batismo de fogo" no "assalto à igreja", reconstituição que se realizou no dia 18/7/2015, sábado. Nesse dia, também se realizou, pelas 16h00, a cerimónia de homenagem aos combatentes junto ao Padrão Comemorativo da Batalha do Vimeiro.

Na véspera, dia 17, 6ª feira, já se tinha efetuada, às 22h00,  a encenação, prevista no programa,  “A corte que parte e o invasor que chega” (referência à partida da corte para o Brasil em 1807; por  um triz, o destacamento avançado das tropas napoleónicas, comandadas por Junot, não apanhou a rainha, o príncipe regente, demais família real e o seu séquito de cortesãos e cortesãs... Daí a expressão popular "ficar a ver navios"). (**)

O forte dos 3 dias foi a reconstuição da batalha do Vimeiro, ao meio dia de domingo, dia 19, em campo aberto (evento a que não assistimos) (***)... 

A reportagem completa dos 3 dias de festa está aqui disponível, por iniciativa do Município da Lourinhãfotos (131) e vídeos (4).

Parabéns ao nosso grã-tabanqueiro Eduardo Jorge Ferreira, voluntários locais e demais lourinhenses ( a começar pelo muncipio e a Associação para a Memória da Batalha do Vimeiro) que deram corpo e alma a esta iniciativa, de interesse histórico, cultural e turístico.  Alguns aspetos relacionados  com a segutança de pessoas e bens terão de ser melhor acautelados em futuras recriações, como já tive ocasião de  transmitir pessoalmente ao Eduardo... (LG).

PS - Parabéns também aos nossos novos grã-tabanqueiros Helena ("do Enxalé") e Álvaro Carvalho que aguentaram,  de pé firme, estes três dias... O Álvaro, num gesto generoso, fez uma completíssima reportagem (fotos e vídeos) que vai pôr à disposição do Eduardo... A  Maria Helena vai-nos mandar fotos digitalizadas do seu tempo de menina e moça no Enxalé, algumas das quais me trouxe para mostrar... O casal vive entre as Caldas da Raínha e a Amoreira de Óbidos...

Oxalá, inshallah, enxalé a gente se possa voltar a encontrar para o ano!
_____________

Notas do editor.

(*) 19 de julho de  2015 > Guiné 63/74 - P14898: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (8): Vimeiro, Lourinhã, 17 a 19 de julho de 2015: recriação histórica da batalha do Vimeiro (1808) e mercado oitocentista - Parte I: Com o nosso 1º cabo Eduardo Jorge Ferreira, promovido a sargentos por feitos heroicos em campanha...

(**) "Ficar a ver navios", não obter o que se deseja, ver as suas suas expectativas goradas ou frustradas, esperar inultilmente.... É uma expressão, ao que parece, muito mais antiga... A sua origem muito provavlemenmte remonta ao tempo em que os armadores portugueses, e os populares (com destaque para as mulheres), na época Descobrimentos e das grandes viagens marítimas, tinham por costume ficar no alto de Santa Catarina, em Lisboa, à espera do regresso das caravelas e das naus que vinham das Índias, da África ou do Brasil. Outra hipótese tem a ver com o mito sebastiânico, o rei (o "Desejado") que haveria de regressar numa manhã de nevoeiro , depois do desastre de Alcácer Quibir (em 1580)...

No caso da partida da corte para o Brasil (que implicou na prática a primeira e única transferência, na história,  da capital de um império para a sua colónia...), estamos a falar de uma diferença de horas... Junot não conseguiu aprisionar o príncipe regente Dom João (filho de Dona Maria I, e futuro rei de Portugal), como estava nos seus planos: a corte embarca, no rio Tejo,  a 27 de novembro de 1807, mas a frota só parte a 29, por causa da falta de ventos...Junot, vindo do Ribatejo, entra em Lisboa às 9h00 da manhã do dia 30...

Guiné 63/74 - P14926: Notas de leitura (740): “Recriar a China na Guiné: os primeiros chineses, os seus descendentes e a sua herança na Guiné colonial”, artigo assinado por Philip J. Harvik e António Estácio (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Já que isso diz referência a um trabalho de António Estácio sobre a chegada dos chineses na Guiné e como eles valorizaram a orizicultura, que já fio fonte de grande riqueza, teremos comido todos nós, na década de 1950, muito arroz da Guiné. A cultura do arroz fazia parte da arrancada para o desenvolvimento das colónias da África Ocidental, tal como as oleaginosas.
Guardam-se imensas imagens, algumas delas muito belas, dos trabalhos efetuados depois da chegada de Sarmento Rodrigues, publicadas no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, este espólio esteve à beira de se perder, foi felizmente recuperado pela Fundação Mário Soares.
O artigo de Philip Harvik e António Estácio traz imagens muito sugestivas dos últimos descendentes dos chineses de Catió, bom seria que o nosso confrade António Estácio as republicasse no nosso blogue.

Um abraço do
Mário


Quando os chineses chegaram a Catió, no princípio do século XX

Beja Santos

O artigo vem publicado no n.º 17 da revista Africana Studia, 2.º semestre, 2011 e intitula-se “Recriar a China na Guiné: os primeiros chineses, os seus descendentes e a sua herança na Guiné colonial”, e vem assinado por Philip J. Harvik (investigador do Instituto de Investigação Tropical) e pelo nosso confrade António Estácio que, tempos antes, fizeram uma comunicação sobre os chineses e a orizicultura na Guiné.

Os autores começam por recordar duas realidades: primeiro as mudanças que se operaram nas primeiras décadas do século XX no contexto da África Ocidental, em que o império francês necessitava de mão-de-obra para as colónias, principalmente para os chamados “trabalhos públicos”, que incluíam a construção de estradas, caminho-de-ferro, edifícios, etc, essa mão-de-obra exigia gente qualificada e daí o recurso a certos meios até então legítimos, como o uso dos degredados; segundo historia-se o papel dos degredados que eram enviados para a África e mesmo para o Oriente pelos tribunais estatais e pela Igreja Católica – como registam os autores, no caso da Guiné, entre 1834 e 1896 o número de degredados foi de 425 indivíduos, a maior parte vinda de Cabo Verde e de Portugal.

A cultura do arroz juntou-se, neste ciclo imperial, ao amendoim e às oleaginosas. Já se cultivava arroz na Guiné antes da chegada dos chineses, e por razões óbvias, como anotam os autores. O litoral de baixo-relevo, cortado por muitos rios e rias, com margens abundantes de mangue formava um ecossistema perfeitamente adaptado à cultura do arroz alagado, em bolanhas. Até então, os autóctones alimentavam-se de “arroz de povoação”, espécie nativa. Nas colónias francesas inglesas foram introduzidas variedades asiáticas. No entretanto, para além do arroz local conhecido como “arroz vermelho”, as populações começaram a produzir o “arroz branco”, também chamado “arroz da Gâmbia”. Em paralelo, assiste-se à criação de explorações agrícolas e comerciais, as chamadas “pontas”, os governadores e administradores aplaudiam estas explorações, no fundo assistia-se à progressiva ocupação do território.

Imagem da cultura do arroz na Guiné
Extraída do site http://www.gbissau.com, com a devida vénia

As origens dos primeiros chineses que chegaram à Guiné não estão esclarecidas, admite-se que tenham vindo de Cantão e do estuário do Rio das Pérolas, tal como muitos outros seus conterrâneos que foram mandados para Moçambique. Estes primeiros chineses terão chegado à Guiné em 1902, assinalo o arranque da expansão da orizicultura que teve lugar a partir da primeira década do século XX. Os autores contextualizam a atmosfera da chegada dos chineses à região de Tombali, era uma região que tinha, além de um posto militar português, algumas feitorias e mesmo alguns europeus. O rio Tombali tornou-se uma área de fixação de ponteiros de origem cabo-verdiana.

Estes dois primeiros chineses eram degredados, tinham vindo através de Macau, chamavam-se Kat Chan e Lai-Assung, eram tratados ambos como mestres de lavrança de arroz. Estes dois degredados chineses seguramente que espiolharam a região metro-a-metro até decidirem pela zona de Catió, localizada entre os rios Tombali e Cumbidjã e encostada às ilhas de Como e Caiar. Lai-Assung, também conhecido por Chang-a-leng, fixou-se em Cubaque, Kat Chan foi primeiro para Canchungo e só depois é que partiu para Catió.

Os autores explicam as consequências dos acontecimentos. Na época de 1915-1924 na zona em redor de Catió estes dois chineses desenvolveram a cultura do arroz. Tiveram agora fatores a seu favor. A partir dos anos 1920, o fluxo de migrantes Balanta para a região Quínara, onde se fixaram em chão Beafada aumentou consideravelmente, e a partir de 1926, os primeiros ponteiros de origem cabo-verdiana obtiveram ali concessões de monta. Deu-se em certos casos a crioulização dos chineses. E os autores enfatizam que os percursos dos chineses e dos seus descendentes na Guiné evidenciam o modo como se processou a aculturação e a crioulização, de um modo geral integraram-se muito bem na sociedade guineense durante o período colonial. Forçados a permanecer na Guiné, alguns dos primeiros chineses procuraram novas oportunidades para a sua realização na pesca e na agricultura, quase sempre com sucesso. E os autores dão uma razão para este sucesso: tentaram recriar a China na Guiné e conseguiram-no.

O conflito armado levou alguns membros da comunidade luso-chinesa a juntar-se ao PAIGC, caso de José Costa Júnior e seu irmão Noel Costa, morto em 1965. Um descendente de chineses, Jonas Mário Fernandes, entrou em rotura com Amílcar Cabral, em Dakar, nos anos de 1960.

O trabalho de Harvik e de Estácio foi elaborado também com base em conversas com agricultores e ponteiros, mostram-se fotografias de chineses e até dos seus descendentes. É um mundo que já não existe, adiante-se. Estes degredados, contudo, relevaram-se exímios na cultura do arroz e convém não perder de vista que nos anos 1950 muitas toneladas chegavam a Portugal. Quando Sarmento Rodrigues chegou à Guiné, um dos seus primeiros cuidados foi o de mandar recuperar/regenerar os ouriques que estavam degradados, operação que se salvou numa revitalização da orizicultura guineense. Lá muito atrás, ficara a herança chinesa, a segunda geração de chineses na Guiné preferiu o comércio, mesmo no Senegal e na Guiné Conacri.

Para leitura integral do artigo:
http://www.academia.edu/11682935/Recriar_China_na_Guin%C3%A9_os_primeiros_Chineses_os_seus_descendentes_e_a_sua_heran%C3%A7a_na_Guin%C3%A9_Colonial
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14920: Notas de leitura (739): Parabéns ao nosso camarada Mário Cláudio / Rui Barbot Costa [, ex alf mil, secção de justiça, QG, Bissau, 1968/70], Grande Prémio de Romance e Novela APE/ DGLAB - 2014, atribuído ao seu último livro "Retrato de rapaz"

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14925: (Ex)citações (286): Fiz um telefonema surpresa para o meu irmão, no dia e hora do seu casamento, em 16/10/1971, em Guimarães...Tive que marcar a chamada oito dias antes, na casa do régulo de Bula que servia de posto dos CTT... (António Mato, ex-alf mil MA, CCAÇ 2790, Bula, 1970/72)




Foto nº1 > Região de Cacheu, Bula, dia da cavalaria (21 de julho de 1973)... O gen Spínola passa revista às tropas e viaturas em parada...  É acompanhado pelo Comandante Militar, brigadeiro Alberto Banazol



Foto nº 2 > Região de Cacheu, Bula, dia da cavalaria (21 de julho de1972)... Desfile de viaturas, debaiso de chuva



Foto nº 3 > Região de Cacheu, Bula, s/d, "ronco balanta"


Foto do álbum do Leonel Olhero, ex-fur mil cav, Esq Rec 3432 (Panhard) Bula, 1971/73.


1. Comentário de António Matos [, ex-alf mil minas e armadilhas, CCAÇ 2790, Bula, 1970/72] ao poste 14919 (*)


Desabituei-me de aqui escrever e hoje vi-me em palpos de aranha para dar com este local onde pretendo contribuir para a percentagem daqueles que também fizeram uso dos CTT fora de Bissau para contactos telefónicos para a Metrópole.

Vistas as coisas a esta distância, parece-nos incrível como tudo evoluiu, onde as tecnologias ganham foros de destaque ...

Estava no 16 de Outubro de 1971 quando tive necessidade de contactar para Guimarães onde se casava um dos meus irmãos ... 

A logística que envolvia esta tão singela operação que hoje se executa em escassos segundos, é algo que, ao recordá-la, me dá a imensa satisfação de pertencer a uma geração viva que tem sido testemunha de fabulosos avanços científicos os quais permitiram transformações civilizacionais notáveis.

O eu ter nascido;
A chegada da televisão ao país;
A ida do Homem à Lua;
O aparecimento do computador;
A invenção da internet;
O telemóvel;
Os nascimentos dos meus filhos;
A transformação da tecnologia bélica;
A proliferação da exploração espacial;
As novas geografias políticas;
As novas conturbações sociais;
Os avanços na medicina;
Os sucessos das nanotecnologias;
Os nascimentos dos meus netos;
Na ultrapassagem dos records atléticos;
Etc., etc., etc.

São apenas uma mínima parte das transformações que me apaixonam (umas pela positiva, outras pela negativa ) na certeza que as prefiro às do antigamente...

Oito dias antes, dirigi-me à casa do régulo de Bula que, concomitantemente, servia de posto dos CTT (não sei se neste momento estarei a meter os pés pelas mãos quanto a estes pormenores mas julgo que o interessante para este comentário é, tão só, o relato vivido da realização duma chamada telefónica ) e marquei para aquele dia a referida chamada.

Por se tratar dum casório, fiz as minhas preces para que à hora a que as meninas metessem as cavilhas naquelas centrais telefónicas do século passado, os noivos já se encontrassem de beijo dado e disponíveis para a surpresa.

Sim, porque aquele telefonema foi uma surpresa !!

Recordo que houve um certo atraso na conjugação concertada de toda a equipa que, passando a informação de boca em boca (via cavilha ), me pôs em contacto com o outro extremo da linha ...

Escusado será apelar às emoções do momento mas, embora nunca mais tivesse pensado no assunto, sinto uma certa nostalgia, só mitigada porque ao olhar aqui para o lado do computador, dou de caras com o mais recente dos sucedâneos das tecnologias comunicacionais - o telemóvel - com o qual já fiz e já recebi "n" chamadas enquanto escrevo este reviver ...

Ensinou-me já a experiência que, por vezes, ao fazermos o "send" duma mensagem, ela vai parar ao etéreo e nunca mais ouvimos falar dela, restando-nos a paciência para tentar recuperar parte dos raciocínios e ideias.

Por isso, junto à lista acima, mais uma vitória civilizacional que dá pelo nome de "copy & paste" e com ela guardar num limbo este trabalhinho enquanto não confirmo que o original seguiu para o destino apropriado,

Assim sendo, aqui vos deixo um abraço e os parabéns por esta ideia que me cativou. (**)


Guiné 63/74 - P14924: (Ex)citações (285): Fiz um único telefonema, aflito, de Bissau para a metrópole em novembro de 1967, por causa das cheias na região de Lisboa (Manuel Coelho, ex-fur mil trms, CCAÇ 1589, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68)... Nunca me ocorrreu telefonar, de qualquer modo não havia telefone em casa (Carlos Milheirão, ex-alf mil, CCAÇ 4152/73, Gadamael e Cufar, 1974)



Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > c. 1966/68 > Estação dos CTT, à esquerda



Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > c. 1966/68 > Rua pirncipal > Sede do comando de batalhão, à esquerda (, visível na foto a proteção do edifício, feita com bidões de areia a toda volta); do lado oposto da rua, do lado direito, em frente, ficava o edifício dos CTT.

Fotos (e legendas): © Manuel Caldeira Coelho (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Mensagem de Manuel Caldeira Coelho (ex-fur mil trms, CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68):


Data: 23 de julho de 2015 às 14:15

Assunto: Sondagem: os telefonemas (*)


Caros editores do nosso- blogue, já votei mas queria explicar a razão de um único telefonema que fiz quando estava em Bissau.

Não era fácil, e só nos CTT se podiam fazer as chamadas particulares.

Em Novembro de 1967 aconteceu aquela catástrofe das cheias na região de Lisboa e, como
tinha uma irmã a morar em Queluz, havia um boato de que a Fábrica de Pólvora de Barcarena
iria explodir e arrasar toda aquela área.

Bem, com o telefonema, fiquei esclarecido e descansado quanto a essa possibilidade e não se deu nada de semelhante,  apesar dos estragos e infelizmente das mortes.

Não tenho fotos dos CTT de Bissau, mas aqui estão duas de Nova Lamego, com o edifício dos CTT, que era junto ao comando do batalhão.

2. Outros comentários:

2.1. Nosso editor LG:

22/7/2015, 22h34

Amigos/as, camaradas: 

É bom que os jovens de hoje, guineenses e portugueses, saibam compreender e avaliar o "salto tecnológico" que demos, a Guiné, Portugal, o mundo inteiro. com a Telegrafia Sem Fios (TSF), muito antes da era do digital... É preciso perceber a revolução, nas telecomunicações, iniciada pelo italiano Marconi... E, no caso português, o papel da Companhia Portuguesa Rádio Marconi... Aqui vão alguns apontamentos que recolhi na Net...

2.2. Carlos Milheirão [ex-alf mil, CCAÇ 4152/73, Gadamael e Cufar, 1974]

23/7/2015, 11h24:




Nunca me ocorreu fazê-lo [, telefonar para casa]. De qualquer modo, não havia telefone em casa.

Recentemente tive uma filha em missão no Líbano e falávamos com ela todos os dias via SKYPE. Como as coisas mudaram!!! (**)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 22 de julho de  2015 > Guiné 63/74 - P14919: Sondagem: Resultados preliminares (n=115) a dois dias de encerrar a votação: menos de metade da malta (47,8%) utilizou os CTT para telefonar para a casa (leia-se: metrópole). Mesmo assim, parece que era mais fácil em Bissau, capital do território, do que no mato...

Guiné 63/74 - P14923: Agenda cultural (419): "De Freguês a Consumidor, 70 anos de sociedade de consumo". Tertúlia com Mário Beja Santos levada a efeito no passado dia 16 de Julho na Livraria Barata, em Lisboa

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), Técnico Superior Aposentado da Direcção Geral do Consumidor, com data de 20 de Julho de 2015, com o rescaldo da sua intervenção, na tertúlia levada a efeito na Livraria Barata, no passado dia 16*, subordinada ao tema sempre actual "De freguês a Consumidor":

A Livraria Barata faz parte dos meus lugares mágicos. Na minha adolescência, tinha uma entrada como uma padaria ou drogaria, era um espaço minorca talentosamente aproveitado pelo Sr. Barata, até conseguia espaço para que o David Mourão Ferreira ou o Artur Portela Filho ou o Virgílio Ferreira conversassem com os leitores, e nós à volta, a beber todas aquelas palavras em silêncio.

Pedi ao José Rodrigues, genro do Sr. Barata, para ali se fazer uma tertúlia, “De freguês a consumidor” é o meu testemunho como profissional e como professor.

Foi um debate vivo, uma casa bem composta em que o nosso confrade Mário Vitorino Gaspar se referiu ao nosso bairro de infância, o Bairro das Caixas, encravado entre o Campo Grande, a Avenida Alferes Malheiro (hoje Avenida do Brasil), a Avenida dos Estados Unidos da América.
Uma pequena burguesia do funcionalismo para ali foi residir, assistiu ao nascimento daquelas Avenidas Novas que assinalavam o alargamento das classes médias, dava-se por findo a contenção da II Guerra Mundial.

Foi uma tertúlia de memórias a que não faltaram as interrogações sobre este mundo em que os jovens não têm emprego e o interior se desertifica, inexoravelmente.

Um abraço do
Mário





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Nota do editor

(*) Vd. poste de 14 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14875: Agenda cultural (417): "De Freguês a Consumidor, 70 anos de sociedade de consumo". Venha cavaquear comigo, dia 16 de Julho pelas 19 horas, na Livraria Barata, Av. de Roma, n.º 11, em Lisboa (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 17 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14892: Agenda cultural (418): 32º festival de Almada: sábado, 18, 20h00, música guineense, o "Djumbai Jazz" (Jorge Araújo)

Guiné 63/74 - P14922: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VII Parte): Clara; Apanhado à mão e Entre eles

1. Parte VII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 11 de Julho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - VII

Clara

Boas notícias da metrópole! Corriam bem as coisas para quem lá estava. Mini-saias, calças à boca de sino. Calças largas assim como lhe estavam a contar só as tinha visto nos marujos, no pessoal civil nunca reparara, mas tudo bem, acreditava. Diziam que o comércio prosperava, que a têxtil e a construção disparavam. Que havia emprego. Que se construíam casas, se arranjavam outras, estradas novas, um pandemónio, espantados os que vinham de férias.
E mais não se fazia porque, diziam, havia falta de mão-de-obra.
Pudera, mais de 100.000 em África e mais os que se tinham pirado claro, nada para admirar.

Emigrantes portugueses nos “bidonvilles” dos arredores de Paris. 
Foto da net.

Por cá tudo bem, obrigado. Estava com 21 anos. Deixara Lisboa com o peito para fora, ia defender a pátria dos terroristas a soldo de Moscovo. De vez em quando sentia uma ligeira dúvida sobre os resultados do esforço que lhes estavam a exigir, mas o futuro é sempre uma dúvida, não é?

Calor húmido, o suor a escorrer pelo corpo todo, um chuveiro vem mesmo a calhar. Procurou roupa para se vestir. Só tinha um camuflado, o que trazia vestido. O Sany1 tinha lavado as camisas, cuecas, calças, toda a roupa que tinha, que não era muita que também não precisava, depois do Vilaça numa fúria que mais uma vez lhe deu no quarto, ter quebrado a caixa de Gin que foi do furriel Morais2. No quarto nem pensar entrar, cheirava-lhe a Gordon’s até em Bissau.

Para espairecer nada melhor que uma volta. Toca, Alegre3, que se faz tarde ponha o ME-14-04 no piche(*) para Bissau, acelere essa chocolateira.


Vento quente na cara, curva do Hospital Militar, onde se dizia que quem entrar lá ferido, safa-se, já não morre, chiça que não fosse ele, recta para o bairro indígena de Bissau.

As primeiras casas, gente, cães, cabras, tudo em câmara lenta. Que pressa danada, Alegre, páre aí, olhe para aquilo, o quê meu alferes, aquela morena ali, não vê? Ah? Está a vê-la bem, Alegre? Não quero nada que faça marcha atrás, qual atrás, Alegre, abra mas é os olhos e páre aí! Ponha-se à sombra.
Onde se meteu? Perdeu-a de vista, mas uma beleza daquelas não pode desaparecer assim! Aí está ela outra vez, um encanto a surgir de trás de uma árvore, dança a andar, onde terá aprendido? Não acreditas, ela está a olhar para ti, deve estar à tua espera, ou não? É contigo, não disfarces, estás a olhar para onde? Está espantada, sem saber bem o que fazer. E agora? Vai ter com ela, pode precisar de alguma coisa, nunca se sabe, estamos aqui uns para os outros, não foi isso que te ensinaram em Mafra, ajudar a população civil, a voz dentro dele não se calava, não foi? Pergunta-lhe o caminho, que te dê a mão e te leve, que interessa para onde?
Chegou-se a ela, a ferver. Boa tarde, como está? Que pergunta! Estava boa, via-se bem, bastava ter olhos.
Olá! O Joaquim já não mora aqui? Que Joaquim? Então, o Joaquim de Brá, não conhece? E o seu nome qual é? Clara? Fica bem consigo! Não gosta do nome porquê? Então não conhece o Joaquim? E a mim também não? E não me deixa conhecê-la? Não podemos estar aqui a falar? Onde então? Hoje não, Clara, porquê? Esta semana também não?
Só nãos, Clara, não mereço um sim? Quando, Clara? Domingo às 2 da tarde aqui? Tanto tempo, Clara? Aqui não, junto àquela casa? Clara...

Cerca de um mês depois de muita conversa, era também um domingo lá para o fim da tarde. Uma velha negra sentada à porta. Clara está lá, passa roupa a ferro.
Fresca, cabelo molhado a escorrer, vestido às flores, botões costas abaixo, pernas morenas, sandália rasa, até os pés pareciam ter levado pedra-pomes!
Olá, Clara, uma mão nas flores e a outra nem sabia aonde. Chegou-se a ela, um cheiro a fresco, tinha acabado de tomar banho, via-se.
Porque quer falar comigo? Estou comprometida, você sabe, alferes. Ele também, aliás estavam todos!
Clara, não resisti, enfim, quero conhecer-te melhor, faz mal?
Estremeceu quando o sentiu encostar-se. Que está a fazer, alferes? Não podemos ficar assim só um bocadinho, Clara? Não, não pode, sabe que não! Mas por que não, Clara? Não pode, alferes! Clara, não sou de pedra, o desejo não deixa, é grande demais, ela arrepia-se ao contacto dos dedos, os lábios dele no pescoço dela, ah, não posso, alferes, não posso, não…
O ferro pousado, a Clara ofegante, de costas, as mãos dele nem acreditavam, os mamilos a quererem fugir das mamas inchadas. Ah, Clara, a tua pele, o teu cheiro, o vestido a abrir-se, os dedos dele a descer, ela toda arrepiada a dizer não, não posso, podes Clara, não estás bem? Está, alferes, mas não posso mais, vai embora, faz favor, alferes, não posso mais!

Duraram quase dois meses estes encontros, quase sempre à mesma hora na casa da velha. Um prazer, um ritual obrigatório também, antes de uma saída para o mato e depois de um bom banho que prémio à chegada!
Até um dia em que, em má hora, passou e a viu pendurar roupa no arame. Não pares, não olhes para mim, vai-te embora! Vais-te arrepender! Não me toques, ele está cá.
Viram-se todos ao mesmo tempo, ele, o sócio e a irmã dela. Então é você quem anda por aqui e eu é que pago as despesas, reponta. Oh amigo, fique com a Clara! Já que come, pague a despesa!

Meses depois numa rua de Bissau, ouviu chamarem pelo seu nome. Parou, olhou para trás. Clara! Sorriso triste.
Envergonhado, baixou os olhos. Foi a última vez que viu a Clara.
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Notas do autor:
1 - Infamara Sany, o impedido que, juntamente com o quarto, a cama, a G-3 e restantes apetrechos de guerra tinha herdado do Cap. Saraiva. Morreu, mais tarde, em combate.
2 - Morto em combate no decorrer da operação ‘Ciao’, em Catunco, no Sul, em Maio de 1965 na que foi a última operação do grupo Fantasmas.
3 - Soldado Condutor ao serviço do Grupo.

Nota do editor:
(*) - Piche - o mesmo que alcatrão

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Apanhado à mão

Alternava períodos no mato com uns dias em Brá. Aproveitava-os para se manter em forma, praticava tiro, mantinha o Grupo em instrução diária, ao fim do dia ia até Bissau, dava uns passeios a pé. No fim de jantar, quando tinha vontade, punha a escrita em dia e lia pela noite fora.
Não havia muito para fazer na cidade. O hotel Portugal onde se reunia ao jantar com os conhecidos, ou o Fonseca de vez em quando para comer frango assado com batatas fritas aos paus, enormes, ou beber cerveja cá fora com um cesto de ostras ao lado.
Parava na esplanada do Bento, quase sempre a abarrotar de fardas, obrigatório para quem queria encontrar camaradas destacados no mato, em trânsito por Bissau, para consultas médicas, tratar de assuntos dos destacamentos ou à espera do avião para o mato depois das férias na metrópole.
Ouvia-os falar dos dias que lá tinham passado, das famílias, amigos, namoradas, do cinema que tinham visto, do ar diferente que respiraram. E do desinteresse e ignorância sobre o que se passava na Guiné.
Era um entusiasmo ouvi-los falar da metrópole e das férias. As dele estavam à porta, um ou dois meses se tanto, ia descontando os dias.


Em fase fotográfica, ia para o Cupilão4, negras com os bebés às costas a pilarem o arroz, mancarra a secar, crianças a brincar, velhos negros de barbas brancas, curvados, a cortar as unhas dos pés com a catana enorme na mão, outros sentados em fila, encostados às casas, olhos vermelhos de doenças, clicava tudo.

O conflito sentia-se em todo o lado, em Bissau também, embora não houvesse relatos de episódios violentos dentro da cidade. Claro que via o que se passava, ouvia os helis5 pousar no Hospital, perto de Brá, eram quase vizinhos, tinha acesso por vezes a citreps e perintreps6, frequentava quase diariamente a 2.ª e a 3.ª Rep, almoçava com este e aquele, estava a par do que se passava em todo o território.

O Leite era companheiro das mesmas lides desde há anos. De baixa estatura, magro, enfezado, aparência tímida e muita lábia, via-se que era desenrascado há muito. Estiveram no mesmo curso em Mafra, seguiram juntos no navio “Carvalho Araújo” para os Açores e separaram-se no cais de Ponta Delgada.
Encontraram-se, de novo no mesmo navio, no regresso ao continente.
Mobilizados para a Guiné, apanharam o comboio em Santa Apolónia, para o norte, para gozarem os dias de licença a que tinham direito e reencontraram-se em Campanhã para o regresso a Lisboa. Passaram os dias na capital, despedindo-se da vida boa que lá se vivia, até embarcarem no “Alfredo da Silva”. Na véspera do embarque fizeram questão de mandar vir lagosta e champanhe francês, no “Solmar”, ali nas portas de Santo Antão.
Davam-se, nem sempre ligavam às mesmas coisas, nem eram muito parecidos mas entendiam-se bem. O acaso fizera com que se juntassem nesse percurso. Já em Bissau, com o Capitão Marques, o Black e outros companheiros da viagem, separaram-se, até um dia destes.

Numa dessas visitas ao QG soube que o Leite tinha desaparecido.
A comunicação oficial era confusa, não se sabia ao certo se tinha desertado ou sido apanhado. Certo é que tinha sido levado para Dacar.
O Leite estava a comandar um pelotão reforçado em Sare Bacar, no norte, um pouco a leste de Cuntima, encostado ao Senegal, uma zona calma. O PAIGC, na altura, servia-se das fronteiras do Senegal como corredores de passagem para o interior que o Shenghor7, problemas já tinha que chegassem.
Levava uma vida tranquila, mantinha boas relações com a população local. Terá sido abordado pela polícia, em território senegalês, quando, sentado a uma mesa, defrontava um frango de chabéu que lhe tinham preparado. Puseram-lhe as algemas e meteram-no num jeep a caminho de Koldá.
Depois de ouvido foi para a cadeia de Ziguinchor e por lá ficou umas semanas, enquanto se desenvolviam negociações, por intermédio da família, que o Estado Português não se meteu. A Igreja interessou-se, a Cruz Vermelha Internacional intercedeu, levaram-no para Dacar, onde foi presente a um juiz que decidiu recambiá-lo para Lisboa. Mas ele não queria, temia represálias, queria voltar a Sare Bacar. Semanas depois, acabou por ser entregue na fronteira às autoridades militares portuguesas. Soube isto da boca dele, dois ou três meses depois, na esplanada do tal Bento, momentos depois de ter sido chamado ao Governador-geral.
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Notas:
4 - Cupelon, Cupilão, Pilão: grande bairro popular atravessado pela estrada para o aeroporto
5 - Helicópteros Allouette-II e III
6 - Relatórios militares periódicos
7 - Presidente da República do Senegal.

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Entre eles

As relações entre eles eram as mesmas que se viam entre jovens de 20 e poucos anos. Alcunhas, anedotas sobre acontecimentos no mato, ciúmes, coisas pequenas que ocorrem, sempre que um grupo de jovens se vê obrigado a partilhar tudo. Entre alguns havia acordos tácitos de não-beligerância, entre outros, acordos havia que não previam isso.
Os furriéis dos grupos viviam em dois quartos seguidos. Oito em cada, quatro camas frente a frente.
Num daqueles quarto o cristo era o Marques. É um doente, coitado, uma doença incurável, Canjambari não tem tratamento, dizia um a cada passo.
O Marques tinha vindo de Canjambari, um buraco muito falado. Qualquer coisa servia para se meterem com ele. Tinha poder de encaixe, fora praticante de luta greco-romana, lá na Amadora dele.
Mas havia um ou outro que exagerava no gozo, tanto que o Azevedo, se começou a chatear também, estava a ser gozo a mais com o camarada do grupo dele. Se fosse comigo o assunto resolvia-se a murro.
Lá para os meus lados, nos Arcos de Valdevez, as mãos também servem para bater nas trombas dos gajos atrevidos. Treta, terá dito outro.
No regresso de uma saída, ansioso por um banho e pela cama, o furriel Azevedo entrou confiante no quarto. Camuflado, meias, botas, tudo directo para lavar, banho a seguir. Quando abriu o mosquiteiro da cama teve uma surpresa, em cima do lençol só se viam beatas de cigarro, uma ainda largava fumo. E os camaradas de quarto, a lerem e a escreverem, como se não fosse nada com eles.
Quem foi o cabrão que fez isto? Ninguém se acusa? Houve um, claro, por coincidência o tal da treta, que se adiantou, mal se levantou teve que tentar levantar-se de novo, de uma saraivada de socos que o tinham levado às cordas, neste caso ao cimento.

Eram muito diferentes. O furriel Azevedo tinha ossos, músculos, uma melena a cair-lhe para os olhos e um dente partido a meio por um murro. Rebelde, olhos de águia, andar felino.
O furriel Marques, ruivo, sardento, pele clara, olhos azulados, ar um pouco místico, era um sonhador. A tendência para mandar no quarto nem sempre era bem vista pelos outros e nunca pelo Azevedo.
Numa rua em Bissau, uma pequena troca de palavras e de olhos entre os dois deu lugar à marcação de um encontro nas traseiras dos quartos, logo que chegassem a Brá. Sem testemunhas. Deram as voltas todas que tinham a dar, até que regressaram ao quartel.
Depois, nas traseiras do edifício dos quartos, encontraram-se os dois, frente a frente, sem testemunhas, sem camisas e sem palavras mas, pelos resultados, com abundância de outros meios. Breves e tão eficazes que dali para a frente nunca mais tiveram problemas de comunicação.

A guerra espalhava-se a todo o território. Via-se que faltava muita coisa, armas mais compatíveis com o tipo de conflito. Mas não só, talvez até as armas fossem menos importantes. O que se via era falta de liderança, de crença, de um projecto que os unisse, na metrópole e na Guiné. Dizia quem vinha de férias, que, em Lisboa, ninguém sabia ou queria saber o que se passava na Guiné e isso tocava-lhes.
Para quê, estarem aqui, rodeados de arame farpado, se não tinham qualquer tipo de ligação àquela terra? Um sentimento de paragem, de perda de vidas e de projectos. Via-se neles todos, em todo o lado, estivessem em Suzana, Madina, Guilege ou em Cameconde. E mais, viam com desconfiança e até com mal disfarçada hostilidade aparecerem-lhe os comandos, na zona deles. A chegada destes implicava sempre sarilho, enquanto lá se mantivessem ou depois de abandonarem a zona.

Os Comandos levavam uma guerra limpa, higiénica, como se dizia. Saíam, faziam o serviço e regressavam na primeira oportunidade, deixando para trás a carga de sarilhos que vinha a seguir. Era a desvantagem da quadrícula, estarem fixos em povoações transformadas em quartéis, presos dentro do arame farpado, primeiro sem quererem sair e depois, em alguns casos, já sem poderem. Deixavam o mato para o PAIGC, em várias zonas dono e senhor daquelas florestas e dos caminhos.
Em Brá, outra vez para mais uns dias de descanso os comandos tratavam de se manter operacionais. Nas horas de lazer, iam para a cidade, para os conhecimentos que tinham adquirido. Eram tão disciplinados entre eles no mato, como insurrectos na cidade. Por isso, não era de admirar as queixas da Polícia Militar, nem as reclamações dos camaradas das outras unidades que repartiam com eles as instalações de Brá.
Para eles que faziam a guerra, que viam não só as caras como também as armas dos guerrilheiros, a questão estava reduzida a pormenores técnicos. A componente moral, a mais importante, ia-se gastando também com o tempo, a que não era nada alheia a convivência em Brá com batalhões recém-chegados e especialmente com os Adidos.
Estavam assim reduzidos às armas e aos divertimentos. Uma combinação explosiva, como se foi vendo ao longo daquele tempo.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 14 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14876: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VI Parte): A nossa causa é uma causa justa

Guiné 63/74 - P14921: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (3): De Bissau para Cacine

1. Parte III de "3 anos nas Forças Armadas", série do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72).


3 anos nas Forças Armadas (3)

Cacine

E passamos uma semana em Bissau. Aqui fizemos alguns patrulhamentos nocturnos para nos irmos ambientando ao terreno. Dos Açores ao Continente português a maneira de ser e viver era muito diferente mas muito mais era em África relativamente ao Continente. Mundos diferentes.
Em Bissau ouviam-se histórias tenebrosas de mortes, ataques, bombardeamentos, emboscadas, as mais diversas operações no hospital e sei lá que mais. Mas vivia-se intensamente a vida. A promiscuidade era enorme. A vida dos militares na retaguarda era um luxo. Pobres dos que estavam a chafurdar na frente de combate. Em breve iria saber isso o que era. O que me aconteceu até aqui foi encontrar um oásis no deserto. Daqui por diante iria deixar o oásis e entrar no deserto. Quase dois anos me esperavam na frente de combate. Não fazia a mínima ideia do que me esperava.


Em Bissau, 1970

Não me lembro de muitos pormenores mas recordo-me de estar numa LDG (lancha desembarque grande) rumo a Cacine e penso que de noite. Entramos no rio Cacine onde as águas se misturavam e depois de estudadas as marés para podermos desembarcar na margem esquerda onde estava sediado o quartel de Cacine. Ao longo dos cerca de dois anos que ali permanecemos os nossos abastecimentos vinham por mar nestas lanchas.


 LDGs


Cacine

Fomos render a Companhia de Caçadores 2445 em Maio de 1970.
Cacine era o último reduto do Sul da Guiné onde estavam tropas portuguesas tendo como segurança na retaguarda o lugar de Cameconde, havendo mais a norte dois quartéis, Gadamael e Guileje, onde existia o corredor da morte, corredor esse que dava entrada ao armamento do PAIGC da Guiné Konacry para o interior da Guiné Bissau.

Logo à saída do quartel havia as habitações dos residentes de Cacine para mais perto de Cameconde existir ainda outra povoação, a Tabanca Nova. Entre Cacine e Cameconde com paragem na Tabanca nova fazíamos o trajecto diário, picando o caminho a fim de detectar alguma mina. Era necessário abastecer Cameconde e manter seguro esta picada. Além de cada um estar armado acompanhava-nos as “Daimlers”, Unimogs e a GMCs com sacos de areia como lastro. Todos os meses havia a mudança de pelotões de Cacine para Cameconde e vice-versa.

O lugar de Cacine situado na margem esquerda do rio Cacine era um lugar aprazível e não muito longe do mar. As marés eram muito acentuadas e como tal para navegar neste rio havia que ter em conta as marés. Fora do quartel e na margem do rio havia praia da qual desfrutamos bons momentos. Pena é a guerra ter condicionado o dia-a-dia destas populações que bem podiam desfrutar do seu modo de vida peculiar.


O pôr-do-sol era lindo. Em contraste a vida dura que a população levava derivado aos condicionalismos no terreno imposto pela situação militar portuguesa.


Este Unimog tem uma história que se passou com ele ao ficar uma noite na praia devido a não se conseguir tirá-lo pois as rodas enterraram-se na areia. Seria necessário a GMC para o puxar. E porque isso não aconteceu nesse dia não sei. O que me lembro é que a maré, quando encheu, provocou um curto-circuito no sistema eléctrico do carro e com o movimento das águas a luz começou a acender e a apagar. Isto durante a noite. Uma das sentinelas ao aperceber-se desta alternância de luz começou a disparar. A malta foi logo para os abrigos e foi o descarregar de uma tensão que se vinha acumulando duma notícia que iríamos ter um ataque aos arames. As armas desenferrujaram-se, a tensão desapareceu e tudo voltou ao normal no dia seguinte.

Nestas margens do rio a população apanhava as tão saborosas ostras com as quais nos deliciávamos. Eram bem graúdas. Era uma maneira de enriquecer o PIB local. A pesca era outro meio de sobrevivência. A caça fazia parte do modo de viver e lembro-me bem da carne do animal “monte” que era bem saborosa. A mancarra (amendoim) era outro produto.
A praia era um lugar para mitigar a solidão nestas paragens.

A vertente religiosa era bem acentuada onde em grupo ou em individual a oração fazia parte da vida. Um factor mais forte pesava na religiosidade que era a situação da guerra. Nos tempos difíceis o ser humano agarra-se a algo para além do que é material pois a impotência do humano perante os acontecimentos leva-o a pensar no sentido da vida.

Capela de Nossa Senhora de Fátima

A Capela de Nossa Senhora de Fátima estava ali para nos receber em grupo ou em particular, até os mortos que vinham de dois quartéis mais acima, Gadamael e Guileje. E foram muitos. O Carapeta de tanta pancadaria que apanhou teve que ser rendido mais cedo. Lembro-me dum capitão, de nome Ascensão (penso), dum desses quartéis ter sido morto numa emboscada. Eram notícias que nos congelavam as veias.

 Mesquita

Por outro lado a população que vivia ao lado do nosso aquartelamento era muçulmana e como tal aprendia a sua religião e costumes. E tinham a sua mesquita. Com a sua conjuntura social própria o encarregado de educar as crianças na religião muçulmana reunia-as e sentadas no chão aprendiam o Corão.

Na medida em que o tempo ia passando as saudades das notícias dos nossos entes queridos aumentavam e os aerogramas (envelopes-carta distribuídos pelo MNF) funcionava como meio de comunicação. Mas nem sempre o correio vinha directamente para o nosso quartel mas sim para outro ao lado e mais acima rio, Gadamael. Por isso era necessário lá ir de sintex e saber das marés porque só quando estava cheia era possível atracar no porto. Uma vez a maré já estava em posição avançada de baixar mas mesmo assim aventuramo-nos a lá ir ficando para o outro dia o regresso.

Lembro-me que quando lá chegamos a maré já estava em fase adiantada de abaixamento e por isso tivemos que arrastar o sintex até lugar seguro, amarrá-lo e tiramos as botas, arregaçamos as calças, enterramos os pés no lodo e chegamos a terra firme. Cortei a sola dos pés penso que por causa das conchas das ostras.


Na altura não medíamos a dimensão do perigo que nos rodeava pois a conjuntura política estava longe da nossa noção real da Guiné. Dizia-se que do outro lado da margem do rio, que ficava bem afastada, era mato denso. Portanto o perigo de sermos atacados dali não se avizinhava na nossa realidade. Cacine era o último reduto do sul rodeado de mata e água, havendo apenas uns carreiros pelo lado de Cameconde onde tínhamos o nosso destacamento. Era a retaguarda de Cacine. O enquadramento geo-estratégico de Cacine era bom. Plantado à beira rio com a população mais a interior o nosso quartel estava bem posicionado tendo ligação por um caminho que passava pela Tabanca Nova a caminho de Cameconde. O interior do quartel abrangia a messe dos Oficiais com condições más, vistas em 2009 mas que na altura até não eram más. Hoje ao olharmos para trás é que nos arrepiamos ao vermos onde estávamos instalados. Fazia parte, ainda, a messe dos sargentos, as Transmissões, a secretaria, a oficina mecânica, o refeitório, o local da PIDE, a nora de onde tirava a água, a capela…
Como em todos os quartéis havia a disciplina militar com os seus usos e costumes. Logo de manhã o tocar da alvorada e à noite o arrear da bandeira à qual se prestava homenagem.

Na Guiné penso que todos os quartéis tinham a sua pista para as avionetas. Este meio de transporte servia tanto para civis como para militares. Uma vez fui para Bissau gozar um artigo do RDM que me dava 5 dias longe do mato e comigo iam também civis. Estes monomotores sobrevoavam toda a Guiné, penso e noutra vez o motor, que era posto a trabalhar pegando numa haste da hélice e rodando-a, parou simplesmente dizendo o piloto que no ar não parava.


No isolamento em que vivíamos tudo que era fora do comum era novidade e uma atracção que quebrava a monotonia da nossa existência.
Fora do quartel e para os lados da Praia existia uma viatura fora de serviço, velha e estanque. Ao se passar por ela explorávamos a viatura pois na altura tudo era novidade. Estávamos em 1970. Mas conduzir um jeep sem ter carta era entusiasmante assim como um Unimog. Foi aprendendo assim que numa das férias que fui a S. Miguel tirei carta no quartel em Belém.



Entre Cacine e Cameconde havia diariamente um patrulhamento para assegurar a vigilância na zona e para deslocar toda a gama de material quer alimentício quer de armamento ou outra coisa qualquer.
Para isso um pelotão de 25 homens, 3 furriéis (no meu caso apenas dois), pessoal de transmissões, um pelotão de milícias que seguia na frente a fazer a picagem, as viaturas com os respectivos condutores (Unimog, Daimlers, GMC com a arma “Browning” com lastro de sacos de areia). Munidos de G3, metralhadora HK21, bazuca, não me lembro de morteiro 60 fazíamos o percurso para o qual já tinham seguido a milícia a fazer a picagem.

O obus 14 fazia parte da nossa segurança em que a artilharia fazia uso dele sobretudo em Cameconde. Era uma arma que mandava um rebuçado de 45 kg e que metia respeito.


O sector da “ferrugem”, oficinas de viaturas, era sui generis. Com espírito próprio e adquirido por um grupo pequeno era ali que a folia parecia brotar. Uma viola fazia parte da farra que acompanhada com umas ostras cozidas em meio bidão faziam a delícia de quantos tomavam parte dela. Eram estes uns dos poucos momentos que faziam esquecer o isolamento, o afastamento da família ou da mulher e filhos.

"Ferrugem"

Texto e fotos: © Tibério Borges
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14879: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (2): Passagem pelo BII 18 de Ponta Delgada, IAO no RI 11 de Setúbal e embarque em Lisboa no Ana Mafalda

Guiné 63/74 - P14920: Notas de leitura (739): Parabéns ao nosso camarada Mário Cláudio / Rui Barbot Costa [, ex alf mil, secção de justiça, QG, Bissau, 1968/70], Grande Prémio de Romance e Novela APE/ DGLAB - 2014, atribuído ao seu último livro "Retrato de rapaz"

© Mário Cláudio.
Cortesia de Bookoffice
1. Parabéns ao Mário Cláudio, pseudónimo literário do nosso camarada e membro da nossa Tabanca Grande, Rui Barbot Costa  [, nascido no Porto, em 1941,  ex-alf mil, na secção de justiça, QG, Bissau, 1968/70, foto atual à direita], chegado até nós pelo braço de outros dois camaradas, o Carlos Nery e o saudoso João Barge (1944-2010)...  Recorde-se que os três participaram num espectáculo teatral, inédito em Bissau, estreado em 5/4/1970: a peça de Ionesco, "A Cantora Careca", encenada pelo Carlos Nery.

A Associação Portuguesa de Escritores (APE) acaba de atribuir o Grande Prémio de Romance e Novela APE/ DGLAB - 2014, ao livro Retrato de Rapaz, editado sob a chancela da Dom Quixote.

Capa do livro, editado pela Dom Quixote,   
Segundo notícia da própria APE,  o júri, constituído por José Correia Tavares, que presidiu, Ana Paula  Arnaut, Isabel Cristina Mateus, Maria João Cantinho, Miguel Miranda e  Miguel Real, ao reunir pela 3.ª vez, deliberou maioritariamente, pois  Isabel Cristina Mateus e Maria João Cantinho votaram em Impunidade,  de H. G. Cancela (Relógio D’Água).

Mário Cláudio já tinha sido premiado, há 30 anos, com o livro Amadeo. Junta-se assim a  Vergílio Ferreira, António Lobo Antunes, Agustina Bessa-Luís e Maria  Gabriela Llansol, únicos autores que entretanto bisaram.

Foram admitidos 86 livros a concurso, de 64 homens (1 com 2 romances) e 21 mulheres, com a chancela de 35 editoras.  Na 2.ª reunião,  o júri já destacara 5 finalistas.

Desde que foi instuído em 1982, o prémio já foi atribuído a 28 autores (15 homens e 13 mulheres), de 18 editoras. O seu valor é de 15 mil euros.

O Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLAB, teve, nesta 33.ª edição, o patrocínio da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, Fundação Calouste Gulbenkian, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Instituto Camões e Sociedade Portuguesa de Autores. (***).

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Notas do editor

(*)  Mário Cláudio > Biografia >

(...) Mário Cláudio é o pseudónimo literário de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, nascido a 6 de Novembro de 1941, no seio de uma família da média-alta burguesia industrial portuense de raízes irlandesas, castelhanas e francesas, e fortemente ligada à História da cidade nos últimos três séculos. Filho único, foi primeiro instruído por um professor particular, tendo prosseguido os estudos, até à conclusão do liceu, sob a rígida batuta dos padres do Colégio Almeida Garrett (actual Teatro do Bolhão, no Porto). 

Começou o curso de Direito em Lisboa e terminou-o em Coimbra (1966), onde viria a diplomar-se novamente, em 1973, com o Curso de Bibliotecário-Arquivista. Pelo meio, a Guerra Colonial e uma mobilização para a Guiné, na secção de Justiça do Quartel General de Bissau. Antes de partir, em 1968, entrega ao pai, pronto para publicação, o seu primeiro livro de poemas, Ciclo de Cypris, publicado no ano seguinte.

Pouco depois de assumir a direcção da Biblioteca Pública Municipal de Vila Nova de Gaia, foi bolseiro da Fundação Gulbenkian, tendo obtido o título de Master of Arts em Biblioteconomia e Ciências Documentais (1976), pela Universidade de Londres, defendendo uma tese que seria parcialmente publicada com o título Para o Estudo do Analfabetismo e da Relutância à Leitura em Portugal, o único livro que assinou com o seu nome civil. 

Ainda durante a década de 70 publica dois livros de poesia, um romance, uma novela, um livro de viagens em colaboração e uma antologia de textos sobre Gaia. Pertenceu sucessivamente à Delegação Norte da Secretaria de Estado da Cultura, ao inacabado Museu da Literatura e à direcção da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto. Em 1985, iniciou-se como professor na Escola Superior de Jornalismo do Porto e, actualmente, é professor convidado da Universidade Católica do Porto e da Fundação de Serralves.

Em 1984, por convite de Vasco Graça Moura, escreve Amadeo, biografia do pintor futurista Amadeo de Souza-Cardoso – ou «psico-socio-biografia», nas palavras do autor – e início da premiada Trilogia da Mão, na qual o escritor abordou a vida e obra de outras duas figuras artísticas nortenhas, a violoncelista Guilhermina Suggia (Guilhermina) e a barrista Rosa Ramalha (Rosa). Através dos três artistas, tipificou distintos estratos sociais (aristocracia, burguesia, povo) e o «imaginário nacional», entre o virar do século XIX e meados do século XX. Nesta primeira trilogia, o autor romanceia o próprio processo de biografar, através de uma escrita fragmentada, mais sensorial que objectiva. 

Seguiu-se a publicação de um segundo tríptico (A Quinta das Virtudes, Tocata para Dois Clarins e O Pórtico da Glória), onde a História volta a cruzar a ficção, mas desta feita incorrendo na autobiografia familiar. Entre 2000 e 2004 publicou uma outra trilogia, composta por Ursamaior, Oríon e Gémeos, e que é descrita pelo autor como relacionada com «situações de alguma marginalidade» e «discurso problemático com o poder», transversais a três gerações de personagens, uma por volume.

A História, a Cultura, a Pátria, a Identidade Nacional e Pessoal são o coração das aturadas pesquisas do escritor Mário Cláudio, resultando em obras que dificilmente podem ser rotuladas de «romances históricos», correspondendo antes à preocupação de revisitar, ou mesmo rever, episódios marcantes da cultura portuguesa, e onde os factos reais são inspiração e ponto de partida para imaginativas demonstrações. Melhor dizendo, para usar palavras do autor: «toda a biografia é um romance».

O autor está traduzido em inglês, francês, castelhano, italiano, húngaro, checo e serbo-croata. Foi condecorado com a Ordem de Santiago de Espada e, em 2004, recebeu o Prémio Pessoa.
Centro de Documentação de Autores Portugueses
02/2005

(Excerto, reproduzido com a devida vénia do sítio DGLAB - Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas)

Para saber mais sobre Mário Cláudio e a sua já vastíssima obra, clicar aqui em Bookoffice. Vd. também, uma entrevista recente dada ao Público. 27/3/2015.

(**) Sinopse da obra (144 pp.)

Retrato de Rapaz - CLÁUDIO, MÁRIO
Um discípulo no estúdio de Leonardo da Vinci

Um discípulo no estúdio de Leonardo da Vinci.

Farto do descaminho de Giacomo, o pai vem deixá-lo ao estúdio de banho tomado, mas ainda com andrajos e piolhos, para que o artista que exuma cadáveres e constrói máquinas voadoras o endireite e faça dele seu criado. A beleza do rapaz impressiona, porém, Leonardo, que logo pensa nele para um anjo, concluindo porém que lhe assentam melhor corninhos de diabrete, e assim o rebaptizando como Salai. Serão, de resto, os pecadilhos do rapaz que o farão cair nas boas graças do amo e o elevarão à categoria de aprendiz sem engenho mas com descaramento para emitir opiniões, borrar a pintura, traficar pigmentos e até surripiar desenhos. E, num jogo de pequenas traições mútuas, vai-se criando entre Salai e o pintor uma cumplicidade que os aproximará como se fossem pai e filho. Mas eis que irrompem na vida de ambos Três Graças viciosas que semeiam a discórdia e o ciúme, ameaçando fazer esmorecer a estrela que os reuniu…

Retrato de Rapaz é uma novela fulgurante sobre a relação entre mestre e discípulo, nem sempre isenta de drama e decepção, e sobre a criatividade de um artista genial em tudo, mesmo na gestão dos seus afectos. Com a presente obra, Mário Cláudio compôs, com a arte e a mestria a que nos habituou, um retrato belíssimo que pode ser apreciado como uma pintura.

Fonte: Cortesia de Leyaonline