quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15046: Memória dos lugares (316): Moledo, Lourinhã: a capital do amor, o palco dos amores de Pedro e Inês, ardentes, altamente explosivos, perigosos, clandestinos, subversivos, e de lesa-pátria... Também local (fabuloso, de visita obrigatória) de arte pública, para ver com os olhos... e mexer com mãos (, que nos perdoem a Inês e o Pedro lá no céu dos eternos amantes!) - fotos de Luís Graça












Lourinhã > Moledo > Arte Pública > 25 de agostod e 2015 > Inês, 2 peças de Joana Alves; "Love Captives" [Prisioneiros do amor], de Sana Hashemi Nasl


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados


1. É uma feliz e louvável parceria que já vem de, pelo menos, 2010, e que envolve a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa,  a Câmara Municipal da Lourinhã e a Junta de Freguesia de Moledo (hoje, União das Freguesias de São Bartolomeu dos Galegos e do Moledo).  Aqui vai um excerto de notícia publicada, em 15/6/2010, na página da Câmara Municipal da Lourinhã:


(...) "Moledo Com Vida" dá mote a projecto de parceria entre a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e a Câmara Municipal da Lourinhã/Junta de Freguesia de Moledo

Associado à temática de D. Pedro e D. Inês e à sua passagem por terras da Lourinhã, estabeleceu-se uma estreita colaboração entre a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e a Câmara Municipal da Lourinhã/Junta de Freguesia de Moledo, com o objectivo de, conjuntamente, se proceder ao desenvolvimento de acções comuns, para prossecução do projecto “Moledo Com Vida”.

Assim, e, no momento, está ser desenvolvido o projecto “Escultura Pública”, o qual conta com a participação de um grupo de cinco alunos do Mestrado de Escultura Pública, que ao longo do ano lectivo 2009/2010 trabalharão a temática de D. Pedro e D. Inês de Castro, associada, essencialmente à localidade de Moledo.

Esta acção conta com a colaboração dos Professores Escultores António Matos e João Duarte, responsáveis pela disciplina “Projecto e Laboratório de Escultura Pública”, e dos alunos/escultores: Constança Clara, Denise Romano, Francisco Cid, Joana Alves e Roberto Miquelino, os quais oferecerão os seus trabalhos à Junta de Freguesia do Moledo, para exposição permanente, tendo apenas esta que disponibilizar o espaço expositivo, bem como o material para os trabalhos.

Neste sentido e, de modo sucinto, irão descrever-se as respectivas obras, sendo que quatro delas serão executadas em duas oficinas da freguesia.

Constança Clara: o trabalho pretende dialogar com dois spectos: o paço (palácio), outrora existente, que terá albergado o casal enamorado com a colaboração dos habitantes da aldeia. Neste contexto, a população oferece pedras, à escultora, que simbolizam a referida edificação que aí existiu, com as quais ela construirá a sua instalação, na zona da Beira Rio, sendo este trabalho um dos grandes pretextos para a requalificação dessa zona;

Denise Romano: numa alusão à coroação póstuma de D. Inês de Castro, este trabalho consiste numa representação de uma “ausência presente”, com a construção de um trono, no qual figura a presença da referida donzela. Os materiais utilizados são o aço inoxidável e a pedra de uma pedreira situada na freguesia;

Francisco Cid: uma representação de D.Pedro e D.Inês numa perspectiva intemporal, a qual figura sobre os seus túmulos;

Joana Alves: a impossibilidade de representar a vida sem a morte. O corpo enquanto ser em metamorfose para a morte. Neste caso o leito de morte é uma banheira em que o corpo, delicadamente, se separa da vida; onde se materializa um afastamento e se impõe uma distância. Este trabalho, todo feito em pedra, extraída de uma pedreira situada na freguesia, consiste na construção de uma banheira que assenta sobre quatro pés, réplicas dos que, no Mosteiro de Alcobaça, sustentam o túmulo de D. Inês de Castro;

Roberto Miquelino: reporta-nos ao tema do amor e, nesse contexto, surge o coração, como elemento indicador e demonstrativo do amor, através de dois ventrículos, sobre os quais se exerce a acção reflexiva. O material eleito para este coração gigante é o metal.

Trata-se, então, de um trabalho académico, que estará concluído no dia 24 de Junho de 2010, data da sua inauguração, com a participação de todos os intervenientes. Até lá, e como já foi referido, quatro dos cinco escultores estarão a trabalhar na aldeia, com o envolvimento de uma grande parte da população, seja na entrega das pedras, como acontece com o trabalho da escultora Constança Clara, seja nas oficinas locais, onde Joana Alves, Roberto Miquelino e Denise Romano, trabalham nas suas peças, a par dos outros trabalhadores das mesmas oficinas, seja nas escolas, com as visitas de estudos que têm sido organizadas pela autarquia em conjunto com as escolas da Freguesia." (...).

As fotos acima publicadas são de 2 obras recentes, inauguradas em 2014, e que eu ainda não conhecia: "Inês", 2 peças de Joana Alves; e "Love Captives" [Prisioneiros do amor], de Sana Hashemi Nasl. Há uma terceira peça, "Relógio de sol", de Teixeira Lopes (de que não tenho fotos).

O Moledo, pequena povoação do planalto das Cesaredas, terra rica de história(s) e património (cultural e natural), já aqui tem sido evocado no nosso bloguie, nomeadamente pelo seu monumento aos combatentes do ultramar, erigido em 2005. Pelo TO da Guiné, passaram, 15 dos seus filhos, todos felizmente tendo regressado vivos a casa.



Lourinhã > Moledo > 2 de Agosto de 2010 > Monumento aos combatentes do ultramar > Passei por lá, pelo Moledo, numa manhã cinzenta de verão, mas gostei do monumento erigido em 2005, em terra que foi de amores ardentes mas altamente explosivos, perigosos, clandestinos e de lesa-pátria, os de Pedro e Inês... Gostei do singelo monumento aos combatentes da(s) guerra(s) do ultramar, não apenas os mortos mas também os vivos... Não apenas os de Angola, Guiné e Moçambique... mas também os que passaram por Cabo Verde, durante a II Guerra Mundial, e mais tarde pela Índia" (...). 

Nesta pequena e bonita aldeia  do concelho da Lourinhã, distrito de Lisboa, e que foi sede da freguesia do mioledo até 2013, situada no planalto das Cesaredas, nenhum combatente morreu, por doença, acidente ou combate em África, durante a guerra colonial (1961/74)... Acima, a publica-se uma foto com, um detalho do monumento, em que se listam os 15 combatentes que passaram pelo TO da Guiné.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados.

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Guiné 63/74 - P15045: Como Tudo Aconteceu (Manuel Vaz, ex-Alf Mil da CCAÇ 798): Parte IV - A Guiné: O Parente pobre da Colonização Portuguesa

1. Parte IV do trabalho "Como Tudo Aconteceu", da autoria do nosso camarada Manuel Vaz (ex-Alf Mil da CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67), enviado ao nosso Blogue em 18 de Agosto de 2015:


COMO TUDO ACONTECEU

PARTE IV

A GUINÉ: O PARENTE POBRE DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA


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Nota do editor

Poste anterior da série de 18 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15017: Como Tudo Aconteceu (Manuel Vaz, ex-Alf Mil da CCAÇ 798): Parte III - A Guiné do Século XV e meados do Século XVI

Guiné 63/74 - P15044: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XII Parte): Guia em fuga; Um descapotável em Bissau e Entram os Alouettes

1. Parte XII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 26 de Agosto de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XII

Guia em fuga 

O Capitão Leandro era o novo Comandante da Companhia. Trazia boas referências operacionais, tinha vindo de Sangonhã, bem lá para o sul, encostado à Guiné do Sékou Touré.
Alguém no QG teria dito que o Comandante Militar se impressionara com uma acção da Companhia1, um ataque em beleza a um acampamento IN, ao raiar de um dia. Entraram tão sorrateiros que, conta quem viu, o capitão, curioso, espreitara para uma barraca e viu um tipo lá dentro com duas bajudas ao lado. Não pediu foi licença. O comandante IN como uma mola, atirou-se com toda a honra ao capitão, engalfinharam-se um no outro, as bajudas aos gritos, até que um soldado entrou na hora, e o meu capitão com a mania de resolver isto tudo com diplomacia.

É de um capitão destes que os gajos precisam, imagina-se que terá pensado. Mande-o cá vir. O Chefe do Estado-Maior enviou um rádio para o Batalhão, que se apresentasse com urgência no QG, ao Comandante Militar.

O capitão encarregou-o de os pôr na ordem. Tomou-lhes o pulso no início, os alferes desconfiados de um capitão de outra família. Com o tempo, a competência administrativa e operacional impôs-se, ganhou ascendência, confiança, corrigiu a organização, alterou alguns procedimentos, tudo embalado em diplomacia, acompanhando os processos todos, desde a escolha e preparação das saídas, até à logística de Brá, e sobretudo moralizara o pessoal, cada dia que passava mais satisfeito com a escolha.

Menino da Luz,  tinha conhecimentos por todo o lado, sabe-se como eles são, o Brigadeiro acertou na mouche. Ficaram a dar-se bem, fricções iniciais resolvidas, era sempre com satisfação que se encontravam.

E na primeira saída de um grupo fez questão de o acompanhar.


Informações referiam a existência de um acampamento IN na mata de Sabá. O grupo, com o novo comandante como observador, deslocou-se até Mansoa em viaturas. Para evitar detecção prematura, mantiveram-se dentro das Mercedes, com as lonas corridas. A seguir, incorporou-se numa coluna da ronda, saindo de Mansoa até à extremidade da pista de aterragem, onde se apeou discretamente.

Noite de intensa luminosidade.  Permaneceram imóveis no local cerca de um quarto de hora. Depois, apoiados por um experiente Grupo de Combate adstrito ao Comando de Batalhão sediado em Mansoa, começou a progressão apeada, a corta-mato, paralelamente à estrada Mansoa-Mansabá, até atingirem Caur.

À frente, um guia com as mãos atadas atrás das costas por uma corda que rodeava a cintura de um dos homens das milícias de Mansoa. Um trilho levou-os até Mancofine. Rodeada a tabanca, seguiram para a antiga tabanca de Sabá. Passaram ao largo, em direcção à bolanha. Localizaram um ponto de cambança utilizado pelo IN. Sempre nas margens da bolanha viram outro local de cambança, com algumas tábuas desfeitas. O guia disse existir outro local de cambança mais à frente, perto do acampamento e com acesso directo. Entraram na mata, progressão difícil.
Cerca de meia hora depois, barulho, correrias, vozes, uma rajada do primeiro homem do grupo. O guia tinha-se escapado. Alguém terá aliviado as cordas que o prendiam, não havia dúvidas. A procura no local não resultou, não havia qualquer hipótese de sucesso. Às 05h30, um carreiro levou-os a atravessar a mata até voltarem a ver a antiga tabanca de Sabá. Retiraram por Mancofine até à estrada que liga Mansabá a Mansoa.
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Nota:
1 - CCaç 640

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Um descapotável em Bissau

Desde que o Toni Ramalho fora para o mato formar milícias, deixara de ser frequentador do Hotel Portugal, parava lá, de longe a longe, só na esplanada para beber qualquer coisa, encontrar-se com alguém, muito raramente jantava. A mesa continuava no mesmo sítio, as pessoas é que tinham mudado.

Da mesa antiga só o Carlos e a sua Helena, os outros eram todos conhecimentos recentes. No final de um dia, viu-os na esplanada do hotel com uma roda de machos à volta, um fuzileiro de que não percebeu o nome e um conhecido capitão de artilharia, o Capitão Marques.

Apresentaram-se e foi aí que viu pela primeira vez as caras dos novos companheiros de mesa do Carlos. Demorou-se um quarto de hora, se tanto, o tempo suficiente para ouvir de rajada relatos do capitão em batalhas que travou no Comodoro do Rossio, no famoso Ritz e na Cave da Avenida António A. Aguiar.

Então não se senta, fica de pé, o capitão a virar o pescoço, enquanto lhe vinham à lembrança os amigos de há uns tempos atrás. Mudado o carregador, o capitão virado para um felizardo a passar as últimas noites na Guiné. Então, as escadas para a cave, o salão grande, o ambiente de tango, as mesas para dois, duas gentilezas em cada, uma no balde de gelo a aguardar que a abram, a outra sentada de perna traçada à espera que alguém as destrace, o pianista de brilhantina na careca, o do contrabaixo a abanar os cabelos encaracolados até aos ombros. Era como estivesse lá, os pormenores todos.

E você, para o que se mantinha de pé, não se esqueça, tome nota, que estou a ser seu amigo. Quando regressar, reserve para si a primeira noite em Lisboa, deixe a família e os amigalhaços para depois, que vai ter tempo para eles até se chatear. Diga adeus ao Depósito de Adidos, apanhe uma boleia da Ajuda para a baixa, suba o Chiado, encoste-se à Brasileira e deixe os olhos habituarem-se, deixe-os ver o que quiserem, até não quererem mais. Jante por aí, se quiser vá até ao Pic-Nic, um filme no Condes ou no S. Jorge serve para fazer tempo, suba depois até ao Marquês, aqui já sabe, com este nome é só coisa boa à sua espera, seja para que lado vá.

Fontes Pereira de Melo acima, pelo lado esquerdo, corte para a António Augusto de Aguiar, e suba a avenida pelo passeio da direita, vá olhando até dar de caras com a Cave e um porteiro fardado, lá para o meio da avenida. Só tem que abrir a boca, diga-lhe que o Capitão Marques manda cumprimentos, aquele que está agora com os ossos na Guiné, é só o que tem a dizer, ele mete-o lá dentro, sem mais. Ao descer as escadas, preste atenção, ouça, mas não quer jantar com a malta, olhe que isto é tudo bom pessoal.

A insinuante Helena nem parecia a mesma de quando chegou, a voz mais rouca, um vestido preto, brilhante, pendurado só no peito, como é que aquele vestido consegue ficar assim, tão seguro? Os joelhos cruzados um em cima do outro, o cabelo apanhado, uns brincos aos saltinhos. O Carlos parecia-lhe mais adulto, um ar quase indiferente para os outros, e também para a Helena, pareceu-lhe. Só um sorriso para cima, envergonhado.

Já apanhara com a artilharia toda, cansado de imaginar o percurso até à Cave. Despediu-se deles, um aperto de mão para aqui e para ali, o Carlos dá cá um abraço, quando apareces para jantar?

A Helena estava alugada ao mês. O pai do Carlos convencera-a, finalmente, a fazer companhia ao filho, depois tratara de tudo com ela, o salário base, as diárias, as condições todas. A Helena fizera questão que todas as despesas em Bissau, todas mesmo, ficassem a cargo do Carlos. E ainda um carro para as deslocações em Bissau. Foram ao J. J. Gonçalves2 em Lisboa escolher a cor, a marca e o modelo ela já tinha dito qual era. Ficaram instalados no Hotel Portugal, numa espécie de suite.
Um ou dois meses depois, mais dia, menos dia, o Carlos, acompanhado da Helena, foi ao cais levantar o Austin Sprite, de um vermelho lindo. Um brinquedo, a subir devagar a Avenida, a capota para baixo, o Carlos ao volante, a brisa a cuidar dos cabelos dela, o maralhal no Bento e na avenida de boca aberta, olhos arregalados.

Depois dos primeiros tempos, em que para onde ia um, o outro ia atrás, pelo que se estava a ver, o Carlos estava a aprender depressa, mais calado ainda, mas menos submisso. Noites dentro era visto quase sempre só, quando lhe perguntavam pela companheira, se achava que o dono da pergunta merecia resposta, dizia que tinha ficado no Hotel ou em casa de alguma gente conhecida e não adiantava muito mais. Levavam uma vida cada vez mais independente e a certa altura o Carlos tirou as coisas dele do hotel Portugal e mudou-se para a base de Bissalanca. Depois, ela começou a ser vista hoje com este e com aquele amanhã.

O Gabriel, empregado do hotel, contou mais tarde que uma noite apanharam um empregado do hotel em cima de um escadote, pano na mão a passar pelo vidro, os olhos todos lá para dentro. A limpar vidro que a senhora mandou! Contaram também outras coisas, sabe-se como é.
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Nota
2 - Empresa imortadora de automóveis, nomeadamente os Austin.

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Entram os Alouettes

6 de Março, domingo. Manhã quente. Carregador fora da G3, balas extraídas, um pano macio nelas. Uma a uma dentro outra vez. Os outros três carregadores cheios em cima da cama, para o cinturão. 100 projécteis ao todo, como de costume. Arma aos pés da cama. Granadas de mão, duas defensivas, uma ofensiva e uma incendiária para o cinturão, mais duas de fumos laranja para o bolso esquerdo do dólman3. Em cima da cama o camuflado e as meias. Botas de borracha junto à mesa da cabeceira. Tudo conferido outra vez. Duche.

À civil, meteu-se no ME-14-04, com o Alegre ao volante, em direcção a Bissau. Às 11 e pouco, na esplanada do Bento cheia de militares, um bolo de coco e um café. Volta a pé pelo quarteirão, olhar para o Geba, mexer pernas. De novo com o Alegre, regresso a Brá.

Camarata do grupo. O Sargento Valente e o Furriel Azevedo com as equipas conferiam o material, G3, MG 42, granadas de mão, lança-rockets, tudo a ser vistoriado e limpo.
Reunião do grupo para informação sobre a missão. Heliportagem4 de assalto a uma base IN nas imediações de Jabadá. Pertencente ao batalhão aquartelado em Tite, o destacamento de Jabadá estava a ser flagelado, há meses, quase todas os dias, às vezes mais que uma vez no mesmo dia.

13h00, Bissalanca. 30 homens em 6 Alouettes-III da esquadrilha comandada pelo Major Piloto Mendonça iam finalmente pôr em acção as práticas treinadas desde meados de Janeiro.


Minutos depois descolaram, formados em duas colunas, aos pares. Ganharam altura, sobrevoaram Bissau e começaram a subir o Geba castanho-escuro. Flectiram para a outra margem do rio, baixaram e, junto à orla, subiram o rio, a rasar as árvores.

De súbito, viraram à direita, dispuseram-se em linha, separaram-se, 3 helis para uma ponta da mata, os outros três para a outra.

Fumo a escapar-se das casas no mato em frente. Sinais do piloto, preparar para saltar. Portas abertas, olhos ansiosos. Junto ao solo, um metro para aí, saltar!


Um descampado seco, capim mais alto do que contavam. As equipas correram para a mata, em linha, torta como uma cobra a fugir.

Alguns guerrilheiros começaram a reagir. Rajadas de PPSH e Kalash, rebentamentos de morteiro, granadas, silvos de disparo de rockets, barulho das pás dos Allouettes.
Surpreendido, o IN retirou sem oferecer grande resistência, deixando baixas no terreno. Recolhidas crianças, mulheres e um velho. E algum material, meia dúzia de granadas, munições, correspondência vária, documentos.

13h45. Problemas na 2.ª Equipa. O Roberto à procura da parelha, o António Silva5. Deixara de o ver quando saltaram. Ouviam-se ainda chicotadas de disparos. A equipa do comandante do grupo voltou atrás, ao local de lançamento, a vasculhar o capim. Encontraram-no deitado, desajeitado, de barriga em cima da G3. Alguém o virou. Olhos abertos, um fio de sangue a espreitar da boca aberta e do nariz. Uma bala alojada no peito. Respiração boca a boca, uma golfada de sangue quente foi a única resposta.

Diabo Maior chama Lebre, evacuação, pediu e repetiu. Lebre chama Diabo Maior, indique local com fumo.

Até o capim estava contra, recusava-se quase sempre a arder quando lhe atiravam granadas incendiárias, agora até uma simples granada de fumos lhe pegara, o vento a empurrar-lhes as chamas, nem sabiam para onde ir, o Silva na maca improvisada, nem sabes quanto pesas, pá, desabafa um! Esgotados, meteram-no no heli, junto ao rio.


Explosões de granadas, berros, chicotadas de projécteis, crepitar do capim a arder e o barulho das pás do heli a curvar rapidamente para a outra margem do Geba, directo ao Hospital Militar de Bissau.


Soldado Comando António Alves Maria da Silva, o segundo a contar da direita

Uns dias antes, os olhos do Silva molharam-se quando o Furriel Azevedo lhe disse que não ia mais para o mato, que a comissão já estava terminada e que não queriam mais nenhuma edição do Furriel Morais dos Fantasmas, morto no sul, em Maio do ano passado, duas semanas depois de ter terminado a comissão. O alferes transigiu, a história repetiu-se.

Às 17h30 dessa tarde de domingo, o Soldado-Condutor Alegre deixava o alferes, já à civil, em Bissau frente à esplanada do Bento.

(Continua)
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Notas
3 - Casaco justo e curto que fazia parte do fardamento camuflado.
4 - Operação "Hermínia", a primeira heliportagem de assalto efectuada na Guiné.
5 - Soldado António Alves Maria da Silva, oriundo da CCaç 674, natural de Erada, Covilhã, ficou sepultado na campa 247, no Talhão Militar do Cemitério de Bissau.

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Nota do editor

Poste anterior da série de 20 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15024: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XI Parte): Mornas e Segundo Encontro com o RDM num mês

Guiné 63/74 - P15043: Parabéns a você (953): Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 de Agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15037: Parabéns a você (952): Manuel Carmelita, ex-Fur Mil Radiomontador do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15042: O nosso livro de visitas (184): António Mário Leitão, natural de Ponte de Lima, ex-fur mil, Farmácia Militar de Luanda, delegação nº 11 do LMPQF - Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos, Angola, 1971/73

1. Mensagem de António Mário Leitão, de Ponte de Lima, nosso leitor e camarada [ex- furriel mil na Farmácia Militar de Luanda, Delegação n.º 11 do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos (LMPQF), Luanda, 1971 a 1973]


Data: 21 de agosto de 2015 às 15:18
Assunto: 52 Heróis Limianos


Obrigado, Luís!

Em meu nome e desses 52 Heróis, muito obrigado! (*)

Fico espantado com a vossa  capacidade de trabalho! A sério, que vos admiro!

Estais a deixar para os vindouros um registo incrivelmente histórico, imensurável e cheio de sentimento sobre a Guerra!
Brasão da Farmácia Militar de Luanda.
Cortesia do portal Ultramar TerraWeb.
Delicio-me a ler os relatos dos nossos camaradas, muitos deles cheios de humor e humanidade!

Além disso, o vosso sítio é importantíssimo para os artigos que escrevo e os livros que estou a preparar.

Obrigado pela vossa  dedicação, caro Luís!

PS - Se vieres a Ponte de Lima, de dia, de noite,  ao sol ou à chuva, avisa-me, camarada! Quero conhecer-te!

Grande abraço!

Mário

2. Comentário de LG:

Obrigado, Mário, pelas tuas palavras sinceras, calorosas e fraternas. E pelo teu nº de telemóvel que vou gravar. Tens o nosso blogue sempre à tua disposição, e nomeadamente sempre que queiras evocar e honrar a memória dos limianos que passaram por (e alguns tombaram em) o TO da Guiné.

Quanto ao teu convite, terei também muito gosto em conhecer-te pessoalmente. Às vezes dou aí um salto, à tua bela terra, rica pelas suas gentes e pelo seu património (natural e cultural), quando estou no norte (Porto e/ou Marco de Canaveses).

Assim de repente, lembro-me de lá ter estado por ocasião do 8º Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima, em 7 de junho de 2012. Publiquei aqui algumas fotos... 

Na ocasião, se não erro, também descobri, maravilhado, a lagoa de Bertiandos (sobre cuja biodiversidade tens um livro de que és autor e sobre o qual gostaria que nos fizesses um curta apresentação)... Pelo vi na Net, és também membro do Lions Clube de Ponte de Lima e uma figura estimada entre a gente limiana.

Haveremos,.. por certo, de nos encontrar. Afinal, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca...é Grande! Fico feliz por seres nosso leitor assíduo e achares utilidade neste blogue como fonte de informação e conhecimento sobre a África lussófona, e em especial sobre a Guiné. Também há lugar aqui para ti, se assim o entenderes... Fica aqui o convite formal para integrares, como camarada, a nossa Tabanca Grande. Precisamos de camaradas como tu, que escrevam e saibam guardar, honrar e fazer respeitar a memória dos antigos combatentes da guerra colonial (ou do ultramar, como queiras).

Um alfabravo. Luís Graça (**).
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(**) Último poste da série > 5 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14436: O nosso livro de visitas (183): Luis Eiras, ex-alf mil, que esteve no CTIG, de abril a outubro de 1974, que passou por Caboxanque, que esteve em Vendas Novas com o Joaquim Sabido e que quer ir ao 10º Encontro Nacional da Tabanca Grande, no próximo dia 18, em Monte Real

Guiné 63/74 - P15041: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (32): O "making of" de um projeto de ajuda ao Hospital de Cumura (João Martel e Ana Maria Gala)


1. Mensagem de João Martel, com data de 19 de fevereiro de 2014, que não foi publicado na devida altura (*) e que nos parece agora relevante para perceber melhor o projeto deste jovem médico, João Martel, com quem já falei ao telemóvel duas ou três vezes... 

[foto á esquerda, João Martel com Ana Maria Gala; são os dois mais recentes membros da Tabanca Grande (**)]


Boa tarde, caro Luís Graça

O meu nome é João Martel.

Em primeiro lugar, e ainda sem me conhecer, aceite os meus sentimentos pela partida do Carlos Schwarz, "Pepito", para a Casa do Pai. O Senhor o recompensa já, por certo, pelas suas grandes e boas obras. A luta desse grande homem, que pude conhecer pelo seu blog, também me motivou a falar consigo hoje.

Cheguei até si pela leitura do seu blog "Luís Graça e Camaradas da Guiné" e pelo site da ENSP (já agora, perdoe-me a invasão de tantos endereços de e-mail, tentei apenas acautelar as falhas do digital).

O seu blog aparece sistematicamente em tudo o que são pesquisas sobre a Guiné-Bissau e tenho ficado cada vez mais motivado para contactar consigo, dado que tenho um interesse cada vez maior neste país e neste povo.

Mas começando do início:

Estou actualmente a terminar o curso de Medicina na FCML. Vim a aperceber-me que comecei o curso no ano de término do seu filho João, em 2008, cujo relato de Cumura também li com interesse.

Há já bastantes anos que vegeta em mim a vontade de poder aplicar algum do meu tempo (e, quiçá, saber) a um povo que sinta precisar especialmente de auxílio no esforço para o desenvolvimento. Como é próprio dos maçaricos, o tempo de partir parece que nunca chega mas circunstâncias da vida e dos estudos obrigam a um adiamento. Este tempo serve para maturar, claro, e tornar a nossa visão um pouco mais clara, mais informada, mais consciente de nós e dos outros, o que não pode ser senão positivo.

Estando actualmente a terminar o 6º ano, penso que chega a altura de soltar amarras! Mas para onde, como?

Através de alguns contactos com os Franciscanos Portugueses, soube da existência da Missão de Cumura e do trabalho do Frei Vitor Henriques, médico, na missão, durante vários períodos.

Falei o ano passado com ele, falei de raspão com a drª Alice, pediatra que também lá esteve.. As coisas foram-se ligando...

Nas pesquisas on-line, como lhe disse, o seu blog, a vossa Tabanca, aparece sistematicamente. Através dele, pude completar melhor o meu olhar sobre este país e as aventuras e desventuras de tantos que por ele tanto têm feito. Nomeadamente (e terei que usar o tom coloquial) o Carlos Schwarz e a AD Bissau, o seu filho João Graça, o Zé Teixeira e o seu filho Tiago, o dr. Francisco Silva, ortopedista e tantos outros... são personagens que, ainda que só dentro da blogosfera, já habitam a minha ideia da Guiné-Bissau e me motivam a seguir em frente.

Na verdade, falo em nome de um grupo de três pessoas, eu próprio, uma colega de medicina e uma professora do ensino primário, trio que pretende partir em conjunto, em princípio no ano de 2015, dado que ainda estamos a terminar a nossa formação base.

Não querendo maçá-lo muito mais com este testamento, gostava de lhe pedir se poderia falar consigo um pouco sobre a Guiné e algumas perspectivas para o futuro dos nossos trabalhos. Igualmente, e abusando, sem querer abusar, se poderia facilitar-me alguns contactos, que adivinho muito úteis, do seu filho João e do José e Tiago Teixeira, ou outros contactos que ache importantes para nós.

Agradeço desde já a sua atenção e, logo em primeira mão, todo o sonho que já me fez viver com as suas escritas e de tantos Tabanqueiros!

Com as minhas desculpas por este rolo de texto, com amizade

João Martel (e Ana Maria e Rita)



Guiné-Bissau > Bissau > Estrada de Prábis, a 10 km de Bissau > Cumura > Missão Católica e Hospital de Cumura > Cortesia da página da União Missionária Franciscana.


2. Resposta de Luís Graça,. com data de 24 de fevereiro de 2014:

João: Vejo que é um homem crente, com sentido de coerência, e solidário. A Guiné-Bissau precisa de todos nós, e de pessoas jovens e generosas como você e as suas amigas.

Obrigado, antes de mais, por me contactar. Obrigado pelas referências elogiosas ao nosso blogue. Terei todo o gosto em poder ajudá-lo, eu e outros amigos da GB e do seu povo que se acolhem à sombra do poilão da nossa Tabanca Grande...

Espero que possa concretizar, em 2015, os seus sonhos de,, uma vez concluído o mestrado integrado de medicina, na nossa FCM/UNL [, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade NOVA de Lisboa], possa partir para a GB em missão humanitária ou de cooperação ou em regime de simples voluntariado. Vou pô-lo em contacto com as pessoas que referiu.

Para já fique com os meus contactos pessoais (...)

Um alfabravo (ABraço), em linguagem dos antigos combatentes... Luís Graça

PS - Gostaria de poder publicar um pequeno texto seu, no nosso blogue, a partir desta mensagem. Caso ache oportuno, adequado e pertinente.

3. Informação sobre os promotores do projeto:

Ana Maria Gala

Formada em Educação como professora do 1º e 2º Ciclos do Ensino Básico. Com 25 anos sobre este planeta, actualmente a trabalhar no Serviço Educativo do Museu Calouste Gulbenkian. No entanto, tem como grande paixão o Ensino e desde cedo desejou fazer um período de trabalho missionário,  pondo ao serviço a sua formação.

João Martel

Formado em Medicina pela Universidade Nova de Lisboa, actualmente a realizar o Ano Comum (o antigo Internato Geral). Igualmente com 25 anos, uma boa parte deles com o sonho de ser útil na construção do diálogo entre os povos. Aceita os desafios de uma medicina pobre, com múltiplas carências básicas.

O João e a Ana veem na Acção Missionária uma forma de honrar as ligações fraternas de Portugal com o Mundo Lusófono, contribuindo para o caminho do desenvolvimento. Encontraram na Ordem Franciscana uma estrutura organizada e coerente para o fazer.

(Fonte: PPL | Crowdfunding Porttugal > Causas > Um pé na Guiné)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 20 de maio de  2015 > Guiné 63/74 - P14640: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (31): Em busca das minhas raízes nalus / In search of my Nalu family origins (Nigel Davies, historiador britânico, originário da Serra Leoa / British historian, specialising in the study of Sierra Leone Creole people)

Guiné 63/74 - P15040: Os nossos seres, saberes e lazeres (112): Un viaggio nel sud Italia (3): Ver Nápoles por um canudo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Às vezes talhamos as nossas viagens e cometemos a leviandade de querer meter o Rossio na Betesga.
Nápoles é tão jubilosa, magnífica desde o período greco-romano até às ousadias da modernidade, tem o impressionante Vesúvio, o seu peculiar bulício nas ruas compactadas de gente e trânsito, o seu museu arqueológico é magnífico, há a catedral e dezenas de igrejas e praças, que até quase sinto vergonha pela insignificância que mostro.
Espero voltar a ter outra oportunidade para acariciar Nápoles como deve ser.

Um abraço do
Mário


Un viaggio nel sud Italia (3) 

Beja Santos

Ver Nápoles por um canudo

Tivesse eu seguido à letra todas as propostas para conhecer os tesouros artísticos de Nápoles e arredores, muito provavelmente ainda lá estava, a passear-me entre palácios, igrejas, museus, catacumbas, a coscuvilhar todo o casco histórico.

Levo o “Kaputt” de Curzio Malaparte debaixo do braço, vem a propósito fazer referências a Nápoles. Malaparte encontra a princesa do Piamonte (mulher de Umberto de Itália, viveu muito tempo em Cascais, na Villa Italia) no hall da gare de Nápoles, pouco depois de um bombardeamento. E escreve: “Os feridos jaziam em cima de macas alinhadas no cais, aguardando as ambulâncias. A princesa o Piamonte mostrava no seu rosto a palidez mortal da angústia – mas não apenas da angústia: qualquer coisa de mais profundo, de mais secreto. Emagrecera, tinha umas olheiras enormes e as têmporas floridas de uma ligeira tatuagem branca de rugas. Para todo o sempre, aquele puro esplendor que a iluminava quando fora a Turim pela primeira vez, alguns dias depois do seu casamento, apagara-se. Tornara-se mais lenta, mais pesada e parecia estranhamente envelhecida”. Cumprimentam-se, a princesa procura palavras tranquilizadoras. Malaparte responde. “Nós já perdemos a guerra; todos nós perdemos a guerra. Vós também”.


Saio da gare de Nápoles e presto esta homenagem a Malaparte, nada resta desse passado, 70 anos é muito tempo e esta estação ferroviária está cercada de arranha-céus. A obra-prima absoluta de Malaparte termina em Nápoles, ele concluiu o livro em Capri, no mês de Setembro de 1943. Há bombardeamentos, multidões em pânico, fome e sede, mas essa multidão só fala no sangue, o sangue do santo padroeiro de Nápoles, San Gennaro, que se liquefaz periodicamente. Tinha-se espraiado pela cidade o boato segundo o qual uma bomba atingira a catedral e fizera desmoronar-se a cripta onde se conservam os dois relicários com o precioso sangue. E Malaparte dá-nos um parágrafo prodigioso: “Era a primeira vez, depois de quatro anos de guerra, a primeira vez no decurso da minha cruel viagem através dos massacres, da fome, das cidades destruídas, a primeira vez que ouvia pronunciar a palavra sangue com sagrado e misterioso respeito. Em todas as partes da Europa, na Sérvia, na Croácia, na Roménia, na Polónia, na Rússia, na Finlândia, essa palavra soava com ódio, medo, desprezo, alegria, horror, cruel e bárbara complacência, prazer sensual – num tom que sempre me causara horror e nojo. A palavra sangue tornara-se para mim mais terrível que o próprio sangue. Ora em Nápoles, precisamente em Nápoles, na mais infeliz, na mais esfaimada, na mais humilhada e torturada cidade da Europa, na mais desgraçada cidade da Europa, que eu ouvi a pronunciar a palavra sangue com um religioso respeito, sagrado tumor e profundo sentido de caridade, na voz clara, pura, inocente e amável que tem o povo italiano ao pronunciar as palavras mamma, bimbo, cielo, Madonna, pane, Gesú, a mesma inocência, a mesma pureza, a mesma amável candura”.
Fatalmente, e sempre a pensar em Malaparte, avancei para a catedral, três quilómetros a pé num calor insuportável e a ver as maiores montureiras que imaginar se pode, nunca vi tanto lixo na rua.


Fachada de gótico italiano, concluída por Roberto de Anjou, em 1313, muitas vezes alterada. Celebrava-se missa, sorrateiramente fui até à capela do tesouro de San Genaro, é muito faustosa, ficamos embasbacados com os enormes relicários com bustos de prata. É aqui que se expõe durante duas semanas o relicário para ocasião do milagre da liquefação. Na véspera, e durante a viagem de comboio de Salerno até aqui, angustiei-me a ler o património que a cidade oferece, só o museu arqueológico tem acervo para um dia inteiro, o melhor de Pompeia e Herculano, por exemplo, expõe-se aqui. Estava tomada uma decisão: vamos ver Nápoles pela imagem que nos dão os viajantes há muitos séculos.






O núcleo histórico de Nápoles conserva a sua antiga estrutura greco-romana e prossegue em espaços medievais e renascentistas. O comércio estava aberto, pedi licença ao quinquilheiro para mostrar a fachada da sua loja, autorizou sem hesitação. Seguem-se as ruas do umbigo da cidade, dá gosto ver a reciclagem de tudo quanto é antigo nas habitações e mobiliário urbano atuais. É pena que as imagens em certos casos não tenham som, asseguro-vos que se ouviria o bater do coração napolitano, até canções se misturam nestas ruas de trânsito caótico, com grandes fachadas de palácios, árvores, praças, sente-se uma irrecusável alegria de viver, todos se falam, param frente às montras cheias de iguarias, também eu não resisti, entrei para comer uma babá, um dos doces tradicionais da cidade. É nisto que dou com o complexo monumental de Santa Clara, ao longo da via Benedetto Croce, um sábio italiano que estudei em Teoria da História. A igreja é austera, em gótico provençal, foi bastante afetada pelos bombardeamentos de 1943, o restauro é magnífico. Quando ouvi a palavra majólica em profusão nos claustros, não resisti, entrei todo lampeiro.




Só para ver este claustro valeu a pena vir a Nápoles. É gigantesco mais harmonioso, tem uns belos jardins, as paredes estão cobertas por frescos do século XVIII, representando santos, alegorias e cenas do antigo testamento. Mas a azulejaria a toda a volta, os bancos primorosos com cenas da vida quotidiana da época que nos fazem palpitar, nada vira nesta policromia azulejar de tão belo, num edifício religioso. O cansaço era enorme, fiz dois em um, contemplava os frescos e os azulejos e aproveitei para passar pelas brasas. E depois entrei no museu, mal sabia que ia ter um encontro inesperado, inesquecível.


A Idade Média deu enorme destaque a um encontro entre a Virgem e a sua prima Isabel, é a imagem da afetuosidade familiar e da hospitalidade. Cativou-me este mármore do século XIV, a singeleza do drapejamento e as mãos a abraçarem-se, os corpos a acolherem-se. É tão tocante não preciso de saber como eram os seus rostos, que o tempo erodiu.



Estou a despedir-me de uma cidade que teve vice-reis de Espanha entre os séculos XVI e XVIII, vieram depois os Borbons e o seu reino de Nápoles até 1860, quando surgiu a Itália. Foi um simples passeio, ainda irei até ao porto e até viajarei no moderníssimo metropolitano. Vi o Vesúvio, impressionante. Fica o sabor amargo de uma pálida amostra, que teria valido a pena organizar as coisas para estar mais tempo. Agora é tarde, hei de voltar. As casas palácio têm dimensões medonhas, fiz quatro ou cinco fotografias desta entrada apalaçada, até me acocorei para que tudo coubesse na imagem, em vão, o leitor que suponha como é tudo vasto, para impressionar. E mais adiante avistei uma casa de bicos, a rivalizar com a nossa, ali no Campo das Cebolas, onde se comemora Saramago. Para que conste. A dormitar em pé, regresso a Salerno. Preparei as coisas para ter amanhã um dia agitado. Será todo o dia a percorrer a Costa Amalfitana.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 19 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15019: Os nossos seres, saberes e lazeres (111): Un viaggio nel sud Italia (2): De Roma para Salerno (Mário Beja Santos)

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15039: Ser solidário (187): tempo de missão em Cumura: partiremos em 10 de setembro, com regresso previsto para junho de 2016... Entretanto, e até final de corrente mês, está a decorrer uma angariação de fundos para aquisição de material médico e escolar... Um euro é muito! (João Martel, médico, e Ana Maria Gala, professora, novos membros da Tabanca Grande)


Os dois novos grã-tabanqueiros, João Martel e Ana Maria Gala, nºs 699 e 700, respetivamente. Desejamos-lhe boa saúde e muita saúde para a generosa e solidária missão que escolheram fazer na Guiné-Bissau.



Um Pé na Guiné, página do João Martel e da Ana Maria Gala para a angariação de fundos (1500 eruos, até final de agosto de 2015)


1. Mensagem do nosso leitor João Martel, médico, cooperante, com data de 14 do corrente:

 Boa tarde,  caro Luís Graça:

Espero que se encontre bem.

Lembra-se do que falámos [, em fevereiro passado,] do projecto de colaborar com a missão de Cumura?

A ideia está de pé e em marcha e a nossa partida marcada para dia 10 de setembro próximo, com estadia pela Guiné até junho de 2106.

Partirei juntamente com a minha namorada, professora primária, e com a drª Alice Ferreira, médica pediatra portuguesa que muito tem colaborado com Cumura nos últimos anos - penso até que já a conhecerá, se não me engano.

Contacto-o para que possa ter conhecimento da nossa partida e eventualmente, porque mo tinha sugerido já em tempos, fazer algum tipo de divulgação na página que gere, se considerar relevante.

Gostaria ainda de lhe fazer chegar uma campanha de "crowdfunding" que criámos para a aquisição de alguns materiais escolares e médicos. Encontra-a aqui:

http://ppl.com.pt/pt/causas/um-pe-na-guine

Se pudesse colaborar com a sua divulgação, muito lhe agradecíamos, em nome desta causa por que lutamos.

Com um abraço fraterno


João Martel



Guiné-Bissau > Bissau > Cumura > Missão Católica e Hospital de Cumura > 14 de Dezembro de 2009 &gt > 18h > Mural com as seguintes inscrições: "Obrigado, Bispo Settimio"; "X Aniversário da Morte de Dom Settimio"; "A Verdade Vos Libertará".

O missionário Settimio Arturo Ferrazzetta, da ordem franciscana, foi o 1º bispo da diocese de Bissau, criada em 1977. "Homem Grande" da Igreja Católica de África, nasceu em Itália, em 8 de Dezembro de 1924, e morreu, com fama de santidade, em Bissau, em 26 de Janeiro de 1999.


Foto: © João Graça (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


2. Resposta de Luís Graça, com data de 14 do corrnte:

Parabéns, João, pela persistência e concretização do seu projeto... Irei dar, com todo o gosto, a devida divulgação à sua mensaqem,,, Temos diversas séries, uma delas chama-se "Ser solidário"...Penso que é a mais adequada para inserir a sua mensagem.

 Fica desde já convidado a integrar, de pleno direito, esta "Tabanca Grande", constituída por amigos e camaradas da Guiné... Somos já sete centenas,,, Se quiser escrever algo mais sobre si e o seu projeto, e me mandar uma foto sua, terei muito gosto em apresentá-lo aos restantes grã-tabanqueiros...

Temos regras simples e de bom senso, em termos editoriais, disponíveis aqui,  no nosso "livro de estilo":

Um alfabravo (ABraço) caloroso. Luís Graça

3. Novo mail do João Martel, com data de 21 do corrnte:

Viva, caro Luís

Deixamos uma então uma curta mensagem que se poderá fazer publicar no blog:

"Saudações a todos os Camaradas da Guiné!

Após o repto e convite feito pelo Luís Graça, fazemos aqui a nossa apresentação ao membros desta Tabanca:

Somos dois jovens profissionais portugueses, um médico e uma professora do 1º e 2º Ciclos do Ensino Básico, da zona de Lisboa, que desde há vários anos têm a aspiração de colaborar no desenvolvimento de África, essa África tão querida de Portugal. 

Já nascidos fora do alcance da Guerra Colonial (de facto, mais por alturas da queda do muro de Berlim), guardamos a impressão vívida que nos passaram os nossos avós, que viveram a África Lusa de então apaixonadamente, apesar de noutro país. Tudo contribuiu para que o sonho e as aspirações se reforçassem de forma crescente e se desenhasse, quem sabe, um futuro projecto missionário nos nossos ideais.

Durante as nossas andanças universitárias, colaborámos com a Ordem Franciscana em Portugal, onde ouvimos falar de Cumura e da Guiné-Bissau, terreno de tanto esforço e doação por parte da Ordem dos Frades Menores, como muitos saberão e Mário Beja Santos, entre outros, aqui fez notar {[,no poste t P13131], Cumura foi realmente a nossa chave para a Guiné e, desde aí, foram dois saltos até nos depararmos com esta família dos Camaradas. (aproveitamos para saudar este blogue por ser já uma plataforma on-line tão importante e significativa para a partilha e o encontro de tantos que buscam pela Guiné-Bissau).

Tendo terminado a nossa formação básica, sentimos que é o momento oportuno! Partiremos para Cumura a 10 de setembro próximo, em conjunto com a drª Alice Ferreira, pediatra portuguesa que colabora com a missão há já vários anos. Ficaremos em Cumura, a trabalhar na escola e no hospital, durante este ano lectivo, com regresso pensado para junho de 2016.

Porque acreditamos que todos os homens e mulheres de boa-vontade se devem juntar para construir um mundo mais justo e fraterno (aliás, espírito que se sente no ar que se respira nesta tabanca), queríamos partilhar com os camaradas este projecto, comprometendo-nos a fazer o devido "diário de bordo" num endereço que divulgaremos em breve. Assim, poderemos juntar algumas das nossas "pinceladas" a tantas outras que já colhemos aqui e que ajudaram a formar parte do nosso "imaginário" da Guiné, um país que nunca pisámos.

Aproveitamos também para divulgar o projecto de "crowdfunding" - financiamento colaborativo - que criámos para juntar dinheiro para alguns materiais que elegemos como prioritários para levar para a Missão. A destacar que, graças a apoio de amigos em Portugal, teremos disponível espaço em contentor seguro e confiável para levar vários materiais, principalmente livros e consumíveis sanitários, que não conseguiremos levar logo connosco.

Podem consultar a lista e o projecto aqui: http://ppl.com.pt/pt/causas/um-pe-na-guine

Desde já muito gratos a todos, deixamos aqui um abraço fraterno

Ana Maria Gala e João Martel"

Aproveitamos também para lhe dizer, Luís, que utilizámos algumas imagens retiradas do blogue no vídeo de divulgação que fizemos para a campanha (pois as imagens que se encontram de Cumura são pouquíssimas!). Referenciámos a fonte das imagens na descrição do projecto mas percebemos depois que devíamos ter pedido previamente autorização para as utilizar. Por tal pedimos desculpa e poderemos editar o vídeo se houver inconveniente.

Enviamos em anexo uma fotografia dos dois (o que se encontrou aqui no baú... ;)


Obrigado por todo o apoio!
Um abraço!

Ana Maria e João


4. Em 19 do corrente, o João Martel e a Ana Maria Gala tinham dirigido a seguinte mensagem á sua lista de contactos:



Queridos amigos(as) e benfeitores(as)

Como sabem, estamos quase a partir para um tempo de missão na Guiné-Bissau, junto da missão Franciscana de Cumura - partiremos dia 10 de setembro próximo.

Este tempo de missão, o ano lectivo que passaremos junto daquele povo, foi longamente preparado, sendo fruto do nosso contacto com os Franciscanos em Portugal, que trabalham em conjunto com a Guiné e nos desafiaram - cativaram - para realizar este tempo de serviço humanitário, tendo em conta as nossas áreas de formação.

Durante este tempo de preparação, além de economizar do nosso próprio trabalho, batemos a muitas portas no sentido de arranjar apoios e dádivas para ajudar o nosso esforço missionário. As mãos amigas não têm tardado e têm-se multiplicado sob diversas formas, o que nos tem enchido de grande alegria, mostrando-nos que este projecto é muito maior do que nós e que existe de facto uma comunidade que nos envia e nos pede que levemos a amizade de Portugal e dos Portugueses até à Guiné-Bissau, país lusófono que tanto tarda no caminho para o Desenvolvimento.

Para que o trabalho possa ser mais proveitoso e estruturado, tendo em conta as facilidades técnicas e materiais que Portugal tem face à Guiné, escolhemos em conjunto com os responsáveis da Missão uma lista de materiais prioritários a adquirir em Portugal para levarmos connosco para este ano de trabalho. Definimos um tecto de 1500€ que orçamentámos do seguinte modo:

Material escolar:

- Literatura infanto-juvenil africana (200€)

- Lápis, canetas, borrachas e material de escrita (130€);

- Cadernos diários (200€);

- Giz para quadro de ardósia (30€);

- Projector vídeo (300€);

- DVDs de filmes em português (50€).

Material médico:

- Soro fisiológico - frascos de 100 ml (100€);

- 1 Aparelho de tensão arterial (250€);

- 2 Ambu (insuflador manual) neonatal (45€ x2)

- 1 Laringoscópio para neonatologia (150 €)
(Se tiverem alguns destes itens que queiram enviar através de nós, por favor contactem-nos também!)

Se quiserem colaborar connosco em mais esta ajuda que vos pedimos, podem consultar a página de "crowdfunding" (uma forma de angariação de dinheiro para uma causa pela internet, usando uma comunidade alargada) que criámos para esse propósito aqui (estará operacional até ao final de agosto):

http://ppl.com.pt/pt/causas/um-pe-na-guine

Caso esse recurso "internautico" não seja muito familiar ou prático, podem responder a este e-mail com a vossa intenção de nos ajudar que outra hipótese será criada para o efeito, sendo a ajuda adicionada à campanha on-line posteriormente.

(Pequena nota: não se esqueçam...1 euro é muito! Se cada destinatário desta mensagem der 1 euro, facilmente chegamos ao objectivo traçado, não é preciso mais!)

Pedimo-vos ainda e principalmente que tenham presente em espírito o povo da Guiné-Bissau e esta empresa missionária (de forma mais ou menos orante conforme a visão universal de cada um), para que se possa lançar uma semente que frutifique e, desejamos, faça uma pequena diferença duradoura!

Os vossos amigos muito gratos

João Martel e Ana Maria Gala

(Brevemente vos informaremos do endereço do blogue que criámos para registar e relatar este ano de caminho. Fiquem atentos!)

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Nota do editor: