sexta-feira, 30 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17527: Tabanca Grande (440): Alfredo Roque Gameiro Martins Barata (1938-2017), ex-alf mil médico, CCAÇ 675 (Binta e Guidaje, 1964/66), nosso grã-tabanqueiro nº 747... Mais um camarada que não queremos que fique na vala comum do esquecimento


Cartoon > Homenagem ao ex-Alf Mil Médico Alfredo Roque Gameiro Martins Barata, da CCAÇ 675 (Binta e Guidaje, 1964/66), por parte do seu irmão, arquitecto, pintor e ilustrador José Pedro Roque Gameiro Martins Barata.

(Cortesia  do autor e do JERO -  José Eduardo Oliveira, ex-fur mil enf, da CCAÇ 675)


1. Aqui fica um comentário à morte do ex-alf mil  médico Alfredo Roque Gameiro Martins Barata, da CCAÇ 675 (Binta e Guidaje, 1964/66),  e uma sugestão, por parte do nosso editor-mor,  Luís Graça,  para que o seu nome passe doravante a figurar e a ser honrado na lista alfabética da nossa Tabanca Grande (*)... 

Pois que assim seja: o Alfredo Roque Gameiro Martins Barata (1938-2017) passará a ser o nosso grã-tabanqueiro n.º 747. (**)


JERO: antes de mais, aceita os meus votos de pesar pela morte, sempre prematura, de mais um bravo da Guiné. À família enlutada, transmite a nossa homenagem e o nosso apreço por este camarada, veterano, como tu, da CCAÇ 675, bem como o nosso pesar pela sua perda. 

Os furriéis enfermeiros como tu e os alferes médicos como o Alfredo Roque Gameiro Martins Barata,  a par dos 1.ºs  cabos aux enf que andavam connosco no mato, tinham, na Guiné, uma elevada cotação e eram camaradas particularmente respeitados e estimados. Sempre soubemos contar com vocês, pessoal de serviço de saúde militar, nas horas difíceis.

A vossa família maior, a CCAÇ 675, também está de luto. E com ela a Tabanca Grande. A ti, que és um talentoso escritor, e o porta-voz dos bravos da CCAÇ 675, já com perto de 140 referências no nosso blogue, deixa-me dizer-te que li, deliciado, este naco de prosa de primeira água que é a aventura e desventura da ida do Martins Barata de Binta até Bissau para apanhar o avião, e gozar as merecidas férias de um mês na metrópole. É um texto de antologia.

A preservação da memória do Martins Barata fica, deste modo, acautelada. Mas, na qualidade de fundador, administrador e "editor-in-chief" deste blogue, eu vou propor ao nosso incansável e sempre atento Carlos Vinhal que acrescente à lista dos nossos 746 grã-tabanqueiros o nome do Martins Barata. Vai diretamente para o nosso panteão onde estão já todos aqueles de nós que "da lei da morte se foram libertando". Penso que estou também a interpretar corretamente os sentimentos de toda a nossa Tabanca Grande. 


De resto, e como nós gostamos de dizer, com o nosso humor de caserna, "Não é o Panteão Nacional, é melhor, é... a Tabanca Grande"...

Carlos e Jero, são seis da manhã, estou na Madalena, Vila Nova de Gaia, e justamente também a ultimar a escrita da "oração fúnebre" que vou postar na página da família, "A Nossa Quinta de Candoz", e que gostaria, em nome da nome da família Carneiro, de eventualmente poder ler, no Tanatório de Matosinhos, a um sobrinho da minha mulher que morreu este fim de semana num brutal acidente na A41.  O Jorge Dinis (1962-2014), economista, gestor de empresas,  deixa viúva e duas filhas, estudantes, de 18 e 16 anos... e uma legião de amigos que iam desde o mundo da moda ao desporto automóvel.


Em suma, já não estamos em guerra, mas a morte continua a fazer parte das nossas vidas. Vamos ter que saber continuar a olhá-la, olhos nos olhos, ontem como hoje, e a tentar fintá-la. Mas quando cairmos, que haja sempre um ou mais camaradas que não nos deixe enterrar na "vala comum do esquecimento". Alguns dos "provérbios" que usamos aqui, reforçam a nossa vontade de continuar a lutar contra o esquecimento da nossa geração que soube fazer a guerra e a paz (***)
  • Ainda pior do que o inferno da guerra, é o inverno do esquecimento dos combatentes. 
  • Camarada não tem que ser amigo: é o que dorme no mesmo buraco, na mesma cama, no mesmo abrigo. 
  • Camarada, que a terra da tua Pátria te seja leve! 
  • In Memoriam: para que não fiques, pobre camarada, na vala comum do esquecimento. 
  • Não deixes que o teu espólio de memórias vá parar à Feira da Ladra. 
  • Não fazemos a História com H grande, mas a História não se fará sem a nossa... pequena história. 
  • O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande! 
  • Para que os teus filhos e netos não digam, desprezando o teu sacrifício: "Guiné? Guerra do Ultramar? Guerra Colonial? Não, nunca ouvi falar!"... 
  • Sempre presentes, aqueles que da lei da morte já se foram libertando. 
  • Tabanca Grande: onde todos cabemos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos separa 
  • Tuga, que Deus te livre da doença do... alemão.

PS -  O nosso camarada Alfredo Roque Gameiro Martins Barata  era um dos 4 filhos o casal de artistas plásticos Jaime Martins Barata e Maria Emília (Màmia) Roque Gameiro, filha do pintor e e desenhador Alfredo Roque Gameiro
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17511: In Memoriam (299): Dr. Alfredo Roque Gameiro Martins Barata (1938-2017), ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 675, Binta e Guidaje, 1964/66 (José Eduardo R. Oliveira)

(**) Último poste da série > 18 de junho de  2017 > Guiné 61/74 - P17484: Tabanca Grande (439): João Cerina, ex-Fur Mil da CCAV 1615/BCAV 1897, passou à disponibilidade em 1972 como Segundo-Sargento Miliciano, vive na Guiné-Bissau e é o 746.º Grã-Tabanqueiro da nossa tertúlia

Guiné 61/74 - P17526: Notas de leitura (973): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (1) Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
Não conheço na investigação da história da Guiné levantamento mais minucioso, ainda por cima para um período que não chega a 50 anos.
Um desastre militar em Bolor, no Norte da Guiné deixa os políticos de Lisboa siderados, dá-se a criação da província da Guiné Portuguesa, autónoma de Cabo Verde.

O ar do tempo é o da Conferência de Berlim, que se realizará anos depois: não há direitos históricos, quem quer ter colónias ocupa-as e administra-as. Assim se inicia numa atmosfera de turbulência, com levantamentos de diferentes etnias, a criação de uma capital em Bolama, surgem tensões graúdas com os franceses, os seus apetites não estão só no Casamansa, estão também no rio Grande.

Temos mais de 900 páginas para acompanhar as sagas ocorridas nesta sequência cronológica.

Um abraço do
Mário


A Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926, 
Por Armando Tavares da Silva (1)

Beja Santos

Dentre os mais importantes trabalhos historiográficos referentes à Guiné, é da mais elementar justiça pedir a atenção de todos os interessados para uma investigação de grande fôlego: “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016.

Que o leitor se previna: são mais de 960 páginas, uma belíssima apresentação gráfica, poder-se-á mesmo adjetivar que é inexcedível, um bom acervo fotográfico e um conjunto de mapas que facilitam a leitura de tão avultado miolo. O investigador escolheu aquele período peculiar que vai das primícias da autonomização da Guiné face a Cabo Verde até à chegada da Ditadura Nacional, correspondente na colónia a uma fase que prometia arranque económico, num quadro de uma certa pacificação, em que a administração colonial se estava a disseminar por pontos importantes no território.

O autor dá explicações para o seu trabalho: a escassez de estudos, a pretensão de dar a conhecer as razões que levaram as autoridades a empreender um conjunto de operações do foro militar que se sucederam no território durante dezenas de anos. A base principal do trabalho reside na documentação existente no Arquivo Histórico Ultramarino relativo à Guiné. Pretende igualmente o autor vincar a existência de dois grupos antagónicos que disputavam a vida económica e administrativa da Guiné.

E é na interrogação final com que termina o texto que se pretende marcar a existência de tal “problema” e, para ele, atrair a atenção do leitor. É de facto no termo do seu livro, que depois de abordar uma paz que tinha durado uns escassos 30 anos, a que se seguiria a eclosão da guerrilha que culminou na independência do Estado da Guiné-Bissau, que o autor questiona: “Seria o ressuscitar do conflito de interesses e das velhas tensões que estiveram na base das questões de Bissau de 1891, 1894 e 1915?”. A seu tempo, se procurará contestar tal questionamento, tanto no que respeita a existência dos dois grupos antagónicos como na inexistência de qualquer relação entre a guerrilha e o que se passara em poderosos conflitos havidos em Bissau, muitas décadas antes.

No capítulo introdutório, a súmula apresentada é sugestiva, tocando em aspetos essenciais: continua a não haver precisão quanto à data da chegada dos portugueses ao território do que foi a colónia da Guiné e é hoje a Guiné-Bissau; facto é que os portugueses estabeleceram relações com os potentados indígenas e que a partir da segunda metade do século XVI a presença portuguesa era um facto, ali se comerciava em concorrência com franceses, ingleses e holandeses. Os ingleses tudo tentaram para estabelecer feitorias na Guiné, privilegiaram Bolama, a colónia falhou rotundamente, o clima vitimou-os, ensaiaram continuar em Bolama houve que recorrer à sentença arbitral do Presidente dos Estados Unidos, Ulysses Grant.

Seguiram-se os franceses, nas suas cobiças no Casamansa, virão a ter sucesso nas suas pretensões na Convenção Luso-Francesa que definirá os traços essenciais da Guiné Portuguesa. E a Conferência de Berlim gerou um novo paradigma político: Portugal deixaria de se limitar a uma presença periférica, teria de conseguir uma ocupação efetiva, ter uma administração presente na colónia, cuidar do bem-estar das populações, zelar pela economia do território, pelas exportações.

 É dentro desta sequência cronológica definida pelo autor que estamos em 1878-1879, há uma visita do Governador-geral de Cabo Verde, o Ministro Thomaz Ribeiro recomenda ao Governador um plano de administração e a toma de medidas “que possam levantar aquele ubérrimo país do abatimento, do quase esquecimento em que tem jazido”.

O Governador responde com relatório, descreve detalhadamente o estado geral das fortificações de Bissau, Cacheu, Geba, Bolama, Colónia e Buba, havia os pequenos redutos de defesa em Ziguinchor, Farim, Bolor e ainda outros pontos. Sugere-se um pessoal militar à volta de um batalhão de caçadores com a força de 400 praças e uma companhia de artilharia com 100 praças europeias; havia ainda a considerar o apoio para uma força militar naval, composta de uma pequena canhoneira a vapor e três lanchões a vapor.

Em Bolor, no norte do território, tribos revoltadas tinham atacado e arrasado a população, havia incidentes no presídio de Geba e é neste contexto que ocorre em Dezembro 1878 o chamado desastre de Bolor, uma chacina que deixou os políticos de Lisboa em grande consternação, tomou-se a decisão de transformar a Guiné em província independente, o governo da província teria a sua sede na ilha de Bolama, transferiam-se de Cabo Verde para a Guiné um efetivo militar e o governo ficava autorizado a organizar uma bateria de artilharia para guarnecer as fortalezas da província da Guiné, bem como a adquirir alguns barcos de vapor.

O primeiro Governador da Guiné Portuguesa foi o Tenente-Coronel Agostinho Coelho, que toma posse em Bolama no início de Maio de 1879. É uma frase de organização do território em que a Guiné fica dividida em quatro concelhos administrados por oficiais militares, as sedes dos conselhos seriam Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola; o concelho de Bolama compreendia a povoação denominada “Colónia”, na ilha de Orango e todos os estabelecimentos de qualquer caráter oficial que viessem a existir no arquipélago dos Bijagós; o concelho de Bissau compreendia a vila de S. José e o presídio de Geba; o concelho de Cacheu incluía a praça e os presídios de Farim e Ziguinchor e as povoações de Mata, Bolor e outras desta última dependência; o concelho de Bolola compreendia Santa Cruz de Buba e todos os mais pontos que viessem a ser ocupados no rio Grande, não se escondia haver muitos pontos ocupados e de domínio duvidoso ou mesmo não existente.

O autor reporta às forças navais no início deste primeiro governo da província da Guiné, o surgimento de problemas com forças nativas, as pretensões territoriais francesas à volta do rio Grande, a sublevação de tropas e trata, a questão da Guiné como depósito de degredados. Inicia-se a delimitação da Guiné e avançam-se medidas para tratados que permitam mais harmonia entre o colonizador e o colonizado. Enquanto decorre esta tentativa de organização do território e se procura responder às pressões francesas, encetam-se esforços para a pacificação do Forreá que culminará com um tratado de paz. Mas os problemas de pacificação estavam para durar, houve levantamento dos Beafadas de Jabadá, chegou-se a um compromisso.

Em 1881, Agostinho Coelho cede a governação a Pedro Ignácio de Gouveia.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17513: Notas de leitura (972): “A Colonização Portuguesa da Guiné 1880-1960”, por João Freire, 2016, edição da Comissão Cultural da Marinha (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17525: Parabéns a você (1280): Manuel Maia, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17521: Parabéns a você (1279): José Firmino, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71) e Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil, Pel Mort Ind 912 (Guiné, 1964/66)

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17524: Facebook...ando (46): o pesadelo da... festa do carneirinho (Joaquim Peixoto, prof ensino básico, reformado, Penafiel; ex-fur mil MA, CCAÇ 3414, "Os Falcões de Sare Bacar", Bafatá e Sare Bacar, 1971/73)





Penafiel > Corpo de Deus - Festa das Cidade de Penafiel > Cortejo do Carneirinho > 14 de junho de 2017 > O senhor professor Joaquim Peixoto convidou os seus ilustres amigos e camaradas para assistirem ao lindo cortejo e inteirarem-se desta tradição, única no País, "com a promessa de seguidamente rumarmos ao 'Ramirinho' para saborearmos o que de bom há nesta região"...

Fotos e texto: Página do Facebook do nosso camaradas Joaquim Carlos Rocha Peixoto [professor do ensino básico reformado, residente em Penafiel, ex-fur mil inf MA, CCAÇ 3414, Os Falcões de Sare Bacar (Bafatá e Sare Bacar, 1971/73, régulo da tabanca de Guilamilo, freguesia de Polvoreira, concelho de Guimarães].
O casal Peixoto, ambos professores do ensino
básico, reformados, dois dos nossos grã-tabanqueiros:
ele, Joquim, ela, Margarida.
Foto do Manuel Carmelita (2010)

1. Penafiel > O Pesadelo... do Dia do  Carneirinho

por Joaquim Peixoto


Hoje acordei mais cedo e um certo nervoso tomou conta de mim. Sim, era o dia do carneirinho, mas eu já o recebo há tantos anos que não sei por que motivo estou nervoso.

A verdade é que convidei alguns amigos para virem apreciar este cortejo. Queria que os meus amigos, tudo pessoas ilustres, vissem o carneirinho que os meus alunos me iam oferecer. O grupo de amigos era composto por um ilustre escritor, com alguns livros publicados, três fotógrafos (um deles fotojornalista desportivo), um Presidente de um Bando, um ex-enfermeiro, outros que vinham por curiosidade e outros que vinham “ só “ para comer.

Queria que os meus amigos ouvissem os meus alunos a gritarem bem alto:
- Viva o Professor Peixoto!!!

Como estava a dizer, levantei-me cedo e fui para as ruas de Penafiel escolher o melhor local para ver o desfile. Ainda o trânsito não estava interrompido e as ruas muito desertas. Passado muito tempo começaram a aparecer os meus amigos. Escolhemos um local estratégico. Finalmente o desfile dos alunos com os carneirinhos ia começar. À frente vinha a Serpe e os bombos. Embora o barulho fosse ensurdecedor lá expliquei aos amigos o que era e representava a Serpe.

Passaram, em primeiro lugar, os alunos dos infantários. Carneirinhos muito bem enfeitados e os miúdos a darem “ vivas “ às Educadoras de Infância.

Iam passando os carneirinhos. Uns iam em carros de supermercados, outros em tractores engalanados com bandeiras e flores. Cada vez que passava um carneirinho bem enfeitado, eu dizia para os amigos:
- Quando vier o meu, vão todos ficar admirados.

Passaram os alunos do meu amigo Carlos Rocha. O carneirinho ia muito bem ornamentado. Os fotógrafos não paravam de tirar fotos. Eu ia avisando:
- Não gastem o rolo todo. Esperem que venham os meus alunos.

Não valeu de nada este meu aviso. Continuavam a fotografar tudo. O cortejo ia passando há muito tempo, e os meus alunos não apareciam com o animal. Comecei a ficar preocupado. Cartazes a falarem dos Professores José, Isabel Laura, Miguel etc… Do Professor Peixoto … nada.

Passou o último… As lágrimas vieram-me aos olhos. Estava desanimado e envergonhado. Desanimado por não ver os meus alunos a compreenderem o meu trabalho. Envergonhado, porque o que iriam dizer os meus amigos. Tentaram animar-me. Dizia um:
- Talvez o carneiro tenha fugido e os alunos andem a procurá-lo.

Logo outro dizia:
- Devem-se ter enganado no caminho e ido para outro lado.

Um enfermeiro das Medas queria dar-me uma “pastilha” para me acalmar. Nada disto me animava até que veio o Zé Manel da Régua com a piadinha do costume:
- Seria o Cancela que o apanhou?!!!

Não gostei nada da piada. O amigo Cancela não era capaz de me roubar o carneirinho (*). Ele não estava na Guiné. Para me animarem iam-me dando palmadas nas costas. Uma, talvez fosse com mais força chamou-me a atenção e ouvi a minha mulher a dizer:
- ACOOOOORDA!!!. Estás a ter um pesadelo!

Acordei. Claro que tinha que ser um pesadelo. Já estou reformado há seis anos. Virei-me para o outro lado para tentar dormir. Não conseguia adormecer. Porque seria? Levantei os olhos. Olhei para o relógio da mesinha de cabeceira: onze horas da madrugada. (**)

2. Nota do editor:

Segundo a página oficial da Câmara Municipal de Penafiel,  "o cortejo do Carneirinho, tradição única no país, que remonta ao ano de 1880, [marca] o início das festas da cidade [, que são na semana do feriado no Corpo de Deus], onde centenas de crianças, de várias escolas do 1.º ciclo do concelho, [percorrem] as avenidas principais da cidade. Cada turma leva consigo o seu carneirinho, enfeitado, que por sua vez, será oferecido ao seu Professor, como sinal de gratidão e respeito. O cortejo concentrar-se-á no Largo Conde Torres Novas, vulgarmente designado por Campo da Feira, percorrendo depois as principais ruas da cidade, enchendo de cor e alegria o primeiro dia de comemorações da festa da cidade."
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17438: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (43): O Zé Manel dos Cabritos e os amigos invejosos

Guiné 61/74 - P17523: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (1): Até à pág. 14 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)


Guiné > Bissau > Fortaleza da Amura > 1908 > "Bissau: Soldados em grupo dentro da fortaleza"... Foto proveniente do Arquivo Histórico Militar, que nos chegou pela mão do nosso camarada Carlos Cordeiro, açoriano,  professor universitário. Ainda hoje a fortaleza está coberta de poilões centenários como este, seguramente contemporâneos das "campanhas de pacificação" da Guiné, do 1.º Tenente Oliveira Muzanty (1908) e do capitão Teixeira Pinto (1913-1915).

Foto: Arquivo Histórico Militar  (com a devida vénia...)


Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > c. 1970 > Parque da cidade com a estátua de Oliveira Muzanty e, ao fundo, a Casa Gouveia, dois símbolos do "colonialismo"... A estátua foi apeada (e provavelmente destruída) depois da independência da Guiné-Bissau. "Estupidamente", acrescente-se... Não há história sem memória, e a história da Guiné-Bissau, não começou com a "gloriosa luta" do PAIGC contra os "tugas"... Oliveira Muzanty e todos os "tugas", colonialistas e anticolonialistas, fazem parte da história da Guiné-Bissau. Tal como as legiões romanas, o direito romano e o latim fazem parte da história de Portugal e da identidade dos portugueses... Todos os iconoclastas são fundamentalistas e terroristas... Porque, afinal, só há uma terra e uma humanidade... O esclavagismo, o colonialismo, o fascismo, o nacionalismo, o chauvinismo, e todos os demais ismos, incluindo o racismo e a estupidez dos iconoclastas, não têm pátria...

Foto: © Benjamim Durães (2011). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada, o "veteraníssimo" Alberto Nascimento [na foto à direita] (ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (Bambadinca, 1961/63), enviou-nos um pequeno livro, em formato PDF, datado de 1937, de autoria do 2.º Sargento reformado António dos Anjos, para publicarmos no nosso Blogue.

Trata-se de um opúsculo que tem um título do tamanho de um comboio ("Resumo do que era a Guiné Portuguesa e há vinte anos e o que é hoje:  para cujo progresso muito contribuiu o capitão de infantaria João Teixeira Pinto", 97 pp. ).

O ficheiro que nos chegou é proveniente da digitalização de uma cópia pessoal que está nas mãos do Alberto Nascimento e que lhe terá sido entregue por um familiar, um amigo ou simples conhecido do autor, já falecido, António dos Anjos, um transmontano de boa cepa, como muitos dos militares que por andaram nesta época.

Trata-se de uma edição de autor. O livro foi impresso na Tipografia Académica, Bragança. Os acontecimentos relatados por ele remontam às "campanhas de pacificação" dos princípios do séc. XX. Não sabemos em que ano o autor terá morrido. Terá nascido por volta de 1890, a ser vivo teria agora quase 130 anos. Em 1953, ainda estaria vivo, tendo publico um livrinho de versos: "Campanhas, resistências na Guiné: heroicidades" (ed. autor, Bragança, tip Académica).

Depois de ponderados os prós e os contras, e não são sabendo ao certo se a obra é do domínio público, decidimos a sua publicação no nosso blogue, baseados no seguintes pressupostos e fundamentos:
(i) a obra foi há publicada há 80 anos, mas o autor deve ter morrido há menos de 70;
(ii) os nossos leitores (e nomeadamente os camaradas que fizeram a dura guerra da Guiné entre 1961 e 1974) têm o "direito" de conhecer este livrinho;
(iii) o autor, que é um camarada nosso, mais velho, quis publicamente fazer uma homenagem a um português, o Cap Inf Teixeira Pinto, sob cujas ordens serviu; e
(iv) o 2.º Sargento António dos Anjos, reformado à data da publicação deste seu livrinho de memórias, viveu 25 anos na Guiné, conheceu-a, de palmo a palmo, é credor do nosso apreço e admiração.

Para o efeito vamos publicar 10 postes com uma média de 9 páginas em formato JPG.

Agradecemos ao camarada Alberto Nascimento a possibilidade de dar a conhecer e divulgar desta obra já com 80 anos, esperando que desperte a atenção (e os comentários) dos nossos leitores.

O editor,
Carlos Vinhal

PS - Síntese: o autor oferece-se para uma comissão de serviço de dois anos na colónia da Guiné e acaba por lá ficar 25 anos. Desembarca em Bissau em 29/3/1911. Na altura, havia uma surto de febre amarela que terá feito bastantes vítimas. Nas 15 primeiras páginas, recapitula, de memória, algumas das principais rebeliões dos povos da Guiné desde 1844 até às "campanhas de pacificação" dos finais da monarquia e princípios da República. O paciente e conhecedor leitor irá, por certo, identificar facilmente e desculpar algumas gralhas, erros e imprecisões: por exemplo, topónimos (Bafatá e não Rafatá, p. 9), onomástica (Muzanty e não Mozanti)...

Recorde-se que nesta época, estava  à frente dos destinos da província o Governador João Augusto de Oliveira Muzanty (1906-1909), 1.º Tenente da Marinha. Sobre as campanhas de Oliveira Muzanty, nos anos de 1907-08, vd., aqui texto do José Martins.



(Continua)

Guiné 61/74 - P17522: (De) Caras (81): O fur mil inf Hércules Arcádio de Sousa Lobo, natural da ilha do Sal, Cabo Verde, foi gravemente ferido pelo primeiro fornilho acionado no CTIG, às 9h00 do dia 3 de julho de 1963, na estrada São João-Fulacunda, vindo a morrer no HMP, em Lisboa, no dia 16, devido às graves queimaduras. Eu era o comandante da coluna (António Manuel de Nazareth Rodrigues Abrantes, ex-alf mi inf, CCAÇ 423, São João e Tite, 1963/65)


Guiné > Zona de Quínara > Tite > BCAÇ 237 (Tite,  julho de 1961/outubro de 1963) > CCAÇ 423 (São João e Tite, abril de 1963/  abril de 1965) > O estado em que ficou a GMC sinistrada devido ao rebentamento de um  fornilho na estrada entre Nova Sintra e Fulacunda, em 18 de julho de 1963, qual vitimou  o tenente mil inf Carlos Eduardo Afonso de Azevedo, natural de Angola. Pertencia à CCAÇ 423.

Quinze dias antes, a 3 de julho de 1963, tinha sido aciocinado, no mesmo troço, o primeiro fornilho da história da guerra na Guiné, de que uma das vítimas foi o fur mil inf Hércules Arcádio de Sousa Lobo, natural da ilha do Sal, Cabo Verde, também da CCAÇ 423.

A CCAÇ 423 foi mobilizada pelo RI 15, esteve em São João e Tite, entre abril de 1963 e abril de 1965. Comandante: cap inf Nuno Gonçalves Basto Machado. Esteva adida ao BCAÇ 237 (Tite, julho de 1961 / outubro de 1963)

Foto : Cortesia de; © Sol da Esteva  editor do blogue Acordar Sonhando (2011). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Canmaradas da Guiné]



1. Comentário (*)  do ex-alf mil António Abrantes, da CCAÇ 423  (São João e Tite, 19763/75):

Data: 27 de junho de 2017 às 23:12

Assunto: Luís Graça & Camaradas da Guiné: Guiné 63/74 - P9507: Em busca de... (184): Camaradas do Fur Mil Hércules de Sousa Lobo, natural da ilha do Sal, Cabo Verde, gravemente ferido pelo primeiro fornilho acionado no CTIG, em julho de 1963, na estrada São João-Fulacunda (Maria Luísa Sousa Lobo)

Enviado do meu iPad

Gostaria de poder entrar em contacto convosco mas não tenho conseguido e isto especialmente no que respeita à primeira mina/fornilho colocada na Guiné, mais concretamente em Bianga, a poucos kms de Fulacunda, na estrada S.João - Nova Sintra - Fulacunda. 

Infelizmente era eu, ex- alferes miliciano, António Manuel de Nazareth Rodrigues Abrantes, o comandante da força da CCAÇ 423, sediada em S. João, que, no regresso da deslocação a Fulacunda, sofreu este rebentamento, mais ao menos no mesmo local onde na véspera tinha sido emboscado debaixo de uma forte chuvada.

 O rebentamento ocorreu às 9h00 do dia 3 de julho de 1963, debaixo do depósito de uma GMC e vitimou vários militares do meu pelotão, entre eles o furriel miliciano inf Hércules Arcádio de Sousa Lobo, que viria a falecer cerca de 13 a 15 dias depois em Lisboa [, mais exatamente em 16 de julho de 1973], devido às graves queimaduras sofridas.  (**)

O relatório desta operação foi, como é óbvio, enviado para o Comando do Batalhão estacionado em Tite [BCAÇ 237]. Posteriormente e já vários anos depois enviei cópia para a Liga dos Combatentes da qual sou sócio. 

A propósito de Tite, a foto da GMC que dizem ser da primeira mina é tirada em Tite, é da segunda mina, a qual vitimou [, em 18 de julho de 1963]  o tenente mil inf Carlos Eduardo Afonso de Azevedo. Isto porque esta [GMC]  tinha capota de lona pela qual foi projectado o referido tenente que, contrariamente ao referido, não faleceu no local mas sim em Tite. (***)

A GMC da primeira mina [, 3 de julho de 1963,]  tinha capota rígida sobre a qual eu havia mandado instalar uma metralhadora Breda.. 

Um Grande Abraço a todos os camaradas,
António Abrantes
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Notas do editor:


(...)  José Marcelino Martins disse...

Furriel Miliciano Atirador Hérculçes Arcádio de Sousa Lobo
:  Mobilizado no Regimento de Infantaria nº 15 - Tomar, para a Companhia de Caçadores nº 423. Solteiro, filho de Emídio Sousa Lobe e Cacilda Sousa Lobo, natural da freguesia de Nossa Senhora das Dores, concelho do Sal, em Cabo Verde. Faleceu no Hospital Militar Principal, em Lisboa, no dia 16 de Julho de 1963, vitima de ferimentos em combate, provocados pela explosão de um fornilho em 3 de Julho de 1963, na estrada Nova Sintra - Fulacunda. Foi inumado no cemitério do Alto de São João.

(CECA- 8º volume - livro 1 - página 31/3) (...)


Abreu dos Santos (senior) disse...

... ajudas de memória: (...) deflagração de um fornilho que causa às NT duas baixas mortais instantâneas (Soldados apontadores-de-metralhadora Alberto dos Santos Monteiro e José Isidro Marques), e cinco feridos graves pouco depois heli-evacuados para o HM241- Bissau, onde ainda naquele mesmo dia vem a falecer o 1º Cabo Ap Met António Augusto Esteves de Magalhães; os outros três feridos graves são aerotransportados para o HMP-Estrela, onde dois sucumbem aos graves ferimentos, em 16Jul63 o Furriel miliciano Atirador Hércules Arcádio de Sousa Lobo, e em 20Jul63 o Soldado Atirador Alpoím Pereira Rodrigues.

Na 5ª feira 18Jul1963, um pelotão daquela mesma subunidade, comandado pelo Tenente miliciano de infantaria Carlos Eduardo Afonso de Azevedo, quando em deslocação-auto entre Tite (sede do BCac237) e Nova Sintra, é alvo da deflagração de outro fornilho que causa às NT a morte instantânea do citado oficial, e do Soldado Ap Met José Rato Casaleiro, e ferimentos graves ao Soldado Ap Met Joaquim da Silva Bento Jorge, heli-evacuado para o HM241 onde vem a falecer decorridos onze dias. (..:) 


Guiné 61/74 - P17521: Parabéns a você (1279): José Firmino, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71) e Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil, Pel Mort Ind 912 (Guiné, 1964/66)


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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17516: Parabéns a você (1278): Vítor Caseiro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4641 (Guiné, 1973/74)

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17520: (De) Caras (80): Maria Sofia Pomba Guerra (1907- c.1970), mais uma "desterrada política", tal como Fausto Teixeira, elogiada pelos históricos dirigentes do PAIGC

1. O nome de Fausto Teixeira parece estar hoje esquecido (espero bem que não esteja proscrito ...), ao não contar da lista dos "antifascistas da resistência"... Pelo menos não aparece na lista das 600 personalidades que constam, como tal,  no respetivo blogue e na respetiva página do Facebook (" notas biográficas de cidadãs e cidadãos que lutaram contra o fascismo e o colonialismo").

Provavelmente falta-lhe um biógrafo ou um "advogado", mesmo que oficioso... Mas o mesmo acontece com outros dos seus companheiros de desventura:  de facto, também não contam dessa lista os nomes de Gabriel Pedro (1898-1972) (igualmente desterrado para a Guiné e depois para o Tarrafal, tal como o seu filho Edmundo Pedro) e de Manuel Viegas Carrascalão (1901-1977) (operário gráfico, anarcossindicalista, preso sob a acusação de bombismo e de pertencer,  tal como Fausto Teixeira e Gabriel Pedro, à "Legião Vermelha", acabando por ser desterrado para Timor em abril de 1927, no navio "Pêro de Alenquer", numa viagem que vai demorar  5 meses, com passagem por Cabo Verde, Guiné, onde desembarcam alguns deles e entram outros, e Moçambique onde é rendido o comandante do navio.). 

Admite-se que, no caso do Fausto Teixeira, a omissão do seu nome  seja  devida, pura e  simplesmente, ao facto de lhe terem perdido rasto, desde que, com 25 anos, foi desterrado para a Guiné, em 1925, não pelo "fascismo" da Ditadura Militar / Estado Novo mas pela I República. 

De qualquer modo, a Guiné e  Timor era dois dos piores sítios do nosso glorioso Império para onde o Estado mandava os desgraçados dos "desterrados políticos", sendo ali entregues à sua sorte. Para este inferno, que eram estas duas colónias, iam em geral os indivíduos de profissões manuais ou, no caso de militares, os soldados e os marinheiros. 

Até no exílio e deportação, todos eram iguais mas uns eram mais iguais do que outros.
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[Foto acima: Maria Sofia Carrajola Pomba  Amaral da Guerra, cortesia do blogue "Silêncios e Memórias", editado por João Esteves]


2. O nome de Fausto Teixeira (ou Fausto da Silva Teixeira] aparece associado ao de Maria Sofia Carrajola Pomba [Amaral da Guerra, por casamento], sobre a qual colhemos as seguintes informações, a partir dessa página do Facebook e outras fontes na Net:

(i) nasce a 18 de julho de 1906, em São Pedro, Elvas, distrito de Portalegre (terra igualmente de uma militante pioneira do feminismo, a médica Adelaide Cabete, 1867-1935);

(ii) licencia-se em Farmácia pela Universidade de Coimbra, no princípio dos anos 30 (no ano lectivo de 1926/27, está no 2º ano, segundo apurámos por conta própria);

(iii)  a partir de meados da década de 30, vai para Moçambique [deve ter sido em 1933:
vd. GUERRA, Maria Sofia Pomba - Dois anos em África / Maria Sofia Pomba Guerra. - : Ed. do Autor, 1935. - XIII, 206 pp.]

(iv) em Lourenço Marques, publica alguns estudos sobre frutos silvestres e produtos exportáveis, é analista no Hospital Miguel Bombarda, lecciona na Escola Primária Correia da Silva, onde tem como aluno o poeta, jornalista e activista moçambicano Rui Nogar (1932-1993);

(iv) terá aderido ao PCP - Partido Comunista Português, em Lourenço Marques, por intermédio de um  ferroviário, o  Cassiano Carvalho Caldas [1915-c..2002/03, ], no final da década de 1930 ou princípios de 1940;

(v) mantém naquela cidade do Índico uma  militância activa, colabora nos jornais "Emancipador" e a "Itinerário", publicação editada entre 1941 e 1955, participa entre 1947 e 1948, na construção de uma estrutura comunista local [Fonte: José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal, vol. 3] e desenvolve, juntamente com Noémia de Sousa, actividades no âmbito do Movimento dos Jovens Democratas Moçambicanos, versão local do MUDJ da metrópole, integrando a direcção;

(vi) em 1949, torna-se na primeira mulher branca a ser presa e deportada para a metrópole: apresentada na PIDE em 23 de novembro de 1949, fica detida em Caxias até 4 de julho de 1950; será então libertada por ordem do Tribunal Plenário de Lisboa, por ter sido absolvida;

(vii) parte a seguir  para Cabo Verde, onde se junta ao marido, médico,  colega de Coimbra [ Platão Zorai do Amaral Guerra] e dali para a Guiné, onde vem a ser proprietária da Farmácia Lisboa;  ensina inglês no Liceu de Bissau (acabado de fundar) [não fica claro se vem para a Guiné como "deportada" ou se de livre vontade...];

(viii) em Bissau, vai procurar reatar a sua actividade política, juntamente com o empresário Fausto Teixeira e o médico Gumercindo de Oliveira Correia: segundo Pacheco Pereira [Álvaro Cunhal, vol. 3];

(ix)  Sofia Pomba Guerra era vigiada pela PIDE (instalada em Bissau a partir de 1957), que sabia que a farmacêutica recebia e fazia circular revistas comunistas francesas e panfletos portugueses, procurando mesmo organizar células comunistas no seio da população trabalhadora urbana (incluindo o incipiente operariado);

(x) o seu apoio, ao embrionário nacionalismo independentista, é reconhecido pelos históricos dirigentes do PAIGC  que não poupam elogios ao seu papel na luta anticolonialista, nomeadamente no auxílio à organização clandestina de reuniões, na prestação de informações relevantes sobre prisões iminentes, como a de Carlos Correia, e na preparação de fugas, como a de Luís Cabral (auxiliado também por Fausto Teixeira);

(xi) está associada, em 1958, à fundação do Movimento de Libertação da Guiné (MLG) (mais moderado que o PAIGC, defendendo uma solução de tipo federalista entre a Guiné e Portugal);

(xii) na sua farmácia trabalham destacados futuros combatentes do PAIGC como Epifânio Souto Amado e Osvaldo Vieira (este, um dos principais combatentes do PAIGC, morto em 1974, mas igualmente suspeito de envolvimento no complô contra Amílcar Cabral que levaria ao seu assassinato em 20/1/1973);

(xiii) Amílcar Cabral [Bafatá, 12/9/1924-Conacri, 20/01/1973], com quem Sofia convive na década de 50, no discurso pronunciado num Seminário de Quadros do PAIGC, efectuado entre 19 e 24 de novembro de 1969, refere-se à contribuição de dois brancos [Fausto Ferreira e Sofia Pomba Guerra]  na fuga de Luís Cabral da capital guineense, afirmando explicitamente que “uma pessoa que teve influência no trabalho do nosso Partido em Bissau, foi uma portuguesa", e acrescentando: "só quem não está no Partido é que não sabe isso. Ao Osvaldo, a primeira pessoa que lhe ensinou coisas para a luta, foi ela, não fui eu. Eu não conhecia o Osvaldo” [Amílcar Cabral, Alguns Princípios do Partido, pp. 21-22];

(xiii) mais tarde, Luís Cabral, nas suas memórias, a Crónica de Libertação [1984], evoca os contactos que manteve com esta “deportada para a Guiné", com a ficha na PIDE e a indicação de se tratar de "um elemento altamente perigoso”:  e acrescenta:  “embora vigiada pela polícia política, cujo chefe veio morar mesmo em frente da sua casa, retomou na primeira oportunidade as suas actividades políticas”;

(xiv) relaciona-se com Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Fernando Fortes, Luís Cabral, a quem dá lições de Inglês do 7.º ano do liceu, e muitos outros;  “apesar da posterior separação da actividade anticolonialista do movimento geral antifascista, a dr.ª Sofia Pomba Guerra continuou, como no passado, a ser a amiga e conselheira de cada um de nós” [idem]; foi ela quem apresentou Aristides Pereira a Amílcar Cabral quando este chega à Guiné no início dos anos 50;

(xv) o rótulo de "desterrada política antifascista e comunista" (sic) acompanha-a por todos os locais por onde passa  mas isso nunca a impedirá de intervir politicamente e manter-se fiel às suas ideias;

(xvi) morre sem chegar a ver a  independência, da Guiné-Bissau,  em data que não sabemos precisar, talvez no início da década de 70;

(xvii)  muito mais tarde, Luís Cabral terá reencontrado em Portugal o marido, o dr. Guerra, “que parecia estar sempre muito distante das actividades da esposa, [mas] era um grande patriota e democrata português que encorajava e apoiava essa actividade” [idem], com a filha mais nova Tafia;

(xviii) é autora de várias publicações  de natureza económica e científica, em Moçambique, outras: “Fruta de Moçambique” (1936), “Alguns frutos silvestres de Moçambique” (1938), “Alguns produtos exportáveis de Moçambique e os seus mercados externos” (1939);

(xviii) colaborou ainda  com o Centro de Estudos Culturais da Guiné Portuguesa:  vd.  GUERRA, Maria Sofia Pomba - Amendoim e palmeira do azeite : pilares económicos da Guiné portuguesa / Maria Sofia Pomba Guerra. In: Boletim cultural da Guiné portuguesa. - Vol. VII, nº25 (1952), p.9-83.
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Fonte: Adapt.com a devida vénia, do blogue "Silêncios e Memórias", editado por  João Esteves > 12 de junho de 2015 > [0998.] Maria Sofia Carrajola Pomba Amaral da Guerra [I]

Vd. também a nota biográfica da autoria de historiador João Esteves com colaboração de Helena Pato, sendo a fotografia,  acima publicada, enviada ao João Esteves por uma das netas da biografada, Maria Leonor Guerra Rodrigues Eisman > Página do Facebook Antifascistas da Resistência.
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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17512: (De) Caras (86): Francisco Augusto Regalla (1871-1937), médico militar: a história de uma família ou de um clã (Juvenal Amado / Manuel Coelho / Armando Tavares da Silva / Patrício Ribeiro / Ricardo Regalla Dias-Pinto)

Guiné 61/74 - P17519: Os nossos seres, saberes e lazeres (219): São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (8) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 14 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Não há bem que sempre dure, mas dá satisfação fazer-se este relatório sobre um sonho realizável e realizado, aqui cheguei como aspirante a oficial miliciano, dei duas recrutas, fiz amizades inquebrantáveis, tenho permanentemente vontade de regressar, posso testemunhar, com tanta visita, como São Miguel se desenvolveu e é uma pérola do turismo à escala mundial.
Foi um último dia de viagem bastante longo, graças ao meu amigo Mário Reis pude contemplar essa jóia da natureza que é a Lagoa do Fogo e antes de chegar ao aeroporto ainda voltei à Ribeira Grande, bastante irreconhecível, com exceção do seu belíssimo património arquitetónico religioso e civil.

Um abraço do
Mário


São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (8)

Beja Santos

O viandante está no último dia da sua itinerância micaelense. Graças à generosidade de um amigo de longa data, Mário Reis, o defensor dos consumidores mais conhecido da região, conta com um passeio que o conduzirá a um dos locais mágicos da ilha, a Lagoa do Fogo. Antes porém, ao raiar da aurora já se pôs a caminho para ir visitar um dos belos jardins de Ponta Delgada, desta feita o escolhido foi o jardim que circunda o palácio dos marqueses de Jácome Correia, hoje sede da Presidência do Governo Regional dos Açores.
Belíssimo jardim, uma amostra eloquente de toda a flora endémica e importada, mete palmeiras, criptomérias, azálias, e tudo mais. Deu para ficar especado a ver os trabalhos de jardinagem, feitos com imenso desvelo. Poucas flores naquele início de Fevereiro, mas impressiona a imensidão exuberante do verde, os belos caminhos, tudo tratado a preceito, como se pode ver.




Aqui viveu uma mulher espantosa, belíssima e infeliz nos seus amores e desamores, Margarida Jácome Correia, com ligações que deram brado, sobretudo a dois intelectuais de alto gabarito, Armando Côrtes Rodrigues e Vitorino Nemésio. Escreveu as suas memórias biográficas “Os amores de uma cadela pura”, desnudou-se ao limite das convenções da época, a sua autenticidade custou-lhe o ostracismo.


Hoje, a rede de estradas facilita a vida do turista quando vai de Ponta Delgada até à Lagoa do Fogo. Diga-se em abono da verdade que o viandante recorda com saudade passeios semelhantes dados nos últimos cinquenta anos envolvendo locais paradisíacos como a Serra de Água de Pau, o Pico da Barrosa e depois a descida até à Caldeira Velha, como hoje vai acontecer. No entanto, temos a neblina a dificultar as panorâmicas, lá se vai subindo a estrada sinuosa até chegar a esse local onde se desfruta uma das visões mais intensas, marcadas pelo vulcanismo adormecido. A última erupção data de meados do século XVI, a Lagoa fica lá bem no fundo, pertence à Rede Natura, está muitíssimo bem conservada, é flora e fauna harmoniosamente conjugadas, por ali passeiam-se umas aves que formam um concerto apropriado. Olhamos para o relógio, toca de partir para a Caldeira Velha, este passeio dos 50 anos ainda tem mais etapas à frente, caso da paragem pela Ribeira Grande.



Cá vamos a caminho da Caldeira Velha, anda-se um bom bocado até se chegar ao banho quente, hoje altamente frequentado. Não há transportes públicos, ou carro ou via pedestre é que asseguram o acesso a este exotismo floral, vale a pena estar para aqui especado a ver estas feridas de água, as pastas borbulhantes da lama vulcânica, os trilhos aliciam os amantes da natureza a passarem horas sem fim neste santuário verde e de águas quentes.



(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17497: Os nossos seres, saberes e lazeres (218): São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (7) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 27 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17518: Antologia (76): "O Correio durante a guerra colonial", por José Aparício (cor inf ref, ex-cmdt da CART 1790, Madina do Boé, 1967/69)... Homenagem ao SPM - Serviço Postal Militar, criado em 1961 e extinto em 1981.


Um aerograma expedido pelo nosso camarada Silvério Dias, na altura 2º srgt art, CART 1802, Nova Sintra, 1967/69, SPM 4618 [e depois 1º Srg Art, locutor do PFA, Bissau QG/CTIG, 1969/74], para a esposa, a residir em Carnide, Lisboa.

Os indicativos postais tinham 4 dígitos. No caso da Guiné, terminava sempre em 8 (oito).

Foto: © Silvério Dias (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Em agosto de 1961, foi aprovado o celebre "aerograma", considerado um impresso-carta, isento de porte e de sobretaxa aérea, e que era constituído por 1 folha de papel com o peso máximo de 3 gramas, dobrável em 2 ou 4 partes, mas de forma que as suas dimensões depois da dobragem não excedessem os limites máximos de 150 x 105 mms, e mínimos de 100x70 mms. Dele apenas podia constar o nome, posto, e número e o indicativo de SPM atribuído. 

Na Guiné, o aerograma era carinhosamente conhecido como "bate-estradas" ou "corta-capim".

No final da guerra, o Movimento Nacional Feminino, criado também em 1961, tal como o SPM, estava a imprimir e distribuir 32 milhões de aerogramas por ano. Durante os anos de guerra a expedição média diária foi de 10 toneladas de correio (!!!) para um total transportado de 21 mil toneladas (incluindo aerogramas, cartas, encomendas postais, valores declarados...).

O SPM terá sido um dos serviços militares que melhor funcionou durante toda a guerra colonial... 

Achamos oportuno reproduzir aqui, nesta série antológica, um texto da autoria do cor inf ref José Aparício, de resto nosso camarada na Guiné, na qualidade de comandante operacional da CCAÇ 1790, a subunidade que retirou de Madina do Boé em 6/2/1969 e que, na travesssia do rio Corubal, em Cheche, perdeu 25 dos seus homens (Op Mabecos Bravios).

José Aparício foi cmdt da PSP de Lisboa, a seguir ao 25 de Abril.


2.  O Correio durante a Guerra Colonial 

por José Aparício  [cor inf ref, ex-cmdt CCAÇ 1790, Madina do Boé, 1967/69]

[com a devida vénia ao portal Guerra Colonial 1961-74, da A25A - Associação 25 de Abril];  revisão e  fixação de texto: LG]


Com a deslocação para África de grandes efectivos militares a partir de 1961, as Forças Armadas Portuguesas foram confrontadas com a necessidade óbvia de fazer chegar "O Correio" a todos os locais onde estivessem estacionadas unidades militares. Naturalmente, a grande maioria das forças do exército encontrava-se dispersa no mato em grandes áreas, onde não havia estações dos correios normais, muitas vezes em locais isolados e inóspitos, alguns de muito difícil acesso.

Do antecedente o Exército Português tinha a experiência vivida na Flandres durante a 1ª Grande Guerra, quando foi criado, aprovado, e posto em execução o "Regulamento do Serviço Postal do Corpo Expedicionário Português - CEP" que serviu as tropas portuguesas em França em 1917 e 1918.

No final dos anos 50 início da década de 60, houve necessidade de tornar operacional a Chefia do Serviço Postal da Divisão quando o Exército constituiu e tornou operacional a divisão "Nuno Álvares" integrada no SHAPE. O activar deste serviço nas grandes manobras que então ocorriam durante todo o mês de Setembro em Santa Margarida, e que envolviam cerca de 10,000 militares, aconteceu nas manobras de 1960.

Para exercer as funções de chefia desse serviço postal, o Estado Maior do Exército requisitou aos serviços dos Correios um seu funcionário qualificado que graduou em Capitão, e que desempenhou com toda a eficiência a sua missão. Terminadas as manobras este quadro dos CTT regressou à sua anterior situação.

Quando em 23 de Junho de 1961 foi decidido criar um serviço de correios militar, o general Câmara Pina, Chefe do Estado Maior do Exército [CEME], requisitou de novo aos CTT o mesmo funcionário a quem, depois de graduar de novo em capitão, encarregou expressamente de organizar e pôr em funcionamento um Serviço Postal Militar no Ultramar. Nasceu assim o Serviço Postal Militar (SPM) tendo sido o seu primeiro responsável e Chefe do Serviço o capitão miliciano graduado Ernesto Lourenço Dias Tapadas, que até ao fim desenvolveu um trabalho notabilíssimo.

Aproveitando a experiência adquirida pelo Exército português na 1ª Grande Guerra, adaptou o que achou por conveniente, percebeu rapidamente todo a problemática envolvente, e estabeleceu o seu plano de acção eliminando com muita habilidade e diplomacia todas as dificuldades que foram surgindo com os 2 colossos monopolistas, que eram os CTT Continentais e os CTTU do Ultramar, e também com os serviços de Alfândega metropolitanos e ultramarinos.

A definição dos códigos de endereços foi a tarefa imediata a que a Chefia do SPM se dedicou e que se tornou determinante para o lançamento do serviço. Esses códigos eram constituídos por 4 dígitos, dos quais os primeiros 3 definiam a unidade militar, e o ultimo a província ultramarina. Assim, inicialmente o digito 1 correspondia à Índia, o 2 a S Tomé, o 3 a Macau, o 4 a Moçambique, o 5 a Timor, o 6 a Angola, o 7 a Cabo Verde, o 8 à Guiné, e o 9 à Metrópole.

Devido ao cada vez maior número de unidades em Africa, o critério inicial teve de ser rapidamente alterado, e a atribuição dos IP (indicativos postais) passou a ser feita, pelo Estado Maior do Exército [EME] para as unidades mobilizadas no continente, e pelos respectivos Comandantes Militares nos diferentes territórios para as unidades ali organizadas, mantendo-se sempre o ultimo digito definidor do território de destino.

Um problema entretanto surgido foi com os navios da Armada que quando saíam das suas localizações iniciais, e navegavam para outros territórios, e de e para a metrópole, recebiam a correspondência com atraso. Para resolver o problema, o 4º dígito 1, que inicialmente dizia respeito a Índia, passou a ser atribuído aos navios da Armada, em substituição dos dígitos recebidos inicialmente conforme os locais onde se encontravam Após algum tempo, a atribuição de todos os IP foi atribuída a Chefia do SPM.

Entretanto em Agosto de 1961, depois de difíceis e complicadas reuniões entre o Secretariado Geral da Defesa Nacional , a Administração Geral dos Correios, Telégrafos e Telefones (CTT) e os Correios Telégrafos e Telefones do Ultramar (CTTU), foi aprovado o celebre "aerograma", considerado um impresso-carta, isento de porte e de sobretaxa aérea, e que era constituído por 1 folha de papel com o peso máximo de 3 gramas, dobrável em 2 ou 4 partes, mas de forma que as suas dimensões depois da dobragem não excedessem os limites máximos de 150 x 105 mms, e mínimos de 100 x 70 mms.

As regras estabelecidas para o endereço a colocar em toda a correspondência a enviar para as unidades expedicionárias obrigavam a que dele apenas constasse o nome, posto, e número e o indicativo de SPM atribuído.

A organização geral do SPM consistia numa Chefia em Lisboa, pelo menos uma Estação Postal Principal em cada território, e dentro destes tantas Estações Postais Secundárias quantas as que se revelaram necessárias face ao respectivo movimento postal, e ao número de PMC (Postos Militares de Correio), cada um destes apoiando até 2500 homens.

No fim da cadeia, havia em cada unidade um Encarregado da Delegação Postal da Unidade (EDPU) normalmente o(s) cabo(s) escriturário(s) da(s) unidade(s), que recebiam formação específica para essas funções.

Em 21 de Julho de 1961 entrou em funcionamento em Luanda a Estação Postal Militar Principal nº 6, menos de um mês depois da criação do SPM! Quando se iniciaram as hostilidades na Guiné e em Moçambique já ali se encontrava completamente operacional o SPM.

O SPM foi um serviço totalmente constituído por milicianos, nele tendo servido 202 oficiais e 504 sargentos. O seu quadro foi constituído inicialmente apenas por funcionários dos CTT e CTTU, graduados em oficiais e sargentos conforme a sua posição hierárquica nos seus serviços. A partir de 1966 o recrutamento passou a fazer-se entre oficiais e sargentos milicianos da metrópole a quem era dado um curso específico no Centro de Instrução do SPM no Forte do Bom Sucesso em Lisboa.

O serviço prestado pelo SPM foi notável. Muito para além dos números impressionantes de milhões de aerogramas, cartas, encomendas, vales do correio e valores declarados, por eles tratados e enviados; durante os anos de guerra a expedição média diária foi de 10 toneladas de correio (!!!) para um total transportado de 21 mil toneladas. É que nunca falhou, mesmo nos locais mais perigosos, difíceis e isolados, e os prazos médios entre a expedição e a recepção eram mínimos.

Só quem ali viveu esses tempos pode testemunhar o alvoroço e a alegria da chegada do correio, o conforto e ajuda que todos sentíamos pelas noticias da família e dos amigos.

O SPM foi extinto em 10 de Julho de 1981, cessando toda a sua actividade em 31 de Dezembro de 1981. Com a discrição com que iniciaram os seus trabalhos, assim os terminaram, como se nada de especial tivessem feito, naturalmente sem reconhecimento público assinalável. O SPM que escolheu como divisa do seu guião "A vida por uma mensagem", bem a honrou até ao fim.

Ao Capitão Miliciano Ernesto Tapadas, e a todos os que integraram o SPM durante toda a sua existência, é devida uma enorme gratidão por milhões de portugueses; por todos os que, de 1961 a 1975, serviram na Índia, em África, em Macau e em Timor, e também por todas as suas famílias que em Portugal mitigavam as saudades e as suas angústias com as noticias dos seus filhos tão longe. Os que estiveram na guerra nunca os esquecem!
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Nota do autor:

A informação relevante acima descrita foi retirada de: BARREIROS, Eduardo ; BARREIROS, Luís - História do serviço postal militar. [Lisboa] : E. Barreiros, D.L. 2004. 460 p. : il. ; 30 cm. Ed. bilingue em português e inglês. Bibliografia, p. 458-460. ISBN 972-9119-65-1
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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9000: Antologia (75): Tarrafo, crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed, 1965 (8): Ilha do Como, 15 de Março de 1964: E Deus desceu à guerra para a paz (Último episódio)...

Guiné 61/74 - P17517: Blogoterapia (287): Não é fácil ser português (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas)



1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 25 de Junho de 2017:

Ser português não é fácil, e penso que nunca foi fácil para a grande maioria do povo. Lançados à conquista de um império, que nunca resultou numa maior distribuição das riquezas, modernidade nem bem estar, fica-nos o orgulho de que os nossos antepassados fizeram o impensável para um país tão pequeno como o nosso, tanto na expansão como na defesa da nossa nação. Não foi pois por falta de coragem que não chegamos ao tão almejado estádio em que seria equiparada a nossa grandeza exterior, com a riqueza e bem estar interno e que nos elevaria a estatuto entre as nações mais avançadas na arquitectura, na medicina, nas ciências, na educação e, por conseguinte, no progresso que dita o bem estar da sua população.

Os nossos antepassados regaram com o seu sangue terras longínquas, repeliram invasões, guerras civis, revoluções e, por fim, acabamos a construir as cidades para os outros.

Assim chegou a vez da nossa geração e fomos quase um milhão.

Durante 13 anos fomos actores principais numa guerra que nos sangrou, apartou das nossas famílias e, pior, tornou o futuro irremediavelmente perdido para muitos.

Aqui chegados, constato que continuamos a ser usados na nossa boa vontade e orgulho patriótico.

No 20 de Maio fui receber a minha Medalha Comemorativa de Campanha. No momento senti um misto de orgulho e algumas dúvidas.

Orgulho por ir receber a medalha que foi finalmente imposta, quarenta e tal anos depois do meu regresso. Independentemente das razões, entendo que é meu direito reivindicar a mesma, como uma coisa que me é devida.

Dúvidas. Qual real valor que esta condecoração tem. Na mesma cerimónia vi militares no activo receberem também distinções por serviços prestados. Terá sido na Bósnia? No Iraque, em África, onde se fazem hoje comissões de 6 meses como voluntários, mais bem armados, equipados, treinados e remunerados? No caso, as ditas Medalhas por Serviços Distintos tinham a categoria de ouro, prata e bronze. É aqui que começa a minha incompreensão.

Será que no meio de vinte e tal ex-combatentes que foram receber a Medalha Comemorativa das Campanhas, não estariam homens, que no seu tempo praticaram actos de bravura em combate durante as suas comissões, em especial em Angola, Guiné e Moçambique?
Vinte e tal meses em zonas 100% operacionais que até a água se ia buscar com risco de vida. Isto é comparável a quê nos dias de hoje?

O nosso exército é hoje profissional e voluntário, os seus membros relativamente bem remunerados, direi mais, excelentemente remunerados, quando prestam serviço em qualquer zona de conflito, normalmente em missões de policiamento ou de interposição.

Note-se que não estou contra a nossa participação nessas acções, uma vez que a integridade nacional se defende hoje a milhares de quilómetros das nossas fronteiras. Talvez se deva pôr em causa as razões que provocaram a instabilidade neste Mundo e que levaram ao actual estado de coisas, mas isso é outra questão.

Será possível que aqueles jovens soldados (todos graduados alguns com o peito carregado de medalhas), que no sábado foram condecorados por serviços prestados, tenham feito alguma coisa que transcendesse os actos de bravura de alguns de nós há 45 ou mais anos.

Estavam lá veteranos das três frentes, Comandos, tropa normal e paraquedistas, que naquela guerra sofreram o que só nós sabemos. Perfilámo-nos, emocionámo-nos com a homenagem aos mortos (cada um se lembrou dos seus) recebemos as honras dos militares em parada, seguidamente almoçámos no quartel no meio das fardas de gala e camuflados, mas será que nem um de nós merecia uma daquelas medalhas, de bronze ou prata, para já não falar na de ouro?

Quantos ex-combatentes receberam alguma? Soldados anónimos que contribuíram com a sua coragem para salvarem outros. Quem não conheceu um pelo menos? Algumas provas disso foram ignoradas e apagadas, para assim não serem prova viva da gravidade dos ataques. Chegou-se ao cúmulo de mencionar as munições gastas para repelir o ataque como sendo gastas em exercícios.

As provas de heroísmo foram apagadas como apagaram os buracos feitos pelas armas do inimigo e, quanto muito, foram as companhias ou batalhões galardoados no final das comissões pelo cômputo geral do serviço, beneficiado destes louvores os comandantes que viram assim averbadas estas às suas folhas de serviços.

Quanto à medalha, vou guardar a minha como memória daquele tempo, mas lamento que ela cheire a prémio de consolação e que, ao nos serem entregues hoje, se queiram justificar perante nós de alguma coisa, em vez de praticarem a mais elementar justiça para quem deu tanto si.

Dentro de alguns anos haverá milhares de veteranos a viver sozinhos, sem rendimentos para irem para um lar, com valores hoje a rondar os 1000 € (que muitos casais de reformados hoje não aufere), mais medicamentos, fraldas e cuidados de saúde complementares.

Nessa altura para que servirão as medalhas?
Que nos irão fazer?

A Pátria sempre teve filhos e enteados, mas une-nos, apesar das nossas diferenças sociais e até politicas, um sentimento que nos enche o peito. Podemos não estar de acordo com governos e governantes mas a Pátria somos nós, ama-se, não se discute, não se vende e não se renega, por muito que em nome dela nos maltratem.

Dela espera-se só o reconhecimento, pelo amor que lhe damos, na maioria das vezes sem retribuição alguma.

Um abraço
Juvenal Amado

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2. Comentário do editor:

Não é meu hábito "deitar faladura" a seguir aos textos dos camaradas, mas o tema que o Juvenal traz à liça, sugere-me alguns comentários.

Quanto à atribuição da Medalha Comemorativa das Campanhas, logo no fim da nossa comissão ficou registada na Caderneta Militar de cada um. Vejam a página 12.
Conclusão, a Medalha devia ter sido distribuída na altura. Como não foi, e todos nós mudámos de residência inúmeras vezes depois de passarmos à disponibilidade, digamos que as autoridades militares perderam o nosso rasto, não sabendo sequer se somos vivos. Restava fazer o que agora vem a ser feito, requerer a Medalha, dando sinal de que ainda estamos vivos. "Estes" nunca a negaram e estão a distribuí-las às centenas, anualmente.
Já agora, a culpa disto tudo foi da "outra senhora", a quem poucos afrontavam então.

Quanto às Medalhas de Serviços Distintos, a coisa é mais complicada, pois a sua atribuição dependeria de proposta dos respectivos Comandantes.
Já se sabe que conforme a hierarquia ia descendo, mais difícil era o acesso às mesmas. E nós, caro Juvenal só tínhamos direito à de cobre, à de folheta, melhor dizendo.
Voltamos à mesma, não vale a pena pensarmos nisso agora.

E o mais sensível para nós, as actuais missões no estrangeiro.
Não há comparação possível com o nosso tempo. Quantas localidades tinham telefone na Guiné?
Os militares de hoje têm ao seu dispor toda uma panóplia de meios de comunicação que há cinquenta anos eram impensáveis.
Os vencimentos são tão diferentes que é pecaminoso fazer qualquer comparação.
Os actuais militares ganham muito? Não, nós é que ganhávamos pouco. O problema foi nosso, que vivemos noutros tempos de míngua.
O tempo de missão foi consideravelmente reduzido porque os efectivos são suficientes para a rotação dos mesmos.

Os militares de hoje são  considerados e reconhecidos? Ainda bem, pena que não tenha sucedido isso connosco.
Não te esqueças Juvenal, que pela esquerda radical, a seguir ao 25 de Abril, fomos considerados fascistas, colonialistas e outras coisas terminadas em istas, sorte tivemos em não sermos presos. Talvez  porque éramos muitos. Já nem falo na entronização daqueles que se negaram a ir para a guerra, transformados em verdadeiros patriotas.

Finalmente, o nosso fim de vida, para uns em carência, para outros mais desafogado.
A falta de condições básicas terá a ver com a condição de ex-combatente? Em alguns casos sim, mas não podemos generalizar. Cada caso tem de ser analisado, e arranjar-se a solução adequada. A nossa condição de ex-combatente não se pode sobrepor à daqueles que por serem mulheres ou homens mais afortunados, não foram à guerra.

Que queremos afinal? Respeito, reconhecimento pelo nosso esforço e apoio aos estropiados e afectados física e psicologicamente pela guerra.

CV
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17491: Blogoterapia (286): Uma memória daquele espaço em Casal dos Matos, Pedrógão Grande (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17516: Parabéns a você (1278): Vítor Caseiro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4641 (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17506: Parabéns a você (1277): António Branco, ex-1.º Cabo Reabast de Material da CCAÇ 16 (Guiné, 1972/74) e Vasco Joaquim, ex-1.º Cabo Escriturário do BCAÇ 2912 (Guiné, 1970/72)

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17515: Facebook...ando (45): A cotovia dançante (Manuel Luís R. Sousa, SAj Reformado)

Cotovia
Com a devida vénia ao autor da foto


1. "A cotovia dançante" é um texto do nosso camarada Manuel Luís R. Sousa, Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma, (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4512/72, Jumbembem, 1972/74), publicado por ele no Facebook que não resisti e incluir no nosso Blogue. 
As memórias e as gentes de Trás-os-Montes são para mim um fascínio.
Carlos Vinhal


A cotovia dançante

Nos anos sessenta do século passado, ainda durante a vigência do Estado Novo, as famílias mais abastadas ou remediadas de Trás-os-Montes, tinham como um dos seus principais objectivos mandar educar os seus filhos, afastando-os do trabalho duro do campo de onde provinham os seus principais rendimentos, recorrendo ao trabalho de assalariados, daqueles que não estudavam, para manterem as suas terras granjeadas.
Terem um filho doutor, engenheiro, professor, médico, ou outras profissões qualificadas, era algo que lhes dava orgulho, estatuto.

Era notório o frenético bulício em casa dessas famílias com a ansiedade de receberem os meninos ou as meninas, ainda na fase dos estudos ou já a trabalharem, por altura das férias da Páscoa, Natal e, eventualmente, em fins-de-semana, reservando-lhes os miminhos da época que a terra dava, ou, então, desdobravam-se em canseiras, quando eles não vinham a casa, a despachar-lhes esses mimos através do Caminho-de-ferro ou mesmo pelos correios.
Destas iguarias, destaco as frutas da época, os folares por altura da Páscoa, por exemplo.

Quando estes seus rebentos vinham à terra destacavam-se, em relação aos trabalhadores do campo, pelo seu aspecto citadino, bem vestidos e mais polidos no trato, mantendo-se um pouco distantes, conscientemente ou não, dos jovens da aldeia seus contemporâneos que não tiveram possibilidades de estudar, ainda que, alguns, com capacidade para tal, não abrindo mão do seu estatuto maior. “Que tirassem o cavalinho da chuva” um ou outro jovem “inculto” da aldeia se sonhassem sequer fazer a corte a algum ou alguma dessas criaturas “eruditas”, que até tinham sido colegas de classe e de carteira durante o ensino primário.
“Cada macaco no seu galho”, melhor dizendo, as diferenças sociais, naquele tempo, tinham uma fronteira bem definida.

Depois, a partir de 1974, após a revolução de Abril, com a generalização do ensino, abrangendo todas as famílias, esbateram-se todas aquelas diferenças sociais.
Alargou-se, portanto, a um maior número de jovens a possibilidade de saírem da terra para estudarem e trabalharem também nos grandes centros urbanos, enveredando por profissões mais ou menos qualificadas no sector terciário da economia, nos serviços, regressando também a casa por altura das festas do ano, onde os pais e restantes familiares os recebiam rejubilando de alegria.
Só que, com esta mudança, em total desequilíbrio, a sangria das gentes das aldeias aumentou exponencialmente, até porque coincidiu também com o fenómeno migratório do país, concretamente a emigração, levando à desertificação do interior, particularmente de Trás-os-Montes.
Ou seja, aquelas gerações de jovens, hoje já “entradotes”, com filhos adultos, outrora recebidos com exultação e mimados pela família quando periodicamente regressavam a casa, actualmente chegam à aldeia e notam, com mágoa, que as cortinas da janela da casa que os acolhia se mantêm estáticas no interior da vidraça, eventualmente com teias de aranha, por entre as quais, tantas vezes, surgia o primeiro sorriso de boas-vindas, sinal de que os que antes os recebiam em festa já partiram, dando lugar a um silêncio sepulcral que faz doer a alma.

Hoje, no meu caso pessoal, embora morando longe pelas razões já referidas, e ligado que estou sentimentalmente a essas terras de família parcialmente abandonadas naquelas circunstâncias, desloco-me frequentemente a Freixiel, Vila Flor, em que se concentra toda esta história, a fim de, na medida do possível, ir adiando o abandono completo de uma ou outra propriedade: podar algumas videiras para, no tempo, ter a possibilidade de comer uns “mouriscos”, aplicar herbicida, apanhar azeitona, etc.

Nesta rotina anual de tentar preservar essas humildes leiras que a geração anterior nos deixou, no mês de Fevereiro deste ano, 2017, pondo as rodas ao caminho de cerca de duzentos quilómetros, a partir de Vila do Conde, podei as videiras nas “Melaínhas”, é assim que se chama uma das propriedades, e, nessa altura, podei também um grande damasqueiro, almejando deliciar-me com os frutos, cuja maturação ocorre em Junho.
Com vista a recuperar a excelente qualidade de uma macieira existente na propriedade já na fase decadente do tempo útil de vida, enxertei uma outra pequena de duas que tinha ali plantado em Novembro do ano passado, precisamente para esse efeito.

Em Março, voltei ali para aplicar o herbicida, tendo verificado que o referido damasqueiro já mostrava umas dúzias de damascos na fase inicial da sua formação que espreitavam por entre a rebentação da ramagem depois da poda.

Chegado agora o mês de Junho, pelos meus cálculos, achei que estava na altura de ali regressar com alguns objectivos bem definidos: aplicar novamente o herbicida nas ervas que germinaram no verão; inteirar-me do estado de evolução da enxertia da macieira; apanhar os damascos do damasqueiro que tinha podado; saborear as cerejas de três cerejeiras, duas das quais ainda pequenas que, entretanto, eu também tinha enxertado há dois ou três anos; apalpar uns figos lampos e deleitar-me com eles caso estivessem maduros.

Cheguei à aldeia num dia particularmente quente, cerca do meio-dia, o que me obrigou a fazer uma sesta prolongada até ao fim da tarde.
Já a serra “Tinta” se entrepunha entre o sol- poente e as “Melaínhas” ao fim da tarde, quando ali cheguei, agora pela fresca, para aferir do estado do terreno para no dia seguinte, bem cedo, aplicar o herbicida e particularmente curioso em ver o estado de tudo o que acima enumerei:
A pequena macieira, uma das duas que plantei, para minha satisfação, apresentava a enxertia consolidada, com dois rebentos já bem desenvolvidos;
Dirigindo-me ao damasqueiro, de pujante de ramagem, apenas encontrei três ou quatro damascos no chão, apressando-me a apanhá-los e a disputar a minha parte com as formigas, neles engalfinhadas aos centos, desalojando-as com duas assopradelas, que com sofreguidão saboreei a sua excepcional doçura;
As cerejas, nem uma para a prova. Já os pássaros tinham passado com a “cesta” antes de mim;
Os figos lampos estavam ainda duros como cabaças e nem um pude tragar. Portanto, apenas com a boca doce dos damascos, que resgatei da voracidade das formigas, limitei-me a acabar de dar volta à propriedade, constatando também que as oliveiras já mostravam a azeitona formada, depois da floração, do tamanho aproximado de grãos de chumbo, deixando antever, se tudo correr bem, uma generosa colheita.

Ao lusco-fusco, entrei no caminho que ladeia a terra para voltar a casa.
Sem viva alma por ali àquela hora, do outro lado do caminho, pousada nos arames da vinha do vizinho Pedro Melo, vi uma cotovia a executar eventualmente os últimos acordes do dia do seu canto, como que a assinalar a hora do recolher, visto que a noite já avançava.
Por cortesia para com a ave, parei e procurei imitar o seu canto com o meu assobio natural, vocal.
Ora, esta apercebendo-se de que eu falava a mesma linguagem, com algum sotaque, eventualmente, ou seja, que cantava a mesma canção, circundou-me algumas vezes em voo lento, como curiosa em observar-me. Depois, ora pousava na parede da nossa propriedade no meu lado esquerdo, ora nos arames da vinha do vizinho, do lado direito, à minha frente, a responder-me a cada vez que eu assobiava e a imitava, exibindo-se numa espécie de bailado.

Como se não bastasse já estar fascinado pela simpatia e destreza da ave, ali imobilizado como uma estátua, esta, a dada altura, pousou no caminho à minha frente, a escassa meia dúzia de metros, numa sucessão de vénias, ora envolvendo-se no pó do caminho, rojando sucessivas vezes o peito no chão, ora exibindo a plumagem eriçada como a querer atingir o meu tamanho, pondo em destaque a crista de plumagem que caracteriza a espécie, num ritual idêntico ao de, sendo macho, atrair uma fêmea.
- Por quem és, cotovia, quem sou eu para merecer de ti tanta deferência…! Pensei cá comigo.

Inebriado com todo aquele episódio, de repente fui tomado por um estranho arrepio na espinha, ao lembrar-me de alguém, que já partiu, de cujo rosto irradiava o sorriso com que nos recebia, feliz, habitualmente por entre aquelas cortinas de renda branca da janela, ao ser alertado pelo trabalhar do motor do carro quando chegávamos. Cortinas que, nostálgico, vi imóveis, como habitualmente acontece depois da sua partida, nessa manhã quando ali parei o carro em frente a casa ao terminar a viagem.

Perante esta sensação estranha, interiorizei em mim, sem que para isso tenha qualquer explicação plausível, que esse ente querido estava a comunicar comigo através da dança daquela pequena ave, saudando-me por me empenhar em zelar aquelas terrinhas que nos deixou, e perguntando-me por novas de toda a prole, que ela, como matriarca que era, devotada e incondicionalmente amava. Fantasias ou ilusões minhas, claro.
Ou não...

Depois daquele nosso “diálogo” de um ou dois minutos, a cotovia dançante circundou-me mais uma vez em voo rasante, como a despedir-se, e partiu embrenhando-se na noite que já caía.

Manuel Sousa
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17012: Facebook...ando (44): Quem não chora não mama e, para a tosse, um chazinho de cascas de cebola com limão, adoçado com um pouco de mel (Manuel Luís R. Sousa)