quarta-feira, 6 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23148: (In)citações (203): "Naturalia non turpia": o que é natural não é vergonhoso, meus meninos (diz-nos, puxando-nos as orelhas, a Rosa Serra, ex-alf mil enfermeira paraquedista, BA 12, Bissalanca, 1969)

Rosa Serra, em Ponte de Lima,
 24 de agosto de 2020.
Foto: António Leitão (2020)
1. Ainda estava na cama, hoje, às 10h06 quando a Rosa Serra me telefonou... Já não estava a dormir, não, senhora, estava apenas a fazer horas para dar os parabéns, às 10h30, à minha filha, Joana, que hoje faz 44 anos, e à sua mãezinha, na cama, a meu lado...

− Não incomdas, não, senhora, minha querida camarada da Guiné, das poucas que tive, porque as únicas que havia eram vocês, enfermeiras paraquedistas... Então ainda estás em Mafra, ao pé da tua filha, onde foste passar o dia os teus anos ?... 

Não, já voltei a casa, em Paço d'Arcos, até porque tinha, ontem, uma consulta médica... 

− Então, diz lá a que se deve a honra desta chamada telefónica, tão  matinal e primaveril ?

Sabe, estou fula...

− Faz o favor me tratar por tu, afinal somos camaradas ou ex-camaradas...

− Está bem... Estava eu a dizer que estou fula com vocês, seus machõeszinhos... Tu, o Miguel e o autor da história deviam conhecer o aforismo de Hipócrates, "Naturalia non turpia"... Para os profissionais de saúde, médicos, enfermeiros, etc., o que é natural não é vergonhoso.

Essa história está mal contada (*). Não é um questão de pudor da senhora enfermeira, mas sim de profissionalismo. Eu não era a enfemeira em questão, estava em Tancos, no Regimemto de Caçadores Parquedistas,  nessa altura, em 1971, depois de ter passado pela Guiné (1969) e por em Angola (1970): em Luanda,  nem sequer ia ao mato fazer helievacuações. 

Mas tenho que defender a honra do convento. Fiz o meu curso de 3 anos, na escola de enfermagem do Hospital de Santo António, acabei em 1966. E aprendi logo a algaliar os doentes, homens e mulheres. Passei pela urgência, ainda havia naquele tempo alguns médicos que mandavam chamar os enfermeiros (havia poucos, a profissão era e ainda é muito feminina). Por mero preconceito, chamavam os enfermeiros, não chamavam as enfermeiras.

O Miguel sabe  que a Zulmira pôs o seu próprio casaco por cima do corpo do cubano, o capitão Peralta,  não para lhe encobrir as "vergonhas", mas por causa da hipotermia. Eu na Guiné, também fazia isso. Os doentes que eram helievacuados vinham em choque, sofrendo de hipotermia. O cuidado da enfermeira era, logo, cobri-los com uma manta ou com algo, uma peça de vestuário,  que lhes pudesse manter a temperatura do corpo até à chegada ao hospital...

− Tens toda a razão, Rosa, não está em causa o vosso alto profissionalismo... Eram maneiras nossas de ver ou de perceber as coisas... E, concordo, havia alguns preconceitos em relação a vocês, ou melhor, alguns mal-entendidos, fruto do desconhecimento da vossa origem e formação e até da vossa missão...

−  Havia até quem pensasse que nós (ou algunas de nós) éramos freiras!...

−  Santa igniorância... Olha, posso fazer um poste com o teu esclarecimento (que é também um protesto) ?

Estás à vontade, agradeço-te...

− Então, ciao, as tuas melhoras... Agora é tua vez de cuidares de ti.

E aqui fica o esclarecimento (que é também implicitamente um protesto) da nossa querida Rosa Serra, uma valente mimhota de Vila Nova de Famalicão, que tem mais de meia centena de referências no nosso blogue. (**)

2. E a propósito desta história lembrei-me de uma outra, a de um amigo meu, alentejano,  que tem uma filha, médica, com a especialidade de urologia (o que era rara no passado). 

Um dia acompanhou o pai numa caçada. E também levava a sua arma. Os caçadores, todos homens, sentiram-se algo incomodados, porque já não podiam mandara  a sua c...., frente a uma senhora, para mais médica. 

O meu amigo  pô-los logo à vontade, desde a primeira hora:
− Não se acanhem, meus senhores. Por dever de ofício, a minha filha está farta de ver piças e cus!

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Notas do editor:

(...) Histórias pícaras > Uma heli-evacuação e a enfermeira paraquedista que não queria levar o "passageiro" em pelota

(...) Quando a 28 de Novembro de 1971, um elemento da Companhia acciona uma mina, ficando sem uma perna e outro elemento também ferido, ambos do 3.º Grupo de Combate, é solicitada a evacuação por via aérea para o Hospital de Bissau.

Ao chegar o helicóptero, sai dele uma enfermeira que, ao ver o soldado Santos sem roupa, diz que assim não leva o ferido. Para ser socorrido, utilizaram-se os restos das calças para fazer garrotes à perna e ao braço. E com tiras da roupa seguram-se alguns pensos que tapam feridas menores. O homem estava nu.

Para satisfazer o pedido da enfermeira, foi pedido ao enfermeiro que tinha uma camisola interior vestida para que a tirasse e com ela tapasse o soldado ferido.

José Afonso (...)

Comentários:

(i) Tabanca Grande Luís Graça:

Miguel e Giselda: Vão gostar de ler esta história... Quem seria a enfermeira... "púdica" ? A história é verosímil ?.. Era uma questão de "pudor" ou de "segurança do doente" ?

(...) Falsa questão: para a enfermeira, é um problema de "dignidade do doente", em primeiro lugar, e talvez também de segurança...

(ii) Miguel Pessoa:

(...) Luís, acho que já respondeste à questão - é uma questão de proteger a dignidade do evacuado, ninguém gostaria de andar a ser passeado nu, aos olhos de toda a gente...

Lembro-me que a Zulmira também cobriu o cubano Peralta com o seu próprio blusão, dado que ele estava a tremer e era preciso manter o corpo a uma temperatura decente, portanto é uma questão de segurança do próprio evacuado.

E convenhamos que pruridos no meio da guerra deveria ser assunto que não devia preocupar as enfermeiras paraquedistas. (...)

(iii) Fernando Ribeiro:

Este é um daqueles erros que cometemos sem pensar: nu em pelota. A expressão em pelota, por si só, já quer dizer nu. (...)

Guiné 61/74 - P23147: Convívios (922): XXXVII Encontro Nacional dos Oficiais, Sargentos e Praças do BENG 447 - Brá/Bissau/Guiné, a ter lugar no dia 25 de Junho de 2022 na Tornada/Caldas da Rainha (Lima Ferreira, ex-Fur Mil)

C O N V Í V I O S

A pedido do nosso camarada e meu amigo pessoal, António Fernando Lima Ferreira, ex-Fur Mil do BEN 447, estamos a divulgar o 37.º Encontro Nacional dos Oficiais, Sargentos e Praças do BENG 447 - Brá/Bissau/Guiné, a ter lugar no dia 25 de Junho de 2022 na Tornada/Caldas da Rainha.

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23087: Convívios (921): XXVI Convívio do Pessoal de Bambadinca, 1968/71: Caldas da Rainha, sábado, 28 de maio de 2022 (José Fernando Almeida, ex-fur mil trms, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, 1969/71)

Guiné 61/74 - P23146: Historiografia da presença portuguesa em África (311): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
António Carreira é um investigador incontornável, esta obra sobre as Companhias Pombalinas é absolutamente indispensável para o estudo de uma época. Enquanto lia quer o conteúdo da investigação quer o precioso acervo documental em anexo, a mente voava para um dos mantras do PAIGC referente à unidade Guiné - Cabo Verde, quase um dogma de fé, seriam povos afins, com a mesma proveniência. Hoje sabe-se (e na época igualmente já se suspeitava) que esta argumentação era por demais duvidosa. Como se lê no livro de Carreira, o tráfico de escravos proveniente da costa africana abarcava uma enorme região, e ponho já de parte o tráfico negreiro angolano que usava Cabo Verde como ponto de passagem. Fica igualmente claro que a vida nestas praças (Cacheu, Farim, Ziguinchor e Bissau, sobretudo) era um tumulto permanente e daí a citação que Carreira faz de pareceres do Conselho Ultramarino em que se diz claramente que sem o tráfico de escravos da Guiné não se podia manter Cabo Verde e que quanto ao título usado por Sua Alteza de Senhor da Guiné, ele fazia-se à custa da reputação do monarca, havia que pagar um tributo ao rei negro de Cacheu. Se subsistissem ainda dúvidas sobre a precariedade da presença portuguesa nesta costa de África, no século XVIII, tome-se em conta o que dizem os documentos.

Um abraço do
Mário



Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (2)

Mário Beja Santos

Numa fase de últimas pesquisas para dar por concluído o trabalho de investigação de um próximo livro que terá o título de Guiné, bilhete de identidade, senti curiosidade em folhear publicações sobre temas que à partida me pareceram pertinentes. É dessa relação de leituras espúrias que aqui procedo a alguns comentários. Chegou a oportunidade de ler uma boa investigação de António Carreira intitulada As Campanhas Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos entre a Costa Africana e o Nordeste Brasileiro, a edição é do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1969. Dá-nos generalidades sobre as companhias portuguesas de comércio e tráfico de escravos.

Na continuação da leitura do livro de António Carreira, e depois de já termos a génese e o enquadramento socioeconómico em que decorrer a criação de tais companhias, o autor avança um conjunto de informações sobre a Companhia de Grão-Pará e Maranhão, por exemplo o número de escravos saídos da Costa Africana, a frota utilizada, como se processava o transporte de escravos e quais as mercadorias e géneros na viagem de retorno. Faz também uma análise da escravidão como instituição natural nas sociedades africanas e os diferentes modos como se obtinham os escravos nestas micro-sociedades. A Companhia do Grão-Pará e Maranhão foi construtora da fortaleza de S. José em Bissau, tinha ali enormes armazéns para escravos, e Carreira diz que ainda ali viu grossas argolas de ferro embutidas na parede e nas quais acorrentavam os escravos, enquanto aguardavam embarque. E diz que noutras casas de Bissau, nos primeiros anos do século XX, ainda se viam argolas desse tipo colocadas nas paredes dos armazéns.

As suas notas sobre a concorrência estrangeira no tráfico de escravos são relevantes, ficamos a saber as suas proveniências e os seus destinos. Lembra-nos que a partir de 1641-1642 quase todas as informações, pareceres e comunicações do Conselho Ultramarino aludem a uma decadência das Praças de Cacheu e Ziguinchor, Farim e Bissau, sobretudo. Reconhecia-se a gravidade da situação e as possíveis consequências, como lembra num parecer o Conselho Ultramarino em 1 de junho de 1647: “Faltando Guiné, não há que fazer conta de Cabo Verde nem de todas aquelas ilhas, por Cabo Verde se não pode sustentar sem Guiné”.

A vida nestas Praças era atribulada, persistiam as tentativas de assalto. Por exemplo, Cacheu resistia com 420 vizinhos, era defendida por uma fraca tabanca de estacaria de mangue, constantemente atacada pelo gentio. O Conselho Ultramarino dirige-se ao monarca em termos duros e concretos: “E ultimamente Vossa Alteza intitula-se Senhor da Guiné, não tendo em toda aquela costa mais que uma pequena parte de terra e o pior é que a conserva Vossa Alteza à custa da sua reputação, porque pagam tributo ao feudo ao rei negro por mão do Capitão de Cacheu”. Carreira procura fazer a contabilidade do tráfico de escravos e diz que dos comprados 19.935 saíram da área compreendida entre o rio Casamansa (talvez alguns mesmo da Gâmbia) e a Serra Leoa. Guiné – Cabo Verde – Serra Leoa (71%) e 8.143 dos reinos de Angola – Luanda – Benguela (29%).

Em 1759 foi criada uma outra companhia, a de Pernambuco e Paraíba, associada à de Grão-Pará e Maranhão, aglutinando estas duas empresas todo o comércio geral e de escravos para o Nordeste brasileiro. Os escravos das ilhas de Cabo Verde, escreve Lucas de Senna em Dissertação sobre as Ilhas de Cabo Verde, Manuscrito azul nº 248, da Academia das Ciências de Lisboa, vêm todos da costa da Guiné, Bissau, Cacheu, Serra Leoa e outros. A compra deles faz-se com pólvora, espingardas, espadas, aguardente, panos, missanga e outros géneros. É avaliado cada escravo ou escrava por certo número de vacas. Estas ou são gordas ou são magras. Cada vaca gorda computa-se por certo número de pólvora, espingardas, etc.

Carreira procede a uma descrição da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba e dá-nos um curiosíssimo quadro das etnias de escravos levadas para o Brasil. Diz que entre o rio Gâmbia e o rio Casamansa existiam as seguintes etnias: Felupes, Mandingas e Soninqués, Jalofos e Fulas. A partir da Gâmbia para sul, era a zona ótima para a compra de escravos. Esta abundava e o negócio tinha tradições muito antigas. Entre o Casamansa e o Cacheu deveriam ter embarcado para o Brasil Banhuns, Cassangas, Felupes, Baiotes, Balantas, Brames, Papéis e Caboianas. Pelo porto de Bissau devem ter embarcado Papéis da própria ilha, Balantas, Manjacos de Pecixe e da zona continental, também Bijagós, Beafadas, Nalus e presumivelmente Mandingas, Soninqués e Pajadincas, trazidos do interior. Diz Carreira que para termos um melhor entendimento da organização socioeconómica, política e cultural destas etnias, as devemos classificar em dois grupos. No primeiro, há que situar Felupes, Baiotes, Papéis, Brames, Manjacos, Caboianas ou Cobianas, Balantas, Banhuns, Cassangas e Bijagós, dotados de economia de subsistência, aproveitando frutos da palmeira, criadores de gado bovino, alguns deles ligados à tecelagem de panos de algodão, todos eles habitando num território em chãos, uns dependentes do poder do régulo, outros não, algumas dessas etnias têm na direção uma sacerdotisa, os Balantas dependem do Conselho dos Grandes, são praticamente todos animistas, posteriormente ao século XVIII os Banhuns e os Cassangas iniciaram um processo de islamização. Num segundo grupo Carreira coloca Jalofos, Mandingas, e os subgrupos Soninqués e Pajadincas, Fulas, Beafadas e Nalus, têm em comum a economia do milho, arroz e palmeira do azeite, criação de gado bovino, praticam artesanato e dedicam-se ao negócio ambulante.

Diz Carreira que a influência decisiva da cultura e da religião muçulmanas só se veio a concretizar em meados do século XVIII e daí por diante de forma avassaladora. Quanto ao problema linguístico, há etnias como os Jalofos, Mandingas e Fulas que se enquadram nas línguas sudanesas e os outros nas línguas aglutinantes definidas pelo uso de prefixos. Carreira também refere o tráfico de escravos nas rias do Sul, do rio Nuno à Serra Leoa, refere as etnias, perspetivas.

Chama-se a atenção do leitor que existe no Boletim do Arquivo Histórico Colonial, volume I, 1950, um importante artigo intitulado Companhia de Cacheu, Rios e Comércios da Guiné, documentos para a sua história, por Cândido da Silva Teixeira, António Carreira refere-o na sua bibliografia. E de seguida vamos ver o que é que o Arquivo das Colónias nos oferece sobre a Guiné, e assim termina esta expedição a fundos de gaveta.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23126: Historiografia da presença portuguesa em África (310): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23145: Recordando o Salgueiro Maia, que eu conheci, o meu comandante, bem como os demais bravos da minha CCAV 3420 (Bula, 1971/73) (José Afonso) - Parte IV: Histórias pícaras: (vii) Os Mais dos... Progressistas (divisa da companhia e também título do jornal de caserna)



O jornal de caserna da CCAV 3420 (Bula, 1971/3), Os Progressistas - Quinzenário de Divulgação, Cultura  e Recreio da CCAV 3420. Director: Cap Cav Fernando José Salgueiro Maia. SPM 1898.


Detalhe do guião da CCAV 3420, que tinha duas divisas: "Os Progressistas" e "Perguntai ao Inimigo Quem Somos"...




Guião da CCAV 3420 (Bula, 1971/73), comandada pelo cap cav Salgueiro Maia


1. O jornal de caserna podia ser (e deve ter sido)  uma forma interessante de manter alto o moral das tropas, no CTIG,  e fazer a ligação com a Metrópole  (embora não devesse lá chegar). Alguns jovens capitães do QP, como o Salgueira Maia, o Mário Tomé, o Carlos Trindade Clemente, o Jorge Golias e outros (como o nosso António J. Pereira da Costa,  membro da Tabanca Grande) perceberam a sua importância (*).

A lista de "jornais militares" ou "jornais de caserna" devia ser mais extensa do que aquela que se conhece. Alguns títulos já aqui foram referidos como O Jagusdi, O Saltitão, O Serrote, O Seis de Camtanhez, Os Progressitas...

De qualquer modo, esta faceta do Salgueiro Maia, como director de um jornal de caserna chamado Os Progressistas (CCAV 3420, Bula, 1971), é capaz de ser um aspecto menos conhecido (e até desvalorizado) do seu currículo militar. Tanbém há quem estranhe que ele tenha conseguido dar à sua companhia, para mais de cavalaria, esse nome, Os Progressistas. Pelo sim pelo não, e talvez para "despistar" no verso do guião da CCAV 3420 pode ler-se uma segunda divisa: "Perguntai ao inimigo quem somos". 

Em Portugal, na época, em pleno marcelismo, o termo "progressista" tinha uma certa conotação político-ideológica: por exemplo, falava-se dos "católicos progressistas", do pós-Vaticano II, para os distinguir dos mais ortodoxos e tradicionalistas... Mas o vocáculo que é adjetivo e nome é relativamente neutro: progressista é aquele que é partidário do progresso, que professa ideias de progresso... Mas na época entendia-se que era toda a gente do "reviralho", os que eram contra  a "situação" (não só o regime político vigente como a "guerra colonial")... e como tal "inimigos da Nação".

Imagino que este, como os outros jornais de caserna,  tivesse um formato A4 e fosse feito a stencil ( hoje diz.se "estêncil", o termo já está grafado nos nossos dicionários)... Nessa altura, a máquina a stencil (ou duplicador) estava muito vulgarizada na Guiné... Todas as companhias e batalhões tinham de ter um duplicador, pro causa das ordens de serviço e outra documentação.  Ainda não havia as fotocopiadoras... 

Na secretaria da minha companhia, a CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Cntuboel e Bambadinca, 1969/71) havia uma, foi graças a ela que eu pude fazer um edição, quase clandestina, da nossa história da unidade, (com cerca de meia centena de página, escrita e dactilografada por mim)...Fizeram-se umas escassas dezenas de exemplares de uma brochura que foi distribuída pelos graduados à revelia do cap inf Carlos Alberto Machado de Brito (um bom homem que hoje é cor inf ref, e que eu espero    que ainda esteja bem de saúde).

Do quinzenário O
s Progressistas não sei sei quantas edições se fizeram. De qualquer modo, o José Afonso era um dos seus colaboradores.   E revelou-se um bom contador de histórias, como já aqui pudemos comprovar (**). 

Hoje republicamos mais um texto, que deve ter surgido no "jornal da caserna" por altura do Natal de 1972 e em que ele faz uma "ronda" pelos "craques" da companhia, no fundo, as figuras mais "castiças". É a história nº 7 das "Histórias pícaras" (**).


2. Mas, "en passant", deixem-me ainda aqui fazer uma confidência:   o Salgueiro Maia foi, circunstancialmente, meu colega, no ano lectivo de 1975/76, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCPS), embora eu pouco ou quase nada privasse com ele, porque eramos de cursos diferentes (eu, de ciências sociais; ele,  de antropologia), com o estatuto de trabalhadores-estudantes. E penso que andávamos em anos diferentes, ele já tentara inscrever-se no ISCSP em 1969, antes de ir para a sua primeira comissão, em Moçambique.

Íamos às aulas à noite e a algumas Reuniões Gerais de Alunos (RGA), numa altura em que o ISCSP passava por um período de vida muito conturbado (saneamento de praticamente todos, senão todos, os docentes com assento no Conselho Científico, pelo menos os professores catedráticos  e associados...), o que levou no final do ano lectivo de 1975/76 (ou nas férias...) ao seu encerramento, por ordem do então Ministro da Educação, o socialista Sottomayor Cardia (1941/2006), e ao consequente início de um duro processo de luta estudantil contra a tutela e o regresso das múmias (como, depreciativamente, eram então chamados os professores doutorados, alvo de saneamentos selvagens, de natureza claramente político-ideológica, incluindo o Prof Doutor Adriano Moreira, antigo Ministro do Ultramar).

Além disso, num ambiente, claramente esquerdista como era então o ISCSP, virado do avesso, com diversas fações a digladiarem-se (da UEC ao MRPP, do MES à UDP...), o Salgeiro Maia do 25 de Abril era ofuscado pelo Salgueira Maia do 25 de Novembro... Esta ambivalência não terá facilitado as aproximações pessoais...

Salgueiro Maia, como bom alentejano e como militar, oriundo da Academia Militar, era, por outro lado, um homem reservado e discreto... E rigorosamente apartidário.  O início do ano letivo de 1975/76 foi claramente  agitado pelo contexto, interno e externo, incluindo as "sequelas" quer do"verão quente" quer do "25 de novembro". 

O  facto de ele ter estado na Guiné não me dizia nada: definitivamente eu esquecera a Guiné!... Foi um processo de denegação por que muitos de nós passaram. Vivi os cinco anos pós-Guiné com culpa e denegação: Guiné ? Não, nunca ouvi falar... Perdi, com isso, a oportunidade única de ter conhecido (isto é, privado com) um herói vivo... Creio que nem ele, na altura, tinha completa consciência do papel histórico que tinha desempenhado no 25 de Abril de 1974. E comportava-se, ali, como um "anti-herói"...Nunca me apercebi que trivesse tiques de vedeta. Era um estudante como os outros... Aliás, um trabalhador-estudante.  Mas devo acrescentar que era preciso coragem, naquela época, naquele ano letivo de 1975/76 ( e mesmo nos seguintes), para dar aulas... 

Em 1976/77, frequentei o então ISEF - Instituto Superior de Economia e Finanças, na rua do Quelhas, e só depois no ano seguinte fui ara o ISCTE, onde me licenciei em sociologia, em 1980.  Perdi, pois,  o rasto ao Salgueiro Maia que entretanto começara a ser, logo em 1976,  vítima de "bullying" castrense: a hierarquia militar fez-lhe a vida negra, procurando humilhá-lo e discriminá-lo... Mas isso são outras histórias.


Histórias pícaras >  (vii) Os craques, os "Mais" dos "Progressistas"

por José Afonso

Era uma vez... Assim começam todas as histórias e a minha também, para não fugir à tradição. Certamente estão a pensar que vão ter uma história de Natal, mas enganam-se: esta história é um sumário de muitas histórias, começadas em Março de 1971 em Santa Margarida, e continuada em Bula, Mansoa, Cacheu, Capunga; Pete e Ponta Consolação. 

 A minha história refere a existência de uma colecção de craques, são eles eles "Os Mais... dos Progressistas". 

 A abrir, o camarada BIGODES, assim chamado por ter possuído em tempos um farfalhudo bigode, estilo Gengis Khan, e ter uma maneira de viver que o faz andar sempre de pelos eriçados; não é mau tipo apesar de não topar o Lino nem os turras; nas horas vagas faz versos que até costumam rimar. 

 Vem depois o VELHINHO, a instituição mais respeitável de Capunga City; é sapateiro remendão, mata vacas, esfola porcos etc. Tem um ar de Golias de trazer por casa, usa os calções mais "pop" em todo Teatro de Operações. Há tempos por causa de um macaco...,  bem, ia sendo o fim da macacada.

 A seguir temos o CAJADO, rapaz esbelto, guerrilheiro de todas as panelas, usa faca na liga, que já fez manga de ”mortos”. Passa a vida a refilar com todo o mundo, nunca se sabe bem porquê. 

 Continuemos com o MOUCO que em tempos o foi, até um certo dia! Bem não falemos de coisas tristes. Pois o Mouco é homem que trabalha com o morteiro 81, a arma mais técnica que a Companhia possui; é só olhar para o seu aspecto de homem conhecedor de morteiro 81, por não se impressionar com o barulho das granadas a sair do tubo. O Mouco é um homem desiludido: passou 17 meses a convencer o pessoal de que é Mouco e ninguém acreditou. 

 Temos a seguir o TERRINAS, o homem mais trabalhador da Companhia, e o mais comedor, também conhecido por RUÇO; será por isso que é o homem mais procurado pelas bajudas de Pete? É um trabalhador nato, domina todos os ofícios mas considera-se com pouco valor comparado com o da sua noiva. É um homem feliz. 

 Temos ainda o clarim MATA, não toca a lavar mas quase. Há 17 meses que toca o clarim que faz uivar todos os cães das redondezas, e não consegui ainda deixar de nos mimosear com as suas fífias. É um homem calmo no tipo dos barman dos bares do Texas, talvez por isso seja “o homem do tosco”. É especialista em convencer os “gaseados”, para não arranjarem problemas. 

 Vem agora o RATO o homem que não gosta de andar de Jeep e que está perto de lerpar o cabelo, porque não fez ainda o “Menino Jesus” para o presépio de Pete. Gosta pouco de beber e é sem dúvida o mais crava da Companhia. Passa o mês a cravar, no fim deste, paga a quem deve e, como fica sem dinheiro volta ao princípio. Bem esperamos que com o 13.º mês o rapaz acerte a escrita. 

 Ao falar do Rato temos que falar no BARBEIRO, a alma gémea do Rato, que é o único no género, pois só corta cabelos quando está sem patacão. É o protótipo do soldado do futuro, pequeno para criar pouco alvo; com um capacete onde ele cabe quase todo, cheio de granadas à volta do corpo parece o homem dos pneus Michelin. Com o dinheiro ganho a cortar os cabelos já poderia ter ido à Metrópole, mas como é possuidor das maiores sedes do CTIG, só foi à cerveja; passa a vida a dizer para lhe darem ferramenta nova, pois não tem dinheiro para a comprar. 

 Temos agora o BÁRTOLO, especialista em sopa de nabos, e que afina quando lhe dizem que é triste  que deixem entrar miúdos para a tropa, ou que ele vai fazer de "Menino Jesus" no Presépio. 

 Já me esquecia do GRÁCIO. Este é o das mil e umas maneiras para conseguir ir a Bula, ou jogar futebol. É sempre voluntário quando a coisa dá para o torto, mas fora disso anda sempre a tentar desenfiar-se. 

 Estes são OS MAIS, e por hoje ficamos por aqui, mas, há muitos mais, desconhecidos, de que daremos público conhecimento oportunamente. Esta foi a prenda de Natal publicitária para os craques.

Aos simples mortais desejamos um Bom Natal e um Melhor Ano Novo. Em resumo: Que a Comissõa Não Nos Pese.

José Afonso

(Continua)

[ Revisão / fixação de textos e títulos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG ]

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Notas do editor:


(*) Vd. poste de 1 de agosto de  2019 > Guiné 61/74 - P20025: Jornais de caserna publicados no CTIG (de 1961 a 1974) (n=47) (Jorge Santos / Luís Graça)

(**) Vd. postes de:

5 de abril de  2022 > Guiné 61/74 - P23142: Recordando o Salgueiro Maia, que eu conheci, o meu comandante, bem como os demais bravos da minha CCAV 3420 (Bula, 1971/73) (José Afonso) - Parte III: Histórias pícaras: (iv) A "guerra de Bissau": guardando as costas dos nossos "maiores" ; (v) Capunga: o furriel de calções à "pop"; (vi) O "Velhinho", antigo refractário

4 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23140: Recordando o Salgueiro Maia, que eu conheci, o meu comandante, bem como os demais bravos da minha CCAV 3420 (Bula, 1971/73) (José Afonso) - Parte II: Histórias pícaras: (i) Os matraquilhos e a astúcia do capitão; (ii) Uma heli-evacuação e a enfermeira paraquedista que não queria levar o "passageiro" em pelota; (iii) As vacas roubadas que andam de mão em mão, acabam sempre comidas em boa ocasião

Guiné 61/74 - P23144: Parabéns a você (2052): Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais da CART 3492/BART 3873, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15 (Xitole, Mato Cão e Mansoa, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23137: Parabéns a você (2051): Agostinho Gaspar, ex-1.º Cabo Mec Auto da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74)

terça-feira, 5 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23143: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXI: Itália, Florença, 2015





Florença (Firenze, em italiano) e os seus tesouros artísticos mundialmente :conhecidos  a Ponte Vecchio; o Nascimento de Vénus, de Boticcelli; a Vénus de Urbino, de Ticiano; o David, de Michelangelo



Florença, Itália, 2015

por António Graça de Abreu (*)


[Docente universitário reformado,  escritor, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangu
e e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem 307 referências no blogue; texto e fotos enviados em 2/4/2022; as imagens presumimos que sejam retiradas da Net, e sejam do domínio público, ou se trate de postais com reproduções artísticas, compradas pelo autor em Florença]


Até morrer, todos os anos hei-de ir a Itália.

António Mega Ferreira


Três vezes em Florença, a última em 2015, com Dante Alighieri e Nicolau Maquiavel por perto, neste burgo toscano onde “nostro intelleto si profunda tanto” [1] que é infinita a inteligência e o espanto.

Circunvoluções no interior de palácios da cidade sombreada a flores. O exuberante pulsar das antigas ruas, as torres, as duas margens do rio Arno unidas pelo cintilar de correntes de prata, tudo vecchio, como a ponte dos ourives, respirando restos da cinza depurada pelos séculos.

Nos Ufizzi, escritórios de outrora, a Vénus de Urbino, de Ticiano, escandalosa e púdica, mais maravilhas de Leonardo da Vinci. E Boticelli, Caravaggio, Michelangelo, Rafael, e tantos mais.

Do pincel de Boticelli, a deusa Vénus, mulher recatada e triste, abre-se numa concha, diante das mil maldades do mundo. O feminino perfeito, a mão púdica acariciando o seio pequeno, a outra mão no sexo enovelando o esplendor de cabelos de oiro.

Num túmulo rendilhado em São Miniato, um cardeal português, um tal D. Jaime, filho do infante D. Pedro, tão jovem e tão precocemente falecido. Cá fora, a reverência dos ciprestes e das flores do azevinho. Ao longe, a cúpula de Santa Maria del Fiore suspensa no céu azul.

O David gigante, de Miguel Ângelo, em cópia na Piazza della Signoria, o original na Academia, um corpo poderoso e claro, cinco metros de perfeição em mármore de Carrara. Em frente de mim, duas monjas clarissas ajoelham diante do esbelto David, nu, branco, imaculado, os músculos, as veias, o sexo, o suave e violento retesar da energia, a arte do sagrado e da humana poesia. A luz e a harmonia.

Florença, a Toscânia pujante, o ondular dos campos, searas e olivais. Uma taça de chianti, vino nobile ao cair o dia, enobrece a estadia. 

[1] Dante Alighieri, La Divina Commedia, Il Paradiso, I, verso 8.

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Guiné 61/74 - P23142: Recordando o Salgueiro Maia, que eu conheci, o meu comandante, bem como os demais bravos da minha CCAV 3420 (Bula, 1971/73) (José Afonso) - Parte III: Histórias pícaras: (iv) A "guerra de Bissau": guardando as costas dos nossos "maiores" ; (v) Capunga: o furriel de calções à "pop"; (vi) O "Velhinho", antigo refractário


Guiné > Região de Cacheu > Bula > CCAV 3420 (1971/73) > Natal de 1971: o cap cav Salgueiro Maia, falando à sua tropa


Foto (e legenda): © José Afonso (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Infografia: Rede de Segurança de Bissau (COMBIS, Cumeré), c. 1971.  Cortesia de José Afonso. 

Ver aqui carta de Bissau (1949), escala 1/50 mil




1. Na altura em que passam 30 anos da morte do Salgueiro Maia (1944-1992), continuamos a publicar algumas histórias dele e da sua companhia, já aqui contadas em 2009, pelo José Afonso (ex-fur mil, 3º Gr Comb,  CCAV 3420 (Bula, 1971/73)-

O nosso camarada, que é até agora o único representante da sua companhia na Tabanca Grande, foi bancário na CDG, no Fundão, está reformado, e vive hoje em Freixial de Cima, Castelo Branco, onde gere o património agrícola da família (foto à esquerda) (*)


(Continuação)

(iv) A "guerra de Bissau": guardando as costas dos nossos "maiores"


Havia determinadas datas em que se fazia a chamada Guerra de Bissau. Datas como Natal e Páscoa, datas do aniversário do PAIGC e datas em que Bissau sofreu alguns ataques.

Assim fazia-se deslocar tropa para os sítios donde o IN alguma vez atacou Bissau ou para zonas de onde era possível atacar. Assim, 2 Pelotões da CCav 3420 por duas vezes foram mandados para Nhamate. Foi o 1.º pelotão por 2 dias duma vez e o 3.º de 19 a 24 de Novembro de 1971.

Fizemos Bula – Binar - Nhamate a pé, para ali passar 5 dias. Em Nhamate, estava a Companhia de Artilharia 3330, não só aqui como nos destacamentos de Manga, Unche e Changue mas era em Nhamate a sua sede de comando. (Esta CART 3330 teve como 1ºcomandante o cap art José Joaquim Vilares Gaspar, o célebre "Gasparinho", de que temos algumas histórias para contar; proovido a major, foi para o Cop de Mansabá)

Achamos estranho quando no primeiro dia, ao pôr-do-sol, toca o clarim para a formatura do arriar da Bandeira. É formada a secção em frente mas o engraçado é que depois da bandeira descida, em vez de o Furriel mandar direita volver, manda meia volta volver. E, nesta posição, de costas para o pau da bandeira, cantava-se:
- E viva a Pátria, viva o nosso General! 

Ao mesmo tempo mandavam como que um coice e gritavam:
- PUM!!!


(v) Capunga: o fur mil Afonso de calções... à "pop"

Cap cav Salgueiro Maia, Lisboa,
Terreiro do Paço, 25 de Abril de 1974.
Foto de Afredo Cunha


Um dia no Destacamento de Capunga aparece um helicóptero a sobrevoar a Zona e, de seguida, faz-se para pousar no minicampo de futebol. Desconhecia-se quem vinha nele, pois não havíamos sido informados. 

O furriel Afonso, que na altura estava a comandar o Destacamento, dirigiu-se tal como estava para receber quem nele vinha. Está vestido como normalmente se anda nos destacamentos. De chinelos, sem bivaque, de t-shirt e calções que já tinham sido calças, agora transformados em calções que, com as vezes que tinham ido a lavar e como não tinham baínhas, se encontravam todos desfiados.

Vinha no helicóptero o Coronel Paraquedista Rafel Durão, Comandante do CAOP1, de Teixeira Pinto, 
e o Comandante da Companhia 3420, 
cap Salgueiro Maia.  Ao ver o Furriel naquela 
figura,  o Coronel pergunta se está apresentável... 
Antes que o furriel Afonso diga alguma coisa, 
Salgueiro Maia olha  para o Coronel e diz:
- Não vê, meu comandante, que está com uns calções...à"pop" ?!


(vi) O "Velhinho", antigo refractário

Havia na Companhia um soldado que quis fugir à tropa e, então deu o salto para França. Mas, quando o irmão foi nomeado padre e disse a 1.ª Missa, não resistiu e, porque era de Monção, atravessou a fronteira para assistir à missa. 

Com a informação da Pide, o nosso amigo, foi preso e acabou por ter que fazer a tropa pelo que apareceu na nossa Companhia já com os seus 30 anos. Era por isso conhecido como o Velhinho. Este era um elemento do 3.º Grupo de Combate, que nas operações gostava de ir sempre à frente com a HK21 e faca de mato à cintura e dizia para o Capitão:
- Se um dia apanho um turra morto, o capitão vai deixar-me cortar uma orelha para fazer um porta-chaves e os testículos para fazer uma bolsa.

Era homem para isso, só que não estava autorizado a fazê-lo.

(Continua)

[ Revisão / fixação de textos e títulos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG ]
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Guiné 61/74 - P23141: O que é feito de ti, camarada? (16): José Afonso, ex-fur mil at cav, CCAV 3420 (Bula, 1971/73) (Eduardo Silva / Luís Graça)




José Afonso, ontem e hoje



1. Mensagem do nosso camarada  Eduardo Silva, ex-fur mil, CCAV 3420 e CCAÇ 3 (Bula, K3 e Bigene, 1971/73), em comentário ao poste P23138 (*)


Realmente também perdi todo o contacto com o camarada José Afonso. (*)

Embarquei com ele e restantes membros da CCav 3420 sob o comando do nosso saudoso Cap Salgueiro Maia.

Sou o ex-furriel Eduardo Silva. Estive com a CCav 3420 durante cerca 5 meses até que,  por ordem do General Spínola, muitos Alferes e Furriéis foram chamados para ingressarem num treino de integração nas tropas africanas.  Esse treino teve lugar em Bolama. 

Dali segui para o K3 a 3 km sul de Farim. Também fiz a protecção à construção da estrada em Mansoa, onde reencontrei a minha companhia de origem e o meu Cap Salgueiro Maia. Nessa altura eu estava integrado na CCAÇ 3,  companhia de africanos. Apenas os Furriéis, Alferes, Sargentos e Cabos de transmissões e Maqueiros eram brancos.  

Findo esse trabalho regressei ao K3 e dali fui para Bigene onde fiquei até ao fim da comissão. Tempos difíceis.

Um grande abraço a todos os camaradas da Tabanca Grande.
Eduardo Silva



Guião da CCAV 3420 (Bula, 1971/73), 
que foi comandada pelo cap cav Salgueiro Maia (1944-1922)



2. Comentário do editor LG:
 
Desde novembro de 2015, pelo menos, que o mail do José Afonso deixou de estar ativo:

josebaptistaafonso1949@gmail.com

Pus-me  saber notícias dele no Fundão, onde tenho uma mana que é enfermeira e  que conheceu o nosso saudoso Torcato Mendonça... 

Sabia que ele estava reformado, pelo menso desde 2006,  da Caixa Geral de Depósitos, agência do Fundão. Foi nesse ano que nos descobriu e contactou. Também sabia que era ele que organizava os convívios da CCAV 3420.

Entretanto descobri o seu número de telemóvel, através do portal Ultramar Terraweb, liguei-lhe e ele atendeu-me.  Tivemos uma longa e proveitosa conversa... Agora é agricultor, em Freixial de Cima, Castelo Branco. E usa outro endereço de email. Fiquei a saber que vai organizar no dia 28 de maio, em Abrantes, mais um convívio da companhia. É o 20º que ele organiza. O Salgueiro Maia organizou três, em vida, e depois da sua morte houve um interregno. 

Gostei muito de falar com ele. É um excelente contadot de histórias. E contou-me mais algumas histórias do Salgueiro Maia e dos seus bravos... Histórias de Bula, de Capunga, de Bissau, que eu gostaria que ele pusesse no papel, a acrescentar às histórias que já nos contou e que eu estou agora a republicar... 

Percebo agora melhor o respeito e admiração que tinham por ele, Salgueiro Maia,  os seus homens. Porque era recíproco: ele defendia sempre os seus homens, das arbitrariedades dos senhores oficiais superiores... (A CCav 3420, "independente", estava adida a uma batalhão em Bula...).

No último dia em Bissau, antes do regresso à metrópole, o capitão fez um almoço de despedida com as praças, no Pelicano (se bem percebi), foi a companhia que pagou. Não era uma prática habitual... E à noite jantou com os graduados... Perderam o último autocarro para os Adidos (que levava a malta que ia ao cinema à noite), ficaram à espera de táxis, perto da Praça do Império e do palácio do Governador... A cantar canções "proibidas" na época... Alguns já com um grãozinho na asa... Mas quem tinha voltado a vestir o camuflado para socorrer Guidaje, merecia tudo... É bom lembrar essa história que não vem nos livros da CECA...

Fico feliz por ter (re)localizado o José Afonso (**). E também por receber a mensagem do seu antigo camarada e amigo, Eduardo Silva, a quem já forneci os contactos do José Afonso, e quem já convidei para integrar a Tabanca Grande.



3. Mensagem que enviei ao Eduardo Silva, por voltas 20h00 de ontem, e que obteve imediata resposta: ele aceitou o meu convite para integrar a Tabanca Grande, e compromete-se a mandar as duas fotos da praxe.

Eduardo:  já te pus em contacto, por email, com o José Afonso. E mandei-te também  seu nº de telemóvel. (**)

Ele é um excelente contador de histórias. E estou a recuperar algumas... Reformou-se por volta de 2006, da CGD, trabalhava no Fundão onde ainda tem casa. Dedicou-se, com paixão à história da companhia e da guerra da Guiné, tem organizado os encontros da malta, mas também descobriu outra vocação que agora lhe ocupa o tempo quase todo: a de agricultor. O que é bom, é um forma útil, ativa, produtiva e saudável de gerir o chamado envelhecimento (estamos a envelhecer desde que nascemos, e esse processo foi agravada com a maldita rifa que nos calhou na nossa história de vida, a Guiné...).

Gostei de o conhecer, ao telelé... Pode ser que nos encontremos, um dia, no Fundão. Mas ele agora vive no Freixial de Cima, Castelo Branco. E vai organizar o próximo encontro da companhia, em Abrantes, no dia 28 de maio. Já é o 20º encontro que organiza. Ele tem muito orgulho nessa missão. A viúva do Maia comparece sempre.

Outra coisa: quero que te juntes à malta da Tabanca Grande. Manda duas fotos digitalizadas, uma do tempo da Guiné, e outra mais ou menos atual. Tens aqui um histórico da Tabanca Grande, o António Marques Lopes, que esteve em 1968 na CCAÇ 3, a comandar o pelotão dos "Jagudis"... Hoje é coronel DFA, reformado... Escreveu um notável livro de memórias autobiográficas. Se acompanhas o blogue, sabes quem é. Aqui tens o seu nº de telemóvel, ele vai gostar de falar contigo (apesar de estar a enfrentar problemas de saúde) (...)

Um "alfabravo". Luís Graça 
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


4  de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23138: Recordando o Salgueiro Maia, que eu conheci, o meu comandante, bem como os demais bravos da minha CCAV 3420 (Bula, 1971/73) (José Afonso) - Parte I: Um cartão pessoal... para a história: "Sinto-me feliz não só pelo acontecimento, mas por me permitir ter vingado todas as injustiças que nos fizeram na Guiné", disse-me ele, agradecendo um telegrama de felicitações, enviado logo a seguir ao 25 de Abril de 1974

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23140: Recordando o Salgueiro Maia, que eu conheci, o meu comandante, bem como os demais bravos da minha CCAV 3420 (Bula, 1971/73) (José Afonso) - Parte II: Histórias pícaras: (i) Os matraquilhos e a astúcia do capitão; (ii) Uma heli-evacuação e a enfermeira paraquedista que não queria levar o "passageiro" em pelota; (iii) As vacas roubadas que andam de mão em mão, acabam sempre comidas em boa ocasião


Guiné > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 > A ganadaria da "companhia do quadrado"..

Fonte: Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira: "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)" (edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp.). Com a devida vénia... (*)

1. Eis  algumas histórias,  já aqui contadas em 2009, pelo José Afonso (ex-fur mil, 3º Gr Comb, foto à esquerda), sobre o cap Salgueiro Maia e os demais bravos da CCAV 3420 (Bula, 1971/73). (**)


(i) Os matraquilhos e a astúcia do capitão

 Quando a Companhia de Cavalaria embarca em Lisboa, leva já consigo a sua 1.ª receita: um jogo de Matraquilhos que em 6 dias de viagem esteve sempre ao serviço. Trabalhava de dia e noite sem parar. Foi um bom Fundo de Maneio. 

Quando chegámos a Bula, o mesmo jogo foi posto em frente do alçado da caserna dos soldados da Companhia, continuando ali a dar a receita pretendida.

Talvez vendo a fonte de receita que ali tínhamos, o Comandante do Batalhão   [BCAÇ  2928] pede a Salgueiro Maia que mande retirar dali os respectivos matraquilhos, pois estavam em local central do Batalhão e não davam muito bom aspecto.

Não se tendo conseguido nessa altura demover a tomada de posição do Comandante do Batalhão, lá tiveram que ir os Matraquilhos para o Esquadrão de Reconhecimento Panhard. Aqui a receita era insignificante já que os homens eram muito menos, e também nem sempre o pessoal da Companhia ou Batalhão se deslocava cerca de 300 metros para jogar matrecos.

Salgueiro Maia tinha de arranjar maneira de os matrecos regressarem à origem. Como o Batalhão tinha falta de padeiros e os dois da Companhia estavam emprestados ao Batalhão, Salgueiro Maia vai dar a volta ao Comandante, dizendo que, com a falta de pessoal que tinha, necessitava dos padeiros da Companhia para alinharem para o mato. Levava já na manga a hipótese de deixar os padeiros onde estavam e, como contrapartida, os Matraquilhos regressarem ao Batalhão e colocados nas traseiras da caserna.

A esta proposta o Comando do Batalhão cedeu e uma vez mais Salgueiro Maia venceu.


(ii) Uma heli-evacuação  e a enfermeira paraquedista que não queria levar o "passageiro" em pelota

Quando a 28 de Novembro de 1971, um elemento da Companhia acciona uma mina, ficando sem uma perna e outro elemento também ferido, ambos do 3.º Grupo de Combate,  é solicitada a evacuação por via aérea para o Hospital de Bissau.

Ao chegar o helicóptero, sai dele uma enfermeira que,  ao ver o soldado Santos sem roupa,  diz que assim não leva o ferido. Para ser socorrido, utilizaram-se os restos das calças para fazer garrotes à perna e ao braço. E com tiras da roupa seguram-se alguns pensos que tapam feridas menores. O homem estava nu.

Para satisfazer o pedido da enfermeira, foi pedido ao enfermeiro que tinha uma camisola interior vestida para que a tirasse e com ela tapasse o soldado ferido.


(iii) As vacas roubadas que andam de mão em mão, acabam sempre comidas em boa ocasião

Em Abril de 1972 aos elementos da Companhia que estavam no período de descanso, Salgueiro Maia pede voluntários para ir ao Km 13 da Estrada Bula – S. Vicente onde o 1.º Pelotão da Companhia estava emboscado e necessitava de apoio devido a um grupo de Balantas, que vinha do Senegal onde tinha ido roubar vacas, ter caído no campo de minas e algumas vacas andarem na estrada. Assim vão elementos da CCAV 3420 até ao local.

São apanhadas 2 vacas que são carregadas numa GMC. Satisfeitos os elementos da Companhia, com Salgueiro Maia à frente entram em Bula, gritando:
- Queremos carne.

À entrada do Batalhão   [BCAÇ  2928]  está o Comandante que manda parar a coluna de 4 viaturas. Quando se pensava que ia dar um louvor aos voluntários, houve-se uma reprimenda do Comandante por a tropa vir a fazer muito barulho e, dá ordens para que a coluna entre na sede do Batalhão (a CCAV 3420 era uma Companhia de Cavalaria independente mas de reforço ao Batalhão de Infantaria). Toda a actividade mais perigosa era desempenhada pela 3420.

Contrariando as ordens do Comandante, Salgueiro Maia manda avançar a coluna para o Esquadrão de Reconhecimento Panhard 2641 que ficava aí a 300 metros do Batalhão pois, era ali que as vacas iriam ser comidas. Ao regressar ao Batalhão o Comandante dá ordem a Salgueiro Maia para que entregue as vacas porque diz ele que todo o material capturado ao IN tem de ser entregue ao Batalhão. Salgueiro Maia diz então que as vacas não foram capturadas, mas sim oferecidas e que foi o pessoal da Companhia que as foi buscar estando de descanso e o Batalhão não mandou sair nenhumas forças.

Mais diz Salgueiro Maia:
- As vacas roubadas que andam de mão em mão, acabam sempre comidas em boa ocasião.

José Afonso (2009)

 (Continua)


[ Revisão / fixação de textos  e títulos, paar efeitos de publicação deste poste no blogue: LG ]
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P23139: Notas de leitura (1434): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Março de 2022:

Queridos amigos,
O Martins já passou praticamente um ano em Guileje, as flagelações são rotina, um dia estourou uma granada de canhão em cima do abrigo do Pel Caç Nat 51, foi o cabo dos trabalhos; continuam as incursões etnográficas, ele é bom observador; regista o desaparecimento de quartéis à volta, Gandembel, Mejo, Sangonhá, Cameconde, Guileje está cada vez mais exposto na sua posição solitária, prosseguem as colunas de reabastecimento; assiste, atónito, a mais uma aparição de Spínola que vai muito efusivamente conversar com um furriel de nome sonoro, ligado a famílias da banca, coisa curiosa desaparece de Guileje passado quinze dias, todos se indignaram com o escândalo, o descarado favorecimento. "O capitão anda furioso; até já desabafou publicamente a indignação." Estamos em meados de 1969.

Um abraço do
Mário



Uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné (3):
O Silvo da Granada, por José Maria Martins da Costa


Mário Beja Santos

Uma surpresa, e com aspetos bem curiosos, este "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa, Chiado Books, agosto de 2021. O leitor é colhido por uma prosa onde primam citações de clássicos, a começar pelo latim, tudo passa a ser entendível quando se lê o currículo que o autor apresenta: 

“Natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, aí frequentei a escola primária, finda a qual entrei no seminário, mais precisamente no mosteiro da Ordem Beneditina. Saí no sétimo ano, talvez para voltar daí a trezentos anos como o monge de Bernardes. Como trezentos anos demoram a passar, para não estar ocioso entretive-me a tirar o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade de Coimbra. Entretanto, assentei praça no Exército, indo para a Guiné como combatente da Guerra do Ultramar e assentei arraiais civis no Porto, onde casei, fui professor e jornalista. Nesta cidade, tenho levado vida plácida e remansosa, dentro dos parâmetros da Aurea Mediocritas de Horácio. Por falar em Horácio, ia-me esquecendo de dizer que publiquei há anos um livro de poemas intitulado Libellus, palavra latina que tanto pode significar pequeno livro como libelo acusatório. Fora das partes líricas, acusava realmente e castigava alguns dos costumes e vícios da sociedade contemporânea. Queria endireitar o mundo. Mas o mundo ignorou o livro e continuou cada vez mais torto”.

Já estamos em 1969, o aquartelamento de Gandembel foi extinto, a unidade militar transferida para Aldeia Formosa, Martins rememora o calvário das colunas, o Inferno dos primeiros tempos de Gandembel, os rebentamentos de minas, as emboscadas, as flagelações em cadeia. As tropas paraquedistas ainda tentaram descomprimir a pressão, havia um compasso de espera e os guerrilheiros voltavam. Os de Gandembel partiram discretamente, vieram os do PAIGC metralhar um despovoado aquartelamento. Também Mejo acabou em 28 de janeiro. “Tropas, camiões, armas ligeiras e pesadas, tudo, ou a maior parte, recolhido a Guileje, que contra agora mais um pelotão de nativos; já tinha o 51, veio de lá o 67. Igual destino já tivera Sangonhá (29 de julho) e também Cacoca, dois aquartelamentos entre Cacine e Gadamael”. E aproveita para contar a história umas filmagens feitas por suecos, um ataque contra o pequeno aquartelamento de Ganturé, os suecos exigiram filmagens à luz do dia, veio a força aérea e vindimou-os do alto, despejou bombas sob toda a região de Sangonhá, não foi pequena a carnificina.

Relata mudanças no seu pelotão, há gente a entrar e a sair em Guileje, o novo comandante de Companhia é um tenente dos Comandos, exibe garbosamente camisola branca, justa, de meia manga, botas a brilhar, o semblante austero. Houvera um período de pouca frequência nas flagelações, agora recrudesceram, um alferes e um furriel, a trabalharem no obus, foram ceifados por uma canhonada vinda da Guiné Conacri. Fazem-se patrulhas até às margens do Cantanhês, encontram-se umas pirogas. O novo comandante de Companhia parece não gostar do Martins e das suas estadias na tabanca. Cecília Supico Pinto visita Guileje, Martins parte para Bissau, está cada vez mais pitosga, precisa de novas lentes, e conta-nos que tentou no exame oftalmológico fazer-se bem cegueta, a pantominice saiu-lhe caro, foi passado ao contingente geral, “punido por razões de que não quer falar” e dá-nos conta do que foi a sua estadia em Tavira, ali encontrou um antigo colega de seminário que quis desertar e tudo lhe correu mal.

A sua afeição com a gente da tabanca parece inquebrantável, fala-nos amiúde de Suleimane, de Dadanda, de Cumba, Ádama, da criancinha Mauro, compra-lhes presentes no mercado de Bandim e volta de barco até Gadamael. E não deixa de tecer um comentário: “Dos abrigos de Gadamael salta à vista a pouca robustez – uns perfeitos cardenhos. Mas isto não é Guileje; as valas vão chegando para as encomendas. Demais, é vezo dos guerrilheiros errar o tiro, indo as mais das granadas explodir no rio, assustando as ostras. No rio se banha ou chafurda sem temor a tropa, confiada nos hábitos de morcegos dos guerrilheiros, que só se atrevem ao lusco-fusco”. E regressa a Guileje, dá-nos conta das suas observações etnográficas, metido no posto de rádio, alguém diz diga se recebeu, escuto, a resposta sai breve, correto, afirmativo, começara uma nova flagelação, dá-se dois saltos para a boca do alçapão, era a primeira vez que um ataque apanhava o Martins no posto de rádio, uma granada de canhão sem recuo rebenta em cheio sobre as instalações do pelotão 51, foi o terror e a confusão, há que mostrar ao leitor o estado de alma, o olhar atónito, do que se está a ver: “O terrível engenho descarnou a cobertura de toneladas de terra e cimento que formam o essencial da sua estrutura e deixou-a no osso dos troncos de palmeira justapostos, que, a modo de caibros, a sustentam. Ouve um camarada contar como à explosão se seguiu o ranger o de alguns troncos, que estalaram ou partiram, ameaçando ceder. Os abrigos de Guileje perdurarão na memória dos que por aqui passaram; e, mais do que isso, merecem ficar na história dessa guerra.”

Procura entender os ritos dos Islamismo, as preces na mesquita. Refez-se a cobertura do abrigo do pelotão 51, restaurada e reforçada. ‘Cortar palmeiras, carrear os troncos, retirar os velhos e assentar os novos a poder de braço, tudo se fez em três escassos dias; trabalho, dada a pouquidão de meios, pouco menos que ciclópico. Houve ainda que encher a cratera com terra e mais terra estender-lhe por cima nova camada de cimento’. Mas ainda a camada de cimento não tinha totalmente secado e voltaram as flagelações. “Nada mudou desde que o Martins pôs pé em Guileje. A tropa não recua, também não avança, o que só favorece o inimigo, que aposta no desgaste causado pelo tempo a quem não é de cá.”

E assim se chegou a abril e depois a maio, sucedem-se as flagelações, a população continua tranquilamente a sua vida monótona, não deixando de ir cultivas o seu arroz de subsistência, ao amanhecer as viaturas carregadas de bidões vão direito ao poço aberto na brenha, a uns 2 km, operação que requer severa vigilância. Spínola volta a Guileje, assim se descreve o seu regresso:

“Negros como abutres, descrevendo círculos por largo, bem à vista o cano saliente do canhão de bordo, os três passarões assenhoreiam-se destes ares; metem respeito e não admira que os guerrilheiros mais que tudo os temam. E, enquanto dois deles vão dando voltas, agora mais fechadas, sobre Guileje, o outro ensaia a operação delicada de vir a terra; um instante imobilizado, roda agora a ganhar posição, inclina um tudo-nada o focinho, cautamente sondando o espaço em baixo onde pousar. E já vai descendo, em volto grossos rolos de pó que revoluteiam furiosamente no ar agitado do voltear estonteante da hélice. O monstro impõe a sua presença aparatosa. Ei-lo em repouso no chão espanado pela ventaneira”

O comandante de Companhia não gostou da discriminação, Spínola passou por meio da pequena multidão e deu de cara com um furriel do 67, cumprimentos efusivos. “O nome, de todo incomum, ou talvez sobrenome, é o mesmo de uma família da alta roda lisboeta ligada à banca. Coincidência ou não, o certo é que ainda não passaram quinze dias e já o furriel foi de abalada, transferido para zona menos descoberta aos golpes da implacável guerrilha.”

(continua)


Na tentativa de encontrar elementos gráficos disponíveis sobre Guileje, distintos daqueles que já possuímos (e que é um acervo de inegável valor) imergi no Google Maps e apareceu-me um documento com nome Jorge Soares, março de 2018, impressionaram-me estas imagens, e onde quer que esteja o autor peço-lhe a benevolência de aqui as reproduzir, é um dossiê muito belo, aqui fica a minha vénia em nome do blogue
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23131: Notas de leitura (1433): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (2) (Mário Beja Santos)