quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23856: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VII - Que mal fizemos nós?! e As minhas únicas férias

1. VII parte da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


VII - que mal fizemos nós?!...

O Comando de Bissau destacou um major para assumir o comando da companhia e, uns dias depois, vem um novo capitão, um profissional de artilharia e de comandos, como fazia questão de evidenciar, para comandar a companhia.
Este novo capitão entrou com postura de chefe, apoiado nos galões, e não como líder, o que nada ajudou na recuperação psicológica da companhia, ainda doente pela perda do capitão Assunção e Silva e já um pouco desgastada pelos frequentes ataques agressivos dos guerrilheiros do PAIGC.
Aquela atitude de chefe veio a revelar-se, cada vez mais, ao longo do tempo.

Os conflitos surgiram, as manifestações de revolta atingiram níveis impensáveis, o que nada ajudava na conjugação de esforços para ultrapassarmos as adversidades naturais daquela guerra.
No que me dizia respeito, empatia zero, logo de início, tendo dado origem a um divórcio antes de qualquer ‘relação’, com um convívio tóxico por circunstância, notado por todos, divórcio que se mantém, pois o meu íntimo nunca me permitiu ceder ou esquecer aquele comportamento…

Perseguição constante aos graduados e ameaças de tudo e mais alguma coisa aos soldados, com ‘piçadas’ (rabecadas) por tudo e por nada, sem esquecer agressões físicas.
A toda a hora prometia ‘porradas’ (castigos) e tentava impor a sua autoridade através dos galões, a única forma de conseguir alguma coisa da companhia.
Só por curiosidade, não era bem vindo na Tabanca, pela população nativa…

Também salientava que dois capitães do seu curso tinham morrido, facto agravado pela morte do nosso capitão, também, mas ele tudo faria para manter-se vivo, talvez uma desculpa para o seu comportamento…
Se todos tivessem este mesmo comportamento, só porque queriam manter-se vivos, imaginemos o cenário social e emocional da companhia…

Um militar profissional é suposto ter aprendido técnicas de liderança que permitam fazer face a circunstâncias deste tipo, mas não era o caso, claro…
As operações eram asseguradas por nós, milicianos, enquanto o capitão tratava dos assuntos da companhia, dentro do arame farpado, mais cómodo e um pouco mais seguro…

Desculpe, Daniel, mas lá vou eu falar naquela dos homens, que são todos iguais mas, felizmente, não pensam todos da mesma forma…

Entretanto, chega um 2º sargento, não me recordo porque razão, mas julgo que por uns tempos, apenas.
Algum tempo depois, por incompatibilidades e, ao deparar-se com a filosofia deste capitão e com as dificuldades daquela zona de guerra, cujas operações estavam na mão dos milicianos, acaba por sair de Gadamael Porto.

Segundo informações que me chegaram, logo que chegou a Bissau, este sargento relatou a autoridades militares de Bissau o cenário que se vivia em Gadamael Porto.
Conclusão: ordem de Bissau para que o capitão passasse a fazer parte de toda a actividade operacional, fora do aquartelamento…

A vida continuou e estava-me reservada mais uma surpresa: tanto andou, tanto andou, que foi inventando desculpas e pretextos que me impediram de vir de férias as duas vezes a que tinha direito, o que reforçou a minha revolta, bem notada, por grande parte da companhia.
Mas um pequeno esforço mental e uma certa dose de perseverança, a par de me sentir um pouco mais maduro, permitiu que já conseguisse viver melhor com o que não conseguia mudar.
E eu tinha a certeza - optimismo natural - que nada iria abalar o meu carácter, a minha personalidade, e tudo acabaria bem, pois era certa e forte a amizade e ligação fraternal com os homens da companhia, o mais importante.

E nunca esquecerei aqueles homens, fiéis, leais, apesar da condição humilde de muitos deles, a par de uma revolta natural, principalmente, dos que já vinham de uma experiência de prisão, como Penamacor, por vicissitudes da vida.


as minhas únicas férias!

Passou um ano e vim de férias, uma única vez, claro.

Segundo o primeiro-sargento Moreira, o meu historial não permitia as duas vezes, dada a má relação com o capitão, que tudo arranjou de forma a eu só gozar um período de férias.
O que ele queria era ver-me a reclamar e contestar, não sabendo a que ponto poderíamos chegar, o melhor caminho para a probabilidade de entrarmos em processo disciplinar…
Mas, apesar de tudo e mais alguma coisa, eu estava preparado para situações de conflito e cenários adversos, pelo que não cedia a tentações.

Aproveitei uma pequena avioneta que tinha vindo trazer correio e documentação para a companhia e lá fui, até Bissau, partilhando a avioneta com o Padre da Tabanca, o que significava segurança, para mim…
Dizia-se que, sempre que o padre se ausentava, tínhamos ataque mais cerrado, e ainda tive tempo de avisar alguém sobre essa probabilidade.

Voo da TAP marcado e lá vim até à Metrópole.
Uma escala inesperada, em Cabo verde, na ilha do Sal, por avaria técnica do avião, que durou umas duas ou três horas.
Aeroporto da Portela, Lisboa, parecia imaginação!

Foram trinta e cinco dias de recuperação, de conforto, de civilização, carregando pilhas para mais um ano ‘daquilo’…
Revi e abracei família e amigos, evitando comentários sobre aquela realidade que acabara de deixar e que voltaria a viver.

A minha mãe estava muito preocupada, claro, tanto mais que o Flórido, logo que chegou à Figueira da Foz, foi visitá-la e dizer-lhe que tinha estado comigo, antes de eu partir para o mato, frisando-lhe que ia para o pior sítio da Guiné!
Eu nem queria creditar nisto, pois tinha o Flórido como inteligente e de bom senso.

Ao mesmo tempo, logo que soube que eu tinha vindo de férias, a tia Jú telefona-me a agradecer a minha ajuda e a relatar a atitude do tal filho dos marchantes de Vieira do Minho, logo que chegou.
Antes da família, foi visitar a minha avó Júlia e tia Jú, felicitando-as pelo neto e sobrinho que tinham e dizendo que eu lhe tinha salvado a vida, pois poderia ter sido preso, mais uma vez, ou pior do que isso, se matasse o capitão e o alferes, como tencionava.
Mas, infelizmente, não ficou por ali, pois não deixou de dizer que eu estava no pior sítio e que tinha pena de mim e medo que me acontecesse alguma coisa!
Eu ia lá imaginar que alguém ia falar destas coisas à minha família, sem pensar no que poderia causar de preocupação e instabilidade emocional!

Isto faz-me lembrar aquela do Descartes: ‘se penso, logo, existo’…

Mas o que diria o Descartes se soubesse que pessoas que não pensam também existem…

"Realmente, Adolfo, com amigos assim, que não pensam um pouco, antes de falarem, é preferível termos inimigos!
Mas também podemos colocar a possibilidade de o fazerem debaixo de instabilidade emocional, logo, merecedores de algum desconto ou, pelo menos, do benefício da dúvida…"


Tem razão, mas há temas que requerem um pouco mais de ponderação, de discernimento…

O meu irmão já tinha regressado de Moçambique, há muitos meses, e estava a tentar reorganizar a vida, embora as dificuldades decorrentes do tal caso Guiomar e Carla tivessem tido tanto impacto na nossa família que os obstáculos cresciam e tornavam tudo mais difícil.
E eu não queria dar a entender aos meus pais que conhecia ou dava importância ao caso, estratégia pessoal.
Caso viesse a lume, defenderia a posição do meu irmão, o mais possível e de forma natural.
Só podia, em função da história que o meu irmão acabou por contar-me, mesmo não concordando ou aplaudindo, claro.

Uma aventura com uma menina, a Guiomar, professora de Liceu, durante as férias que tinha vindo passar à Metrópole, deu mau resultado, digamos, pois a menina ficou grávida.
As circunstâncias que os envolviam não permitiam tal responsabilidade, ideia comum aos dois, segundo falaram.
Apesar de ela dizer que o meu irmão era o homem da vida dela e de se ter convencido de coisas que não ofereciam garantia de ninguém, muito menos do meu irmão, lá acabou por aceitar resolver o assunto, para o que foram falar com uma médica amiga, pagaram os tratamentos, a meias, e cada um seguiria o seu caminho, como pessoas civilizadas.
Mas a menina fingiu que tratou do assunto e deixou vir o bebé, a Carla.

Quando achou conveniente, pediu a transferência para Coimbra, pois estaria perto da Figueira da Foz, logo, no caminho da entrada em casa da nossa família.
Mas só se aproximaria, quando o caminho estivesse livre de qualquer obstáculo, claro.
Porquê? Porque o meu irmão lhe tinha dito que nunca pensasse em compromissos ou casamentos, depois da falsidade que ela tinha cometido, e que o próprio irmão não aceitaria o casamento deles.

O meu pai, pelos seus princípios e posição profissional e social, logo que ela se apresentou, de menina ao colo, preparou a recepção e disse que o Victor era um rebelde, mas de bom coração, pelo que tratariam da união, com apoio.
Ela aproveitou logo para dizer ao meu pai que o Victor nunca casaria com ela porque o irmão ‘não deixava’...

Matou vários coelhos com uma só cajadada: armou-se em vítima, agravou a incompatibilidade entre o meu pai e o meu irmão e pôs o meu pai contra mim.
Mas foi aproveitando o patrocínio do meu pai: prendas para ela e filha, ajuda financeira em várias situações, fora o que não cheguei a saber.

Perto do final da comissão, o meu irmão foi confrontado com um documento que o comandante da unidade, em Moçambique, lhe apresentou: ou assina ou vai ter dificuldade em sair do serviço militar!
Ora, o meu irmão já estava com quase seis anos de serviço militar e logo respondeu que assinava tudo o que quisessem.
Pois é, assinou a perfilhação da miúda!

O que não sabia é que tudo tinha tido a mão de um primo da Guiomar, muito influente na TAP, naquele tempo.
Quando chegou ao aeroporto de Lisboa, a recepção foi calorosa: os meus pais, a minha irmã, a mãe da Guiomar, a Guiomar e a Carla.
O meu irmão, perante tal surpresa, cumprimentou todos e decidiu surpreender, também, desandando, sem perda de tempo - eu faria o mesmo…
A partir daí, a relação com o meu pai piorou, não mais voltando ao normal.

O meu irmão, controlador de tráfego aéreo, especialidade OCART, da Força Aérea, à semelhança de outros colegas, candidatou-se a controlador, no aeroporto de Lisboa.
Entregou o dossier uma vez, duas vezes, três vezes, mas sempre desapareciam!
Descobriu que o tal primo da Guiomar andava metido na coisa e nada havia a fazer.
Bem dizia ela ao meu irmão que lhe faria a vida negra!

Viu anúncios e candidatou-se a um lugar na Agência de Viagens Holitur, na Av Duque d’Ávila, Lisboa, tendo sido admitido e logo iniciou o trabalho.

Como eu tinha esses dias de férias, aproveitei para passar alguns com ele, o que me deu para espairecer um pouco, sem ficar limitado à Figueira da Foz.
Ele estava hospedado na Residencial Parisiense, no Rossio, e lá fiquei com ele, esses dias.

Mas estas curtíssimas férias não acabaram sem que me dessem uma má notícia: o meu amigo Vítor Caldeira tinha morrido, na Guiné, pouco tempo antes de eu vir de férias.
Era piloto da Força Aérea e sofreu um acidente fatal, na descolagem da avioneta, por ter batido nos arames farpados de um aquartelamento.
Voar baixo, por razões de segurança, pode dar acidente…

Mesmo absorvido por cenários como acabei de lhe descrever, ainda consegui ler umas coisas sobre os negócios do petróleo, um caso que começava a atormentar alguns países, pois as repercussões dos conflitos económicos à vista não deixavam antever outros resultados.

Como o Daniel se recordará, nesta altura, os EUA negociavam com a Arábia Saudita um tratado que visava absorver toda a sua produção de petróleo, mas com a cotação em usd, como moeda de transacção, em troca de armamento e protecção militar - era o início de uma nova moeda de transacção, o petrodólar!

O usd, criado pela reserva federal americana, independente do estado, era lançado no mercado sem limite, mas com o valor de papel, apenas, pois não apresentava o contraste em ouro ou prata, como sabemos.
Este acordo comercial obrigava todos os países interessados na compra de petróleo à Arábia Saudita a usarem os petrodólares, uma forma simples de valorização do usd.
Não conseguia imaginar o que isto iria dar, uns bons anos mais tarde, como todos constatámos!...

Como sabe, a Líbia e o Iraque resolveram adoptar o mesmo esquema, seja, adquirir petróleo à Arábia Saudita, mas usando a sua própria moeda.
Os EUA não gostaram e foi o que se viu, nomeadamente, invasão do Iraque, liquidação da Líbia, etc.

Engraçado que, no caso do Iraque, o pretexto dos EUA foram as armas de destruição massiva do Iraque e o facto de terem invadido o Kwait, geoestratégia…
Os EUA, pela mão do Bush filho, com a companhia de Blair, Aznar e Durão Barroso, na Cimeira das Lajes, em 2003, decidiram e formalizaram a invasão ao Iraque…

Este Durão Barroso, ‘um patriota puro e desinteressado’, como sabemos, teve a compensação - sair de Portugal, passar por Bruxelas, até ocupar o cargo importante no banco que sabemos, nos EUA… Patriotas destes, dispensamos!
Tudo isto ficará na História Universal, claro, embora saibamos que ‘pintado’ à maneira de cada um…

Quanto à China, a coisa foi diferente, pois usou o mesmo esquema, mas sem a oposição dos EUA, claro, e começou a comprar todo o ouro do mundo, permitindo aos agentes económicos a troca do Yuan por ouro ou prata.
A Rússia seguiu o exemplo da China, também, sem oposição dos EUA, da mesma forma, claro.
Tanto a China como a Rússia passaram a ser uma forte concorrência aos EUA.
Isto foi o primeiro dia do início da queda dos EUA, como primeira potência mundial da economia!

Nessa altura, pelas circunstâncias, tive pena de não ter acompanhado todo este assunto, em tempo útil, pois era bem interessante…

"Mas o Adolfo tinha de ocupar a mente com outos assuntos, melhor, problemas, não é?"


Diz bem, outros problemas me esperavam, infelizmente…

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando

Guiné 61/74 - P23855: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XII: Emboscada no Oio, em dezembro de 1964, com o grupo "Fantasmas" reduzido a 12 comandos...

 

Guiné > Região do Oio > Mansoa > Cutia > Destacamento de Cutia > c. 1970 > Foto enviada  pelo César Dias, ex-fur mil sapador, CCS / BCAÇ 2885, um batalhão que esteve em Mansoa e Mansabá desde maio de 1969 a março de 1971, e a que pertencia a CCAÇ 2589, de que o Jorge Picado foi um dos comandantes, de  24/2/1970 a 15/2/1971. Estranhamente, Cutia não vem nas cartas nem de Mansoa nem de Farim. Ficava a nordeste de Mansoa, na estrada Mansoa-Mansabá.

Foto (e legenda): © César Dias (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Bogue Luís Graça & Camaradas da Guiné



1. Mais um excerto das memórias do nosso camarada Amadu Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010, autor do livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.).  

O Virgínio Briote, nosso coeditor jubilado (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965,  e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) disponibilizou-nos o manuscrito,  em formato digital. 

Recorde-se que, durante cerca de um ano,  com infinita paciência,  generosidade, rigor e saber, ele exerceu as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando-o a reescrever o livro,  a partir dos seus rascunhos e da sua prodigiosa memória.


Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria >
IV Encontro Nacional do nosso blogue >
20 de Junho de 2009... O VB e o Amadu.
Foto: LG (2010)
A edição de 2010, da Associação de Comandos, com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está infelizmente há muito esgotada. E não é previsível  que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretanto, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida. 

Recorde-se, aqui,  o último poste 
desta série (*):  O  Grupo de  Comandos "Fantasmas", da Companhia de Comandos do CTIG,  comandado pelo alf mil 'comando' Maurício Saraiva, nascido em Angola, sofre o seu primeiro grande revés,  a sudoeste  de Madina do Boé, na estrada para Contabane, junto a um pontão sobre o rio Gobige, quando uma coluna auto aciona uma mina anticarro, em 28 novembro de 1964. Irá perder 8 dos seus homens, ficando reduzida a 12 operacionais,


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.





  Emboscada no Oio, em dezembro de 1964,  com o grupo "Fantasmas" reduzido a 12 comandos...

(pp. 105/108)

por Amadu Djaló (*)




Guiné > Região do Oio > Carta de Mansoa (1954)  / Escala 1/50 mil > Posição relativa de Cutia (a nordeste de Mansoa, já na carta de Farim), Morés, Iaron, Talicó e Santambato.

Infografia: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné (2022)



Depois do descanso, no quartel, em Brá, fizemos uma reunião entre nós, como fazíamos habitualmente. No dia seguinte pegámos nas armas e fomos para a mata de Nhacra. Muitos tiros, depois regressámos a Brá e no dia seguinte, formámos o grupo com doze comandos. Tinha regressado de férias o Furriel Morais [1], agora o 2º comandante do grupo ["Os Fantasmas"].

Depois da mina de Gobige, em que tínhamos sofrido aquelas baixas todas, nós não estávamos muito animados. Mas o alferes  [mil 'comando'  Maurício] Saraiva não parou. Com 12 homens e um guia, de nome Mamasaliu Djaló, natural do Oio, preparámo-nos para sair.

De Brá arrancámos em viaturas com destino a Mansoa.

O batalhão [2] de Mansoa tinha preparado uma coluna que nos transportou até Cutia, de onde partimos a pé, Oio dentro, até Tambato.

Quando aqui chegámos, por volta do meio-dia [3]   [,  quarta-feira,  9 de Dezembro de 1964] , emboscámo-nos na tabanca abandonada, junto ao cruzamento do carreiro que vem de Talicó e de outro que vem de Santambato. Mantivemo-nos ali até ao pôr-do-sol, levantámos a emboscada e prosseguimos para Santambato, sempre no máximo silêncio. Chegados aqui, emboscámo-nos de novo, junto ao caminho que vem de Iaron, com o acampamento de Talicó à nossa direita e o de Sinre à nossa esquerda.

A missão devia durar três noites, progredindo em emboscadas sucessivas. A primeira em Santambato, perto de Cutia, a segunda em Iaron, e a terceira e última à entrada de Bissorã.

Durante a primeira noite não aconteceu nada. De manhã  [, quinta-feira,  9 de Dezembro de 1964], o alferes mandou levantar a emboscada. No caminho vimos umas bananeiras, mesmo junto à tabanca abandonada e espalhámo-nos por ali. Como o caminho passava mesmo encostado às bananeiras, passados para aí cinco minutos, ouvimos vozes de uma mulher a aproximar-se. Vinha acompanhada por um homem. A mulher trazia roupa lavada e o homem uma sangra [4] com galinhas.

O alferes disse-nos para ninguém disparar, que eram civis. Assim que chegaram junto de nós, o alferes disparou uma rajada curta para o ar, a mulher deixou cair a roupa e o homem largou a sangra com as galinhas. Eu disse que era melhor sairmos dali, o alferes queria avançar mas concordou comigo.

Regressámos para o local onde nos tínhamos emboscado durante a noite. Dispersou-nos dois a dois e eu, ele e o guia ficámos juntos. Neste local onde estávamos fazia muito frio. Pousei a minha arma no chão, para puxar para baixo as mangas da camisola e o alferes fez o mesmo. Quando me estava a arranjar, vi um homem com uma Mauser, muito perto de nós, a olhar para longe. Ninguém pensaria que, junto a estes pequenos arbustos estivesse alguém, mesmo ali à beira dele. Ele olhava para uma mata mais densa, junto ao rio.

Quando o vi, não deu tempo para falar. Peguei na arma, que era a do alferes, que estava em cima da minha, apontei, o alferes pegou na minha e também apontou. A três metros, à direita do homem estavam companheiros nossos deitados. Um deles, que estava tão perto que nem podia respirar, disparou um tiro. O homem nem mexeu um dedo. Saí do esconderijo e corri para lhe tirar a arma. Largámos a correr, até ao rio.

O alferes queria atravessá-lo através de uma árvore que servia de ponte, e eu achava que não se devia atravessar porque o PAIGC devia lá estar, era uma passagem quase obrigatória. Que era melhor seguirmos pela margem, ao longo do rio. Descemos todos para a água e passámos até à outra margem, com a água muito fria até à cintura. Depois de a atingirmos, encontrámos o caminho para Tambato e ouvimos tiros vindos do lado da ponte. Estavam ali à nossa espera, como eu pensara.

Agora daqui para Cutia, só com apoio aéreo, disse o alferes. Estabeleceu contacto rádio e a resposta foi que só podíamos ter apoio dos aviões à tarde, porque os T-6 estavam todos no sul. Na conversa com a Dornier, foi-nos perguntado se nós tínhamos alguns dos nossos para trás, porque do ar viam fumo de troca de tiros.

Nós não estávamos dispostos a ficar até à tarde, neste local. Pouco tempo depois, ouvi um berro de uma perdiz a levantar voo. O alferes perguntou o que era e eu respondi que podia ser alguém que andava por ali. Quando uma choca levanta voo a berrar é porque alguém está a passar perto. 

Saímos cautelosamente dali, sempre no caminho até Cutia, onde finalmente chegámos sem mais incidentes. Recolhidos em viaturas, fomos transportados para Bissau, com passagem por Mansoa, onde nem parámos.

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Notas do autor e/ou do editor literário (VB):

[1] Furriel Mil. Joaquim Carlos Ferreira Morais.

[2] Nota do editor: Batalhão de Artilharia 645

[3] Nota do editor: 9 de Dezembro de 1964

[4] Cesto com galinhas

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]

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quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23854: (Ex)citações (419): Após o 25 a Abril foi nascendo e ganhando raízes, em Nova Sintra, a sensação de que finalmente íamos ficar livres daquele inferno... (Ramiro Figueira, ex-Alf Mil Op Esp)

1. Mensagem do nosso camarada Ramiro Alves de Carvalho Figueira, médico na situação de reforma, ex-Alf Mil Op Especiais da 2.ª CART/BART 6520/72 (Nova Sintra, 1972/74), com data de 5 de Dezembro de 2022:

Boa tarde

Como sempre, acompanho todos os dias os posts que vão surgindo no blog e este, sobre as relações com o PAIGC pós-25 de Abril suscitou-me várias memórias.(*)

Após o 25 a Abril foi nascendo e ganhando raízes, em Nova Sintra, a sensação de que finalmente íamos ficar livres daquele inferno e rapidamente regressar a nossas casas depois de dois anos (na verdade mais alguns meses) de sacrifício com a morte a rondar diariamente e as provações contínuas a que fomos sendo submetidos que enumerar aqui seria fastidioso para quem por lá andou e tem memória dos anos de guerra.

Em Julho de 1974 (a 17, segundo o nosso amigo Carlos Barros, que também publicou sobre este tema) tinha recebido do capitão a indicação de que nesse dia iriam chegar ao quartel elementos do PAIGC que iriam substituir-nos e que eu iria recebê-los dado que falava crioulo (acrescento que sou natural de Cabo Verde e falava crioulo sim mas de Cabo Verde, diferente do da Guiné). Dias antes, portanto já bem depois do 25 de Abril, uma Berliet da nossa companhia tinha accionado uma mina na estrada de S. João e só por sorte não houve feridos, só um enorme susto para quem estava na viatura que ficou com a parte traseira feita em cacos.

Cumprindo o determinado lá fui até ao 4.º grupo que dava para a bolanha para onde se saía a caminho de Ganfudé Mussá, tabanca já sob duplo controle nosso e do PAIGC e onde capturámos algum armamento e um guerrilheiro. E assim, logo pela manhã começou a surgir um grupo, aparentemente pequeno, de homens armados que precedia um outro já mais numeroso. Desci pelo carreiro ao encontro deles, confesso que com algum receio e ensaiei umas palavras de crioulo ao que me responderam em português.

- Bom dia, sou o major Quinto Cabi e venho em nome do PAIGC para o quartel de Nova Sintra.

Acompanhavam-no um pequeno grupo de homens que, conforme se foram identificando, foram como campainhas que tocavam na minha cabeça. O comandante Tchambú Mané que comandava a artilharia que muitas vezes nos brindou com canhoadas e morteiradas, o Bunca Dabó que liderava os guerrilheiros que nos emboscavam e causaram tantas dores de cabeça, o Armando Napoca que tratava de colocar as malfadadas minas que tanta chatice nos deram, um comissário político cujo nome já não me recordo e vários outros. Caminhei com eles ao longo do arame farpado até à porta de armas por onde entraram e onde os aguardava o capitão e demais pessoal da companhia e a pequena população da minúscula tabanca que existia em Nova Sintra. Não consigo imaginar o que passava pela cabeça daquela gente, tantos anos junto da tropa e de repente viam o inimigo entrar pela porta dentro do quartel onde se abrigavam, embora tivessem conhecidos e família junto do PAIGC a sensação devia ser no mínimo confusa.

Entraram no quartel e foram-se espalhando entre os soldados e tabanca aparentemente convivendo como se tivessem sempre andado por ali…

Ao fim da manhã, vindo de Tite, chegou o comandante do batalhão, Ten. Coronel Almeida Mira, que reuniu na parada com os quadros do PAIGC numa longa conversa que não acompanhei, apenas o Capitão Machado que comandava a companhia estava presente. Seguiu-se um dia mais ou menos estranho de convívio entre a tropa e a guerrilha e dormimos todos pacificamente no quartel. No dia seguinte subimos para as viaturas e deixámos Nova Sintra para sempre a caminho do Cumeré e depois Lisboa. Interrogo-me hoje sobre o que sentia nesse momento. Acho que senti apenas alívio, depois de dois anos que só quem por lá andou é capaz de definir é a única coisa de que me recordo, outros terão outras sensações, eu apenas queria sair dali quanto mais depressa melhor.

Foto 1 – Viatura Berliet após accionar uma mina na estrada para S. João. Vê-se da esquerda para a direita o alferes Pereira, o furriel Elias e o furriel Sousa
Foto 2 – A chagada do PAIGC a Nova Sintra. À frente da esquerda para a direita, eu, o major Quinto Cabi, o comissário político e o comandante Tchambú Mané
Foto 3 – Reunião na parada do quartel de costas o ten. coronel Almeida Mira, de boné azul o major Quinto Cabi, de lado o mais alto o capitão Machado e de camisa branca o comandante da milícia
Foto 4 – Na parada do quartel o furriel Duarte conversa com o Bunca Dabó
Foto 5 – Dentro de uma Berliet eu a dizer adeus a Nova Sintra
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Notas do editor

(*) - Vd. poste 5 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23847: Casos: a verdade sobre... (32): o pós-25 de Abril no CTIG, as relações das NT com o PAIGC, a retração do dispositivo militar e a descolonização

Último poste da série de 30 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23749: (Ex)citações (418): O termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu (Cherno Baldé)

Guiné 61/74 - P23853: Historiografia da presença portuguesa em África (346): Aquele que terá sido o primeiro exercício etnográfico para toda a Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Há que reconhecer o interesse deste questionário etnográfico proposto pelo capitão Velez Caroço ao governador da Guiné. Desconhecem-se as consequências, mas convém não esquecer que havia antecedentes quanto à obrigatoriedade de relatórios anuais emanados pela administração até Bolama, era um imperativo legal informar o governador sobre determinadas questões elementares de todas as regiões; Ricardo Sá Monteiro, o governador que antecedeu Sarmento Rodrigues procedeu em 1941 a uma reunião de administração em que formulou a exigência de se saber mais sobre os usos e costumes do indigenato. Mas não restam dúvidas que o capitão Velez Caroço se esmerou na procura de uma malha de inquérito que assegurasse um melhor conhecimento, de acordo com os conhecimentos etnográficos do seu tempo, muitos deles rapidamente ultrapassados, caso do conceito de raça.

Um abraço do
Mário



Aquele que terá sido o primeiro exercício etnográfico para toda a Guiné

Mário Beja Santos

Encontram-se pelos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa diferentes relatórios enviados pelos chefes de posto e administradores de circunscrição para o governador da Guiné, logo nas primeiras décadas do século XX, tratava-se, aliás, de uma exigência legal, informar Bolama de tudo quanto se passava em qualquer dos lugares da colónia, havia mesmo preceitos para as informações ordem socioeconómica e cultural. Foi dentre deste vasto acervo que encontrei uma proposta de questionário etnográfico que saiu do punho do Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, Capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, familiar do antigo governador. A data do documento dirigido ao Governador Carvalho Viegas corresponde à sua publicação no Boletim Oficial da Colónia, 14 de maio de 1934. Atenda-se à importância que tem a carta que o Capitão Velez Caroço envia ao governador:
“Os factos e as características observadas na vida do indígena e na sua maneira de ser, e na necessidade absoluta e urgente de procurar metódica e progressivamente aproximá-lo da nossa civilização, com a garantia indispensável dos seus direitos, é verdade, mas tendendo sempre para um melhor e mais completo aperfeiçoamento, determinaram a conveniência de criar para ele uma ordem jurídica adaptada à sua mentalidade primitiva, às suas faculdades psíquicas, aos seus sentimentos e que se harmonize, tanto quanto possível, com o respeito pelos seus usos e costumes, cuja transformação se deve efetuar lenta e gradualmente, evitando assim possíveis perturbações que têm tanto de inúteis como de prejudiciais”.

Começa-se a perceber o móbil desta incursão etnográfica que o oficial do exército apresenta: conhecer as gentes para as encaminhar para um quadro civilizacional superior, para tanto é indispensável conhecer a fundo as mentalidades e garantir direitos a quem ainda não está no patamar de “civilizado” ou “assimilado”. Velez Caroço faz notar a singularidade do mosaico étnico, havia que conhecer a fundo os usos e costumes de todos para que essa codificação melhorasse a ação administrativa, daí o imperativo de conhecer com minúcia a vida material do indígena, a sua constituição moral, as práticas religiosas, etc. E adianta uma informação:
“Já em 1928 uma ordem emanada do governo da colónia mandava elaborar o questionário etnográfico cuja finalidade se fixava, naturalmente na absoluta necessidade da existência de uma codificação de usos e costumes, sobre a qual deveria assentar a legislação especial reguladora dos estatutos sociais dos indígenas”. Foram poucas as respostas que chegaram, vieram dos administradores de Canchungo e Mansoa e sobre as etnias Manjaca, Brame e Balanta. Tudo insuficiente, daí ele poder dizer que a ordem jurídica existente é falha e a ordem jurídica inadequada, como observa: “No cível e comercial, a ação da justiça é, vagamente, encerrada no respeito pelos usos e costumes das raças jurisdicionadas, com a resultante de confusões e atropelos produzidos por critérios diferentes na forma de provocar a evolução, se por transformação lenta, se por imposição abrupta de sistemas que se aproximem da definição do estado social perfeito. Um e outro estatuto, o civil e o criminal, carecem da unificação de diretrizes sobre que assente a ação da justiça. Obtido, como é de esperar, o interesse e a dedicação das autoridades administrativas, e de outras individualidades que podem e devem trazer à resolução do problema o concurso dos seus conhecimentos, disporemos dos elementos precisos à confeção dos Códigos Indígenas especiais de administração e justiça, tão necessários a uma perfeita ação civilizadora”.

A proposta de questionário abarca três temas: raças, dos direitos, comércio e indústria. Nas raças, visa-se conhecer a sua origem e história, a que raças pertencem os indígenas que habitam a região, hipóteses prováveis sobre a sua origem, conhecer a raça mais antiga; atender aos sinais e características de cada raça ou tribo, saber se praticam tatuagens ou cicatrizações, a que regras obedece a tatuagem, se há tatuagens próprias para as crianças púberes; na dimensão antropológica pretendia-se apurar qual o tipo físico e a cor, a forma geral dos crânios, se o cabelo quando cresce forma mechas separadas ou ganham uniformidade; pretendia-se apurar a índole da população: se é ativa, industriosa, pacifica ou de caráter guerreiro, se têm aversão ao trabalho e como a manifestam; passando para o campo da justiça pretende-se saber mais sobre o exercício e principio de autoridade dos indígenas: quais são as autoridades indígenas estabelecidas pelos seus usos e costumes, se existe régulo, qual a sua autoridade e poder, que homenagens prestam aos régulos e chefes, como os saúdam, como saúdam os velhos; havendo emigrações constantes na colónia, impunha-se saber se a população se considerava definitivamente fixada à terra, se aspira à mobilização e havia que perguntar se quando abandonavam determinada região o que transportavam consigo; o questionário inflete agora para a família, a sua constituição: se são polígamos ou se casam apenas com uma mulher; quais as formalidades e cerimónias do nascimento, quem assiste as parturientes, direitos dos irmãos e parentes, direitos dos filhos de segunda mãe, se o divórcio é aceite entre os indígenas, em que condições; como se fazem os enterros, que tipo de cerimoniais; procurar conhecer se os indígenas costumam fazer disposições dos seus bens e direitos ainda em vida ou se as heranças e sucessões produzem o seu efeito apenas após o seu falecimento; na questão da habitação, o inquérito propõe apurar em que idade constrói o indígena a sua casa e passa a ter domicílio próprio, e como é apreciada a ausência de um indígena na sua terra e na sua casa; pretende-se igualmente apurar a prática do poder paternal e a legitimidade dos filhos, como é que esse poder é exercido, como se reconhece a legitimidade dos filhos, se os pais são inteiramente responsáveis pela alimentação dos filhos, e até se pretende saber até que idade são os indígenas considerados menores ou se há diferenças segundo os sexos.

Todas estas matérias acima assinaladas pertencem ao tronco que o Capitão Velez Caroço designa por raças, segue-se agora o que ele designa “dos direitos”, e aqui formulam-se múltiplas questões que abordamos sinteticamente: como encaram os indígenas o direito de existência e qual o sentido da propriedade, se se dedicam ou não à caça e à pesca, se gostam de ter animais domésticos e quais os animais selvagens que abundam na região, como também se pretende saber quais as principais plantas que ali existem.

Vejamos agora o último acervo de matérias, designados por “comércio e indústria”: qual a característica do comércio indígena, pretende-se saber quais as indústrias privativas da raça na região, se os indígenas se dedicam e preferem a vida do mar, se aprendem artes e ofícios; quanto à saúde e higiene, intenta-se saber quais as medicinas indígenas, se existem curandeiros entre os indígenas; passa-se depois para a religião e superstição, pretende-se apurar quais os cultos, os ritos e se existem mitologias; falando das diversões, pretende-se saber a que distrações se entregam os indígenas; quanto à habitação, quais as formas das velhotas e os materiais empregados na sua construção; e temos aqui o último pacote de questões sobre “literatura e moral”: que dialetos se falam na região, quais as principais regras gramaticais, se existem provérbios, canções ou contos.

Esta é a essência de proposta de questionário etnográfico que seria enviado para os administradores de circunscrição, porventura outras autoridades, talvez missionários, personalidades de reconhecido mérito, etc. Se aqui destacamos a essência do que se pretendia apurar, importa reter o conceito de missão civilizadora, a incontestável preocupação em saber o quadro das mentalidades das diferentes etnias para não tratar uniformemente aquilo que não é uniforme. Estamos na década de 1930, pensava-se que existiam raças, recordo que em 1947 andou pela Guiné o professor Mendes Corrêa a medir crânios, alturas, desvio dos olhos, tamanho das orelhas, à procura de prognatismos e dolicocefalias, são hoje questões absurdas. E recordo igualmente que se dá um salto com os reconhecimentos etnográficos na década seguinte, Teixeira da Mota irá elaborar com base noutras pautas de rigor científico um questionário sobre a habitação na Guiné, ainda hoje um documento de leitura obrigatória, visava-se uma dimensão etnográfica, mas também havia subentendido o cuidado de melhorar as infraestruturas nessas tabancas. Mas isso é outra história, já não cabe nos comentários a este documento de referência que foi o questionário etnográfico de Velez Caroço.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23831: Historiografia da presença portuguesa em África (345): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23852: Notas de leitura (1529): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte IV: Os cafés de estudantes e a crise académica de 1962 em Lisboa (Luís Graça)

 


Capa do livro de José  Pardete  Ferreira - O paparratos : novas crónicas da Guiné : 1969-1971. Lisboa : Prefácio, D.L. 2004. 169 p., [12] p. il. : il. ; 24 cm. (História militar. Memórias de guerra). ISBN 972-8816-27-8.

1. O ex-alf mil médico José Pardete Ferreira (1941-2021), membro da nossa Tabanca Grande,  que, infelizmente,  nos deixou há quase dois anos (em janeiro de 2021),  é o autor de "O paparratos", um livro que pode ser classificado  como um misto de narrativa histórica e de autobiografia,  em que a realidade e a ficção se misturam. Já fizemos, no passado,  três notas de leitura do livro (*),

A obra, a que o autor chama "romance", tem como subtítulo "novas crónicas da Guiné, 1969/71". Mas o arco temporal da acção   é maior, abarcando, no essencial, a década de sessenta e de setenta (até ao 25 de Abril), com dois acontecimentos marcantes de que o autor foi, ele próprio, protagonista: (i)  a crise académica de 1962; e (ii)  e a sua mobilização, em fevereiro de 1969, para o teatro de operações da Guiné, como alferes mil médico.

 Uma das personagens da narrativa é o João Pekoff (um "alter ego" do autor, José Pardete), apresentado como estudante activista da crise académica de 1962, em Lisboa, ligado à JUC - Juventude Universitária Carólica,  e depois médico no CAOP, em Teixeira Pinto  (de fevereiro a junho de 1969) e no HM 241, em Bissau (até ao princípio de 1971).

Lisboeta, nascido em 1941, filho único, morava, com os pais, no Bairro das Colónias, frequentando, desde cedo, o Café Colonial (que ainda hoje existe, na Av Almirante Reis, aos Anjos; inaugurado em 1934, foi tertúlia e café de estudantes, transformado entretanto em pastelaria, em 1978, hoje Café Pastelaria Colonial).

João Peckoff / José Pardete passou pela Mocidade Portuguesa e a JEC (Juventude Estudantil Católica), enquanto estudante de liceu, e depois pela Acção Católica, a JUC e a Pax Romana - Movimento Internacional de Estudantes Católicos, enquanto estudante de medicina.  Praticou desporto de alta competição na CDUL e no Sporting (onde foi, nomeadamente, guarda-redes nas equipas de andebol)...Além de cirurgião, especializou-se mais tarde em medicina desportiva...

Participou também na organização da assembleia mundial do Movimento Internacional de Estudantes Católicos — Pax Romana, que se realizou em Lisboa, 1960 (vd. cap 16º, "A Pax Romana", pp. 111), ao lado de outros católicos portugueses, como Antero Silva Guerra / António Sousa Franco (?),   Márcia Luisa Piriquita / Maria de Lurdes Pintassilgo, Telma Santana Guera / Teresa Santa Clara Gomes... e outros/as (que não conseguimos identificar). 

2. Interessa-nos dar a conhecer, melhor, aos nossos leitores, essa época da Lisboa dos anos 60, e nomeadamente da crise académica de 1962, vista pelos olhos de João Pekoff, sobre o qual, aliás, o autor diz que  "não tinha grande formação política" (p. 47), o que não o impede ser um dos  "atores" que pisaram o "campus universitário" desse ano histórico (e sobretudo  sua testemunha privilegiada e, ao mesmo tempo,  um crítico da liderança estudantil em Lisboa)... 

Delicioso, como já o dissemos,  é o retrato que ele faz faz de alguns dos históricos dirigentes  do movimento estudantil dessa época: não é difícil descobrir por detrás do pseudónimo Ernesto Figueira, estudante de medicina, a  figura do futuro psiquiatra Eurico Figueiredo (n. 1939, em Vila Real), ou do João Santos, estudante de direito, o futuro presidente da República, Jorge Sampaio. Ambos frequentavam, tal como o João Pekoff, o Café Roma, junto à Praça de Londres, na Av de Roma (pp.  23 e ss). 

Também achámos, na altura, interessante "a ronda dos cafés" (pp. 81 e ss.), uma reconstituição do roteiro histórico dos cafés de estudantes e tertúlias da Lisboa dos anos 50, 60 e 70 (até ao 25 de Abril). Tínhamos prometido falar deste roteiro. Surge agora a oportunidade.(**)

Mal ou bem, os cafés das Avenidas Novas (Roma, Vá-Vá, Monte Carlo...) estão associados, nos anos 50/60/70, à boémia estudantil, animação cultural e sobretudo uma certa atmosfera de "contestação e conspiração" dos jovens que frequentavam a universidade naquele tempo em Lisboa (nomeadamente a Universidade Clássica de Lisboa: letras, direito, filosofia, história...;  mas  também a Universidade Técnica de Lisboa (UTL), frequentada igualmente pelos alunos da Academia Militar que cursavam as engenharias, sem esquecer, na 7ª colina, no Quelhas, o Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), hoje ISEG. (Desde os anos 30 que estava integrado na UTL.) 

Ainda não havia em 1962, o ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa (criado em 1972, no Campo Grande e depois com instalações modernas (que eu fui inaugurar) na Av das Forças Armadas. A sua criação está associada ao nome de outro "católico progressista", o Adérito Sedas Nunes.

Já existia, isso, sim, o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU), designação criada em 1962, para o antigo Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (ISEU), herdeiro da Escola Superior Colonial (fundada em 1906)... Mas em 1962 era rapaziada ordeira, "situacionista", que tinha emprego garantido no Utramar português, como admistradores coloniais, antropólogos, assistentes sociais, etc. O que não impediu que a contestação estudantil de 1969 lá chegasse, e forte, sobretudo entre a malta de economia... E, claro, também ainda não havia a Universidade Nova de Lisboa, criada no fim do marcelismo, em 11 de agosto de 1973...

Fiquemo-nos pela "cidade universitária", circunscrita ao Campo Grande/Saldanha, ou seja, afinal, à Universidade Clássica de Lisboa.... Dizia-se que o Salazar, provinciano e coimbrão, sempre quis, em Lisboa, os diferentes estabelecimentos de ensino superior universitário, "higienicamente" separados no espaço... Ele lá tinha as suas razões.

O maior destaque é dado ao Café Roma... Mas havia outros cafés frequentados por estudantes, escritores, intelectuais, jornalistas, homens e mulheres do cinema e do teatro,  e demais figuras da vida cultural da cidade no início dos anos 60:

(...) Continuando a ronda alargada dos cafés lisboetas que acolhiam estudantes, é de lembrar o Café Minabela, na Amadora,  não esquecer o Café Monte Carlo, onde pontuava o imponente Pena Peres  [não descortinamos quem fosse o personagem por detrás deste pseudónimo]. , nem a Leitaria próxima, na Duque d'Ávila, que tinha sofrido uma carga a cavalo da GNR (...). 

Não se olvida , do mesmo modo, o Monumental, nem o D. Rodrigo, na Avenida D. Rodrigo da Cunha, aquela via larga que liga a Avenida Gago Coutinho às traseiras da Igreja de São João de Brito, em Alvalade. No D. Rodrigo um castiço trauteava, quase em permanência, as canções de Jacques Brel, muito em voga naquele período, tais como "Le Diable"  e "Les Flamandes" (...).

Provavelmente o mais famoso e icónicos dos cafés desta época é o Monte Carlo, a par do Vá-Vá, duas referências obrigatórias dos roteiros históricos dos cafés lisboetas da época ... Mas, ainda de acordo com o autor que temos vindo a citar:

(...) A Pastelaria Biarritz e a Casa dos Caracóis (...) mantêm-se de pedra e cal. Já o mesmo não se pode dizer do celebérrimo Monte Carlo que deu lugar a uma loja de uma cadeia espanhola de venda de vestuário  [Zara].  Tão pouco o Monumental cumpriu as promessas de antanho. (...). (pág,  81).

(...) É um risco calculado não se citar  com deferência o Vává, o Londres, a Mexicana, e tantos, tantos, tantos mais que, embora omissos, bem por sombras estão esquecidos. Neles, não eram só os estudantes que faziam pulsar a cidade e que viviam 'nessa Lisboa que eu amo', como diz a marcha (...).

Como em Lisboa não havia a típica república da Academia de Coimbra, cada estudante  vvivia com uma família, que por vezes coincidia com a sua, em quarto alugado, ou em algunas das poucas casas próprias para estudantes (...) (pág. 82).

Pardete Ferreira descreve muito bem o que era "o Café, naquete tempo",  enquanto local de sociabilidade (pág. 85):

(...) Era um local onde nasciam e eram alimentadas amizades que perduaravam ao longo de uma vida inteira. Tal como no mato.  Aquela instituição substituia, com naturalidade, aquela grande árvore do largo da igreja lá da aldeia, em torno da qual as gentes se sentavam para cavaquear, cultivando assim a camaradagem e a amizade. (...) Hoje,  o Café está ultrapassado e a maioria das pessoas já não o usa como tertúlia, nem os estidantes o utilizam  como local de estudo institucionalizado".

Estamos de resto a falar de uma época, os primeiros anos da década de 60, em que a população universitária lisboeta seria ainda da ordem dos  escassos milhares (c. 12 mil - 15 mil), oriundos da classe média e classe média alta, com apenas uma irrisória representação (da ordem dos 6-7%) das classes trabalhadoras, segundo um estudo do sociólogo Sedas Nunes.

E conclui o autor de "O Paparratos":

(...) Poderá parecer que se tenta dizer que o Portugal de hoje nasceu à volta da mesa de um Café, algures em Lisboa, provavelmente no Roma, saboreando um bica que ia arrefecendo, fumando um cigarro (...). Pensa-se não ser questionável que muitos dos estudantes de 1962 e seguintes, tornados oficiais milicianos, nados e criados tal e qual como o Paparratos, em qualquer aldeia anónima deste país ou em urbe mais ampla, também tenham sido o fermento de um modo de pensar (...) que, uma vez consolidado, permitiu que a sociedade portuguesa acolhesse com tanto entusiasmo os acontecimentos de 1974 (...) (pág. 84.)


3. O Pardete Ferreira dedica o capítulo II, de "O Paparratos",  ao café Roma (pp. 23-28), que descreve nestes termos:

(...) Em Lisboa, junto à Praça de Londres, na Avenida de Roma,  havia um café com cerca de duzentos metros quadrados que dava pelo nome de Roma.  Era um lugar preferencialmente frequentado por estudantes que, a troco de uma simples bica e de um copo de água, nele faziam biblioteca, com livros, sebentas,  cadernos, papéis e outros objectos  ligados à vida escolar pejando as mesas e cadeiras" (pág. 23).

Dois dos conhecidos líderes da crise estudantil de 1962 frequentavam o Roma: o José Santos (pseudónimo de Jorge Sampaio), já licenciado  em direito (em 1961), e Ernesto Figueira (pseudónimo de Eurico Figueiredo, n. 1939, em Vila Real), estudante de medicina, futuro pisquiatra.

Jorge Sampaio (1939-2021) foi presidente da Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1959-1960 e em 1960-1961, e secretário-geral da Reunião Inter-Associações Académicas (RIA), em 1961-1962.

João Santos /Jorge Sampaio é descrito, em "O Paparratos", nestes termos, de fino recorte literário:

(...) Numa das mesas do fundo, no lado essquerdo de quem entrava,  não muito longe do balcão, tinha foral um rapaz de vinte e tal anos, discretamente sobre o ruivo, testa alta, olhos não muito exressivos, por vezes parecendo duros, metálicos, de tom azulado, transportando óculos grossos. Possuía tez clara, era algo magro e tinha uma estatura ligeiramente superior à média. Vestia preferencialmente fato  azul, não muito escuro, sendo a gravata quase sempre a condizer com este último, repousando sobre leito de camisa branca. Interrompia frequentemente o estudo  e passava grande parte das suas tardes a ler Camus ou o último Libération que comprara nas bancas" (...) (pág. 23).

(...) Filho de boas famílias, educado no estrangeiro (...), o José Santos tinha sobretudo a estrutura de um ideólogo. Paradoxalmente, não tinha ainda ideais muito claras e, mesmo desprovido de um carisma marcado de líder, impunha-se pela cordialidade de um discurso escorreito e pela conversa erudita, apoiada em citações de Camus, não descurando Nietzsche, Kant, Engels, Marx e Lenine, à mistura de Baudelaire e Jean-Jacques Rousseau ou, ocasionalmente Voltaire" (pág. 25).

Além disso, "confessava-se agnóstico. Com frequência, era o centro de atenções, juntando à sua volta uma meia dúzia de interlocutores, a  quem por vezes se via obrigado a pagar a despesa (...). Cursava direito e não  escondia uma certa ambição" (...).

João Santos e Ernesto Figueira encontravam-se com frequência no Café Roma, mesmo pejado de informadores da "Pevide" (PIDE), a começar pelos empregados de mesa.  Enquanto o primeiro era "uma  espécie de ideólogo" , o segundo era o "comandante operacional do movimento estudantil" (pág. 35).  

Também se encontravam na Cantina Universitária. Os estudantes também frequentavam o bar do Estádio Universitário onde "por mais cinco ou dez tostões", se comia "francamente melhor" do que na Cantina. "O bitoque, o pão, a imperial e a bica, por doze escudos e cinquenta centavos  [equivalente, a preços de hoje, a 6 euros].

A crise académica de 1962, em Lisboa, é desencadeada quando, a 24 de março,  o Governo de Salazar proíbe, estupidamente,  as comemorações tradicionais do Dia do Estudante, tendo a  Polícia de Choque invadido a Cidade Universitária, e carregado sobre centenas de jovens, rapazes e raparigas.  

Passados dois dias, os estudantes de  todas as escolas superiores de Lisboa declaram "luto académico" (na prática, greve geral às aulas, usando uma forma de luta que era proibida pelo regime). Mês e meio depois, a 9 de maio, há uma escalada do conflito, com a adoção, num plenário de estudantes,  de uma nova forma de protesto: uma greve de fome coletiva, na cantina. 

A medida, arriscada,  for proposta por Eurico Figueiredo e seguida por centenas de estudantes como António Correia de Campos, que eu vou encontrar mais tarde como colega na Escola Nacional de Saúde Pública.

A 11 de maio, a cantina foi cercada pela polícia de choque e os estudantes foram detidos (cerca de 800, segundo a versão da PSP ou cerca de 1200 segundo as associações de estudantes). Terá sido a maior operação policial realizada pelo Estado Novo.

Seguiu-se uma enorme onda de indignação, tendo todos os estudantes detidos sido libertados  libertados a 14 de maioEntretanto, um mês depois, em 14 de junho, um plenário realizado no Instituto Superior Técnico ditou o levantamento da greve.

Um despacho ministerial em final de junho  veio punir 21 grevistas com uma pena de expulsão, durante 30 meses, de todas as escolas de Lisboa.

Mas "poucos foram efetivamente convocados para a primeira incorporação militar que se seguiu ao Luto Académico" (...) "A grande maioria voltou progreessivamente  à sua vida habitual" (...) (pág. 39). Afinal, ninguém queria perder o ano, e isso explica que o fim do "Luto Académico" (eufemismo para não se dizer greve...) foi recebido com alívio... Mas a verddae é que nada ficou como dantes...

Jorge Sampaio, Eurico Figueiredo, Medeiros Ferreira e outros dirigentes estiveram detidos.

A crise académica de 1962 foi um acontecimento de grande significado político e sociológico. Hoje, passados 60 anos, alguns dos seus protagonistas recordam a resposta do movimento estudantil à repressão salazarista.  Caso de António Correia de Campos, antigo ministro da saúde, e conhecido dirigente socialista, em entrevista à Lusa, em 22/3/2022, e citado pelo "Observador":  (..) " enumera três 'dirigentes de grande envergadura', cujo papel foi determinante na gestão da crise: Jorge Sampaio, no centro ideológico — sociais democratas, mais socialistas, Eurico Figueiredo, então militante do PCP, e Vítor Wengorovius, o católico progressista." 

Mais houve mais dirigentes estudantis, a merecer destaque: Alberto Torres da Silva, Afonso de Barros, Manuel Lucena e José Medeiros Ferreira (que viria a suceder a Jorge Sampaio como secretário-geral da Reunião Inter-Associações,  a RIA). Poucos mas corajosos foram os professores que se solidariezra,m com os estudantes, como Lindley Cintra ou Pereira de Moura, por exemplo.

Octávio Quintela, em "Algumas considerações a propósito da crise académica de 1962" (Ler História, 62, 2012, pp. 187/192) escreveu:

(...) A greve de 1962, na sequência da proibição do Dia do Estudante, foi o resultado da luta de milhares de jovens católicos, sem partido, mas muito também da ação dos comunistas. Em cada Faculdade de Lisboa é possível destacar três ou quatro ativistas de um vasto conjunto:

(i) Em Direito, Jorge Sampaio, Vítor Wengorvius, Correia de Campos, J. Felismino, Macaísta Malheiros, Pedro Ramos de Almeida. 

(ii) Em Letras, Medeiros Ferreira, Mário S. M. Cardia, João Paulo Monteiro, Alberto Teixeira Ribeiro, Maria Assunção Franco, Maria João Gerardo e eu próprio;

(iii) Em Ciências, António Ribeiro e Ernani Pinto Basto;

(iv) Em Medicina, Isabel do Carmo, Rui de Oliveira, Eurico Figueiredo, Alexandre Ribeiro, Dante Marques;

(v) No Técnico, João Cravinho, Crisóstomo Teixeira e José Bernardino." (...)

Curiosamente não sabemos em que ponto ficou a situação militar destes jovens. Relatuvamente a Jorge Samapio, sabemos que ficou isento do serviço militar, pro razões de saúde.

Alguns terão ido parar á Guiné. É o caso de José Augusto Rocha (1938-2018), que foi alf mil, CCAÇ 557, (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65): director da Associação Académica de Coimbra, em 1962, foi expulso de todas as Escolas Nacionais, por dois anos, na sequência da crise académica de 62, esteve preso no Forte de Caxias; liberto sem culpa formada, ao fim de 4 meses, acabando por ser chamado para a tropa e mobilizado para o CTIG. (Só terminaria a licenciatura em direito, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, depois de ter regressado do TO da Guiné, em novembro de 1965.)

Um outro caso, mais conhecido dos leitores do nosso blogue, é o do açoriano José Medeiros Ferreira (1942-2014) (tem 7 referências): depois de se destacar na crise estudantil de 1962, foi chamado em 1967 a cunprir o serviço militar; mobilizado para a Guiné, não comparaceu ao embarque da sua companhia, a CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato)/ BCAÇ 2851 (Mansabá e Galomaro) (1968/70), no T/T/ Uíge, em 24 de julho de 1968.

È provavelmente o mais conhecido dos desertores da guerra colonial: viveu na Suiça, onde se licenciou em História, pela Universidade de Genebra (1972). Depois do 25 de abril, foi eleito deputado à Assembleia Constituinte (1975), pelo Partido Socialista, e exerceu o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional (1976–1978), chefido por Mário Soares. Foi professor universitário (Faculdade de Ciências Sociais, Universidade NOVA de Lisboa).



Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > De pé e da esquerda para a direita, o Raul Albino, o Francisco Silva e o Medeiros Ferreira, aspirantes milicianos.  [Os dois primeiros são membros da nossa Tabanca Grande, e o Raul, infelizmente já falecido.]

O João Bonifácio, ex-furriel mil SAM, CCAÇ 2402 (Mansabá e Olossato, 1968/70) e que vive no Canadá, evocou aqui no poste P1592, o exemplo do Medeiros Ferreira que, como é publicamente sabido, não compareceu ao embarque, para a Guiné . Ele é, das nossas figuras públicas, talvez o mais conhecido dos desertores da guerra colonial.

Na foto acima, o antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Mário Soares (I Governo Constitucional, 1976/78), historiador e professor universitário (FSCH/NOVA), já falecido, José Medeiros Ferreira (Ponta Delgada, 1942 - Lisboa, 2014), aparece assinalado com um círculo a vermelho.  

Foto (e legenda) : © Raul Albino (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

15 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22008: Notas de leitura (1346): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte III: Rui Angel, aliás, Pedro Rodriguez Peralta, capitão do exército cubano, o mais famoso prisioneiro da guerra colonial... Aqui tratado com humor desconcertante (e humanidade) (Luís Graça)

23 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21939: Notas de leitura (1343): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte II: os "mentideros' de Bissau (Biafra, 5ª Rep) e ainda e sempre a retirada de Madina do Boé (Luís Graça)

 
(**) Último poste da série > 5 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23848: Notas de leitura (1528): Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (1) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23851: Agenda cultural (821): Diogo Picão, na Lourinhã, sua terra natal, sábado, 10 de dezembro de 2022, às 21h30, para o lançamento do seu segundo álbum, "Palavras Caras"



Capa do segundo álbum de Diogo Picão, "Palavras Caras" 


Diogo Picão, na Lourinhã, Auditório da AMAL sábado, dia 10 de dezembro,
as 21h30, com Diogo Picão (voz e saxofone), Olmo Marín (guitarra de 7 cordas), Carlos Garcia (piano) e Juninho Ibituruna (Percussão). Espectáculo integrado nas festas Lourinhã Natal (de 26 de novembro de 2022 a 6 de janeiro de 2023).  Bilhetes à venda no Posto de Turismo da Lourinhã (de segunda a sexta, exceto feriados, telef.  
261 410 127). Cinco paus, cinco aéreos, o preço de um maço de cigarros... Música e poesia que apontam, certeiras, ao coração da gente em plena época natalícia...



Diogo Picão:

(i) é músico, compositor e letrista;

(ii) faz canções para se libertar das insónias e sonhar com mundos melhores;

(iii) cresceu músico, estudou saxofone, virou cantautor e espera envelhecer como poeta e boémio;

(iv) nascido em 1988 na Lourinhã, começou a estudar saxofone na Escola de Jazz de Torres Vedras;

(v) é licenciado em Música pela ESMAE / IPP (Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo / Instituto Politécnico do Porto), e pós-graduado em Artes da Escrita pela Universidade Nova de Lisboa;

(vi) já tocou com a Big Band do Oeste, Big Band da ESMAE, Tchakare Kanyembe, Jungle Jazz Orchestra, Diabolando, Carlos Barretto In Loko Band, Tony Madeira y los Impressionantes e Histórias de Monstros e Outros Bichos;

(vii) é co-criador, com Olmo Marín, do duo Sambacalao e integra ainda a Orquestra Latinidade, João Berhan, Jon Luz & Baile Criolo e espectáculo Pantera (Cia. Clara Andermatt);

(viii) Cidade Saloia (2018) é o  seu álbum de estreia, composto por doze canções da sua autoria, e conta com exímios músicos da cosmopolita Lisboa.

Tendo-se apresentado por Portugal e Brasil, lança agora o seu segundo álbum, Palavras Caras, com a participação de uma vintena de convidados,  incluindo Luca Argel, Salvador Sobral e Mônica Salmaso. 

Desse álbum,  ouça-se aqui o belíssimo tema Vendedor de Fruta (4' 22'') . (O autor inspira-se, mais uma vez, na popular  figura do avô materno Bonifácio  da Silva, do Seixal, que tinha uma banca de frutas e legumes no antigo mercado municipal da Lourinhã, uma figura muito popular que eu, de resto,  recordo com  saudade.) (LG)

Depois do grande êxito que foi o seu último espetáculo em Lisboa, no Maria Matos, no passado dia 30 de novembro, estamos ansiosos por vê-lo, ao vivo e a cores, na sua terra natal, Lourinhã, dia 10 de dezembro, na AMAL - Associação Musical e Artística Lourinhanense.

A Tabanca Grande e a Tabanca do Atira-te ao Mar (... e Não Tenhas Medo), Porto das Barcas / Atalaia / Lourinhã, apoiam o nosso Diogo Picão.

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23788: Agenda cultural (820): Livro: “Do Inverno à Primavera”, obra do camarada José Alberto Neves, Nova Lamego (Gabu). (José Saúde)

Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando

1. Parte VI da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


VI - Continuando…

Parte da primeira companhia de comandos africanos, comandada pelo célebre e temido João Bacar Jaló e pelo segundo comandante Zacarias Saeigh, logo a seguir, apareceu em Gadamael Porto, com indicação de que ficariam uns dias, participando em operações com a nossa companhia.
Aqui estava parte da razão da nossa espera em Bissau, até ao dia 27 de Novembro pois, parte deles, tinha participado na operação de que lhe falarei, a seguir.

Recordo alguns dos elementos: o Jalibá, o Bari, o Tomaz Camara, o Justo, o João Lomba, um felupe com dois metros, sempre de catana à tiracolo, que fazia colecção de crânios do inimigo, segundo diziam os outros, com convicção.
Tenho fotos de recordação com alguns deles.
Tinham feito parte da operação Mar Verde, invasão à República da Guiné-Conacry, em 22 de Novembro, ainda bem marcados e feridos pelos resultados.

Só por curiosidade, uma das nossas operações, em que alguns deles participaram, durante uma emboscada, o Tomaz Camara foi baleado na cabeça, mas de tal forma que a bala entrou pela fronte, não penetrou na parte óssea e deu a volta, ao longo do couro cabeludo, ficando retida na parte posterior da cabeça.
Concluiu-se que aquela bala foi sendo amortecida pelos ramos e folhagem das árvores, chegando à cabeça do Tomaz Camara já com pouca capacidade, a grande sorte dele.
Foi evacuado para o hospital de Bissau e lá se safou, após cirurgia adequada.

Voltando aquela operação Mar Verde, só para o Daniel ter uma ideia, foi uma operação liderada pelo capitão-tenente fuzileiro Alpoim Calvão, com o máximo sigilo e de forma a evitar que algum sinal pudesse indicar como obra de forças armadas portuguesas.
A equipa foi formada por fuzileiros do continente, fuzileiros guineenses formados no local e alguns comandos africanos.
Parte da equipa foi treinada pelo temido Marcelino da Mata, que também participou, de que lhe falarei, se me lembrar.

Como acontecia em outras operações, as armas e os uniformes teriam de ser iguais ou idênticas às usadas pelos militares do PAIGC, além das pinturas a negro, na cara.
Os próprios veículos usados nas operações teriam de ser o mais discretos possível, sem inscrições que os pudessem denunciar, assim como as próprias equipas que deviam ser caracterizadas de forma a confundirem-se com o inimigo, neste caso, africanos.

O objectivo seria destruir bases militares e equipamento, assim como pontos estratégicos que convinha neutralizar, libertar prisioneiros de guerra portugueses e prisioneiros políticos contra o regime de Sékou Touré, tendo em vista um golpe de estado que pudesse aniquilar Sékou Touré e Amílcar Cabral.
Mas o objectivo não foi conseguido, na sua totalidade, claro.

Foram libertados 26 prisioneiros portugueses, cerca de 400 prisioneiros políticos guineenses, além de destruído bastante equipamento militar e causadas centenas de baixas aos guerrilheiros do PAIGC e população, inevitável…

Como era de esperar, as organizações internacionais receberam as queixas por parte do governo da Guiné-Conakry, nada de extraordinário, considerando a gravidade…
Segundo o relatório desta operação, parte do insucesso da operação deveu-se ao mau trabalho da PIDE, nomeadamente, deficientes passos no campo das informações.

Lembro-me da insatisfação do João Bacar Jaló, pelo facto de não termos comida suficiente, além da rotura do stock de ração de combate.
Já tínhamos enviado rádios para Bissau, solicitando alguns mantimentos, mas nada aparecia.
Foi preciso um rádio, com código do João Bacar Jaló, para enviarem frescos, de imediato.
Os frescos eram constituídos, normalmente, por peixe congelado, frango congelado, ovos, lançados em rede por um hélio, com o impacto no solo que se prevê…

Era assim, o reino do Sr Spínola, em Bissau!... O João Bacar Jaló veio a falecer, em combate, uns meses depois, penso que em Abril, na designada operação ‘nilo’.

"O Adolfo fala dessa sua passagem por África com alguma frieza, mas acredito que deixou muitas marcas, como todos sabemos e o Adolfo melhor saberá…"
Sim, mas já tive tempos mais difíceis do que agora.
Quando andava nos quarenta, quarenta e tal, recordo-me de dias e noites bem difíceis, com um grande esforço para evitar transparecer aos que me rodeavam, na empresa e na família.

Uma sensação de distúrbio mental, principalmente, durante a noite, com perturbações de sono, uma certa ansiedade sem razão aparente, uma mistura de revolta com instabilidade, desânimo, saltos repentinos da cama, o gesto tantas vezes lá repetido, tudo isso relatei aos médicos, neurologista e psiquiatra, que definiram como parte das consequências resultantes de momentos vividos neste tipo de cenários.

Não me imaginava a desabafar e, até, a chorar, mas foi uma realidade, logo justificada pelos médicos.
Falaram em stress traumático de guerra, o que atingiu alguns elementos da companhia, com graves consequências para o resto da vida, como constatado, aquando dos nossos encontros/convívio/almoços anuais.
Alguns medicamentos, por pouco tempo, também ajudaram.

Sabe, Daniel, nós só acreditamos nestas coisas quando, realmente, nos tocam pela porta, directamente.
Mas há gente que não compreende, nem os nossos sentimentos, nem a nossa linguagem, mas nós estamos preparados para compreender essa gente que não nos compreende…
A par dos acontecimentos próprios daquela guerra, como já lhe disse, o clima deixava-nos de rastos.
Humidade do ar, na ordem dos noventa por cento, temperatura, na ordem dos quarenta graus, um factor determinante de um certo desespero diário, sem nada se poder fazer para o evitar.

As operações de rotina, tantas vezes, dentro de matas virgens desbravadas à custa de catana, quase de rastos, incluíam entrar em regatos de águas geladas, que nunca viam o Sol, ou lamas negras que se agarravam ao camuflado.
Quando saíamos da mata e entrávamos nas designadas lalas, com aquelas temperaturas, as lamas coziam e eram como lâminas a rasgar a pele, provocando irritações e queimaduras, um tormento, só possível aliviar à custa de fórmula cinco, de que resultava um ardor tal, que só aos saltos!…
Dentro do camuflado, nem pensar em cuecas...

Outras agressividades nos surpreendiam, quando em progressão pelos trilhos ou dentro das matas, como os carreiros de formigas vermelhas, os enxames de vespas e as cobras cuspideiras.
As formigas começavam a entrar, não sabíamos por onde, e alojavam-se pelo corpo, principalmente, nas partes íntimas, cravando as tenazes nos testículos, o que deixava qualquer um desnorteado, pelas dores.
E nós tínhamos o camuflado bem apertado sobre as botas!...
Quando tentávamos tirá-las, a cabeça ficava cravada e apenas saía o corpo.

Os enxames estavam pendurados em ramos das árvores e, logo que algum de nós lhes tocava, elas começavam a sair, endiabradas, ferrando tudo o que podiam, do que resultavam uma espécie de monstros!
Aliás, diziam-nos que os próprios guerrilheiros do PAIGC preparavam esses enxames e colocavam-nos em locais estratégicos, picadas e carreiros de progressão que usávamos, nas nossas operações.

As cuspideiras, pequenas e verdes como os ramos das árvores, cuspiam nas partes brilhantes, logo, nos olhos.
Como imaginará, a população de baratas e formigas com asas, cá conhecidas por agúdias, era uma enormidade, mas habituámo-nos a viver com elas, a dormir com elas.

Também as limitações de alimentos e água ‘bebível’ faziam parte da nossa festa diária…
Tivemos um período que nem ração de combate havia, diziam que estava esgotada!

Outro problema era o paludismo, quando forte, podia matar.
Felizmente, foi coisa que não me tocou!
Mas as diarreias eram um cenário quase comum, deixando muitos de nós de rastos.
No meu caso, felizmente, um só episódio, mas levou-me a ‘buracos do mato’ um monte de vezes, num só dia, que ficaram bem registados!

"Ouvi falar de doenças desse tipo, como o paludismo, e também dos problemas provocados pelas águas, problemas em cima de problemas que vocês tinham de contornar - ossos do ofício…
Se calhar, era o tipo de problemas para o qual não estavam preparados".


Daniel, depois desta experiência, concluo que estamos preparados para muito pouco…
Também me lembro de um quadro muito engraçado, algumas vezes fazendo parte do nosso cenário, quando em progressão pelos carreiros ou picadas: as famílias de sancus (macacos).

Imagine que tínhamos de parar, com os riscos inerentes, para que as famílias atravessassem os carreiros ou as picadas, o pai de um lado, a vigiar o espaço, garantindo a segurança da família, enquanto a mãe ia atravessando com os filhos, todos de mão dada, até chegarem todos ao outro lado, sempre olhando-nos nos olhos e como que a dizerem-nos alguma coisa, numa linguagem acompanhada de um rosnar tipo cão.
Aliás, o macaco-cão abundava e dizia-se muito apreciado pela etnia Fula, que não consumia carne de porco.
E sabia-se que, muitas vezes, os bifes não eram de vaca, porco ou gazela, mas de macaco-cão…
A etnia Balanta criava e consumia porco.

Quando chegava correio, tarde, mas chegava, uma enorme festa para alguns, mas uma tristeza para outros, pois não eram contemplados.
Lembro-me de aerogramas partilhados, um gesto de solidariedade e amizade.
Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, associávamos a correio, logo, toca a pegar no aerograma e escrevinhar qualquer coisa, à pressa, como: ‘meus queridos pais e irmãos, espero que estejam bem, eu estou bem, o resto vão ler aos anteriores, beijinhos.’
Também chegou a acontecer aparecer um héli e, ao dar a entender que tencionava baixar, um dos soldados pegou na G3, apontava para o ar, enquanto outro avisava, pelo radio móvel, que não se aventurassem a baixar, caso não trouxessem correio!…

As revistas da altura, como a Plateia, quando lá chegavam, enviadas por familiares e amigos de alguns, constituíam um alimento para o espírito de todos.
E liam-se, e reliam-se, e reliam-se,…
De vez em quando, eu recebia aerogramas das minhas amigas, que não me esqueciam, cujo significado e efeito não têm tradução, por palavras.
Uma delas enviava-me, de vez em quando, algumas cassetes com gravações de músicas acabadas de sair, o que me permitia estar ao corrente do que se ia passando, na ‘civilização’.
Ainda bem que tinha comprado o tal leitor de cassetes e que podia ouvi-las, sempre que chegavam à minha mão - um verdadeiro milagre…

Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, logo associávamos a correio…

"Ó Adolfo, por falar nisso, lembro-me do Movimento Nacional Feminino que, embora algo contestado, ainda conseguia fazer alguma coisa válida, no apoio aos militares que chegavam feridos e aos familiares dos que morriam. Pelo menos, era o que me constava…"

Sim, Daniel, era um movimento interessante, mas…


mais qualquer coisinha desagradável…

Mas nem tudo o que me chegava era agradável.

Recebo uma carta da minha mãe, não aerograma, com um texto normal de mãe, mas juntando uma foto dos meus pais com a criança Carla ao colo.
Claro que não incluía a mãe, por precaução.
Não foi preciso pensar e não respondi, como se nunca tivesse recebido aquela carta.

Obviamente, associei este quadro ao que o meu irmão me tinha relatado sobre uma Guiomar, embora sem pormenores, mas qualquer coisa seria de desagradável.

Mais tarde, recebi novo aerograma da minha mãe, pedindo-me autorização para levantar dinheiro da minha conta, pois a tia Jú estava aflita com umas despesas inesperadas que tinha de cumprir e a minha mãe já tinha ajudado, um pouco, mas não podia ajudar mais.
Logo respondi que sim, poderia levantar tudo o que a tia Jú necessitasse - para a tia Jú, tudo!
No entanto, deixou-me a pensar na coisa, pois era estranho...

Mesmo com algum problema inesperado, a tia Jú tinha o seu emprego, o marido o seu emprego, a avó Júlia a sua pensão, a sogra a sua pensão, as duas sem despesas, logo, porquê?!
Paciência, mais tarde teria oportunidade de conhecer a resposta e, no momento, era melhor esquecer.

"Adolfo, não consigo imaginar o que sente uma pessoa, em cenário de guerra e de falhas no mais elementar, como a comidinha, ao receber notícias da família, com situações que suscitam dúvidas e criam preocupações…"
Realmente, Daniel, era difícil conciliar a situação com algumas notícias que lá nos chegavam…
Mesmo o pouco tempo de descanso era assaltado por estas dúvidas e preocupações, apesar de sabermos que nada podíamos fazer.

Mas o meu relacionamento com toda a companhia continuava óptimo, em espírito de grupo saudável e imprescindível, com os condicionalismos próprios do contexto, mas com uma grande vontade de, em conjunto, procurarmos vencer todas as dificuldades que nos iam surgindo, sempre motivados pela esperança de um regresso a casa, sãos e salvos.
Mas as situações delicadas não podiam ser contornadas, pois faziam parte daquela realidade, e surgiam a cada momento.
Já com baixas, a moral ia ficando debilitada, mas o nosso espírito ia amadurecendo, a forma possível de continuarmos a nossa marcha.

Pouco mais de dois meses decorridos, durante uma emboscada que sofremos logo uns minutos depois do arame farpado do aquartelamento, ainda no início de mais uma operação, o capitão Assunção e Silva, um ranger bem preparado e bom líder, morre, com tiro certeiro no coração.
Além do capitão morto, mais dois ou três feridos, apenas.

Sim, mais uma operação, designada de reconhecimento, em que saía o primeiro grupo, do Ponte, o capitão Assunção e Silva, um ou dois dos comandos africanos e alguns milícias.
Como era necessário mais um graduado, o Ponte manifestou interesse em que eu participasse nesta operação, apesar de não ser o meu grupo, mas a solidariedade ‘obrigada’ sobrepunha-se a tudo, dadas as circunstâncias.
Mas não me esqueço de que, neste dia, eu estava muito mal disposto, com os meus problemas do aparelho digestivo, já conhecidos, e que se foram agravando.
Mas o cenário que vivíamos não tolerava más disposições…

Como o Daniel saberá, o desenrolar de uma emboscada pode durar segundos ou minutos, depende das circunstâncias.
Início, troca de tiros, uns segundos e… já está - final e retirada estratégica de ambas as partes…

Como o Daniel já deve ter ouvido, sempre que em situações como esta, toca a despir camuflados para apoiar em G3 e improvisar macas, até chegarmos ao aquartelamento, tudo rápido e em silêncio, claro, mais uma experiência para a vida.
Confesso que fiquei bastante abalado quando vi o capitão caído, já sem vida!
Aliás, um sentimento geral, em toda a companhia, quando entrámos no aquartelamento!

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto