quarta-feira, 13 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25267: 20.º aniversário do nosso blogue (3): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (III): "Liberdade ou evasão: o mais longo cativeiro da guerra", de António Lobato (1938-2023) (excertos do livro e notas de leitura de Mário Beja Santos)

 

António Lobato (1938-2024), maj pil av ref  (*): 
É bem evidente a marca da catanada na região frontal, que lhe foi desferida em 22 de maio de 1963, na ilha do Como, por um habitante local.


O António Lobato entrevistado em 1996, num programa da RTP1, "Operação Mar Verde - Parte l", Série "Enviado Especial",  apresentado pelo  jornalista José Manuel Barata-Feyo,   em 7 de julho de 1997. Fotograma capturado e editado, com a devida vénia à RTP Arquivos. (Vídeo: 17' 38'').
 


I. é uma pequena homenagem do nosso blogue ao camarada maj pil av ref António Lobato (Melgaço, 1938 - Lisboa, 2024) (**). Reunimos aqui alguns excertos do seu livro "Liberdade ou Evasão: o mais longo cativeiro da guerra", que teve pelo menos 5 edições (entre 1995 e 2014). A maior parte dos nossos leitores nunca o leu. 

O nosso crítico literário, Mário Beja Santos, recenbseou  aqui a 2ª (1996) e a 5ª edição (2014). Reunimos, entretanto, o essencial das suas notas de leitura: P20534, P20555, P20577 (com a devida vénia...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG)



Capa da primeira ediçáo (1995, Erasmios, Amadora)

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Capa da quinta ediçáo (2014, DG, Linda-A-Velha)


1. A narrativa do major pil av António Lobato melhora de edição para edição, estou consciente que este aprimoramento vem da reflexão a que ele tem procedido, o que dá um caráter mais intimista à história do seu cativeiro. E, no entanto, somos agarrados sem qualquer possibilidade de despegar a nossa atenção tão avassaladora, veja-se logo aquela aterragem que lhe salva a vida em condições excecionais:  

"O ponto de contacto com o solo confirma-me a justeza do planeamento, mas surge um imprevisto que do ar foi impossível de detectar - o terreno não é totalmente liso; sulcos profundos, espaçados metro a metro, cortam-no de lés a lés. É uma bolanha, terreno preparado para a cultura do arroz. 

"Ao intradorso das asas do T-6 estão suspensas duas metralhadoras Browning, saliências que, ao entrar nos sulcos da bolanha, oferecem uma forte resistência ao deslizar do avião no solo. Atendendo a que este tipo de aterragem é feito com o trem recolhido, o entrar das metralhadoras num dos sulcos teve o efeito de arrancar instantaneamente as asas à aeronave. Fico sentado dentro de um charuto que rebola agora dentro de si mesmo, ao longo do terreno".

E assim vai começar o cativeiro, o mais longo cativeiro da guerra. Um relato superior, de um homem que soube superar a adversidade, que procurou fugir, mas que teve que esperar pela Operação Mar Verde para ser restituída a liberdade. (...)
 

2. (...) No prólogo das diferentes edições do seu livro, dá-nos uma síntese dos acontecimentos e da situação que viveu, nestes termos precisos:

“Em 1963, no céu português da Guiné, dois aviões da Força Aérea colidem na sequência de uma missão de ataque ao solo e após um deles ter sido atingido por projécteis inimigos.

"Um dos aparelhos despenha-se em plena selva e o piloto morre; o outro, aterra de emergência numa bolanha e o piloto, depois de agredido à catanada pela população local é capturado por guerrilheiros do PAIGC e conduzido à vizinha República da Guiné Conacri. Aí, é-lhe facultado optar entre e deserção e a cadeia.

"Optando pela fidelidade aos princípios do seu povo, é encarcerado na temível Maison de Force de Kindia, com o rótulo de criminoso de guerra.

"Durante sete anos e meio é submetido a maus-tratos, subnutrição, isolamento e contínuas ameaças de morte pelos agentes de um governo pró-soviético chefiado por um dos maiores tiranos da África Ocidental – Sékou Touré.

"Tenta três vezes a evasão, mas só na última consegue respirar, durante uma semana, o ar fresco da liberdade. Percorre cerca de noventa quilómetros em plena selva, atravessando a cadeia montanhosa do Futa Djalon em direção à Guiné Portuguesa. Ao sexto dia, é recapturado e reconduzido à prisão de onde partira.

"Ao cabo de mês e meio de total isolamento, é transferido de prisão e libertado, tempos depois, durante a Operação Mar Verde, chefiada pelo Comandante Alpoim Calvão.

"É por instâncias de familiares e amigos, por dever de cidadania e para comemorar os vinte e cinco anos do regresso à liberdade que hoje se propõe condensar em curtas páginas, não apenas os horrores, mas sobretudo algumas das vias possíveis de sobrevivência no meio hostil e o consequente enriquecimento da pessoa humana, quando, perante situações-limite, consegue vencer-se a si próprio”. (...)

Não se irá aqui cotejar as inúmeras alterações introduzidas de edição para edição. O que se pretende relevar é a melhoria substancial da qualidade literária e a introdução de um processo intimista, em edição recente, António Lobato revela as estratégias de que se socorreu para que a tremenda solidão da clausura não o destruísse, pelo menos moral e psicologicamente.

Fala-nos da sua juventude  em Paderne, como se alistou jovem na Força Aérea, depois temos o curso de pilotagem em S. Jacinto, a fase básica na Base Aérea n.º 1 em Sintra, em 22 de maio de 1958, um acidente quase que o ia matando, após dois meses de imobilização, e ao fim de cerca de oito meses de treino intensivo, ei-lo pronto para voar mais alto. Tem 21 anos e é-lhe confiada a tarefa e a responsabilidade de ensinar outros a voar. E, como ele escreve, em 1960 rebenta a guerra colonial.

 A Força Aérea não possui na Guiné qualquer tipo de estrutura. Em julho de 1961, em companhia de um outro camarada, seguirá para a Guiné em missão de soberania. 

Em 19 de setembro de 1961 descola pela primeira vez da pista de Bissalanca aos comandos de um T-6. Descreve com incisão e economia todos estes acontecimentos, casa-se, regressa à Guiné com a mulher e em 21 de maio de 1963 parte em missão para a Ilha do Como, um acidente obriga-o a uma aterragem de emergência, aterra no Tombali, é ferido e levado por guerrilheiros do PAIGC para território da Guiné Conacri.

Não é despiciendo observar como naquela região do Tombali há população afeta ao PAIGC e os guerrilheiros movimentam-se com certo à-vontade. A guerrilha tinha capturado um barco da Sociedade Comercial Ultramarina, de nome Bandim, transportará Lobato para o cativeiro. 

É bem tratado em Sansalé, tem feridas graves na cabeça e num braço. Seguem no Bandim até Boké. Segue-se um prolongado interrogatório. É interrogado, pretendem saber qual o regime político em Portugal, o que ele sabe da situação colonial, Lobato remete-se ao silêncio, depois de ter dado os seus dados militares, depois de uma longa viagem entra na Maison de Force de Kindia 

(...) “Entramos num hexágono aberto para o céu, com duas portas em cada um dos seis lados. Encaminham-me para a direita e indicam-me uma dessas portas, em ferro maciço, com o número 7 ao centro, encimada por uma grelha, feita em varão de diâmetro não inferior a 3 centímetros. 

"Entro e a pesada porta fecha-se atrás de mim com aquele ruído sinistro das portas de todas as prisões do mundo. Dou quatro passos e chego ao fim do espaço de que posso dispor. 

"Do lado direito, fazendo corpo com a parede e até dois terços de comprimento, ergue-se, até à altura de sessenta centímetros, um bloco maciço de cimento armado sobre o qual assenta um velho colchão de pano cheio de palha. Depreendo que é a minha cama. 

"Não sei bem porquê, mas sinto um forte cansaço. Sinto-me deprimido como antes nunca me tinha sentido. Apetece-me chorar. Atiro-me para cima da palhaça e não consigo conter os soluços que me sufocam. Choro tudo o que tenho a chorar e adormeço no cume da infelicidade”. (...)

Segue-se a descrição do dia-a-dia, ele é o prisioneiro da cela n.º 7, falam-nos do currículo de Sékou Touré e como ele mantém o seu regime de terror; vamos saber como é a sua cela, a degradação a que vai ser sujeito, o início da sua luta para se manter corajoso. 

A condição física começa a dar sinais de ruína, como ele próprio comenta:  

(...) “Porque não como uma boa parte das magras refeições, sinto que vou perdendo, lenta mas seguramente, toda a pujança da juventude; porque não me é fornecido qualquer tipo de medicamento, começa a ter fortes ataques de paludismo; porque a alimentação é pobre demais, a cárie dentária torna-se num flagelo; porque permaneço imóvel horas sem fim, começo a ter problemas de bexiga, a urinar pus e a sentir dores de barriga e cólicas insuportáveis. 

"Os ataques de paludismo surgem a uma cadência semanal e manifestam-se por acessos de frio, que me obrigam a bater os dentes durante horas, seguidos de vagas de calor, que me deixam exausto e banhado em suor. As dores de dentes, por vezes são tão intensas que me perturbam a visão e provocam vómitos e tonturas próximas do desmaio. A degradação do meu estado físico, se, por um lado, é dolorosa e me perturba a mente, por outro, prende-me o pensamento ao corpo e não me deixa grandes hipóteses de fuga em busca de recordações bem mais amargas que as dores da carne”. (...)


3.  (...) Descreve primorosamente a luta para se manter racional, para ir resistindo a um corpo que perde tonicidade, ocupa a mente e um dia vem até ao pátio, o recluso pode conviver.

Começam as peripécias, com todos os riscos: escreve à família, dá a sua localização, várias vezes procura a evasão, sempre sem sucesso. A liberdade irá chegar a 22 de novembro de 1970, no decurso da Operação Mar Verde. 

O seu regresso deixa-o atordoado, não pode falar do seu cativeiro, vai à televisão contar umas patranhas. E volta ao seu mundo dos aviões. E terminará o dia numa conferência citando o personalista cristão Emmanuel Mounier:

"Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão".

Não se entende como esta obra não encontrou um editor comercial, é um testemunho único. Vamos agora à edição de 2014, o agora Major Lobato remexeu na obra, deu-lhe outra palpitação sem renegar o escopo inicial. Esta edição catapulta o testemunho de Lobato para o patamar das grandes obras da literatura da guerra da Guiné.


4. Estamos a seguir de perto a edição de 1995, mais tarde tomar-se-á em conta as edições introduzidas na 5.ª edição, de janeiro de 2014, ver-se-á como o testemunho do Sargento Lobato ganhou em vibração literária, em intimismo, em vigor sobre a reflexão de um cativeiro. Ele é o preso da cela n.º 7, em Kindia, Guiné Conacri. 

Procura aperceber-se de quem são os outros presos, vai-se cronometrando com as rotinas, o dia que começa com várias portas de ferro a ranger nos gonzos, as latrinas fétidas removidas das celas, Lobato tem dois baldes, um deles serve de sanita, o outro contém água para beber, para se lavar e para substituir o papel higiénico. 

Põe a mente a funcionar, é preciso resistir à loucura ou ao embrutecimento. Os sentidos afinam-se, a sua capacidade de sobreviver também. O almoço é constituído por quatro bananas cozidas. Pesquisa à volta, põe os sentidos a funcionar, passa por um estado de dormência.

(...) “A minha cabeça está dorida e muito sensível. O simples toque dos dedos nos cabelos parece fazê-los enterrar-se, como espinhos, pelo crânio dentro. Este voltar do meu interesse para o corpo diz-me que continuo consciente da realidade vulgar, mas alerta-me também para outra realidade, muito mais real: é que bastou um simples avivar de sentimentos, provocado por um olhar para o firmamento, para desfazer a ilusão em que sempre tenho vivido de que o corpo sou Eu”. (...)

Põe os ouvidos à escuta, adapta-se às rotinas da prisão, às orações dos muçulmanos, toma consciência de que perde tónus, surgiu a cárie dentária, há momentos de grande desânimo:

(...) “Há cerca de três meses que oscilo entre o ser e o nada. Ou enlouqueço, ou me anulo, ou faço qualquer coisa para sobreviver até onde for fisicamente possível. Este estado caótico dentro de mim chegou ao limite do suportável. Isto que agora me tritura a alma, deve chamar-se desespero”. (...)

Dá luta aos percevejos, vai descobrindo a resiliência, tudo faz para se manter lúcido, doseia a plena atenção com o entorpecimento:

(...) “Quando o coração já não é mais que uma chaga e nem sequer reage aos golpes do punhal da lembrança; quando já não posso mais porque o cérebro, extenuado, se recusa a pensar por mais tempo e a evocar ou a lembrar-se; então a besta reclama, atiro-me para cima do catre e adormeço profundamente. 

"Ao acordar, tudo renasce, recomeço a evocar, a lembrar-me, de novo a sofrer mas com resignação. Consolo-me com a vitória de ter enfrentado a dor, de a ter vencido, de não lhe ter fugido e de ter ganho qualquer coisa de muito preciso que me ajuda a crescer”. (...) 

Depois de um ano de isolamento, é-lhe facultada uma hora de recreio todos os dias, pode agora observar seres humanos e aperceber-se melhor de tudo quanto se passa dentro da prisão. Encontra leprosos, tuberculosos, sifilíticos, gente que vai morrer. 

Então encontra alguém que se chama Chambord Lambert Joseph Alexandre Raymond e que lhe abre espaço para escrever para o exterior. Em 28 de novembro de 1964, da sua cela vedada com cimento e ferro, sai um código e o relatório da missão do dia 22 de maio de 1963, junta informações sobre a prisão em que se encontra, dedica alguma poesia a pessoas que ama profundamente, é de uma extrema beleza a mensagem que manda à mulher:

(...) “Durante toda esta ausência que tanto nos faz sofrer, neste abismo de miséria que submerge, nas horas que tudo me abandona, a fé inclusive, é sempre a tua imagem que me ajuda a flutuar, que me impede do naufrágio irreparável”. (....)

Encontra outro soldado português capturado, António Lauro, de Sernancelhe. Recebe propostas do PAIGC para denunciar a guerra colonial e partir para o exílio, tudo recusa. Aparecem dois graduados portugueses, Rosa e Vaz. Rosa é alferes miliciano e foi capturado em Bissássema, virá a escrever o seu testemunho, cuja recensão existe no blogue. O testemunho de Lobato vai falar das tentativas de fuga e os seus insucessos, na última andará uma semana a monte.

E em 22 de novembro de 1970, acontece a liberdade. Durante a Operação Mar Verde, um grupo assalta a prisão e liberta os 23 cidadãos portugueses, prisioneiros de guerra. Atravessam Conacri e embarcam num vaso da Armada, Lobato é apresentado a Alpoim Calvão, este está inquieto, teme que os aviões MIG, que não tinham sido destruídos, possam vir no alcance dos navios da Armada. Mas nada acontece, o contingente regressa até à ilha de Soga, daqui Lobato é transportado para Bissalanca.

Em 26 de novembro, todos os prisioneiros de guerra aterram na Portela e vão no autocarro para o Forte de Catalazete, estão oito dias consecutivos trancados numa sala com luz artificial e guardados por dois inspetores da DGS. 

Lobato interroga-se se saiu de uma prisão para entrar noutra. Ao fim de oito dias, aparece um coronel da Força Aérea com a missão de propor a liberdade desde que se comprometa a guardar segredo sobre o que sabe do desembarque em Conacri e ir à televisão contar uma evasão fictícia. Lobato está estarrecido, tem que aceitar.

Finalmente vai encontrar-se com a família, segue com a mulher e os pais para Melgaço, onde é recebido apoteoticamente

Passam-se meses sem que a Força Aérea o convoque, Lobato escreve uma carta a Marcello Caetano, é então chamado a Lisboa onde o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea o recebe com gritaria e ameaças. 

O importante é que Lobato volta aos aviões, termina o seu relato falando de uma conferência que fez na Academia da Força Aérea e onde referiu que o choque que o indivíduo sofre quando é brutalmente retirado do seu ambiente habitual e colocado em condições precárias de sobrevivência coloca-o frente a frente consigo como se de duas pessoas distintas se tratasse. 

É uma luta transfigurante, tão intensa como a dialética interior à procura de uma fresta que mantenha o homem no limiar da razão. Lobato conseguiu fundir numa união racional aquilo que prevalece do homem social com o indivíduo.

(...) “A partir do instante em que há passagem do ponto crítico com luz à reconciliação, acede-se a um estado de paz interior, a uma lucidez parente próxima da clarividência, a um racionalismo em que nada existe de insignificante. O que ainda resta da emotividade, reflete-se apenas em esporádicas euforias provenientes de um sentir, revelador da aquisição de qualquer coisa nova que nos sobredimensiona e que Mounier (filósofo francês, criador do personalismo cristão) exprime melhor do que ninguém:

- ‘Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão’.” (...)


5. Na última parte  iremos abordar as adições que acabam por valorizar este testemunho e tornar o depoimento de Lobato uma das memórias mais impressivas de toda a guerra colonial que os portugueses viveram entre 1961 e 1975.

António Lobato mexe e remexe no seu poderoso testemunho, de edição para edição:

 (....) Verificam-se aprimoramentos que, é o meu pensar, tornam este documento imorredoiro na história da literatura da guerra da Guiné, pegam-se em duas descrições, uma a fulgurante aterragem depois do acidente aéreo no regresso da Ilha do Como, é de uma vivacidade impressionante, incluindo não só os gestos necessários à pilotagem mais adequada às circunstâncias como o texto faz fé ao estado de alma de quem vai procurar sobreviver; o segundo texto é uma narrativa de cativeiro, releva o macabro da sordidez do presídio, o macabro e o nauseabundo de toda aquela escravidão a que estavam submetidos os adversários de Sékou Touré.

6. (...) Temos agora uma narrativa ainda mais vigorosa e em muitos pontos ganhou intimismo, espelhando os altos e baixos de um cativo que descobre força anímica para acreditar em si próprio e tentar escapar ao degredo.

A primeira descrição relaciona-se com o acidente aéreo, tem mais detalhe, dinâmica, a clara perceção do risco, a mestria da operação para aterrar em condições excecionalmente hostis:

(...) “O meu avião continua a vibrar como que sacudido por uma peneira gigante, devido ao desequilíbrio provocado pelo hélice todo torcido. Nestes casos, o procedimento para evitar o descontrolo total é parar o motor e saltar em paraquedas, ou então tentar uma aterragem de emergência sem motor.

"Num relance de olhos para o exterior, vejo uma clareira no meio da mata onde me parece que sou capaz de meter o avião. Como o motor está parado, sei que tenho de guardar uma velocidade tal que me permita manter o avião a voar como um planador e fazer uma avaliação muito correta de aproximação ao início da clareira, tão baixa quanto possível, mas sem bater nas árvores que a circundam.

"A quem não está familiarizado com os assuntos de aerodinâmica e pensa que a um avião com o motor parado só resta cair, devo esclarecer que, enquanto houver altitude suficiente para descer e manter uma velocidade de planeio, este voa normalmente até chegar ao solo.

"Perante a rapidez de decisão que a situação exige, o afluxo de adrenalina é tal que todas as faculdades passam a ter uma acuidade várias vezes superior ao normal. Todas as mnemónicas aprendidas há cinco anos atrás, ainda na fase da formação, para fixar procedimentos de emergência, afluem à memória com um rigor e uma fidelidade alucinantes.

"Nos escassos segundos que me separam do contacto com o solo, enquanto vigio e controlo com a cabeça, com as mãos e com os pés, não só o valor sagrado daquela velocidade mínima que ainda permite voar, mas também a altitude, a direção e as manobras de glissagem, perigosas mas necessárias para encaixar o avião no início da exígua clareira, vou simultaneamente executando os restantes procedimentos que contribuem para o sucesso de uma aterragem de emergência, tais como: apertar cintos, abrir cabine, desligar combustível, mistura e magnetos, desligar bateria e assumir uma atitude de corpo e alma bem encostados à cadeira.

"O ponto de contato com o solo confirma-me a justeza do planeamento, mas surge um imprevisto que do ar foi impossível detetar – o terreno não é totalmente liso; sulcos profundos, espaçados metro a metro, cortam-no de lés a lés. É uma bolanha.

"Ao intradorso das asas do T6 estão suspensas duas metralhadoras Browning, saliências que, ao entrar nos sulcos da bolanha, oferecem uma forte resistência ao deslizar do avião no solo.

"Atendendo a que este tipo de aterragem é feito com o trem recolhido, o entrar das metralhadoras num dos sulcos teve o efeito de arrancar instantaneamente as asas à aeronave. Fico sentado dentro de um charuto que rebola agora sobre si mesmo, ao longo do terreno”.(...)

E é com esta chave explicativa, em pleno clímax, que Lobato sai incólume e vai ser capturado, ao princípio ainda acredita que quem com ele vem dialogar o ajudará a percorrer as duas dezenas de quilómetros para chegar a Catió, é brutalmente ferido, o calvário vai começar.

Lobato já está na cela n.º 7 na Maison de Force de Kindia, Guiné Conacri.

Vai-nos contar o início do dia nessa cadeia de segurança onde jazem inimigos de Sékou Touré:

(...) “Não resisto à curiosidade de ver o que se passa no exterior e penduro-me nas barras de reforço da porta para elevar a cabeça a uma altura que me faculte uns metros de horizonte.
O que vejo aterroriza-me! O pátio é hexagonal, um espaço a céu aberto para onde se abrem quatro portas de ferro, totalmente opacas, bem mais baixas que a minha e sem grades a encimá-las, vai-se enchendo de negros de todas as idades, descalços e quase nus, manifestamente subalimentados, que saem por aquelas portas como rebanhos escorraçados por uma fera invisível que os persegue.

"No centro do pátio, chicote em riste e porta de carrasco, um guarda sem expressão facial, tão ameaçador quanto esquelético, orienta para o grande portão de saída aquela enxurrada de negros totalmente desprotegidos, distribuindo chicotadas à direita e à esquerda, vociferando insultos apenas intercalados por nojentas cuspidelas num chão de cimento muito irregular.

"Junto ao portão de saída para o exterior, alinhadas ao lado de cada uma das ombreiras, duas colunas de homens armados. Nos pés trazem sandálias de plástico coloridas pela terra avermelhada dos caminhos que percorrem. Vestem calças engelhadas, de um caqui esverdeado, e uma camisa sem mangas, do mesmo tipo de tecido. À medida que os prisioneiros saem para as GMC que os esperam à porta, vão sendo contados pelos soldados.

"Terminada a tarefa do embarque para trabalhos forçados, os grandes portões fecham-se e tem início outra tarefa, atribuída aos inaptos para o trabalho no exterior e àqueles que alguma vez tentaram a fuga.

"De cada uma daquelas quatro portas opacas, ainda abertas, saem agora pequenos grupos que se movem com alguma dificuldade. Uns são leprosos a que já faltam partes do corpo, sobretudo das mãos e dos pés; outros tossem convulsivamente e expelem escarros amarelos para aquele chão meio desfeito; outros, ainda, apoiam-se às paredes para não tombar e arrastam-se com dificuldade em direção a uma outra porta que entretanto se abriu e dá acesso a uma área de recreio.

"Os menos afetados por doença ou caducidade sustentam nos braços metades de bidões de duzentos litros que transbordam de fezes e outros dejetos. Acompanhados por um guarda, saem pela porta principal. Minutos depois, oiço-os nas traseiras da minha cela a despejar os imundos recipientes.

"Todos os dias, após esta operação, o mau cheiro engrossa como se de coisa sólida se tratasse e põe a prisão a transbordar de nojo. O trágico amanhecer não fica por aqui. O encetar de uma terceira operação obriga-me a descer do meu posto de vigia, mas ainda bem que isso acontece, porque já tenho os braços dormentes de estar tanto tempo suspenso.

"O guarda começa a abrir as portas das sete celas que também dão para o pátio hexagonal. Dois negros estropiados retiram do interior de cada cela um balde de zinco que a seguir despejam num bidão colocado para o efeito num dos ângulos do pátio.

"Também eu tenho aqui dois baldes, sendo um deles substituto da sanita e outro servindo de contentor de água para todos os fins, isto é, para beber, para lavar e para substituir o papel higiénico que por estas paragens é desconhecido”. (...)

A transcrição destes dois textos é um convite para que se releia António Lobato, um jovem sargento piloto-aviador capturado no Tombali, em maio de 1963 e libertado durante a “Operação Mar Verde”, em novembro de 1970.

Foi considerado herói nacional e voltou ao ativo até ter passado à reserva em 1981. Exerceu outros cargos, posteriormente.

É um dos mais impressionantes documentos de vida em cativeiro, senão mesmo o mais impressionante de todos. De leitura obrigatória.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste 10 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25259: In Memoriam (50): António Lobato, maj pil av, ref (Melgaço, 1938 - Lisboa, 2024), autor de "Liberdade e Evasão: o Mais Longo Cativeiro": Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão, escreveu ele, citando o filósofo Emmanuel Mounier. A sua vida foi também ela uma luta contra o esquecimento e a ingratidão. Repousa, finalmente, em paz, em Rio de Mouro.

terça-feira, 12 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25266: Agenda cultural (850): Síntese da apresentação do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria de Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que esteve a cargo do Coronel António Rosado da Luz (Paulo Salgado)


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro, "Margens - Vivências De Uma Guerra, com data de 10 de Março de 2024:

Caro Luís Graça e Coeditores
Seria interessante que o comentário a este livro MARGENS – VIVÊNCIAS DE GUERRA, cuja apresentação foi feita pelo capitão de Abril, Coronel António Rosado da Luz, fosse elaborado por um dos nossos editores que saberiam escolher os trechos para o Blogue.
Sei, ainda, que o Mário Beja Santos, sempre presente nestas andanças, e carregado dos seus valores, fará uma abordagem à sua maneira.

Transcrevo parte desta apresentação, que me pareceu relevante para o nosso Blogue. De um grande capitão de Abril, cidadão interventivo e activo. Já agora: Este livro é dedicado aos capitães de Abril. No cinquentenário do 25 de Abril.

Paulo Salgado



"Margens – Vivências de Guerra"
Autor - Paulo Cordeiro Salgado

Apresentação pelo capitão de Abril
Coronel António Rosado da Luz

"Foi a primeira vez que me convidaram para APRESENTAR UM LIVRO.
Seguindo a “palavra de ordem” fundamental de “um tropa”,… lá tive que me “desenrascar” …

Nos tempos presentes, por opção, por força das circunstâncias e também por prazer e autorrealização pessoal, a atividade que ocupa 90% do meu tempo é ler.
Ler, estudar, investigar e escrever. E, ler este livro, deu-me imenso prazer por três razões, que me fazem ficar imensamente grato, quer ao Mário Tomé que sugeriu, quer ao Paulo Cordeiro Salgado que aceitou, terem-me proporcionado o imenso prazer de ler, em primeira mão, este livro.

A primeira dessas razões foi a de me terem dado oportunidade para me “desviar” dos temas quase obsessivos que ocupam a minha mente, permitindo-me regressar, por algum tempo, àquilo que posso denominar de “leitura lúdica”.


A segunda, pelo facto dos vários “planos”, logo anunciados no “preâmbulo” do livro, em que o autor decidiu “dar forma” ao tema central desta sua obra, me terem ajudado a refrescar a minha própria abordagem dos tais temas obsessivos que me ocupam a mente.

A terceira e mais importante razão para lhes estar grato é o imenso prazer… e até alguma emoção, …que são proporcionados pela leitura deste livro. O autor escreve, não só com arte, aquela arte de domínio da palavra que nos encanta ler, como escreve com alma, pois consegue pôr – e transmitir - emoção naquilo que escreve.


Mas este não é APENAS, ou, SOBRETUDO, não é um livro de memórias.
É um livro onde as emoções e as reflexões em torno dos dramas e das violências da GUERRA, da VIDA e da MORTE, se espraiam pelo AMOR, pela AMIZADE e pela SOLIDARIEDADE, mas também pela HISTÓRIA, pela POLÍTICA e por essa entidade mítica que nos condiciona, que nos abriga e que “somos”, que é PORTUGAL.

Embora não seja essa a forma como o livro está estruturado, podemos dividir o OBJETIVO do AUTOR em três “tempos”.


O primeiro “tempo” decorre nos dois primeiros anos da década de setenta. O autor deste livro, Paulo Cordeiro Salgado, que era na altura o Alferes miliciano mais antigo de uma companhia sediada no Olossato, a 27 quilómetros da fronteira com o Senegal e situada numa das zonas de guerra mais acesa, do Teatro de Operações da Guiné-Bissau, vê-se de repente, investido nas funções Comandante dessa Companhia, por morte, em combate, do Capitão que a comandava. Até à chegada de um novo Capitão que irá comandar a Companhia (que aqui está hoje presente entre nós) é ele, jovem de vinte e poucos anos, sem qualquer formação ou experiência para tal, que vai passar a ser O SENHOR, quase absoluto, de vida e de morte, sobre uma enorme área geográfica e sobre centenas ou milhares de seres humanos que nela vivem, ou são obrigados a isso.

A missão que lhe impõem é fazer a guerra. Fora mobilizado para ir para aquela guerra pela força de uma Lei, feita por um regime ditatorial, com o qual ele não concordava, para ir combater numa guerra, com a qual ele discordava totalmente. E ali estava agora ele, para matar ou morrer, pessoas que ele naturalmente respeitava como seus irmãos e contra as quais ele não tinha quaisquer motivos para tal. E, a grande maioria das cerca de duas centenas de militares que ele agora comandava, estavam na mesmíssima situação.

Mas há neste livro um segundo “tempo”.

Vinte anos após o fim da sua comissão, a intensidade dos dramas nela vividos pelo Paulo Cordeiro Salgado colaram-se-lhe de tal maneira à pele que ele não conseguiu mais reprimir a necessidade de “ajustar contas com o passado” e regressou à Guiné. Mas desta vez regressou para fazer o oposto da guerra. Regressou como cooperante.
Regressou, não só pela necessidade de se reconciliar consigo próprio, fazendo a sua catarse, como por ter ficado a amar, para sempre, aqueles povos, aquelas paisagens, aquela África.

Como eu compreendo o autor.


Finalmente, o terceiro “tempo” passa-se, 54 anos depois da sua primeira chegada às matas, às bolanhas e aos enormes rios da Guiné que alargam e encolhem duas vezes por dia. Passa-se nos nossos dias. E é nesse terceiro “tempo” deste livro, que se entende com toda a clareza o OBJETIVO do autor, pois é nele que Paulo Salgado, com os pés assentes no presente, resolve olhar para o passado, para o presente e para o futuro, escrevendo este livro.

É agora, 54 anos depois, que ele volta a olhar para os dramas dos “tempos da guerra”, daquela guerra onde ele combateu e, duas décadas depois, para os “tempos da reconciliação”, da reconciliação consigo próprio, com África e com os povos, que ele combateu, mas amou desde o primeiro momento.

E é aí que as reflexões que o autor vai fazendo ao longo do livro ganham um “outro patamar” de interesse. É aí que este livro deixa de ser um “livro de memórias” virado para o passado, para ter uma atualidade dramática.
É que, nesta segunda década do século XXI a que alguns homens desse tempo conseguimos chegar, não só a guerra volta a ser, infelizmente, o tema central do futuro das nossas vidas, como as esperanças de Liberdade e de Democracia, de Fraternidade, de Solidariedade e de Igualdade, quer dos nossos povos irmãos, quer do mundo em geral, começam todos a ser postos em causa.


E é aí, que as reflexões que o autor vai hoje fazendo, ao olhar para as suas vivências de há 54 e 34 anos, ganham um terceiro e mais importante patamar de interesse.

É que este livro é publicado no ano em que se celebram os 50 anos do 25 de Abril».

António Rosado da Luz
10.03.2024

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Nota do editor

Vd. post de 21 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25195: Agenda cultural (849): Lançamento do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria de Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721 (Guiné, 1970/72), dia 8 de Março de 2024, pelas 17h30, na sede da Associação 25 de Abril, Rua da Misericórdia, 95, Lisboa. Apresentação a cargo do Coronel António Rosado da Luz (Paulo Salgado)

Guiné 61/74 - P25265: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Lançamento do livro em 2010 - Parte I: texto da intervenção do Nuno Rogeiro

Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) > A sessão foi presidida  pelo presidente da Associação de Comandos, Dr. José Lobo do Amaral.

A apresentação do livro do Amadu Djaló (o segundo da mesa, a contar da esquerda para a direita), esteve a  cargo de três oradores: o cor 'cmd' ref Raul Folques  (o último comandante do Batalhão de Comandos da Guiné), o cor inf ref e escritor Manuel Bernardo (o último da ponta, do lado direito) e ainda o jornalista e analista político Nuno Rogeiro (o primeiro da ponta, do lado esquerdo).  Vamos relembrá-las aqui, às três intervenções, começando pela do Nuno Rogeiro.

Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >Sessão de  lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010). > A brilhante intervenção do Nuno Rogeiro, que se reproduz a seguir.

Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro "Guineense, Comando, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa, 2010) >  Aspecto geral da assistência, que encheu a ala central das famosas caves manuelinas... Na primeira fila, do lado direito, reconhecemos a dra. Maria Irene, esposa do Virgínio Briote bem como o comandante Alpoím Calvão, além do representante do Chefe do Estado-Maior do Exército. A meio, na outra ala, a filha e o neto do Amadu Djaló.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Sessão de lançamento do livro "Guineense, Comando, Português" (edição da Associação dos Comandos, Lisboa,  2010). O Autor, Amadu Bailo Djaló, membro da nossa Tabanca Grande, e o presidente da Associação de Comandos, Dr.  José Lobo do Amaral... Nas suas palavras de abertura, este último  fez questão de, em nome da associação,  agradecer "ao sócio comando Virgínio António Moreira da Silva Briote a disponibilidade, competência e dedicação com que acompanhou esta Memória, sem a qual não teria sido possível esta edição"... 

No final, também nos  agradeceu a divulgação do evento,  dada pelo nosso blogue,  e manifestou o seu regozijo pela entusiasmo com que foi recebida o 1º volume das memórias do Amadu bem como  pelo pluralismo das abordagens dos oradores.

Fotos (e legendas): © Luis Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


 

Capa do livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il., edição esgotada) 



O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


1. Foi um dia grande para o nosso Amadu Djaló, o da apresentação do seu livro, no Museu Militar, em Lisboa, no 15 de Abril de 2010. Mas também para o seu amigo, camarada e editor literário, Virgínio Briote.

Vamos recordar os melhores momentos desse evento, a que o nosso blogue dedicou nada mais nada menos do que cinco postes. 

O livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.)  foi um acontecimento cultural, social e militar, juntando alguns conhecidas personalidades e sobretudo muitos amigos e camaradas, incluindo guineenses, e membros da nossa Tabanca Grande (alguns, infelizmente, já falecidos).

Vamos relembrar aqui as intervenções dos três oradores (Nuno Rogeiro, Raul Folques, Manuel Bernardes), começando pela do jornalista, escritor e analista político Nuno Rogeir0 que consideramos a mais original e estimulante nota de leitura do livro, do autor e da sua história de vida.


NO FIM DAS GUERRAS

por Nuno Rogeiro


A guerra e as suas entranhas, em terras próximas ou estranhas, sempre fascinaram, revoltaram e mobilizaram o homem.

Anarquistas e conservadores, aristocratas e operários, fascistas e antifascistas, descamisados e oficiais de monóculo, sobreviventes das trincheiras e gaseados, soldados de assalto e feridos de morte, poetas e prosadores, pintores e pensadores, muitos investiram as mais nobres energias na reflexão sobre o campo de batalha.

Este pode ser visto como uma simples planície da técnica, da era da espada ou da era de Urânio. Ou ser antes olhado, de forma que se diria “existencialista”, como um vale de lágrimas e revelações, onde se morre e se nasce, mas sobretudo onde habitam homens e mulheres comuns. E onde residem, soberbas ou incógnitas, evidentes ou traiçoeiras, contínuas ou explosivas, a violência e a morte.

Tivemos grandes obras sobre este continente trágico, onde vemos já não como um espelho baço, mas face a face. Como “As Tempestades Aço” de Jünger, como “O Fogo”, de Henri Barbusse, como E.E. Cummings em “O Enorme Quarto”, ou o “Entre Parêntesis” de David Jones, como o “Ronge Maille Vainqueur”, de Lucien Descaves, qualquer livro sobre guerra perturba, alerta, impede a normalidade. E pode despertar, para lá do desespero, a esperança.

É o caso do livro que nos traz aqui. Relato de guerra, seco e sem adornos desnecessários, este volume de Amadu Djaló, escrito em português escorreito e de lei, é tanto uma história de morte como de vida. De tempo de matar e de proteger. De tempo de golpes de mão, executados com precisão e destemor, e de lágrimas por uma criança perdida, em Darsalame Baio, na margem, literalmente na margem: à beira do rio Burontoni, à beira de sentença salomónica.

Relato de vida militar, da obediência perinde ac cadaver, também é uma fiel e lúcida exposição das dúvidas dos combatentes, quando confrontados já não com a obediência, a lealdade e a técnica, mas com os juízos políticos, a diplomacia e as relações internacionais.

Este clima de homens divididos encontra-se na breve descrição do prelúdio à operação “Mar Verde”: resgatar companheiros presos fazia parte da missão, mas o que dizer de levar a cabo um acto de guerra em território estrangeiro?

Estaríamos perante uma violação da soberania alheia, mesmo se de estado hostil, ou antes diante de uma espécie de auto-defesa legítima? Seria “regime change”, ou contra-ataque a quem nos agredia, ou oferecia bases a quem nos ofendesse?

“Obedientes como cadáveres”, como diria Inácio de Loyola. Mas pode um cadáver reflectir, se a alma, prestes a partir, ainda o habitar?

Relato de guerra, este volume, o primeiro de memória, é antes de mais um admirável retrato, de história oral e testemunhos vivos, sobre a humanidade, os seus encontros e desencontros, amores e desamores.

É a história dos condutores sem carta, dos oficiais à estalada em frente de soldados envergonhados, dos civis ambulantes que levavam o cinema às tabancas, de um ataque de abelhas que abatem um homem rijo, de romances ao luar, de misérias na estrada. Um relato de delicadeza e pudor.

Pudor na descrição do que hoje diríamos violência sexual, violência racial, violência animal. O autor, homem bom e reservado, é também bom e reservado, na visualização da desumanidade: o oficial que diz que “preto é como a tartaruga” não é “racista”, mas apenas “um branco mau”.

Este é também um livro sobre o terrível abandono, sobre a inutilidade, sobre o esquecimento. Sobre o absurdo.

Cito, talvez imprecisamente e sem consultar o original, um poema de um dos nossos grandes vates, António Manuel Couto Viana:

“A minha Pátria alçou o braço
Pátria pacífica e pequena
Baixou-o logo de cansaço
Foi Pena

“Cedo arrasou a altiva torre
Que ergueram todos
De mãos dadas
Agora sei como se morre
Por nada”


Esta obra, relato de guerra e do pós-guerra, relato da paz e da pós-paz, é também o mapa deste desencanto, dos combates declarados inúteis, dos combatentes declarados redundantes, dos feridos declarados descartáveis, dos órfãos e viúvas declarados dispensáveis, dos mortos declarados inexistentes, por regulamento ou decreto.

Mas é também uma história, se bem que só esboçada, de reconciliações e de abraços. Abraços e reconciliações às vezes traídos.

O autor encontra-se, a seguir ao 25 de Abril de 1974, com o cabo-verdiano Antero Alfama, quadro do vencedor político, o PAIGC. Os compromissos feitos pelo último são de transição generosa, de integração de todos os guineenses, sem vinganças ou retaliações, sem tribunais especiais ou valas comuns, sem julgamentos secretos e tiros na nuca, sem o “N’kré vivé”, o processo de choques eléctricos, sem asfixia colectiva, em antigos depósitos de munições. Promessas rasgadas pelo processo “revolucionário” em curso em Bissau, mas sobretudo pela iluminação sanguinolenta de algumas vanguardas.

Não vale hoje a pena, se calhar, chorar mais sobre as vidas derramadas, nesse intervalo onde Portugal, independentemente de credos, doutrinas, regimes e pessoas, não fez tudo o que devia, para proteger os que combateram em seu nome.

Não valerá a pena chorar mais sobre o “incidente”, que levou à execução de centenas de comandos, milicianos, civis, em Farim, Cumeré, Portogole, Mansabá, a partir de 1974.

Não valerá mais a pena chorar sobre a aplicação do artigo 86 da Lei de Justiça Militar do novo partido no poder. Não valerá mais a pena chorar sobre aqueles que preferiram ficar na Guiné, a sua terra, em vez de fugir ou de pedir colocação nas instâncias burocráticas de Lisboa.

Não valerá mais a pena chorar por aqueles que aguardavam por oportunidades para continuar a servir a Guiné, ou para serem julgados por crimes de guerra, com todas as garantias e recurso à verdade.

Não valerá mais a pena chorar por este processo. Mas será uma vergonha não o lembrar. Será uma vergonha ter vergonha de o lembrar.

Este livro é também, na tradição dos grandes relatos de combatentes, de tropas de escol ou de guerrilhas, de milícias ou de regimentos fardados a rigor, de irregulares ou de exércitos convencionais, este é também um relato sobre sonhos e premonições, sobre lendas e o outro mundo, sobre conchas mágicas e aparições.

É o caso de João Bacar Jaló, que fecha os olhos, e sabe o que vai acontecer nesse dia.

Nessa zona da mente onde desembarcamos do sono para o sonho, fazem-se também episódios onde imaginamos a morte, às tantas de tal, sem falta.

E lá está ela, pontual no encontro, no fim da picada. Ela, a velha ceifeira, que vem buscar os últimos guerreiros.

É também este um relato sobre acções militares das forças especiais, numa guerra que hoje se chamaria “de baixa intensidade”, mas que teve picos próximos de confrontos convencionais, com emprego de todos os meios, da aviação à artilharia, dos meios navais ribeirinhos à ofensiva em linha contra quartéis e bases.

É, no plano técnico, um bom relato, se bem que parcial e provisório, de incidentes localizados do “nevoeiro da guerra”, com descrições exactas de tácticas e princípios, doutrinas de contra-insurreição e aquilo que a prática, e as lições aprendidas, fazem aos manuais.

É a história da missão, talvez impossível, de ganhar corações e espíritos, num conflito subversivo, às vezes de armas combinadas, com os Harvard e os Alouette a zunir sobre as cabeças dos infantes, às vezes continuação de acções de polícia, de missões de assuntos civis, de operações psicológicas.

Às vezes, muitas vezes, demasiadas vezes, com “vítimas colaterais”, de um lado e de outro. Como diz o autor, no confronto verbal com o comandante guerrilheiro Pedro Nazi, logo a seguir ao cessar-fogo: “Porque se nas zonas libertadas vocês apresentam mil órfãos, nós também vos mostramos órfãos aqui na zona. O chicote da guerra é comprido, muito comprido” (p.205).

Neste sentido, o livro cumpre também o preenchimento da lacuna sobre relatos pessoais, ou de grupo, sobre pormenores operacionais na África Lusófona, do ponto de vista das forças armadas portuguesas e do seu inimigo.

Essa lacuna, que se foi preenchendo, nas últimas décadas, com documentos e relatórios de estado-maior, com romances de base realista, com fragmentos e com monografias, tem ainda muito poucas contribuições dos militares africanos, de um e de outro lado da barricada.

Não seria impensada a criação de uma instituição, no seio da parte da CPLP que directamente viveu as guerras africanas, que pudesse, mais activamente, colmatar a brecha.

Oio, Canjambari, Cunacó, Antuane, Cameconde, Bedanda…Nestas páginas pode-se também deambular pela Guiné desconhecida, uma terra onde as famílias, as raízes, os clãs e os laços ultrapassam fronteiras, e se espraiam para além dos estados definidos pelas regras das administrações europeias, ou dos orgulhos nacionais pós-europeus.

Este é assim, ainda, num tempo que preza os relatos de viagem e as descobertas das partidas do mundo, uma espécie de introdução à Guiné, à querida Guiné de todos os portugueses, tenham ou não deixado o seu melhor naquela terra.

À querida Guiné que – penso poder falar em nome de todos os presentes – continuamos a querer soberana, desenvolvida, feliz e capaz de repartir riqueza pelos seus filhos.

À querida Guiné que, acima de golpes de estado e revoluções, pronunciamentos e discursos com má pronúncia, sublevações e homicídios, narcotráfico e cleptocracia, ameaças estrangeiras e cancros internos, tem suficientes filhos, talentos e energias para erguer um futuro diferente. Um futuro melhor.

Porque este é também um livro para o futuro. Uma espécie de filho do autor, e dos que o ajudaram ao parto intelectual. Um manifesto que lembra, como no desfiladeiro das Termópilas:

“Estrangeiro, vai dizer a Atenas
Que morremos aqui para cumprir a sua Lei”.


Mas que, para além dessa lápide de sacrifício, afirma ainda, de forma límpida, o principio do amor entre os homens. Da possibilidade de recomeçar, mesmo na mais negra das noites. Da disposição firme de dar a mão a antigos inimigos, de erguer torres em conjunto, de obter a absolvição, e de absolver. Ou, como fizeram os bispos polacos, em 18 de Novembro de 1965, duas décadas apenas depois da grande carnificina, na carta pastoral aos irmãos alemães:

“Vimos perdoar, mas sobretudo pedir para ser perdoados”.

No fim das guerras, na lembrança interior, no armistício sem amnésia, na paz dos bravos, na reparação dos males, na humildade de reconhecer o que se fez, o que se sofreu, o que se poderia ter feito, na disponibilidade para afirmar os seus valores e reconhecer os dos outros, desta forma se fazem os futuros pactos de não agressão, os irmãos e os aliados.

E assim se alcança, talvez por milagre, a eternidade.

(Revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG) (Com a devida vénia ao autor e ao nosso coeditor Virgínio Briote, que nos facultou o texto.)
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P25264: Parabéns a você (2253): SAj Ref da GNR Manuel Luís Rodrigues de Sousa, ex-Soldado At Inf da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4512/72 (Jumbembém, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25248: Parabéns a você (2252): Cor Art Ref DFA António Marques Lopes, ex-Alf Mil da CART 1690 / BART 1914 (Geba, Banjara e Cantacunda, 1967/69)

segunda-feira, 11 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25263: Notas de leitura (1675): Capitães/MFA – A conspiração na Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
O tema está longe de ser novo, já foi pelo menos abordado o longo depoimento de Carlos Matos Gomes e Jorge Golias, aqui reproduzidos
.[1]
O Coronel Duran Clemente elenca as sucessivas etapas da constituição do núcleo dinamizador e como ele evoluiu até agregar as unidades fundamentais sediadas em Bissau, dos três ramos das Forças Armadas. Não se reproduzem aqui os textos de Moisés Cayetano Rosado sobre Salgueiro Maia pois igualmente já se fez recensão do livro que o investigador dedicou ao capitão de abril; as considerações de Mário Moitinho Pádua sobre o colonialismo português também já apareceram numa recensão dedicada ao seu livro.

Um abraço do
Mário



Capitães/MFA – A conspiração na Guiné

Mário Beja Santos

O boletim n.º 86 deste ano da revista “O Pelourinho”, da Deputação de Badajoz é dedicada ao estudo de conflitos coloniais. O seu diretor, Moisés Cayetano Rosado convidou vários intervenientes portugueses, como Duran Clemente, Mário Moutinho Pádua ou Luís Farinha, além de ele próprio ter dedicado um texto à consciencialização do Capitão Salgueiro Maia, a quem dedicou um trabalho que já está traduzido em português.

Duran Clemente, hoje Coronel reformado, tece uma apreciação sobre a conspiração na Guiné que acaba por completar e confirmar depoimentos de Carlos de Matos Gomes e Jorge Sales Golias, aqui já apresentados no blogue.

Tudo terá começado com a reação e repúdio dos oficiais do quadro permanente ao Congresso dos Combatentes do Ultramar. Escreve textualmente o autor:
“Almeida Bruno, Dias de Lima, Manuel Monge, Otelo Saraiva de Carvalho e outros, puseram ocorrente o general Spínola do descontentamento que apoderou dos oficiais em geral. Tratava-se de um congresso que mais não era do que uma encenação do governo com aproveitamento de antigos oficiais milicianos. Este descontentamento chegou a Lisboa, chegou também a Ramalho Eanes, Hugo dos Santos e a Vasco Lourenço, que encabeçavam na metrópole um vasto movimento de protesto. 400 assinaturas de oficiais do quadro permanente assinaram em Bissau”.
Enviou-se mesmo um telegrama para o Porto a partir de Bissau em que os subscritores diziam taxativamente que se consideravam totalmente alheios às conclusões do congresso. Duran Clemente chegara a Bissau a 28 de julho de 1973. Começaram as reuniões no Agrupamento de Transmissões, presentes Jorge Golias, Duran Clemente, Matos Gomes, Jorge Alves, José Manuel Barroso, este capitão miliciano. Debruçaram-se sobre um documento que Duran Clemente tinha feito à hierarquia militar e distribuído no Congresso de Oposição Democrática em Aveiro. Com consentimento dos presentes criou-se um núcleo dinamizador, assumiu-se como prioridade editar um documento destinado a todos os oficiais, no sentido de os sensibilizar para o que se estava a passar. É nesta fase em que se procura endereços de todos os oficiais em serviço na metrópole ou nas colónias que é publicado o Decreto-Lei n.º 353/73, que facultava a entrada de oficiais do Quadro Especial de Oficiais no quadro permanente através de curso intensivo na Academia Militar.

Iniciava-se uma fase de grande protesto, fora um tremor de terra que pôs este núcleo em ação e os oficiais começaram a reunir na sala de jogos do Clube Militar, efetuaram-se 4 reuniões no espaço de 8 dias, 3 delas no Agrupamento de Transmissões. Elaborou-se uma carta protesto assinada por 46 capitães a que se juntaram ainda as de 4 subalternos. Na metrópole, começara a haver reuniões de capitães; em setembro, foi eleita a 1.ª Comissão Coordenadora do Movimento de Capitães da Guiné. Houve informação da reunião de Évora, que se realizou em 9 de setembro, onde se encontraram mais de 130 oficiais do quadro permanente. Em Bissau entendeu-se dar conhecimento ao Comandante Militar da existência de reuniões. O Brigadeiro Alberto Banazol deu a devida autorização para se reunirem na Biblioteca do Quartel General. Banazol mostrou-se cordial e convidou-os para um jantar volante em sua casa, jantar que teve um final conturbado por ter havido intervenções acaloradas, chamava-se à atenção dos altos comandos que se estava a deixar resvalar para um caso semelhante ao da Índia. O oficial general mostrou-se evasivo e acabou por ser vítima de si próprio, em 25 de abril não quis mostrar que estava do lado dos capitães e até do seu irmão, o Tenente-Coronel Luís Ataíde Banazol.

Entrara-se numa atmosfera conspirativa, procurava-se angariar o maior número possível de adeptos. A Marinha aderiu em força, a Força Aérea destacou sempre em Jorge Alves e Faria Paulino e depois Sobral Bastos e o paraquedista Albano Pinela. No mês de outubro, Duran Clemente efetuou uma reunião com 14 oficiais pilotos-aviadores do quadro permanente, acompanhado de Faria Paulino. Constituiu-se igualmente o Movimento de Oficiais Milicianos, os seus principais mentores eram os alferes Barros Moura e Celso Cruzeiro, e o Capitão Miliciano José Manuel Barroso. Há a reunião de Óbidos em 24 de novembro de 1973, punham-se 3 hipóteses, a conquista do poder para uma Junta Militar criar no país as condições que possibilitem uma verdadeira expressão nacional, dar oportunidade ao governo de legitimar perante a nação perante eleições livres precedidas de um referendo sobre a política ultramarina, utilizar reivindicações exclusivamente militares como forma de alcançar o prestígio do exército e depressão sobre o governo.

E escreve Duran Clemente:
“A decisão de que na Guiné também optaríamos pela tomada do poder pelas armas já estava tomada há muito; daríamos, no entanto, a possibilidade à hierarquia militar para se pronunciar. Quem não estivesse connosco seria devolvido a Lisboa. No caso de insucesso das operações pelo Movimento em Portugal a nossa estratégia era a tomada do poder na mesma. Para isso, tínhamos de ter o completo domínio do comando em todos os setores e ramos das nossas Forças Armadas, instaladas no teatro de operações da Guiné. Iriamos ter.”
Houve alguns momentos de aflição, houve que travar a ansiedade do Tenente-Coronel Banazol que queria tomar o poder ocupando o Palácio do Governo.

E assim se chegou ao 25 de Abril. Tanto o Comandante-Chefe como o Comandante-Militar não aderiram ao Movimento. A Companhia de Polícia Militar tomou pacificamente as instalações do Comando-Chefe, Bettencourt Rodrigues seguiu uns dias depois por avião para Lisboa. O MFA colocou o Almirante Almeida Brandão como Comandante-Chefe interino e o Major Mateus da Silva como representante da Junta de Salvação Nacional, até 7 de maio, data em que chegou o Tenente-Coronel Carlos Fabião graduado em Brigadeiro, vinha ocupar as funções de Governador da colónia.

O depoimento de Duran Clemente traz um anexo com a síntese das reuniões havidas em agosto de 1973.

Manuel Duran Clemente
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Notas do editor:

[1] - Vd. post de 21 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12751: Notas de leitura (566): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 4 de 4 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 9 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25254: Notas de leitura (1674): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (15) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25262: Convívios (982): 55º almoço-convívio da Magnífica Tabanca da Linha: Algés, quinta feira, 14 de março de 2024 ... Uma das novidades é a presença pela primeira vez dos "nova-iorquinos" João Crisóstomo e a filha Cristina


Lista (ainda provisória) dos inscritos para o 55º almoço-convívio da Magnífica Tabanca da Linha, no próximo dia 14 de março de 2024, quinta-feira, em Alges (*) 

Acrescente-se que o camarada Manuel Lietão e o filho Pedro vêm de Mafra. E a filha do João Crisóstomo está a viver e a trabalhar em Lisboa... Enfim, também o nosso régulo Manuel Resende diz que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca da Linha... é Magnífica. 

Inscrições ainda se aceitam até à véspera...

Manuel Resende >Tel - 919 458 210
manuel.resende8@gmail.com
magnificatabancadalinha2@gmail.com




 João Crisóstomo, membro da nossa Tabanca Grande, com cerca de 220  referências no blogue, luso-americano, a viver em Queens, Nova Iorque, ativista social,  régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, ex-alf mil inf, CCAÇ CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), recentemente galoardo com o prémio Tágides 2023 (Categoria "Portugal no Mundo")



1. Mensagem do João Crisóstomo, feito recentemente também membro da Tabanca da Linha, e que vai participar (pela primeira vez) no próximo 55º almoço-convívio (mensagem  publicada em 28 de fevereiro último  na página do Facebook da Magnífica Tabanca da Linha):

Data - domingo, 18/02/2024, 06:52

Caros Luís Graca, Manuel Resende e todos os meus camaradas/irmãos reunidos neste encontro de 22 de Fevereiro (**).

Tenho-vos inveja! Porque têm hoje uma possibilidade que a mim me é negada: a de poder dar um apertado abraço a indivíduos que nem conheço, mas que uma mesma experiência, já longínqua mas sempre presente, nos fez irmãos.

Aproveitem bem esses momentos, que esperançosamente se hão de repetir, mas que serão sempre diferentes. As razões e motivos destes encontros,... esses são sempre os mesmos e não preciso estar a ensinar a quem os conhece igual ou melhor do que eu. Aproveite-nos bem, é tudo quanto vos desejo.

Permito-me sugerir que no vosso "minuto de silêncio", que acredito fazem pelos camaradas que já nos deixaram, incluam aqueles que "ainda estamos por cá", especialmente os da zona abrangida pela Tabanca da Linha, que por qualquer razão, como distância física, saúde e outras considerações gostariam de estar presentes, mas não o podem fazer. Amizade é solidariedade também.

Vou a Portugal brevemente. Se algum de vocês me quiser dar a satisfação de um abraço… sei que será, pelo menos para mim momento de emoção grande pois, como à saudade, o tempo e distâncias a fazem maior.

No caso de estar aí algum dos nossos camaradas José Belo, José Teixeira, José Braz, Miguel Rocha, António Carvalho, José Ferreira da Silva e João Carlos Silva, que celebram este mês “MAIS UM”,…. as minhas saudações e votos de saúde, bem estar e tudo o mais que desejem. Sei que a alguns destes já enviei uma mensagem no blogue, mas abraços destes nunca são demais.

Entretanto, mesmo virtual, a todos um abraço grande, como grande é a amizade que a todos nos une.

Guiné 61/74 - P25261: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (21): O pão que o diabo amassou

Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Setor de Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Destacamento da Ponte de Caium, guarnecido pelo 3º grupo de combate, "Os fantasmas do leste". Na foto, o sold Cristina, municiador do morteiro 81, que as circunstâncias obrigaram a tornar-se padeiro... Como muitos outros, espalhados pelos duzentos e tal aquartelamenntos e destacamentos da Guiné..."A necessidade faz o órgão"... Mas esta história que aqui se conta não tem nada a ver  diretamente com ele..., apesar de ter descoberto na ponte Caium a sua vocação e ter continuado  a ser padeiro pela vida fora.


Foto: © Jacinto Cristina (2010). Todos  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo (21) >  O pão que o diabo amassou 


por Luís Graça


− “Duque de Palmela”, imaginem!,  foi a alcunha que me puseram na tropa.

Muitos militares tinham como alcunhas os nomes das terras donde provinham. Assim era mais rápido distinguir os Silva, os Santos, os Ferreiras, os Carvalhos, etc. , em cada pelotão ou companhia. E sempre era mais fácil do que fixar o número mecanográfico, que na realidade ninguém sabia de cor, nem o próprio… Andava-se com ele ao pescoço numa medalha metálica, picotada:

− Em caso de um tipo lerpar, cortavam uma metade e entregavam-na ao cangalheiro..., não fosse mais tarde haver troca de urnas − esclareceu o meu interlocutor.

Santos era o seu nome, um antigo 1º cabo atrador de infantaria, que se emocionava uando falava  da Guiné:  dos camaradas que lá ficaram, uma boa meia dúzia; dos que regressaram e que ele nunca mais voltou a ver:  "da fome e da sede que raparam"; dos “embrulhanços”, das emboscadas no mato, das minas nas colunas logísticas, dos ataques e flagelações aos aquartelamentos,  destacamentos e tabancas… 

Emocionava-se ao falar do pão que amassou e cozeu em fornos, quase sempre improvisados… E, claro, das “beijudas”… E ainda da sorte que, afinal, só teve na guerra, ao trocar a G3 pela amassadeira e a pá de padeiro...

Ainda se emocionava, enfim, quando falava da sua infância e adolescência, marcadas pela pobreza e pela orfandade.

− Camarada, comi o pão que o diabo amassou!... Pode escrever aí!

Nasceu nas faldas da serra da Arrábida, perto da Quinta do Anjo, no concelho de Palmela. O pai, J. Santos, era de origem beirã, nascido "lá para as bandas da Serra da Estrela", em Gouveia. Fixou-se por ali, com a família, no início dos anos 30. Era pastor, quando, no período da II Guerra Mundial, foi chamado a cumprir o serviço militar obrigatório. Mobilizado pelo RI 11, em Setúbal, esteve como expedicionário, na ilha do Sal, em Cabo Verde. 

− Rapou fome e sede, apanhou o escorbuto por falta de fruta e legumes frescos, e nunca mais ficou bom dos pulmões. Regressou em 1943, casou em 1944, e teve o seu primeiro filho em 1945, que fui eu. 

Filho e neto de pastores, o J. Santos pastor continuou a ser, em regime de "parceria pecuária": tinha um rebanho de ovelhas que não era seu, era do patrão, um fabricante de queijo de Azeitão, um dos fundadores da cooperativa local nos anos 40.

No final do ano tinha direito a algumas crias que podia vender, mais tarde, como borregos, machos, em especial na altura da Páscoa, em que havia maior procura. O seu salário-base era uma miséria. Nunca conseguiu chegar a ter um rebanho seu.

Analfabeto, descobrirá, por si mesmo, a importância que era saber ler, escrever e contar. Em Cabo Verde, tinha que pedir ao seu 1º cabo, um rapaz do seu distrito, para lhe ler as cartas que recebia da namorada e dar-lhe a resposta na volta do correio (que só era de tantos em tantos meses, quando o barco lá passava).

De regresso à terra, casou e jurou a si mesmo que os seus filhos, se os tivesse e  fossem machos, teriam que ir à escola, custasse o que custasse. Só teve rapazes e todos fizeram a 4ª classe, ou andavam na escola quando ele morreu, cedo, aos 38 anos... De uma pneumia, mal curada. 

− Nunca ficou bom da 'doença dos pulmões' que trouxera da ilha do Sal, dizia-nos a nossa mãe.

Deixou viúva e 4 filhos menores. Estamos em 1958, o ano do ciclone político chamado general Humberto Delgado. Salazar continuaria sentado na cadeira do poder, mas o país nunca mais voltaria a ser o mesmo: no final dos anos 50 tinha começado a grande debandada rural…(Um em cada dois portuguesees ainda vivia na sua aldeia.)

O “Duque de Palmela”, o M. Santos, era o mais velho dos quatro irmãos. Tinha 13 anos. A mãe, viúva, ficou desamparada. Pouco ou nada tinha de seu. Vivia num casebre, com cobertura de colmo (como nase tabancas da  Guiné!), paredes meias com o rebanho, numa propriedade do patrão e, por esmola, lá continuou a viver com um pequeno pedaço de horta que lhe dava uma mancheia de batatas e couves…

Naquele tempo não havia Segurança Social. A não ser para uma minoria privilegiada de trabalhadores da indústria e serviços, cobertos pelas caixas de previdência, criadas no âmbito do sistema corporativo do Estado Novo. 

Os portugueses estavam então divididos em três categorias sociais, conforme o rendimento: pensionistas, porcionistas e… indigentes. Só estes, uma espécie de párias, tinham direito a internamento hospitalar gratuito nos hospitais públicos  que de resto se contavam pelos dedos (Hospitais Civis de Lisboa e poucos mais...). 

Hospital queria dizer, até então, local onde se acolhiam doentes pobres. Só os pobres iam para os hospitais para serem tratados e, em muitos casos, morrer. Os ricos tratavam-se e morriam... em casa.

O “Duque de Palmela” pegou numa sacola de serapilheira e aos treze anos, “homem já feito”, não teve outro remédio senão o de estender a mão à caridade dos ricos e remediados, metendo-se ao caminho para arranjar o sustento da família.

− Não tenho vergonha de o contar aos meus netos que hoje vestem roupas de marca, e têm, cada um, o seu belo carro: uma rapariga que ainda anda na universidade e um rapaz, que já ajuda o pai, na administração da Panificadora, depois de tirar o curso de gestão hoteleira ou coisa parecida.

Bateu casais e aldeias nas faldas da serra, desde Azeitão e Quinta do Anjo até à vila de Palmela, "estendendo a mão à caridade". Ao fim do dia sempre havia algum pão, queijo, chouriço, toucinho, etc., para fazer o caldo, e meia dúzia de tostões, para além da fruta e legumes que ia surripiando, aqui e acolá, à beira dos caminhos.

− Roubar para matar a fome não é  
crime, camarada... Os meus netos, uma vez, espantados, perguntaram-me se eu tinha passado fome… E eu respondi-lhes: ‘Não, meus queridos, eu, a vossa avó e os vossos tios não morremos de fome, graças a Deus… mas passámos muitas necessidades’… O que é diferente.

E, em jeito de conclusão, acrescentou:

− A roupa que tínhamos no corpo, aos mais novos, que ainda andavam na escola, valeu-nos a distribuição do pão, queijo e leite da Cáritas, para além do vestuário e do calçado em 2ª mão. Mas eu, aos 13 anos, fiquei conhecido como o “pé descalço”, porque as únicas botas que tinha, no tempo do meu pai, deixaram-me de servir…

− Camarada Santos, quantas histórias iguais à tua (vamos lá tratarmo-nos por tu como camaradas que fomos,  pode ser ?!) não poderiam contar muitos de nós que passámos pela Guiné ? Éramos um país de pobreza envergonhada! – interrompi eu.

− Diz bem, ou dizes bem, camarada: pobreza envergonhada!... Nos primeiros dias e semanas, custa muito um gajo estender a mão à caridade dos outros.. E eu já não era uma criança inocente… Corava de vergonha e baixava os olhos quando eram raparigas ou jovens mulheres que me vinham abrir a porta…

Depois a mãe pô-lo a trabalhar, por volta dos 14 anos. Teve vários ofícios. Andou a trabalhar à jorna no campo, na debulha do trigo, e foi aprendiz de moleiro. Só não quis ser pastor como o pai. Na altura cultivava-se muito cereal por aquelas bandas, e não faltavam também moinhos de vento.

Até que por volta dos 16 anos arranjou trabalho como ajudante de forneiro numa panificadora, num dos  concelhos vizinhos. Comprou uma “pasteleira” em segunda mão, ia e vinha todos os dias de bicicleta, fizesse sol ou chuva… Cerca de 20 e tal quilómetros, ida e volta.

Ainda se cozia o pão a lenha, nessa época, só mais tarde vieram os fornos a eletricidade e depois a gás. A ver os colegas a amassar, a estender a massa, a cortar e a enfornar, depressa aprendeu o ofício de padeiro. De resto, a sua mãe também fazia pão em casa, com sobras da farinha do moleiro  ou da Cáritas. Foi com ela que aprendeu mais alguns pequenos segredos da arte de padeiro.

Aos vinte anos foi chamado para a tropa. Pela primeira vez, saiu da região: a viagem que tinha feito mais longe fora até Setúbal. Lisboa ficava na outra margem do rio Tejo, e ele nunca tinha andado de barco. Mais longe era ainda o Porto, aonde se chegava de comboio.

Deram-lhe a especialidade de atirador de infantaria, foi mobilizado para a Guiné, formou companhia no Campo Militar de Santa Margarida. E numa madrugada fria de inícios do ano de 1966 chegou de comboio ao Cais da Rocha Conde de Óbidos para embarcar, com a sua companhia, independente.

Na instrução da especialidade, o M. Santos foi o primeiro classificado em quase tudo. Ninguém o batia na carreira de tiro, com a G3, nem os oficiais do quadro permanente que vinham da Academia Militar, e que tinham muito mais treino. 

Nas provas físicas, era o campeão. Fazia uma marcha  de 30 quilómetros, quase a brincar, deixando a “concorrência” a grande distância. Baixo, entroncado, com um boa caixa de ar, era o típico militar português, de origem rural, capaz de sobreviver a muitas provações e até desaires.

Vaticinava o segundo comandante da companhia, que tinha feito o “curso de operações especiais” em Lamego, ao mesmo tempo que evocava o exemplo do "Palmela" (mais tarde, já na Guiné, "Duque de Palmela"):

− Na hora do combate, debaixo de fogo inimigo, o “Palmela” será o primeiro a reagir, de pé, sem medo, o peito feito às balas… Nos ataques ao quartel, será o primeiro a saltar para as valas e a varrer o inimigo na orla da mata, ou junto ao arame farpado… À bazucada ou com tudo o que tiver à mão!...

− E assim foi – confirmou o “Duque de Palmela” −, na primeira emboscada que tivemos, logo numa das primeiras colunas logísticas, uma vez que fomos buscar mantimentos a Buba, eu fui o único que fiz fogo de pé, a varrer o capim… Valeu-me o capitão, a meu lado, que me obrigou a amochar os cornos… 

− Ah!, valente!...

− E no primeiro ataque a um dos nossos destacamentos, fui eu e o capitão que manobrámos o morteiro 81, o capitão punha as granadas, descavilhadas,  e eu aguentava o tubo com o ombro… No meio daquela confusão toda, não tínhamos o tripé, só o prato.

Ainda chegou a ser "aliciado" para os comandos:

− Chumbaram-me nos psicotécnicos, não sei porquê. Com números e letras é que nunca fui bom na tropa. Tirei a 4ª classe à rasquinha, não tenho vergonha de o dizer.

− E para os paraquedistas ? – atrevi-me eu a sugerir.

− Para os paraquedistas, nem pensar. Nunca me deu bem com as alturas! – explicou ele.

Ainda em Santa Margarida foi abordado por um oficial, português, com brilhante currículo em África, um dos heróis de Angola em 1961. O Santos disse-me o nome, mas por razões óbvias não o vou aqui citar. Andava ele, mais um cabo miliciano, e um primeiro sargento, a recrutar futuros voluntários para a Rodésia, a África do Sul e até para o  Vietname.

− 'No caso de regressares com vida e saúde, como esperamos, finda a tua comissão na Guiné, tens aqui o meu contacto. Podemos fazer um pré-contrato. Se quiseres, assinas já, sem compromisso’… Esperamos por ti! − disseram-me eles, à despedida.

Para o “Duque de Palmela” era a sua independência económica, " o prémio da lotaria" que nunca lhe calhara, porque também "nunca tivera dinheiro para jogar”!, exclamou ele, com um brilhozinho nos olhos.

Sobretudo, no Vietname, um 1º cabo de infantaria era capaz de ganhar tanto ou mais do que um capitão na Guiné, garantia-lhe um dos engajadores.

Começou a fazer contas por alto, e a ficar baralhado com os números. A cabeça nunca mais teve sossego. O risco era “um gajo lerpar e ficar por lá”. Mas isso também podia acontecer na Guiné, logo aos primeiros tiros. Era só preciso “confiar na estrelinha da sorte” e “rezar, todas noites, ao anjo da guarda", conforme a mãe lhe recomendara.

Confessou-me que nessa altura nunca ou raramente pensava na morte.

− Quando um gajo tem 20 ou 21 anos, não pensa sequer na morte. Tem a vida toda à frente dele. 

− É verdade... E nem sequer é capaz também de imaginar o sofrimento daqueles que o amam… e que estão longe, à espera de uma carta ou de um aerograma!

Por outro lado, quando embarcou em Lisboa, com destino à Guiné, os seus sentimentos eram muitos diferentes de boa parte dos seus camaradas:

− Para alguns deles
 era como ir para a forca! Outros iam com cara de enterro. 
Havia até quem chorasse baba e ranho. Havia-os já casados e já com filhos… Eu até compreendia, Mas, para mim, não!... Solteiro, sem compromissos...
 
E explicou-se melhor: 

 Não vou dizer que fiz uma festa a bordo, longe disso... Mas não conseguia esconder que estava algo excitado com a ideia de ir para a a guerra, a milhares de quilómetros de casa.

− Excitado ?!... Mas também com saudades, não ?!...

− Claro, tive saudades da minha mãe e irmãos, ficaram cá dois para ajudá-la. O outro, a seguir a mim, já tinha cavado para França, a salto, e mandava-nos algum dinheiro.

E depois fez-me uma confidência:

− Nunca contei isto a ninguém, muito menos à família. Eu parecia um puto a quem deram um brinquedo, neste caso a G3. Mal comparado, era como o cão de caça,  um perdigueiro, excitado pela algazarra dos homens e animais, antes dos caçadores e das matilhas largarem para a caça…

−És ou foste caçador ?

− Tenho poucos vícios, mas este é um deles…

− Em suma, convenceram-te que eras um bom soldado e um grande português!

− E era, sem peneiras! Oxalá todos fossem como eu, ontem e ainda hoje! A vida foi-me madrasta até aos vinte e tal anos, mas depois compensou-me. 

− ... Compensou-te ?!

− Sim, posso bem dizê-lo: passei um terço da minha vida, até aos vinte e tal anos, a viver mal e porcamente,  a comer o pão que o diabo amassou… E os outros dois terços a viver menos mal, graças a Deus. Claro, a trabalhar 12 horas e mais por dia na Panificadora…

A sua ideia fixa era ganhar dinheiro, "manga de patacão",  para depois montar o seu negócio quando voltasse:

− Estava a apontar lá para os 30 anos… Nessa altura, arrumava a farda, a espingarda automática, as cartucheiras e as botas… Juntava o pé-de-meia de soldado da fortuna e regressava à terra, casava-me, constituía família, tornava-me um gajo decente, comprava um carro… Abria um café com fabrico próprio de pastelaria, em Palmela ou nas terras próximas…

Está grato a duas pessoas que lhe tiraram da cabeça “essa maldita ideia de ir para a África do Sul ou para o  Vietname”. 

Estava a ser uma obsessão. Nos primeiros tempos de Guiné, não se coibiu de partilhar o “segredo” com alguns dos seus camaradas mais próximos. Não sabe bem porquê, nem exatamente quando, começou a convencer-se de que poderia ficar “rico” se enveredasse pela vida de “mercenário” ou “legionário”. Impacientava-se, ainda tinha quase dois anos pela frente até acabar o raio da comissão na Guiné. 

Chegou a mesmo a arquitetar um plano para “desertar”, fugindo para a Guiné-Conacri. Afinal, a fronteira era ali tão perto. Bastava, numa noite de luar, ir à tabanca, e não voltar ao quartel, despedir-se da sua “beijuda” e, por volta das 3 da madrugada, rezar ao seu anjo da guarda e… zarpar!

Começou a estudar os trilhos que levavam à fronteira, em Aldeia Formosa, e que eram conhecidos dos gilas, os comerciantes ambulantes. O problema é que não tinha nenhum mapa do país vizinho. E depois havia a língua, as comunicações, os transportes, os papéis, o risco de ser apanhado pelo PAIGC ou pelas autoridades da Guiné-Conacri… 

− E, claro, encostado a um poilão para me limparem o sebo, como fizeram a alguns desgraçados depois da independência!

Por outro lado, interrogava-se ele, como é que voltaria a contactar o grupo dos engajadores, que de resto eram portugueses e militares do exército português?!... Que história é que ele lhes iria contar ? … 

A par disso,  ele sabia que a estadia na Guiné, em zona de guerra, era fundamental para fazer currículo, "ganhar calo", e se poder depois  alistar num exército estrangeiro… E, por certo, eles não iriam querer um “desertor" no seu lote...

O seu sonho começou a cair por terra, como um castelo de cartas, à medida que se avolumavam as dificuldades para pôr em prática os seus planos de fuga… Começou a ter problemas de “consciência” e a “dormir mal”: desertar era, afinal, virar as costas aos seus camaradas de armas, alguns dos quais eram já seus amigos do peito. 

E, depois, se fosse apanhado, pelo lado português, tinha a vida estragada, apanhava uma porrada, uns bons anos  em presídio militar… Até o poderiam fuzilar, alguém lhe tinha dito que, numa situação de guerra, podiam levar um desertor a um tribunal marcial, condená-lo à morte e fuzilá-lo, sem apelo nem agravo…

Enfim, a coisa estava a tornar-se feia…


Na altura tinha várias madrinhas de guerra, mas havia uma com quem simpatizava mais. Era alentejana, “ali de Santiago do Cacém”.

− Olhe, acabaria por ser a minha senhora… Casámo-nos passado um ano e tal, depois do meu regresso da Guiné. Foi ela quem me tirou da cabeça essa “ideia maluca” de ir para a África do Sul ou para o Vietname... Também me falavam da Legião Estrangeira’mas os sacanas dos franceses pagavam pior que os sul-africanos e os americanos...

E a outra pessoa a quem ele ficou “grato para o resto da vida”, foi o capitão, o seu comandante de companhia.

− Um pai, um amigo!,,,

Era miliciano, teria pelo menos dez ou  doze anos a mais do que a maioria dos graduados da companhia, os alferes e os furriéis. Nunca confessou a ninguém o que pensava daquela guerra, mas estava lá porque fora “obrigado como a grande maioria do pessoal”… 


Aceitou a missão de comandar aqueles 160 homens e jurou, perante eles, todos formados na parada do Campo Militar de Santa Margarida, na véspera de partirem de comnboio, para o embarque no Cais da Rocha Conde de Óbidos, fazer tudo para os trazer de volta, "sãos e salvos", de regresso a casa e às suas famílias…

Sabia-se pouco sobre ele e a sua vida, se era casado, se tinha filhos, o que fazia na vida civil… Não era pessoa de muitas falas… Mas a verdade é que nunca se deixou intimidar quer pelo inimigo quer pelos superiores hierárquicos. Soube sempre defender, tanto quanto possível, os interesses e os bem-estar dos seus homens, pese embora a companhia ter feito uma boa parte da comissão às ordens do batalhão de Aldeia Formosa.

− E lá, fomos carne para canhão!... O primeiro ano foi duro… E tivemos os primeiros mortos… Depois ficámos em quadrícula, espalhados por alguns destacamentos e a ajudar a reforçar a autodefesa de algumas tabancas fulas da região do Forreá.

O capitão acabou por saber do “segredo de Polichinelo” do “Duque de Palmela”… Às tantas só faltava publicar na “ordem de serviço” um requerimento dele a pedir a autorização para se alistar nas tropas do Tio Sam…

Como o capitão o achava “temerário”, para não dizer "maluco" ou  "prematuramente apanhado do clima”, na melhor ocasião retirou-o do 1º pelotão, com o acordo expresso do respetivo alferes com quem, de resto, o nosso 1º cabo Santos, o “Duque de Palmela”, não fazia “farinha”…

− ‘Antes que o gajo faça alguma maluqueira e nos estrague a vida a todos’... – terá dito, na altura, o capitão.

Sabendo da sua profissão na vida civil, pôs o “Duque de Palmela” na padaria. Para qualquer outro no seu lugar, seria um prémio, uma promoção, um alívio.  Mas, não,  para o nosso homem, foi uma tremenda desconsideração, quase uma despromoção… 

− Padeiro era básico, tal como o cozinheiro… Nessa noite apanhei uma 'cadela de todo o tamanho'…

− Básico ?!... O pãozinho de todos os dias é que não podia faltar, ó  Santos!

− … Foi isso que acabou por me convencer... E no dia aprazado já lá estou eu, no meu posto, bem ataviado, a substituir o padeiro da companhia que, vim a saber mais tarde, tinha sido transferido para Bissau… 


De facto, o rapaz, que o Santos foi substituir,  fora pai, e logo de dois gémeos. Alguém meteu uma cunha à Cilinha, a patroa do Movimento Nacional Feminino. E o rapaz lá foi para o “bem bom” do quartel de Santa Luzia, em Bissau. Apesar de continuar a exercer a sua especialidade, que era a de fazer pão para a tropa...  
 
O “Duque de Palmela” não se deu mal com a “nova vida”, a de padeiro ... Deixou de fazer colunas, operações e serviço de guarda, etc.,  mas tinha que trabalhar de noite para ter pão fresco todas as manhãs para cerca de bocas, entre militares e civis, incluindo o chefe de posto e a família...

E a verdade é que a malta se habituou ao pão fresco todas as manhãs. E isso também ajudou a levantar o moral da tropa. 

O "casqueiro" era, reconhecidamente,  um parte importante da ração a que cada homem tinha direito. Cabia nos 24 escudos e 50 centavos que eram atribuídos a cada militar, do soldado básico ao general, para efeitos de alimentação. Quem era arranchado, recebia em géneros, quem era desarranchado recebia em espécie, sendo no caso dos africanos, muçulmanos ou animistas, que não comiam a comida dos brancos, um importante complemento do salário: dava para comprar um saco de arroz de 100 kg ou mais.

− Comia-se mal e porcamente. Faltavam as batatas. E os frescos só os havia quando, uma vez por outra, vinha uma avioneta de Bissau. Massa com cavala era o prato do dia. O vinho era pouco e 'batizado'. Que não faltasse, ao menos, o pão nosso de cada dia…

O Zé Soldado era "pãozeiro", como qualquer bom português de origem rural. O padeiro, por sua vez, em conjunto com o vagomestre, responsável pelos géneros,  tinha que saber gerir muito bem o “stock” de farinha (e fermento…), sobretudo no tempo das chuvas em que as picadas no sul da Guiné se tornavam autênticos rios. O  abastecimento era então irregular e incerto. 

− Em Buba, quando lá estivemos, apesar de tudo, tínhamos a lancha da marinha a abastecer-nos.

Na realidade, ficavam isolados muitos aquartelamentos, destacamentos e tabancas. As colunas tornavam-se um pesadelo, às vezes chegava-se a andar um quilómetro por hora (!) e praticamente não se fazia mais nada do que tentar assegurar, a todo o custo, no final do tempo seco e no início do tempo das chuvas, a autossuficiência da tropa em matéria de abastecimentos (munições, comes & bebes, outros géneros de primeira necessidade, etc.). 

A farinha e a cerveja era dois géneros alimentares de “primeiríssima necessidade”… Ainda bem que a atividade operacional ficava mais reduzida, sobretudo de julho a setembro, meses de maior pluviosidiade, tanto para as NT como para o PAIGC. Em boa verdade, a guerra parava...

O nosso homem tinha, nesse aspeto, um bom entendimento com o vagomestre e com o capitão. E nunca houve, até ao primeiro ano, falta de farinha para fazer o pão.

− No novo 'posto', eu tinha durante o dia tempo e vagar para ir passear à tabanca, fazer a 'psico',  e, ao lusco-fusco, ir caçar galinhas do mato e lebres, na orla da bolanha. Arranjei uma espingarda de caça e ganhei um vício que não tinha…


− A caça ?!...

− Sim, a caça... Dava para fazer o gosto ao dedo e sempre se arranjava carne para o petisco. Matei a malvada a muita gente, incluindo alferes e furriéis… Uma vez por outra convidava o capitão, mas ele nunca aceitava… Acho que não se queria misturar com os subordinados, o que eu hoje entendo... 

− Não queria dar confiança aos subordinados, compreende-se... 

− Por outro lado, ele não gostava nada que eu saísse fora do arame farpado, mas lá ia fechando os olhos… E eu também não era mau cozinheiro, diga-se em abono da verdade… Uma vez por outro fazia-lhe uns miminhos, como um cabritinho assado para a messe. Ou um leitão, iguaria que era mais difícil de arranjar, só indo roubá-la aos 'turras'...

A coroa de glória do “Duque de Palmela” foi quando a companhia, a dois grupos de combate, ficou com as calças na mão, mum medonho ataque a um dos seus destacamentos, lá para os lados de Aldeia Formosa, já na segunda parte da comissão, em inícios de 1967, em  plena época das chuvas.

− Os gajos atacaram-nos,  às tantas da noite, e usaram metralhadoras pesadas 12.7, com balas incendiárias. Acordei sobressaltado. Em pouco tempo, a tabanca, fula, com as palhotas muito juntas umas às outras, foi pasto das chamas. Nunca tinha visto um incêndio como aquele, a não ser quando se deitava fogo ao capim, no tempo seco. Valeram-nos as valas onde o pessoal se entrincheirou e resistiu até de madrugada. Eu, mais o capitão que teve o azar de lá estar nessa semana, agarrámo-nos com unhas e dentes ao morteiro 81. A companhia tinha apenas uma secção de morteiros. E dessa vez estava colocada, em reforço, noutro destacamento, não muito longe do nosso. Mas tínhamos, aqui, um morteiro 81. Foi o que nos valeu.  Apoio de artilharia não havia.

O nosso padeiro conta que ia ficando com as mãos queimadas se não fora as luvas que apareceram no espaldão, "por milagre".

− Granadas não faltavam, graças a Deus. E foi a nossa sorte. Os gajos retiraram com mortos e feridos, a avaliar pelos rastos de sangue que deixaram nos abrigos individuais junto ao arame farpado. Até mioleira lá deixaram!... Por minha conta, devo ter mandado alguns para o inferno. Em contrapartida, tivemos dois mortos e vários feridos graves. 

E só por milagre, é que a população se safou. Teve apenas alguns feridos ligeiros.  Mas a tabanca ficou praticamente calcinada. 

− E com ela perdemos também os nossos haveres e os improvisados abrigos onde tínhamos os géneros alimentícios, bem como as outras palhotas que tinham sido cedidas à tropa. Ficámos só com a roupa que trazíamos no pêlo.

A descrição não poderia ser mais pormenorizada:

− A tabanca estava sobrelotada. Era pressuposto ficarmos ali temporariamente em reforço do sistema de autodefesa.  Havia suspeitas, fundadas, de colaboração com o inimigo, por parte de alguns elementos da população, 'puta-fulas', e que por isso estavam de debaixo de olho do comandante do pelotão de milícias e do régulo.

− 'Puta-fulas' ?!... Queres dizer futa-fulas... Os fulas eram leais à nossa tropa…

− Nem todos, junto à fronteira, eram mais permeáveis à propaganda e às ameaças do PAIGC – respondeu-me o M. Santos.

− Quer então dizer que, dessa vez, vocês ficaram de tanga…

− Ficámos de calções e chanatas. Só com a G3 na mão, e as cartucheiras à cintura… Alguns ficaram só em cuecas!... A malta dormia prtaicamente nua, por causa do calor... A minha mala ardeu. Houve malta que perdeu tudo, tinham trazido os parcos pertences com eles, convencidos que iam passar ali umas ricas e merecidas férias… O tanas!... 

− Medonho, hã?!

−  O mais grave é que ficámos sem comes e bebes, incluindo as rações de combate. Lá se aproveitou uma ou outra maldita lata de cavalas ou de conservas de pêssego da África do Sul… Claro que a população também pilhou o que não ardeu... Nestas situações, os seres humanos são todos iguais, sejam brancos ou pretos: há sempre uns tantos que tiram partido da desgraça dos outros...

De Bissau vieram, de helicóptero, trazer alguns reabastecimentos mais urgentes: caixas de munições, por exemplo. A coluna só chegou ao fim do segundo ou terceiro dia. E trazia alguns sacos de farinha. Mas como fazer pão se até o pequeno forno do destacamento, em adobe, também tinha sido destruído?

− Com bidões cortados ao meio, na vertical, improvisei um forno e fiz o milagre dos pães, para meia centena de homens esfomeados… mais a as milicias e a população. Tive um louvor do Schulz, e outro do comandante do batalhão, sob proposta do meu capitão. Mandei ampliar e emoldurar o louvor do general Schulz. Está no escritório. Ou estava, agora já passei a pasta ao meu filho mais velho. Reformei-me da Panificadora.

A padaria a que o “Duque de Palmela" se refere, foi a que ele criou, depois do seu regresso da Guiné em finais de 1967, e que ajudou a crescer, nos últimos 50 anos, "com mais algumas dezenas de colaboradores" (sic).

Com a construção e a inauguração da Ponte Salazar, unindo finalmente as duas margens do Tejo, entre Lisboa e Almada, o distrito de Setúbal conheceu um enorme surto de desenvolvimento, em termos urbanísticos, industriais, económicos e demográficos.

 Com algum dinheiro que poupou em África e um pequeno empréstimo bancário e mais uma ajuda de um dos irmãos que fora 'a salto' para França, fugindo à tropa, e que agora estava lá bem, perto de Paris, o “Duque de Palmela" comprou a quota de um seu antigo patrão, que se reformara, e que fazia parte de uma cooperativa de panificação num dos concelhos vizinhos. Essa Panificadora deu muitas voltas, depois do 25 de Abril, passou a sociedade anónima, até que o M. Santos se tornou o acionista principal, com o filho e com o irmão que estava em França.

Hoje é uma empresa de referência, no seu ramo, faturando  "manga de patacão" , e tendo uma razoável rede de clientes, incluindo superfícies comerciais, em todo o distrito de Setúbal. O “Duque de Palmela”, outrora o “pé descalço”, o 1º cabo que queria "ser mercenário e ir para o Vietname", tem hoje motivo de orgulho no legado que deixa aos filhos e netos.

− É sobretudo um exemplo de vida, tenho pena que o meu velhote já não esteja cá, há muito, para ainda poder ver a obra do filho. Ou dos filhos, há um irmão meu que também é sócio, minoritário.... O meu velhote e minha pobre mãe que ficou viúva tão cedo...

Enxuga uma lágrima furtiva… Pediu-me uns minutos para ir a casa, uma bela vivenda ali ao lado das instalações fabris da Panificadora, para ir buscar uma foto que tinha com o general Schulz e mostrar-me o louvor, emoldurado.

− Não conheci o Spínola, o meu comandante foi o Schulz. Só tenho a dizer bem dele. Visitou-nos por duas vezes. Esta é a foto dele comigo, eu a enfornar o pão. E chegou a levar do meu pão para o palácio do Governador, em Bissau. Em troca deixou-me uma caixa de cerveja “para os padeiros e cozinheiros”...

Infelizmente, o “Duque de Palmela” tinha enviuvado há dois ou três anos e lamentava não poder partilhar, com a “duquesa” (como ele, carinhosamente, tratava a sua alentejana de Santiago do Cacém), a alegria que fora a “transferência de poderes” para o filho, seu sucessor, e agora o maior acionista da Panificadora e seu administrador.

− Afinal, é a ela que eu devo tudo ou quase tudo. A ela e ao meu capitão. Foi, na Guiné, um pai para mim. Fiquei-lhe grato para o resto da vida. Vim a descobrir, entretanto,  que trabalhava nas Alfândegas de Lisboa, há uns dez anos atrás, quando ele se reformou. Nessa altura, fiz-lhe uma grande homenagem. Fizemos aqui o convívio anual da companhia. Foi memorável. Faltaram muitos mas mesmo assim consegui juntar uns sessenta camaradas. Com as mulheres, filhos e netos, éramos quase um centena de convivas. Fiz questão de ser eu a oferecer o almoço. Arranjei uma empresa de “catering” e o borreguinho assado foi feito cá nos fornos da Panificadora. Por coincidência, comemorávamos também nesse ano os 40 anos do regresso da Guiné.

E acrescenta, com alguma euforia:

− Foi um dia de alegria, um dos maiores da minha vida. Esse convívio ficou na memória da malta toda. E quem não veio, ficou com pena… Infelizmente, o capitão morreria uns tempos depois, ainda a minha mulher era viva.


Falando do seu sucesso empresarial, disse-me em tom de confidência:

− Tive sorte nos negócios, não vou dizer que não. Mas fui sempre um homem decidido e determinado. Umas "furão" ... Tinha pouco a perder e tudo a ganhar. Se fosse alferes ou furriel, com estudos, teria arranjado um reles emprego,  num banco, num escritório, nas finanças, nas caixas de previdência, aqui ou em Setúbal. Hoje sou patrão, ajudei a criar cinquenta postos de trabalho, são outras tantas famílias que dependem do bom andamento da empresa. Não tenho luxos, tirando a caça, que é  a minha  amante (mais cara que uma amante!), continuo a ser um gajo simples…

 Pelo que vejo e pelo que me contam...

−  O que é queres que eu te diga mais, camarada ?!... Põe aí, no teu canhenho,  que sei dar valor ao dinheiro e ao trabalho, e sou amigo do meu amigo, camarada do meu camarada!

Curiosamente, eu conhecera este homem, não na Guiné, mas por ocasião de um estudo europeu sobre condições de trabalho e absentismo por doença, nos anos 90.

 A Panificadora tinha então ganho um prémio de segurança no trabalho, e poderia ser um potencial estudo de caso de “boas práticas”… Conheci o pai e o filho através do médico do trabalho que tinha uma avença com a empresa e que fora meu aluno. Conversa puxa conversa, acabei por saber que o "patrão velho" tinha estado na Guiné, antes de mim, mas não longe dos sítios por onde passei e penei…

Já nessa altura eu gostava de dizer que o mundo é pequeno e que um dia voltaria a tropeçar na guerra da Guiné. Também eu, como muita gente, precisava de exorcizar os fantasmas do passado.

− Chegou a hora do repouso do guerreiro, camarada! – disse-lhe eu, da última vez que estivera com ele, já depois de enviuvar.

− Esse é um dos problemas da malta da nossa geração… Muitos nunca tiraram férias, passaram a vida a trabalhar e a poupar, não gozaram a vida… Falo por mim… Como saber que estamos a chegar ao fim da picada ? Ainda gostava de lá ir, à Guiné, antes de me dar uma macacoa, mas não sei se tenho força nas canetas…

− Mas já agora diz-me porquê e para quê voltar à Guiné?!... Se a pergunta, claro, não te ofender… – pedi-lhe eu.  

Pesou a pergunta antes de responder:

− Porquê ?... O criminoso gosta sempre de voltar ao local do crime – respondeu-me com  um misto de bonomia e malícia. 


− E para quê, já agora ? – voltei a insistir.

− Olha, sempre ouvi falar do Saltinho e dos rápidos do Corubal, até se dizia que era a parte mais bonita da Guiné… Andei por lá perto, mas nunca lá fui, nunca vi sequer o rio Corubal. O rio Grande de Buba, o Geba também, mas não o raio do Corubal... Era um dos sítios da Guiné que gostava de visitar… E, depois, se conseguir fazer alguma coisa por aquela gente, tanto melhor.

Demos um grande abraço de despedida… e eu prometi a mim mesmo  escrever a história de vida deste homem…  


Soube depois, pelo médico do trabalho meu conhecido,  que o Santos acabara por concretizar o seu sonho de voltar à agora Guiné-Bissau e ainda encontrara gente do seu tempo, nas tabancas por onde andara… 

E, ao que parece, deixou, a uma ONGD, a operar na zona, uma "nota preta" para ajudar a construir uma  pequena escola na antiga tabanca onde estivera destacado, e que ardera em 1967. Julgo que quis fazer as pazes com o passado, tal como alguns de nós.

Faltou-me na altura, por lapso ou talvez por pudor, perguntar-lhe a origem da alcunha “Duque de Palmela”… Não tive lata ou faltou-me o tempo, se bem que ele nunca tivesse rejeitado, bem pelo contrário, a alcunha que lhe puseram na tropa e na guerra. 

Vim a  a saber, afinal, que era seu hábito estender a mão, muitas vezes, aos amigos dos seus amigos, quando se apresentava,  dizendo com graça: 'O Duque de Palmela, para o servir!'... Inclusive tratava a esposa por “duquesa… de Santiago do Cacém”. Tinha sentido de humor.

Um antigo camarada, furriel, da sua companhia, explicou-me, ao telefone, a origem da alcunha:

− Em Santa Margarida, no IAO, já toda a gente o tratava por “Palmela”… Acho que não havia mais ninguém daquelas bandas… Ao que parece, no barco, quando fomos para a Guiné, é que apareceu o “Duque”… Ele gostava de jogar às cartas, para passar o tempo, como boa parte dos militares embarcados. Mas não tinha sorte ao jogo… ‘Só me saem duques’, queixava-se sempre que perdia… 

− Afinal, foi um camarada com azar ao jogo e sorte aos amores e aos negócios  − conclui eu.

− Quando chegou a Bissau, já toda a malta o tratava por “Duque de Palmela”… E acho que é também uma justa homenagem, visto o filme ao contrário, da frente para trás…

− E, olha, é uma figura ilustre da nossa história, o 1º Duque de Palmela, político, militar e diplomata, um patriota do tempo do liberalismo − acrescentei eu. − Não nasceu em Palmela, mas para o caso pouco importa. No tempo da nossa monarquia constitucional davam-se títulos nobiliárquicos honoríficos por razões nem sempre nobres...  aos amigos e correligionários. Homenageavam-se homens e terras.  Dizia o povo, com sarcasmo: "Foge, cão, que te fazem barão!... Mas para onde se me fazem visconde?!"... 


Aqui para o leitor, que ninguém nos ouve: não me admirava nada que num próximo 10 de Junho a gente ainda vá a tempo de ver, na televisão, o nosso ex- camarada M. Santos a receber a Comenda da Ordem do Mérito... 

Não seria nada de mais justo, de resto, ver um antigo "pé descalço" (que não tinha vergonha do seu passado!), um  ex-combatente da Guiné, um antigo padeiro e agora  um industrial de panificação  de sucesso  a ser tratado pelos "grandes do Reino" como  comendador,  depois de ter comido o pão que o diabo amassou.  

Afinal, mudam-se os tempos, mudam-se  as vontades, as honrarias e as mercês...

© Luís Graça (2019). Revisto em 10 de março de 2024.

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