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sábado, 9 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22614: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (17): as meninas do rio Gambiel, no regulado do Cuor, à pesca...


Foto nº 1A


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 5A

Guiné-Bissau > Leste > Região de Bafatá > Setor de Bambadinca > Regulado do Cuor > Rio Gambiel > Junho de 2021

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. M
ensagem de Patrício Ribeiro (português, natural de Águeda, da colheita de 1947, criado e casado em Nova Lisboa, hoje Huambo, Angola, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde meados dos anos 80 do séc. XX, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda; membro da nossa Tabanca Grande, com 107 referências no blogue):


Data - 05/10/2021, 22:39 (há 3 dias)


Assunto - Fotos de Finete, Bambadinca, pesca

Luís,

Conforme teu pedido (, "Patrício, quando passares lá pelos meus lados - Contuboel, Bafatá, Bambadinca, Fá Mandinga, Xime, Xitole, Saltinho, Rio Corubal - bate umas chapas"), mando-te fotos do Leste.

Tu e o Beja Santos, poderão encontrar nestas fotos as bisnetas … (dos vossos camaradas de armas) à pesca no rio Gambiel, nos finais de julho de 2021. (Fotos nºs 1 e 2).

Junto à ponte de betão que atravessa o rio (Foto nº 3), no meio da bolanha onde se cultiva o arroz no tempo da chuva, entre Finete e Bantajã, perto de Bambadinca, onde as bajudas e mulheres, se juntaram às dezenas para fechar o rio, com as sua redes artesanais, para pescarem na maré baixa. (Fotos nºs 4 e 5).

Esta pesca, é muito comum nos diversos rios da Guiné, com água até ao peito e com o balde à cabeça.

O rio, um pouco mais a nascente, é alimentado por lagoas de água doce, onde há mais de 30 anos eu comprava peixes para a alimentação dos meus colegas de trabalho.

Neste rio e lagoas, eu também “pescava” patos bravos para as minhas refeições, quando durante 3 anos, tive uma casa na tabanca de Gambiel, para os meus trabalhos nos diversos projetos da empresa pública de madeira SOCOTRAN, financiados pela Cooperação Sueca.

Esta ponte  (sobre o rio Gambiel, afluente do Rio Geba Estreito)
 foi construída depois da Independência (Foto nº 3).

Em 1998, era uma das muitas fronteiras; entre os militares da Junta militar do Ansumane Mané do lado norte, e os militares da Guiné-Conacri, que apoiavam o presidente 'Nino' Vieira que estavam do lado sul, tinham carros blindados na encosta de Bantajã debaixo das árvores.

Quando por lá passei de viatura a caminho de Dacar, levando alguns amigos comigo, para apanhar avião para Lisboa, não fomos autorizados a sair de Bissau. Tivemos que fugir… apanhámos muitos sustos, passamos por 20 controlos militares e policiais, até Dacar. Nesta altura, o aeroporto de Bissau, esteve fechado durante muitos meses.

Tabanca onde anteriormente a Soares da Costa e a Somec, Empresas Portuguesas de Construção Civil, tinham as suas pedreiras, para as extrações da pedra duralite, semelhante ao granito, utilizada nas maiores construções de obras publicas, pós-independência. (Vamos ver os comentários que o nosso amigo António Rosinha tem, sobre o assunto !!!???)

Nota: Ver o que o nosso amigo Beja Santo escreveu nos seus livros sobre esta zona, e continua a escrever …

Abraço, Patricio Ribeiro

IMPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau , Guine Bissau
Tel,00245 966623168 / 955290250
www.imparbissau.com
impar_bissau@hotmail.com


Guiné >Leste >  Região de Bafatá > Carta de Bambadinca (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bambadinca, Nhabijõs, Mato Cão, Finete, Mero, Santa Helena, Bantajá,Ponta Brandão, Fá Mandinga, Canturé,  Missirá, Aldeia do Cuor, rio Geba e tio Gambiel... Lugares "míticos" que alguns de nós conhecemos...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22589: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (16): Mais algumas fotos dos meus passeios: Bolama, junho de 2021

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22406: Notas de leitura (1367): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Este jornalista da RTP tem um nome altamente credenciado, na contracapa do seu livro recebe elogios de José Alberto Carvalho, Paulo Camacho, Fátima Campos Ferreira, Adelino Gomes, Judite de Sousa e Joaquim Furtado. Quem aprecia reportagens em áreas de conflito tem aqui um rico manancial, andará por Angola, Cabinda, Guiné-Bissau, Afeganistão e Iraque.
Luís Castro sente-se compensado: "Tive dois acidentes graves, problemas de saúde, estive preso por quatro vezes, expulsaram-me outras tantas, fugi com uma sentença de morte sob os ombros, proibiram-me a entrada em vários países, fui humilhado e agredido por quem menos esperava. Não me deram fortuna, apenas a possibilidade de estar onde aconteceu História."

Um abraço do
Mário


Repórter de guerra: Luís Castro três vezes nas convulsões da Guiné (1)

Beja Santos

Luís Castro explica muito bem a essência do livro “Repórter de Guerra”, Oficina do Livro, 2007, na nota introdutória: “Mandaram-me para um conflito esquecido no imenso Zaire; perdi-me na linha da frente em Angola; aprendi a linguagem do mato e descobri reféns em Cabinda; fugi das cidades em chamas e vasculheim montanhas em Timor; estive dentro da guerra e das traições na Guiné; fui à capital dos talibãs para sentir o cano de uma Kalashnikov; disfarcie-me nas tempestades do deserto iraquiao para compreender o povo do exército mais fraco (…) Enviei para Portugal mais de seiscentas reportagens e sempre com imagens dos nossos cameramen, exceto em duas ocasiões muito especiais. Mesmo que não fossem tão fortes, sempre eram as nossas imagens e a nossa reportagem. Fugi dos diretos nos telhados e fui ao encontro dos acontecimentos nas ruas e no mato. Passei os últimos cinco anos a rever os meus blocos de apontamentos, a ver e a catalogar todas as reportagens e diretos que fiz. Visionei mais de mil horas de imagens em bruto, transcrevi diálogos e consultas a memórias dos repórteres de imagem que me acompanharam em cada situação. O que irá ler é a verdade e tão-só. Pediram-me que enriquecesse a prosa. Recusei. Não escolhi palavras bonitas para embelezar o texto. O que aqui está aconteceu”.
Foto: Luís Castro, com a devida vénia

E na Guiné aconteceu três vezes. Estamos em junho de 1998, o repórter está no seu remanso e houve falar numa tentativa de golpe de Estado na Guiné-Bissau, não sabe quem é Ansumane Mané. Na RTP, recebe instruções, vai por Dacar, aqui chegado segue para Cabo Verde, a fragata Vasco da Gama está a caminho de Bissau e fará escala na cidade da Praia, vai acompanhado de Hélder Oliveira, considerado um dos melhores repórteres de imagem da RTP. A fragata Vasco da Gama avança para Bissau, depois de peripécias, recolhem refugiados. Entrar em Bissau é indesejável, estão lá a ocorrer bombardeamentos e tiroteio. Luís Castro desce até ao país, vem trabalhar. Passaram por algumas barreiras militares, encaminham-se para um braço de mar, vão à procura dos rebeldes. Dá-se o encontro com o major Manuel Melcíades, conversam, é a primeira entrevista dos revoltosos:
“ - Quais são as áreas que controlam?
- Todo o país. O Governo não tem tropa. Só soldados do Senegal, de Conacri e alguns franceses. Os nossos estão todos deste lado. Agora lutamos contra franceses, senegaleses e conacris.
- Vão avançar sobre Bissau?
- Não é difícil entrar em Bissau! Temos dez tanques blindados, daqueles com lagartas e canhão. Podemos entrar a qualquer hora. O problema é a população.
- Aceitam negociações?
- As negociações dependem deles!”


A reportagem sai em Portugal. Nino Vieira não gostou. Ficam acantonados em Quinhamel, na península de Bissau. Luís Castro quer chegar à fala com o Comando Supremo da Junta Militar. Melcíades não permite, mas mostra o passaporte de Ansumane Mané. A imagem será transmitida para todo o mundo através da Eurovisão. As conversas com os guerrilheiros são eloquentes. Diz um:
“- Sabes, fui guerrilheiro. Lutei e matei muitos portugueses, nem eu sei quantos. Agora sou velho e tenho a certeza que tu e eu somos irmãos. Acredita, queremos que vocês voltem rapidamente para a Guiné.
- É impossível!
A minha resposta saíra com um sorriso à mistura.
- Estás a rir da nossa miséria?
- Não, claro que não! Só te estou a dizer que o país é vosso.
- É! Pois é! Só que não o sabemos governar!”


O repórter não pára, volta ao lado dos rebeldes, Melcíades mostra-lhes soldados senegaleses mortos na linha da frente, um oficial superior fora abatido a tiro durante uma tentativa para furar um dos flancos da Junta Militar. Por vezes, são intercetados por senegaleses, escapam por um triz. Até que finalmente chegam a Ansumane Mané, será filmado o encontro de Ansumane Mané com Jaime Gama e Venâncio de Moura, da CPLP. Nino Vieira continua a não gostar do trabalho do repórter português. O embaixador português pede ao repórter para não vir até Bissau, correm todos os riscos. Luís Castro volta a filmar Ansumane Mané acompanhado, entre outros, de Veríssimo Seabra e Emílio Costa. Ansumane está indignado:
“Estive 37 anos ao lado de Nino Vieira. Conheço-o bem e sei do que ele é capaz. O Presidente não pode tratar o país como se fosse uma propriedade privada. Não tem consideração por ninguém.”

A equipa volta ao Vasco da Gama, onde ficam a saber que fora captada uma comunicação feita entre os senegaleses em que era dada ordem para “abater a equipa da RTP logo que fosse encontrada”. As reportagens de Luís de Castro enfureceram a concorrência. Emídio Rangel disse inverdades, o pedido de desculpas acabou por ser publicado cinco anos depois, a 10 de setembro de 2003 e no mesmo dia em que Luís de Castro voltava à Guiné para cobrir o fim da era de Nino.

A reportagem da Guiné-Bissau é acompanhada de imagens captadas por Hélder Oliveira mostrando a guerra, os encontros com Ansumane Mané, as tais imagens que correram o mundo e enervaram a concorrência.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22388: Notas de leitura (1366): “História da Unidade - Batalhão de Caçadores 2845", em verso, por Albino Silva (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18266: Notas de leitura (1036): “Modelo Político Unificador, Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau”, por Livonildo Francisco Mendes; Chiado Editora, 2015 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2018:

Queridos amigos,
O Dr. Livonildo rotula a sua obra sem nenhuma humildade: "Um livro indispensável para dissipar todas as dúvidas sobre os acontecimentos políticos que têm abalado a sociedade guineense e todo o continente africano".
Diz ter procedido a uma investigação que lhe fez desenhar um modelo para combater a má liderança governativa, levar à mudança de mentalidades, à mudança da retórica dos discursos, um modelo que obedeça a uma certa hierarquia entre governantes, políticos, decisores e governados. Antes de chegar a um modelo já proferiu algumas enormidades e teremos por diante umas largas centenas de considerações sobre ciência política, algumas delas num notável despropósito.
Um trabalho que se recomenda a leitura para se perceber que é preciso fazer qualquer coisa que leve à dignificação das dissertações de doutoramento.

Um abraço do
Mário


Uma proposta para novo modelo de governação na Guiné-Bissau (2)

Beja Santos

A obra intitula-se “Modelo Político Unificador, Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau”, por Livonildo Francisco Mendes, Chiado Editora, 2015. O autor concluiu a licenciatura e o mestrado em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e em 2014 terminou o doutoramento em Ciência Política, Cidadania e Relações Internacionais pela Universidade Lusófona do Porto. A dissertação e a tese serviram de base a este livro, que é prefaciado por António José Fernandes, professor catedrático de Ciência Política.

O primeiro capítulo da obra procura contextualizar um quadro explicativo da epistemologia da ciência para depois se chegar à ciência política, acaba por ser um enquadramento abusivo e hipertrofiado, quem se lançar na leitura à procura deste novo paradigma de governação na Guiné-Bissau corre sérios riscos de ficar desalentado, é uma enxúndia e um despropósito, um livro que se arroga para divulgação nunca é uma dissertação de doutoramento. Segue-se o enquadramento histórico da Guiné-Bissau, do mosaico étnico à luta armada, interrompemos a recensão quando o autor se debruça sobre o assassinato de Amílcar Cabral (a palavra assassinato aparece entre aspas, sabe-se lá porquê). E são enunciadas as hipóteses quanto a responsáveis: dissidentes do PAIGC; morte acidental durante a operação do rapto; contínuas tensões no seio do PAIGC entre guineenses e cabo-verdianos; por ordem de Sékou Touré; a mando da União Soviética, que estaria à procura de uma nova liderança, mais maleável aos seus interesses; por ordem de Spínola. E sem fundamentar as diferentes hipóteses enunciadas, tecendo os necessários comentários, à luz dos documentos existentes, o autor deriva prontamente para as causas, segundo outros autores: o anúncio da criação da Assembleia Nacional Popular, proclamação do Estado da Guiné-Bissau; reforma da direção do PAIGC, que tiveram ressonância em Sékou Touré, deixando os blocos Leste e Ocidental num estado de alerta máximo pelo facto do PAIGC poder assumir uma posição neutra, havia perturbações no Ocidente face à possibilidade de uma futura luta armada em Cabo Verde que levaria à instalação de uma base militar soviética. E depois o autor fala nas incongruências diante dos factos apurados. Imprevistamente, fala-se na possibilidade de Amílcar Cabral se ter sentido pressionado e ter cometido suicídio ou de ter sido encontrado morto numa situação imprevista. Nova guinada, voltamos atrás, até à deslocação do Comité de Descolonização das Nações Unidas, em Abril de 1972, até às “zonas libertadas”, mais adiante escreve-se que Spínola fora administrador de uma grande empresa e que depois como governador da Guiné estabelecera estreitas relações com a CUF, e por aí adiante, é impossível encontrar fio condutor neste articulado sem qualquer trambelho.

Assim se chegou à independência, vieram à tona novos conflitos, foi o caso dos chefes tradicionais, que o PAIGC subalternizou. E o autor profere uma sentença:  
“A filosofia de Amílcar Cabral baseada no conflito armado é, em grande parte, responsável pela situação em que a Guiné se encontra. A guerra colonial não é a via adequada para a resolução de problemas. O controlo do poder na Guiné-Bissau teve durante muito tempo uma componente auxiliar fora do território nacional. Queremos dizer com isto que, a subordinação político-militar da Guiné-Bissau sempre funcionou do século XIII até ao século XX com um (ou mais) Estado a auxiliar. Nesta fase, voltamos a recorrer à analogia entre o império romano e o grande império do Mali. Para o império português verificamos uma semelhança entre o império português (Guiné-Bissau e Cabo Verde) e o império do PAIGC (Guiné-Bissau e Guiné Conacri). Portugal apostou no desenvolvimento de Cabo Verde enquanto aliado, funcionando como um braço do império, tal como a Guiné Conacri funcionava como base de apoio para o PAIGC. Quando esta subordinação político-militar externa cessou, com a implementação de uma autonomia interna, a Guiné-Bissau entrou num ciclo de instabilidade político-militar”.
Quem souber decifrar esta charada, tem direito a um doce, prometo-vos.

Entramos agora na caraterização política e social da Guiné-Bissau. Quanto à instabilidade, aponta-se como principal responsável o braço armado do PAIGC e o autor adverte: "esquecem-se que o PAIGC é em si mesmo o maior responsável pela instabilidade político-militar, por ter na frente do partido-Estado um esquema de liderança que funciona com base no sistema de triunvirato – através do sistema político do governo guineense, os ex-presidentes da República controlavam os primeiros-ministros e os CEMGFA. Mas, com o conflito político-militar de 7 de Junho de 1998, que culminou com a vitória dos militares, estes aperceberam-se de que o poder residia afinal nas suas mãos. Foi a partir desse momento que o poder político ficou refém do poder militar – até hoje".

É verdade que o autor atribui importância ao que se passou no Congresso de Cassacá, que abriu caminho para a subordinação indiscutível dos militares aos líderes políticos. Nessa leitura, com o derrube de Luís Cabral por Nino Vieira, confluíram na mesma pessoa o poder político-militar. Nino estimulou invejas e medos, inventou o complô dos militares Balantas com a fantasia de que estavam atrelados à conspiração de Paulo Correia, as FARP foram envolvidas neste envenenamento de relações, tomaram-se posições à volta do chefe supremo, colaboraram em processos de corrupção, caso da venda de armas aos rebeldes do Casamansa, onde nunca se provou quem era quem. Mas como se a confusão já não fosse enorme nesta dissertação do doutor Livonildo, ele conduz-nos até à literatura fantástica, vejam só:
“Conotamos e comparamos os líderes que estão a passar na governação da Guiné-Bissau com autênticos Beowulf. Esta metáfora de Beowulf, enquadrada na nossa arquitetura política, vem confirmar-nos que o poder na Guiné-Bissau se encontra provisoriamente nas FARP. Esses pactos entre Beowulf (poder político) e a mãe de Grendel (poder militar) são uma das causas da instabilidade política que, analisados precipitadamente, são confundidos com conflitos étnicos”.

Por pura generosidade com o leitor, o doutor Livonildo explica-nos a lenda de Beowulf:
“Beowulf é a personagem principal de um poema épico da literatura anglo-saxónica escrito na Grã-Bretanha entre os séculos VIII e XI. Na sua adaptação ao cinema de 2007, Beowulf, um corajoso guerreiro da tribo dos gautas (da Suécia) livra os dinamarqueses do terrível Grendel. Porém, ao ser confrontado com a sedutora mãe do monstro, Beowulf ao invés de matá-la, cai na tentação e envolve-se com ela. Do enlace entre Beowulf e a mãe de Grendel nasce um novo monstro (um dragão) que acabará por matar Beowulf. Esta história mostra-nos como a ambição desmedida pelo poder pode arruinar o futuro dos homens, criando ciclos repetidos de mentira, traição, violência e morte".

E vem a sentença do autor: “Com base nesta ordem de ideias, conotamos e comparamos os líderes que estão a passar na governação da Guiné-Bissau, em especial das lideranças do PAIGC em 1960, com autênticos Beowulf”.
Como se vê, a apregoada ciência política tem um sério entrosamento com a literatura fantástica, com as lendas e o esoterismo.

(Continua)
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Notas do editor:

Vd. poste anterior de 22 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18239: Notas de leitura (1034): “Modelo Político Unificador, Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau”, por Livonildo Francisco Mendes; Chiado Editora, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18255: Notas de leitura (1035): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (19) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18200: (De)Caras (104): Patrício Ribeiro, nascido em Águeda, criado em Angola, "filho da escola" da Armada, ex-grumete fuzileiro, empresário em Bissau, ator e observador da história recente da "pátria de Cabral", o "homem certo no sítio certo"... Ou melhor: o "tuga" que sabe mais da Guiné, e para quem a Guiné "sabi di mais"...


Guiné-Bissau > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Orango > 7 de outubro de 2008 > O Patrício Ribeiro no--- Hotel de Orango, na ilha mais atlântica da Guiné-Bissau, a 100 km de Bissau, ou seja, a 7 horas de canoa "nhominca", de Bissau..

[O nosso amigo e camarada Patrício Ribeiro é um português, natural de Águeda, criado e casado em Angola, com família no Huambo, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bssau desde meados dos anos 80 do séc. passado, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda.]

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Guiné-Bissau > Bissau > Impar Lda > 15 de abril de 2017 > Foto da página do Facebook da Impar Lda: 25 anos na Guiné-Bissau, a trabalhar na área da energia e comunicações: energia solar geradores, bombas de água solar, rádios VHF/HF, GPS, radares... Ver aqui a sua galeria de projetos realizados, do arquipélago dos Bijagós à fronteira com o Senegal e a Guiné Conacri... 100 guineenses (trabalhadores e suas famílias dependem da carteira de encomendas desta empresa, e da sua boa gestão)...

Foto: cortesia da Impar Lda... Ao fundo, o Patrício Ribeiro, de óculos escuros, orientando so trabalhos de montagem de painéis solares...


1. Resposta do Patrício Ribeiro ao comentário do nosso editor Luís Graça (*):

Luís, o comentário que enviei sobre as fotos da praia de Varela, foi a partir da minha lareira nas margens do Vouga [, em Águeda], onde há frio e foi com um copo de tinto na mesa …
Gosto de falar da minha praia de Varela de que adoro; dos banhos na água quente a 30º, das minhas pescarias diretamente para o grelhador, acompanhadas por umas bacias de ostras, etc…

O que escrevi no comentário, é um pequeno resumo dos diversos capítulos vividos naquela época, mas muitos deles ainda os considero 'classificados' …

Quando nos voluntariamos a ajudar os outros, quando pessoas a chorar nos pedem para não os deixar para trás …,   a “formação militar não o permite", vem ao de cima...

E, por força das condições, passamos a ser o elo de ligação entre o resto do mundo e o interior de um país em guerra, de onde não é possível informar os familiares: onde estamos, que estamos vivos … Repara, não havia telefones e as fronteiras estavam fechadas, quer internamente, quer com os países vizinhos e estas últimas estavam a ser bombardeadas. Bissau ficava longe e não  se sabia o que se passava no interior.

E quando do exterior… nos pedem a colaboração, através do nosso “bombolom”, para encontrar esta e aquela pessoa de quem não se tem notícias há muitas semanas … certamente qualquer um de nós ajudaria, se tivesse condições...

Os restantes capítulos vão saindo, quando alguém tocar na "ferida".

Luís, depois de ter saído na canoa nhominca, que, no regresso, na minha presença, carregou da fragata Vasco da Gama a primeira ajuda humanitária para a Guiné, destinada à Missão Católica de Suzana,  eu voltei para Portugal. Não, não fiquei lá...

Mas passados 2 meses regressei à Guiné, via Dakar e táxi aéreo para Bubaque, dali para Bissau em vedeta de guerra, que foi construída no Alfeite e que estava na mão dos militares senegaleses.

De Bissau por vezes saía para Varela, quando recebia um 'papelinho' avisando que era melhor ir dar uma volta… Pegava na minha mochila com uma lata de atum, atravessava a pé as bolanhas e lá ia eu para banhos.

O aeroporto de Bissau, esteve fechado quase um ano…

Quando da morte do 'Nino', tinha ido passar o fim de semana à ilha de  Orango…

Na morte do Ansumane Mané, estava fora de Bissau...Ao reentrar em Bissau encontrei quase uma centena de milhares de pessoas, a saírem a pé. Algumas já iam para lá de Nhacra. Fiz um apelo na rádio RTP África, para mandarem transporte, afim de apanharem as pessoas que estavam a dormir à beira da estrada, sem qualquer condição.

Ao mínimo problema, a estrada principal era fechada a viaturas, em Safim.

Assim. como da morte dos restantes [altos dirigentes do país...], estava fora, por Varela, Contuboel, etc.

Abraço

Patricio Ribeiro

MPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau ,
Tel / Fax 00 245 3214385, 6623168, 7202645, Guiné Bissau | Tel / Fax 00 351 218966014 Lisboa
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2. "Curriculum vitae" (abreviadíssimo...) que o Patrício Ribeiro nos mandou em 10/9/2009 (, devendo acrescentar-se que ele é membro sénior da Tabanca Grande, entrou em... janeiro de 2006):



(i) nasci [em 11 de outubro de 1947,] nas margens do Rio Vouga, centro do mundo, sou vizinho do D. Duarte Lemos, frequentei a Escola Industrial de Águeda;

(ii) fui Fuzileiro (Gr FZ) [, portanto "filho da escola"];

(iii) passei por Bissalanca em 1969, estava muito calor: como não tinha roupa apropriada (tinha deixado o camuflado em Vale do Zebro, na escola de Fuzileiros), mandaram-me seguir para Luanda [, 1969/72]…

(iv) ao fim de uns anos, deixaram-me ir para casa, em Luanda, em 1972...

(v) por lá fiquei até ao último avião, da ponte aérea para Lisboa (, enfim, outras guerras);

(v) a minha família viveu dezenas de anos no Huambo (, antiga Nova Lisbao): pai, mãe e irmãos, etc.

(vi) minha mulher é natural do Huambo;

(vi) por questões profissionais, em 1984 fui para Bissau; 

(vii) gostei, fiquei por lá desde então:

(viii) fundei a Impar Lda: o 'patrão' paga-me para fazer coisas que gosto, em locais de difícil acesso, e porque é uma aventura permanente… já não sei viver sem ela!

(ix) faltam-se 2 660 dias para a reforma… 

Lx, , 10/9/2009

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18197: (De)Caras (103): Patrício Ribeiro, "pai dos tugas" ou o "último improvável herói tuga" na Guiné-Bissau?... Recordando o seu ato de heroísmo e altruísmo em Varela, em 1998, ao "pôr a salvo", na fragata Vasco da Gama, um grupo de portugueses e outros estrangeiros... 18 milhas / c. 33 km pelo mar dentro, numa canoa nhominca...


Foto nº 810 > Guiné > Região de Cacheu > Varela > Maio de 1968 > Perdidos no rio... A extensa praia de Varela...

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário de Patrício Ribeiro ao poste P18183 (*):

Patrício Ribeiro,
grumete fuzileiro,
1969/72
[Foto à direita; um antigo "filho da Escola", leia-se: fuzileiro da Marinha Portuguesa, radicado na Guiné-Bissau há mais de 3 décadas, fundador e diretor da empresa Impar Lda; nascido em Águeda, em 1947, viveu desde tenra idade em Angola, onde fez tropa, foi grumete fuzileiro, 1969/72; voltou a Portugal com a descolonização; fixou-se na Guiné-Bissau em 1984]

Varela... Estas árvores que se vêm na foto [, de cima,], já foram levadas pelo mar.

Tenho aqui perto uma pequena palhota para passar alguns fins de semana. Há 20 anos estava a mais de 250 metros do mar, agora o mar já está muito mais perto; dentro de algum tempo, já posso pescar com a cana, a partir da minha varanda…

Neste mesmo local, numa clareira, aterraram os helicópteros da fragata Vasco da Gama, para recolher os Portugueses que aqui estavam encurralados na guerra de 1998.  Foi num destes helis que o nosso saudoso Pepito, saiu.

Eu também aqui estava… Mas tinha por missão ajudar a sair outros Portugueses que se encontravam no interior, em Canchungo e Cacheu. Como não apareceram às horas combinadas, estive em S. Domingos e depois em Ingoré (, sem combustível e em situação de guerra),  à procura deles… E de onde, a partir dos rádios da Missão Católica, comuniquei com a fragata a informar que estavam atrasados para a sua evacuação…

Ao fim do dia, também saí desta praia [, de Varela,] numa canoa nhominca, acompanhando os últimos 10 portugueses que quiseram sair, assim como de outras nacionalidades,  a quem a fragata autorizou o embarque… 

Como destino, “o pôr do sol”, o poente… Passados 18 milhas, mar adentro, lá encontramos a nossa frota com 3 navios dos “filhos da escola” que na parte final nos vierem cumprimentar nos botes e mandar subir pela escada de corda, para a Vasco.

Já não foi possível os helis voltarem a aterrar na praia, havia quem os quisesse deitar abaixo… mas fomos acompanhados pelo ar, de onde recebíamos ordens, por vezes mandavam-nos, à nossa canoa, desviar de alguns obstáculos, que havia no mar …


Guiné-Bissau > Bolama > s/d > Cais > Uma canoa nhominca, para transporte de passageiros. A sua lotação máxima são 100 passageiros. As canoas nhominca são as melhores embarcações e que se adaptam ao mar desta costa de África. O povo nhominca foi quem as construiu há séculos, propositadamente para este mar!... Já mandei construir algumas destas canoas, que depois entrego aos projectos, em pequenos estaleiros em Bissau, ou no grande estaleiro de Zinguichor, no Senegal. A maior concentração destas embarcações que já vi, foi em St. Louis, no norte do Senegal, umas largas centenas! Elas percorrem todo o mar costeiro, nesta costa de África, à pesca.

Já passei por grandes problemas que davam para contar durante horas, mas como dizem os meus amigos... "chego sempre"... E eu acrescento: até agora, felizmente! Foi numa destas canoas "nhominca", que fiz a viagem para a fragata Vasco da Gama, acompanhado de outros portugueses [, em 1998]…

Por vezes quando todos entram em pânico, é necessário tomar algumas atitudes pouco "recomendáveis" e tomar conta da embarcação, que o digam os meus colaboradores, ou alguns nossos amigos, que brincam com o que às vezes tenho que fazer, para que tudo corra bem. "É necessário que cada um fique no seu lugar, não deixar que corram todos para o mesmo lado". (***)

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Comentários dos leitores (*)

(i) Hélder Sousa:

Patrício:

O que nos relatas, de forma sucinta, certamente que daria para um filme de acção e 'suspense' com muitas peripécias.

Sobre o avanço do mar, desconfio que isso pode ser 'ilusão de óptica'. Tenho ouvido e lido o que o presidente Trump considera sobre 'alterações climáticas' e por isso acho que pode haver algum exagero nessa coisa das árvores terem sido levadas pelo mar. Se foram é porque faziam falta nalgum lugar. (...)


(ii) Tabanca Grande [Luís Graça]:

O Patrício Ribeiro não é por acaso que era conhecido em Bissau, ainda até há pouco, como o "pai dos tugas"... Os jovens, cooperantes, rapazes e raparigas, tinham por ele um enorme respeito e admiração na altura em que o meu filho, João Graça, o conheceu em dezembro de 2009, em Bissau...

Esta história do resgaste de diversos portugueses e outros, em plena guerra civil de 1998, perdidos em Varela, Canchungo e Cacheu, devia merecer honras de título de caixa alta nos jornais da época e nas parangonas dos telejornais... Não me dei conta que isso tenha acontecido... Mas é uma história de heroísmo!...

Ouvi-a contar, na tabanca de São Martinho do Porto, há uns anos atrás,  ao saudoso Pepito, um dos "encurralados", aquando da guerra civil de 1998, em Varela, onde também tinha casa de praia, já do tempo dos pais...O Patrício conseguiu metê-lo num dos helí da fragata Vasco da Gama, ancorada a 18 milhas, com mais 2 navios de apoio...

Já sabia, além disso, que na impossibilidade de voltar o heli a Varela, o Patrício se metera na sua canoa nhominca, levando mais um grupo (10 pessoas, de nacionalidade portuguesa e outras...) ao fim da tarde, pelo mar fora, até à fragata salvadora!...

Camaradas 18 milhas náuticas numa canoa nhominca (, embarcação em que ele é perito e que muito admira!) (***),  são mais do que 33 km pelo mar adentro... Não é para todos, é para quem aprender a amar e respeitar o mar, como ele, que foi "filho da escola" da Armada...

Esta história incrível tem de ser melhor conhecida de todos nós... O Ribeiro Patrício, que é um homem modesto,  nosso camarada, ex-grumete fuzileiro, deveria ter sido condecorado no 10 de junho por este feito de grande coragem e altruísmo!... Se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo!

Reparem: ele ficou na Guiné, segundo creio, não abandonou a Guiné, mesmo em plena guerra de 1998/99... O Pepito e a família, cuja casa no bairro do Quelélé, em Bissau, foi pilhada e destruída pela soldadesca senegalesa, que apoiava o 'Nino' Vieira, esteve refugiado em Cabo Verde, creio que à volta de um ano... O Pepito tinha nacionalidade guineense, e este foi um dos acontecimentos mais marcantes (e traumatizantes) da sua vida, segundo me confidenciou em vida... Voltou à Guiné. para recomeçar a sua vida, uma vida nova... O Patrício Ribeiro, por sua vez, é português, é alias o português mais guinéu da Guiné-Bissau... onde vive e trabalha há quase 4 décadas...

Enfim, o Patrício Ribeiro, agora com 70 anos, está a começar a "abrir o livro"... Um homem que sabe muito da história recente da Guiné-Bissau,  saberá até de mais, pelos círculos em que se move, mas sempre o achei uma pessoa cautelosa, discreta, afável e fiável...

Enfim, aqui fica o poste com o seu comentário, que eu tinha prometido!... E, quanto ao meu, peço-lhe que ele corrija ou confirme o que escrevi.
_________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18183: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte VIII: Perdidos no rio Cacheu, em maio de 1968 (3)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P13977: Notas de leitura (654): Reimpressão do livro “Crónica dos [Des]Feitos da Guiné" da autoria de Francisco Henriques da Silva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
O nosso confrade Francisco Henriques da Silva tem a singularidade de ter combatido na Guiné entre 1968 e 1970 e foi embaixador da Guiné-Bissau entre 1997 e 1999, viveu o aceso da guerra civil em condições absolutamente dramáticas, enquanto os seus pares da diplomacia logo se puseram em segurança via barco ou helicóptero, ele e a mulher e alguns colaboradores aguentaram a pé firme a borrasca, tudo fizeram para que as evacuações dos refugiados corressem bem, como correram, a bandeira portuguesa nunca deixou de tremular na nossa embaixada. O que é um motivo de orgulho para todos nós e para mim, sou seu amigo há mais de 50 anos.

Um abraço do
Mário


Crónica dos [Des]feitos da Guiné

Beja Santos

Em boa hora as Edições Almedina acabam de proceder à reimpressão do livro do nosso confrade Francisco Henriques da Silva cuja edição de Setembro de 2012 estava esgotada. O acento tónico da obra é a guerra civil de 1998-1999, era a sua primeira experiência como embaixador, a Guiné caíra-lhe na rifa, a Guiné onde combatera entre Setembro de 1968 e Abril de 1970. Dá-nos um relato esclarecedor e singelo do que foi a vida da CCAÇ 2402, primeiro em Có, onde tiveram batismo de fogo em 29 de Agosto, e aí viveu a experiência de proteção aos trabalhos de construção e asfaltamento da estrada Bula-Có-Pelundo, e depois em Mansabá, onde protegeram a construção da estrada Mansabá-K-3-Farim. Feito este trabalho de cantoneiros, foram lançados no Olossato, na região do Oio, mais um destacamento Ponte Maqué, que ele apresenta da seguinte forma:
“A 7 km do Olossato e a uns 11 ou 12 de Bissorã encontrava-se o destacamento de Ponte Maqué, um bunker em forma de quadrilátero, com um pátio central, na orla de uma bolanha, junto a um riacho, a maior parte do tempo seco ou quase, que albergava um grupo de combate. A ponte que, em tempos idos, foi de cimento e alvenaria, tinha sido dinamitada logo no início da guerra e havia sido reconstruída com toros de madeira, o que permitia a passagem de veículos pesados. Esta ponte era verdadeiramente vital pois permitia a conexão por estrada de Olossato com Bissorã e daí a Mansoa, Bissau e ao resto do território, por outras palavras, era a única ligação terrestre possível, porquanto as conexões com Mansabá e Farim estavam cortadas”.
E descreve seguidamente a vida em Ponte Maqué: 
“Sem energia elétrica, a proteção era-nos dada por umas duas ou três fiadas de arame-farpado, e por um campo de minas e armadilhas, delimitado pelas linhas de arame. A estrada nos dois sentidos, na direção de Bissorã e de Olossato era sempre armadilhada ao pôr-do-sol, sendo as granadas retiradas ao raiar de aurora, antes da população local se deslocar para a faina agrícola nas bolanhas vizinhas. Volta meia-volta os macacos saltitavam pelos campos de minas e rebentavam-nas, sendo invariavelmente saudados por rajadas de metralhadora e pelas imprecações dos soldados que acordavam estremunhados com os rebentamentos. Como oficial com a especialidade de explosivos, competia-me montar e desmontar as armadilhas em torno do destacamento de Ponte Maqué, bem como participar, juntamente com outros membros da minha equipa, na desminagem das picadas”.

Estamos em Outubro de 1997, [Francisco Henriques da Silva] chega a Bissau, apresenta credenciais ao presidente Nino Vieira e logo o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação inicia uma viagem oficial à Guiné-Bissau, Henriques da Silva regista com humor e muita coloquialidade a aparição de Kumba Ialá num jantar na embaixada em que está o secretário de Estado português e os ministros dos Estrangeiros e da Justiça, é uma descrição memorável:
 “- Meu caro embaixador, desculpa lá eu vir tarde, já passa das dez, mas não tenho fome. Ena, pá, tanta gente! Alguns eu conheço… 
- Oh, dr. Kumba, isso não tem a menor importância – disse ele, sem desmanchar, perante os olhares meio sorridentes dos dois Ministros presentes – Diga lá, o que é que quer tomar? 
- Um sun-sun (aguardente de caju) – retorquiu. 
- Bom, isso não há mas tenho algo de parecido. - Lá pedi ao Augusto que lhe servisse um conhaque ou um brandy e deixei-me ficar por perto, pois temia o que pudesse vir a passar-se e com Kumba Ialá o imprevisível era quase sempre o prato do dia – tudo podia acontecer. Entretanto, José Lamego aproximou-se também. 
- Ora cá está o Secretário! Sabe quem é este gajo? – e aponta com um dedo esticado para Delfim da Silva, enquanto emborcava o conhaque – este foi um dos que roubou os meus votos, por isso é que eu perdi as eleições. 
Sorriso amarelo por parte do visado e dos circunstantes que se entreolharam um tanto embaraçados. 
- Mas este ainda é pior – e vira-se, então, para o ministro da Justiça, Daniel Ferreira – este é que é um dos responsáveis pelos 20 mil votos que eu perdi nos Bijagós. Este agora é ministro da Justiça, secretário! Ouça o que eu lhe digo, esta gente do Governo não é séria! Mas vocês dão-lhes confiança…
Comecei a ver a vida a andar para trás. O primeiro jantar oficial que oferecia na residência a ministros locais e ao meu secretário de Estado, redundava num fiasco completo…”.

Henriques da Silva passa a escrito as impressões de Bissau, mas também as incongruências da cooperação, os sinais de instabilidade das Forças Armadas guineenses, o oportunismo da sua política externa, os equívocos do relacionamento luso-guineense, o caldeiro da questão Casamansa e em que medida a insurreição ali existente veio a contribuir para o detonar do levantamento militar chefiado por Ansumane Mané. O país está em polvorosa, abatido pelo défice e pelo gradual empobrecimento, onde chegara a hora de os combatentes da liberdade da pátria redigirem uma carta-panfleto, a pretexto do tráfico ilegal de armas, ali vinham acusações a Nino, o caderno reivindicativo apelando à dignidade dos antigos combatentes que beneficiavam de pensões miseráveis. Estão ali repertoriados dados significativos que nos vão fazer compreender a explosão desencadeada em 7 de Junho, o VI Congresso do PAIGC, realizado em Maio revelava que Nino era um senhor todo-poderoso e era apoiado por uma corte incondicional que não queria perder as suas regalias, aquele congresso saldou-se no impasse que deixava a ala renovadora do PAIGC desalentada. Tudo isto é descrito com episódios burlescos, situações por demais caricatas, pedinchice infindável.

E veio o levantamento militar que Henriques da Silva irá viver em toda a sua intensidade. Não existirá relato tão minucioso e esclarecedor dos acontecimentos, ali vêm as peripécias dos media, a Bissau bombardeada e as populações em fuga, gente a acorrer à embaixada, tudo em estado caótico:
“Alojados pelos corredores, nos sofás, nas banheiras, no chão, enfim, por tudo quanto era sítio, onde quer que houvesse espaço disponível, ali foram recebidos os nossos compatriotas, nos parâmetros típicos do nosso consabido desenrascanço lusitano”. O cargueiro “Ponta de Sagres” chega ao cais do Pidjiquiti e leva os refugiados enquanto troam os canhões, Henriques da Silva acompanha tudo, ocorre o milagre, a operação saldou-se num êxito. E a guerra continua por Junho fora, os senegaleses comportam-se como bárbaros e ocupantes, destroem património valioso. O êxodo continua, as populações de Bissau fogem para o interior. O alferes que vivera uma guerra contra o PAIGC assiste agora ao ódio dos guineenses favoráveis à Junta Militar a infligir perdas às tropas senegalesas e da Guiné Conacri, a nação dava a sua prova de vida humilhando os exércitos estrangeiros bem equipados. A guerra prossegue com Nino Vieira e os seus amigos circunscritos à península de Bissau e a algumas ilhas dos Bijagós. Há negociações, consegue-se um acordo mas a situação permanece explosiva. Em Maio seguinte, a Junta Militar entra em Bissau, Nino Vieira refugia-se na embaixada de Portugal. Renovava-se a esperança, mas foi tempo de pouca dura, os problemas de fundo iriam subsistir com novos equívocos nas Forças Armadas a querer decidir em nome do poder político. Equívocos atrás de equívocos que o autor comenta. Em Maio de 2000, o presidente Jorge Sampaio, por tudo o que se passou na Guiné-Bissau condecorou-o com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo.

Para quem quer conhecer os dramas da Guiné-Bissau de todo este tempo, a leitura deste livro é indispensável, pela vivacidade dos estilo e pela quantidade de documentação trabalhada.
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13937: Notas de leitura (653): “Navios com o nome Guiné”, da autoria do Capitão-de-Mar-e-Guerra Carlos Gomes de Amorim Loureiro (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13664: Notas de leitura (636): “Adeus, Bissau!", A ternura de um conto à volta da guerra civil de 1998-1999 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2014:

Queridos amigos,
Nada fazia supor, naquele fim de tarde chuviscoso a prenunciar Outono que iria encontrar numa publicação do Clube Militar Naval um conto tão pungente, tão tocante, evocativo da reconciliação luso-guineense, a propósito da guerra civil de 1998-1999.
Esta é a dimensão mais agradável que assiste ao andarilho que pesquisa assuntos, coisas de todo o tipo e objetos de toda a sorte que aponta para a Guiné, aquela que foi a primeira colónia moderna de um mundo que se chamou moderno e aonde se decidiu que Portugal não podia continuar a fechar os olhos ao imperativo da emancipação dos povos.
Desculpem o texto ser um pouco maior que é costume, mas este conto naval perderia se fosse cindido, as boas, genuínas emoções não se podem lotear.

Um abraço do
Mário


Adeus, Bissau!
A ternura de um conto à volta da guerra civil de 1998-1999


Beja Santos

Deve haver inúmeros métodos para pesquisar pepitas guineenses, ou seja, encontrar em alfarrábios, em estancos da Feira da Ladra, vendas na via pública e aparentados, o meu método deve ser o mais singelo: quem vê caras não vê corações, não frontispício que me demova, não é a primeira vez que sou engando pelas capas, tem que se ler sempre o índice das revistas, espiolhar, não esmorecer, vai-se à caça sem o propósito deliberado de trazer umas galinholas para casa – é este o princípio básico, está disponível para regressar de mãos vazias. Assim procedo quando, por exemplo, entro num alfarrabista na Rua das Portas de Santo Antão, contíguo ao Palácio da Independência, tem uma banca com publicações a 1€, há de tudo, desde o romance policial, literatura de viagens, catálogos de leilões, livros de relações internacionais e tudo aquilo que é esperável encontrar quando os herdeiros se desfazem de bibliotecas. Naquele fim de tarde, a sorte estava do meu lado, ao pegar num número de 1999 dos Anais do Clube Militar Naval era impensável ir encontrar, redigido por um oficial da Armada um conto enternecedor, sabe-se lá se este Primeiro-tenente Jorge Manuel Moreira Silva não presenciou tudo o que passou à ficção, e que ele chama conto naval. É uma bela achega para a literatura luso-guineense e é acima de tudo um comovente apelo à reconciliação entre todos aqueles que combateram na Guiné. Vamos aos factos, ao conto:

Adeus, Bissau!

Há vinte e quatro anos uma criança corria, desamparada, pelas ruas de Bissau. Desencontrada da mãe, buscava, em vão, amparo na multidão de rostos estranhos que a envolvia, no turbilhão dos acontecimentos. Se nalgumas apenas via medo, outros lhe surgiam, ameaçadores, pela frente, gritando “Vai para a tua terra! Vai para casa!”, só que não lhe diziam como. Ir para casa era o que mais desejava, porque não a deixavam, então fazê-lo como habitualmente, em sossego, na companhia da mãe? À sua volta tudo era gritos e correrias, pelo que nenhum apoio poderia, jamais, encontrar na debandada de gente que apenas buscava a sua própria segurança. Choviam pedras e insultos, ninguém sabia como tudo aquilo iria acabar…

Esbarrou em alguém… Um Negro alto, de camuflado, barrava-lhe a passagem. “Andas perdido, menino?”. Correspondia à descrição feita pelo pai dos temíveis turras que encontrava no mato, mas o seu aspeto era jovem e os seus olhos eram fundos, sinceros, cheio de compaixão.
- Não me faça mal, Senhor Turra! – Suplicou o petiz. – Eu só quero ir para casa.

O negro de camuflado permaneceu sério durante breves segundos, depois esbugalhou os olhos e a sua boca abriu-se numa gargalhada franca moldada por duas impecáveis fileiras de dentes.
- Senhor Turra, eh? – Exclamou. – Não tem medo, menino, que Senhor Turra não te faz mal.

O seu rosto retomou, então, a seriedade inicial e os seus olhos fixaram a linha do horizonte.
– Tua casa não é aqui, menino, fica longe. Estas casa e estas terra são de nós, mas Senhor Turra vai deixar-te a caminho…

Sentiu aquelas palavras como um soco dado no peito. Como podia aquele homem afirmar que não era a sua casa onde sempre vivera e que não passava, agora, de um estranho na única terra que jamais conhecera? Todo o seu pequeno mundo ruía na crueza demolidora daquelas frases.

Caminharam, por longos minutos, entre a multidão assustada, até à beira da estrada que seguia para Bissalanca.
 - Vê aquele monte de branco? – Perguntou o guerrilheiro, apontando um grupo de refugiados a caminho do aeroporto. – Segue com eles, para ver tua mãe e voltar para casa. – E passando-lhe a mão pela cabeça, o rosto de novo aberto numa expressão de afeto: - Toma cuidado, menino.

Foi recolhido pelo grupo, nele reconhecendo, de imediato, alguns dos seus vizinhos. Já no aeroporto, foi entregue à mãe, que chorava. O pequeno não sabia se era a alegria do reencontro, os cuidados pelo pai, que ficava para trás, no mato, ou já a saudade de tudo aquilo a que chamara seu e que se via obrigada a virar costas.

************

Hoje o menino há muito que o não é. Esquecida que ficou, nas teias do tempo, a promessa de que jamais iria combater, orgulha-se, agora, do seu alvo uniforme de oficial de Marinha. Empenhado numa ação de representação junto de um navio estrangeiro, não se apercebe, na azáfama das comemorações do Dia de Portugal, de que na terra que o viu nascer as armas voltaram, uma vez mais, a falar. E só se inteira da gravidade da situação quando o telefonema urgente de um camarada o vem acordar para um novo pesadelo:
- Tens de te apresentar a bordo imediatamente. Houve um golpe militar na Guiné-Bissau e temos que lá ir evacuar os cidadãos portugueses que pretendam regressar.

************

As duas corvetas sulcam, agora, as águas lamacentas do Geba, rumo a Bissau. Nunca pudera imaginar que a situação fosse evoluir tão rapidamente. E agora? Como reagirá se, ao chegar, a força for acolhida com fogo de morteiro? Vacilará? Portar-se-á como o herói que sempre sonhou ser? Talvez tudo corra de um modo calmo mas a espera não deixa de ser angustiante. Arde a margem norte junto a Brá e Bissalanca e soa seco o matraquear das armas ligeiras, entrecortado pelo estrondo surdo da morteirada. Bissau está à vista e também a “Vasco da Gama” que, fundeada a uma distância segura da margem, se prepara para suspender e efetuar a aproximação. Parte, do Comandante da força, a ordem para os três navios se aproximarem em simultâneo. É o tudo ou nada… A tensão cresce, de súbito, e precipita-se num só instante, o instante em que o navio-chefe se cruza com os outros dois e as três guarnições se saúdam num grito entusiástico e emotivo que poderá bem ser o último… É chegado o momento. As posições são ocupadas a escassas centenas de jardas do cais e já os três ferros unham no fundo de areia lodosa. Tudo decorreu sem incidentes, apesar de um projétil isolado ter caído entre a “Vasco da Gama” e uma das corvetas.

Os botes largam e dirigem-se para o cais onde já se apinha uma considerável multidão. São cerca de setecentos, de acordo com os números fornecidos pela embaixada, mas os que ali se acotovelam são, de certeza, muitos mais. Os homens desembarcam e o jovem oficial dirige-se a um capitão do Exército Português que coordena as operações em terra, juntamente com um sargento senegalês.
- É melhor despacharem-se. – Aconselha o capitão. – A maior parte da população já sabe que vocês cá estão e vai querer ir também. Nós temo-los aguentado até agora, só não sei quanto mais tempo conseguiremos…

A um sinal do oficial, os fuzileiros tomam posição junto à navegação do cais que ameaça ceder face à pressão da multidão. É feita a primeira triagem, de acordo com as prioridades: Portugueses, cidadãos da União Europeia, Cabo-verdianos e, por fim, Guineenses com o visto da embaixada portuguesa. Os botes dão início às primeiras carreiras.

O silêncio é bruscamente interrompido por um estrondo: um projétil de artilharia caiu no centro da cidade e outros dois se seguem, desta vez na periferia do porto. As mulheres e as crianças gritam e os homens tentam, com mais insistência, forçar a vedação, levando os Senegaleses a distribuir bastonadas. Os fuzileiros colocam, instintivamente as armas em posição de fogo, mas a atenção do oficial é desviada por um homem de meia-idade, alto, de olhar profundo e triste que mantinha a serenidade no meio do pânico geral. De onde conhecia ele aquele olhar? Por breves instantes, e sem saber como, voltou a ser um menino desamparado entre uma multidão em debandada, buscando proteção naquele olhar.
- Tragam aquele homem. – Ordenou quando voltou a si. – Vejam se ele tem o visto.

************

- O senhor faz-me lembrar alguém que em tempos conheci por estas paragens…
Em pé, no convés de voo da corveta, o homem foi bruscamente arrancado às suas divagações, mas não pareceu demasiado surpreso com esta abordagem.
- Está a falar comigo, Senhor Oficial?
- Parece que sim, uma vez que o senhor é o único que não correu a abrigar-se do temporal que aí vem.
- Seu refeitório é muito apertado para toda esta gente. Prefiro dar lugar às mulher e criança, que eu já estou habituado a dormir no mato, debaixo de chuva.
- Isto confirma a minha suspeita. Já foi guerrilheiro?!

O homem suspirou profundamente.
- Naquele tempo era toda gente, unida na mesma causa. Nós lutava, nós morria, mas era feliz, por ser irmãos uns dos outros e acreditar na liberdade e união. Hoje, Camarada Amílcar Cabral ficaria triste, como eu, de ver seu sonho todo destruído.
- Ânimo, tudo se há de compor. Deixou lá família!

O homem baixou os olhos.
- Mulher e filha… Ficaram soterrada quando casa ruiu às três dia.
- Lamento… É por isso que parte, por não ter já nada que o prenda àquela terra?

Ergueu o rosto, de repente, e o seu olhar ganhou nova vivacidade.
- Não, senhor. Quero voltar. Aquela ainda é a minha terra, lutei muito por ela e não a vou largar. Fico triste de ver os meus irmão uns contra outros e vou embora para não ter de combater alguns deles, mas, se guerra acabar, hei de voltar, sim.

Respirou fiando, para recuperar o fôlego, e continuou, mais pausadamente:
- Sabe, Senhor Oficial, Guiné é muito pequena, mas tem gente muito diferente, tem Mandinga, Fula, Balanta, Bijagó, Papel, Felupe, e todos aprenderam a se dar bem. Foi isso que permitiu nossa liberdade contra potência mais forte e é isso que vai trazer paz de volta, não a interferência do estrangeiro. Paz será quando Povo quiser, percebe?
- Eu sei. O meu pai costumava dizer que vocês eram um inimigo terrível, por serem muito unidos…

O velho guerreiro pareceu interessado nestas últimas palavras.
- Seu pai combateu na Guiné?
- Sim, de 68 a 70. – Quando eu nasci, e de 73 a 74.
- Ah, é dessa altura que diz conhecer-me?
- Exatamente. O senhor é igualzinho a um guerrilheiro que me ajudou a sair de Bissau quando tivemos de vir embora. Não se lembra de ter encontrado um rapazinho perdido nas ruas?

O homem saltou uma saudável gargalhada, mostrando-se pela primeira vez bem-disposto.
- Por isso você me ajudou, mesmo sem eu ter o visto… Mas pode estar enganado. Já passou tanto tempo… Não lembro de menino nenhum. Tinha outra coisa importante para preocupar.

Já as primeiras gotas de chuva borrifavam os dois interlocutores.
- Pense nisso. – Pediu o oficial. – Quando vi o centro de Bissau a arder senti reavivar uma antiga ferida, como se me estivessem a expulsar novamente de casa. Então vi-o, a si, naquele cais e senti de novo a proteção do meu amigo turra.

E recolheu ao interior do navio. O homem deixou-se ficar à chuva, entregue aos seus pensamentos.

************

Ao tocar o cais da cidade da Praia, a multidão de refugiados precipitou-se para a tolda, atulhando-a de sacos e mochilas de várias cores. Aguardava-os uma equipa da Cruz Vermelha de Cabo Verde e um cordão policial controlava os movimentos na muralha, onde vários autocarros se alinhavam para os transportar ao aeroporto.

O antigo guerrilheiro veio despedir-se.
- Vai para Lisboa? – Perguntou o jovem oficial.
- Não, fico por cá, na companhia dos irmão cabo-verdiano, à espera que tudo se resolva.
- Não perca a esperança. Mantenha a fé no seu povo…
- Não perdi uma nem outra. Veja caso de nós dois: ontem combati seu pai, hoje você vem como amigo. Ontem você teve de fugir de sua casa, hoje tive eu, mas quando voltar minha casa será também sua porque sua já voltou a ser terra de Guiné. Como vê, nem tudo está mal… - E, após uns instantes de silêncio: - Obrigado ter-me ajudado.
- Obrigado por me ter encontrado mais uma vez. – E quando o homem já ia a virar costas: - Adeus, Senhor Turra.

Aquele voltou-se novamente e, rosto aberto numa expressão de afeto, colocou a mão no ombro do seu jovem amigo.
- Toma cuidado, menino.

Ao sair a prancha, o velho guerrilheiro levava marejados os olhos negros e profundos, mas sorria, pois acabava de se aperceber que, apesar dos percalços, ainda havia esperança para o grande sonho do Camarada Cabral.

Há vinte e quatro anos uma criança corria, desamparada, pelas ruas de Bissau. Hoje a criança não mais o é, mas voltou a ser feliz, porque quem antes a mandara para longe veio a tornar-se num amigo, um amigo necessitado que, longe de cobrar antigos favores, a ajudou, finalmente, a voltar para casa.

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Aqui acaba o conto. Já o li duas vezes, sentado numa cadeira incómoda numa sala em penumbra, num fim de tarde que anuncia o Outono. Choraminguei, como alguém neste conto naval. Estou consolado por tanta surpresa. Até pelo facto da capa nada sugerir sobre a Guiné.
A fotografia deste número dos Anais do Clube Militar Naval mostra o primeiro-tenente Fernando Augusto Branco, imediato do primeiro submersível da Marinha portuguesa, o Espadarte, e avô materno do antigo Presidente da República Jorge Sampaio.
Mais outra surpresa.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13652: Notas de leitura (635): “Vamos", por Jacinto Lucas Pires (2) (Mário Beja Santos)

sábado, 22 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10422: Notas de leitura (408): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 11 de Setembro de 2012:

Meus caros amigos,
Esta é a segunda parte da minha análise ao livro "O conflito político-militar na Guiné-Bissau (1998-1999)" de Guilherme Zeverino*.

Com cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva


O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2/2)

Retomando as teses de Guilherme Zeverino, para quem conhece a Guiné-Bissau, é quase uma verdade lapaliciana o dizer-se que a introdução do multipartidarismo não veio resolver, antes avivar os problemas internos no seio do PAIGC, gerando uma situação politicamente insustentável, mas, que, em nosso entender, “Nino” Vieira e a sua clique pensavam frivolamente poder controlar. Bom seria que o autor tivesse dedicado algum espaço às eternas lutas entre personalidades e facções, bem como, à permanente dança de cadeiras no seio do antigo partido do Poder. Regista e é digno de nota que nas demais formações partidárias locais, apenas com duas excepções, a liderança coube a dissidentes do PAIGC.

Não sabemos até que ponto o multipartidarismo veio reforçar a sociedade civil bissau-guineense. Para além de uma certa secundarização do PAIGC – perdeu o estatuto de partido único - houve de facto uma saudável abertura aos media, às ONG’s, à igreja e, hoje, dada a virtual inexistência no país de meios de comunicação social de massas independentes, à Internet e aos blogues. Todavia, o Poder continuou – e continua - a estar nas mãos dos militares, cabendo-lhes sempre a última palavra. Digamos que estamos perante uma porta entreaberta que se pode fechar a qualquer momento.

No que concerne a interdependência entre a crise no PAIGC e a crise nas Forças Armadas, devemos assinalar que, efectivamente, essa correlação existe. Mais. O Partido no seu último Congresso (o VI, nas vésperas do conflito), optando por uma estapafúrdia e absurda política de avestruz, não abordou as questões mais candentes das Forças Armadas ou o problema “escaldante” de Casamansa, nem sequer aflorou o tema dos veteranos de guerra. Os militares verificaram, assim, que a solução dos seus problemas devia ser resolvida por eles próprios, à semelhança aliás do que “Nino” Vieira fizera em 1980. Se a interdependência entre as duas crises parecia ser patente, não obstante, a resolução dos problemas seria estritamente militar e não tinha nada que ver com as questiúnculas internas do PAIGC. É aqui que se separam as águas. Há quem queira ver no levantamento de 7 de Junho de 1998, uma questão interna partidária com expressão castrense, a inversa assume, a meu ver, foros de maior verosimilhança. O fulcro do problema estava em “Nino”, o grande régulo – Presidente da República, Comandante Supremo das Forças Armadas e Presidente do PAIGC – e, bem entendido, no seu “núcleo duro”. Em suma, e para não nos perdemos noutras considerações, a interdependência entre as duas crises existe, mas não foi a causa principal do confronto (foi tão-somente uma das causas, porque outras houve de dimensão semelhante). Logo, a questão tem de ser relativizada.

Desconhecemos em que medida a rivalidade cultural Portugal-França e as respectivas políticas de cooperação terão levado a posicionamentos divergentes na crise bissau-guineense. Estes factores contribuíram, seguramente, para o reforço dessas posições, mas não as engendraram Todavia, os dados essenciais do problema eram, a nosso ver, do foro estritamente político: para Paris, tratava-se de um motim contra a autoridade legítima estabelecida – ou seja, uma rebelião contra um presidente eleito - , logo tinha de ser debelado e, ao longo do tempo, esta posição não oscilou; para Lisboa, partindo inicialmente do mesmo pressuposto, assumiu, de seguida, uma “política essencialmente realista”, como refere Zeverino (vd. p. 87), tendo em conta a situação no terreno, a problemática dos refugiados e a mediação entre as partes em conflito e, há que sublinhá-lo com toda a frontalidade, aproximando-se das posições rebeldes, até porque o regime “ninista”, apesar da democraticidade aparente, era, sob múltiplos aspectos, condenável. Logo, oscilou. Consequentemente, os factores apontados por Zeverino contribuem apenas para alicerçar opções e posições políticas de fundo pré-existentes ou em fase de formação.

A adesão precipitada da Guiné-Bissau ao franco CFA, sem medidas de acompanhamento macro-económicas, foi, como releva Zeverino, nefasta. A má gestão, a inépcia, o sobre-endividamento, o sufoco financeiro, a manifesta incapacidade para debelar a pobreza endémica do país, o ciclo impiedoso do sub-desenvolvimento sem solução de saída, que caracterizaram os governos de Saturnino Costa e de Carlos Correia (deste em menor medida), faziam igualmente parte da receita para o desastre e contribuíram com a sua quota-parte para o levantamento militar. A problemática económico-financeira é, porém, tratada com alguma ligeireza. A nosso ver, merecia maior atenção por parte do autor. Por outro lado, não se pode meter no mesmo saco as adesões à zona franco e à Francofonia, bem como, as pressões externas dos países limítrofes francófonos, ou seja no capítulo das causas económicas (ou económico-financeiras) do levantamento. A adopção do franco CFA insere-se claramente nesta esfera, a francofonia no âmbito politico-cultural, as pressões externas no contexto das relações externas. Misturar alhos com bugalhos induz-nos em erros e confusões desnecessárias.

Estamos inteiramente de acordo que a intervenção militar estrangeira, do Senegal e da Guiné-Conakry, suscitou uma espontânea e muito viva reacção nacionalista por parte da população da Guiné-Bissau. Trata-se, sem sombra para quaisquer dúvidas, de uma questão sócio-política de primeira grandeza e que marcou de forma perene a guerra civil naquele país africano. Todavia, no âmbito social outras questões de grande relevância deveriam ter sido abordadas, pois constituíam problemas estruturais que estão na raiz do levantamento militar e que continuam, ainda hoje, por resolver. Referimo-nos às clivagens entre as velhas e novas gerações de militares (os que fizeram a “luta” e os que não lutaram porque eram ainda crianças ou nem sequer eram nascidos), aos veteranos de guerra, abandonados e votados à marginalização social; e last but not least ao problema étnico, que o autor, de todo em todo, não aborda (sabendo-se, por exemplo, que o grosso dos contingentes das fileiras das Forças Armadas é constituído pela etnia balanta – cerca de 2/3 – um grupo relegado a um estatuto subalterno na sociedade e que “Nino” Vieira, na fase final da guerra, em desespero de causa foi recrutar jovens papeis e bijagós, os “aguentas” , como guarda pretoriana do regime). Aliás, retomando o tema da fissura entre velhas e novas gerações entendemos que se trata de um problema sociológico de fundo e que não se circunscreve apenas ao âmbito castrense, pois afecta horizontalmente toda a sociedade bissau-guineense. Ora, tudo ponderado, para uma obra com pretensões académicas, estas omissões no capítulo social são graves. Finalmente, o autor não aborda e devia ter abordado como causas próximas do conflito as razões de ordem pessoal que levaram Ansumane Mané a revoltar-se contra o seu amigo de sempre e companheiro de luta “Nino” Vieira. E esta questão não é despicienda, como se sabe.

Como tese de dissertação possui alguns méritos, mas com a devida vénia, em nossa opinião, fica aquém das naturais expectativas que se depositam num projecto desta natureza. Mister é reconhecer, porém, que foi escrita e apresentada escassos 4 anos após os acontecimentos, portanto, de certo modo, ainda “a quente.” De qualquer forma apresenta alguns factos marcantes do período em causa e algumas pistas interessantes que permitem interpretar a história recente da Guiné-Bissau.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste anterior de 20 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10411: Notas de leitura (406): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (1) (Francisco Henriques da Silva)

Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10416: Notas de leitura (407): O Corredor de Lamel - 68 Guiné 69 - de Guilherme Costa Ganança (Mário Beja Santos)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7818: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (3) (Francisco Henriques da Silva)

1. Apresentação da última parte do trabalho do nosso camarada Francisco Henriques da Silva* (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, enviado em mensagem de 15 de Fevereiro de 2011:


Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 - 3/3

Para além de todos os bloqueamentos referenciados e que caracterizavam a situação da Guiné-Bissau antes de 7 de Junho de 1998, o país – um minúsculo território lusófono numa região francófona - e o povo – mal ultrapassando um milhão de habitantes, mas orgulhoso da sua língua de comunicação veicular – o crioulo (ou “kriol”) – e também da sua cultura crioula, criada nas praças de Cacheu, de Bolama e de Bissau, sujeito a uma administração pública e ao direito, cuja matrizes foram impostas pelo colonizador português, tinha a clara noção da diferença com os seus primos do Senegal e da Guiné-Conakry. Todavia, a entrada na União Económica e Monetária Oeste-Africana (UEMOA), a adopção do franco CFA, a pertença à Francofonia faziam diluir as características mais vincadamente guineenses, crioulas ou de inspiração lusa. E a prazo, porventura, a esbatê-las de vez. Prevalecia também a ideia de que “Nino” Vieira e os seus governos tinham conduzido a Guiné-Bissau a essa situação (o que era genericamente verdadeiro). Tal rumo – porventura inevitável em termos de integração económica regional – não o era, porém, em termos de integração linguística e cultural e esta questão era assim percebida pelo povo de Bissau e das principais cidades. A afirmação da identidade nacional bissau-guineense, ainda em fase embrionária de gestação, que não era na base anti-francófona, mas que queria apenas marcar distâncias em relação a esse universo alienígeno, acabou por vir a sê-lo, quando se sentiu ameaçada de dissolução.

Há, pois, a meu ver, um factor muito importante de afirmação patriótica, incipiente, rudimentar e difusa, perante uma ameaça externa, não só económica e militar (a presença e constante pressão do Senegal na fronteira Norte), mas creio que, principalmente, cultural que, em última análise, destruiria, inclusive, os laços afectivos com Portugal e com o mundo lusófono e que constitui uma causa profunda (numa fase inicial, quiçá, apenas assumida subconscientemente) do levantamento. Aliás, a evolução do conflito e o reforço dos laços a Lisboa e à CPLP, por parte da Junta Militar (JM), do Governo de Unidade Nacional (GUN) e do Povo em geral viriam a ilustrar eloquentemente este ponto.

A confluência das causas imediatas com factores profundos da própria sociedade guineense explicam o 7 de Junho que é no fundo uma revolta popular e patriótica, em todos os domínios: militar, político, social e económico, contra o “status quo”, a procura de uma saída – ou de saídas – para um sistema bloqueado.

O problema pessoal tem sido amiúde citado, como uma das causas próximas, senão como a causa imediata do conflito, ou seja a rivalidade entre velhos companheiros de armas: “Nino” Vieira e Ansumane Mané, em que o primeiro, enquanto Chefe do Estado e Comandante Supremo das Forças Armadas, demite o segundo de CEMGFA, acusando-o de negligência no tráfego de armas para os rebeldes de Casamansa, o que teria sido a verdadeira chispa para o acender do conflito. A acusação ia mais longe, na medida em que, de forma deturpada, se dava a entender, como se deu, para o exterior, de um envolvimento directo de Mané no comércio de armas para os rebeldes de Casamansa – o que era absolutamente falso e “Nino” Vieira sabia-o - , mas que calou fundo junto do ex-Presidente Abdou Diouf e da hierarquia militar senegalesa e que está na razão directa da celeridade da intervenção armada de Dakar. A meu ver, o factor pessoal terá desempenhado um papel na revolta de Ansumane Mané contra “Kabi”, mas não um papel determinante, porque, como parece estar demonstrado, o movimento era bastante mais vasto e complexo e as causas menos superficiais do que pareciam ser numa primeira leitura.
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Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)
e
18 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7814: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (2) (Francisco Henriques da Silva)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7814: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Continuação da publicação do trabalho do nosso camarada Francisco Henriques da Silva* (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, enviado em mensagem de 15 de Fevereiro de 2011:


Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 - 2/3

Bloqueamento social porque, sem prejuízo das diferentes fases da evolução histórica da Guiné-Bissau, no período pós-independência, mesmo tendo em conta a substituição da pequena elite burmedja (cabo-verdiana e mestiça) na sequência do golpe de estado de 14 de Novembro de 1980 por uma élite autóctone de fidjus di tchon (filhos da terra, ou seja guinéus supostamente puros) ou pretus-nok , o poder político, económico e social circunscreveu-se sempre a um grupo muito restrito, inibindo a mobilidade ascendente das demais camadas sociais e reduzindo-as a condições de mera subsistência. Este fenómeno é agravado pela explosão demográfica do país e pela concentração urbana em Bissau.

Por outro lado, as gerações mais novas, que cresceram ou nasceram após a independência e que constituem, hoje, a maioria da população bissau-guineense, já não se reviam na chamada “geração da luta”: os seus anseios eram outros, o desejo de mudança evidente. Todavia, o establishment não o permitia, porque tal poria em causa a sua própria sobrevivência. Uma minoria que viveu ou ainda vivia emigrada no estrangeiro, numa primeira fase, nos países limítrofes e do Leste europeu, numa segunda, em Portugal e nalguns países ocidentais (Brasil, França, EUA), culta ou, pelo menos, alfabetizada, com outra vivência e, principalmente, com outros objectivos, quer pessoais, quer nacionais, constatava que, à parte umas raras excepções pontuais, o bloqueamento era quase total.

Paradoxalmente a este movimento no sentido do desencravamento e do aggiornamento da sociedade bissau-guineense, conscientemente sentido por um sector, ainda que diminuto, das gerações mais novas (os demais pretendiam pura e simplesmente melhorar o quotidiano), acresce-se a deterioração acelerada da situação económica e social dos antigos combatentes da guerra colonial (os chamados combatentes da Liberdade da Pátria). E este é um dado fundamental do problema porque se trata a um tempo de uma causa remota e próxima do conflito. Remota, porque o problema, que vem de longe, nunca encontrou qualquer esboço de solução no passado. As tentativas goradas quando da governação inábil (inepta é o termo exacto) do antigo Primeiro-Ministro, Coronel Manuel Saturnino da Costa – ele próprio um homem da luta – demonstravam bem que a questão era candente e a sua resolução urgente, mas que o Poder patenteava total impotência para o resolver, por falta de meios, por falta de imaginação, ou por ambas as razões. Próxima porque a situação dos combatentes da Liberdade da Pátria (verdadeiros “descamisados”) não cessava de se agravar nos meses que antecederam o levantamento de Brá e aqueles iriam não só engrossar a legião de descontentes, mas, pior do que isso, anunciavam publicamente, poucas semanas antes do 7 de Junho de 1998, que iriam defender de armas na mão os seus direitos.

Bloqueamento económico porque a República da Guiné-Bissau era – e é - um país desesperadamente pobre, com efeito, um dos mais pobres do planeta. Não dispunha, nem dispõe, de quaisquer recursos naturais dignos de menção. Possuía, antes da guerra civil, de um rendimento per capita de 250,6 dólares americanos (dados de 1997, do Fundo Monetário Internacional), ou seja menos de 1 dólar por dia e por habitante[1] . Dispondo de uma agricultura de subsistência, praticamente sem indústria, sem recursos energéticos, com o sector dos serviços circunscrito, em larga medida, à capital, tratava-se de um dos países do mundo mais altamente endividados do mundo (918,8 milhões de dólares em 1997, por outras palavras: quase 4 vezes o PNB, também segundo dados do FMI). O seu subdesenvolvimento era endémico e sem solução à vista. Para além dos problemas estruturais com que se confrontava, o malbaratar de fundos e da própria ajuda externa, a corrupção, a má governação, constituíam outros tantos factores impeditivos a que a Guiné-Bissau pudesse emergir do fosso em que se encontrava. A principal cultura de rendimento – o cajú – na mão de intermediários e da elite local de Bissau era exportada na sua quase totalidade para o estado de Kerala na Índia. Uma exploração abjecta da mão-de-obra camponesa guineense que não foi praticada nem nos piores tempos da era colonial e agora aplicada por um país do 3º. Mundo, com o beneplácito (e os consequentes benefícios) da clique de “Nino” Vieira e acolitada pelos comerciantes de Bissau.
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[1] “O PNB por habitante era de 223 dólares norte-americanos em 1997, e caíu para 181,8 dólares por habitante em 1999, devido ao conflito militar”, Memorando do Banco Africano de Desenvolvimento/ Fundo Africano de Desenvolvimento, de 21 de Março de 2001, doc. ADB/BD/WP/2001/35
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)