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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15809: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (17): O Moral das Tropas é Bom!

1. Em mensagem de 28 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos a sua apreciação sobre o moral das nossas tropas face ao contexto em que era feita e vivida a guerra na Guiné. 
Vd. a propósito os postes P15795 e P15796 do nosso tertuliano, José Matos.
Como sempre, as opiniões do camarada Pereira da Costa são inseridas na sua série: "A Minha Guerra a Petróleo".


Não conheci o Brigadeiro Louro de Sousa. Na Guiné, sou do tempo do já General Arnaldo Schulz. Apenas tenho o texto de uma comunicação sua proferida na Sessão Comemorativa do 120.º Aniversário da “Revista Militar”, em 23 de Maio de 1968. O título da comunicação – A Subversão no Ultramar – e a pessoa a quem se dirige no fim do texto (Presidente da República) dão uma ideia dos pontos de vista nela expressos. Mesmo assim, alguns blocos de texto terminam com conselhos do que se “há-de fazer…”. Pelos resultados que hoje podemos ver em toda a África teremos que concluir que os seus comentários e de outros participantes no processo, como Hélio Felgas, são muito pertinentes. Não terá deixado rasto muito profundo na Guiné talvez porque não se demorou por lá muito tempo e apanhou uma altura de transição entre a “Paz Colonial” e o início do terrorismo.

Nunca ouvi falar da tal exposição “ao poder em Lisboa” (4 de Setembro de 1963), onde terá apontado uma série de problemas que se punham à sua acção e que dificultavam a resposta militar das autoridades portuguesas à acção do PAIGC e não me admiro de que o tal “Poder” tenha reagido mal às suas afirmações. É mau, ainda hoje, ser clarividente, ainda que por experiência obtida no terreno (até parece que é pior…) e prever o que aí vem. Os detentores do poder não gostam de ser confrontados com a inteligência e conhecimento e… arremedam soluções, depois de triturarem devidamente o portador do alerta.

Todavia, as sete primeiras razões que o Brigadeiro Louro de Sousa evoca merecem uma reflexão que, hoje, passados mais de 40 anos, podemos fazer. Creio que a oitava razão, pelo seu carácter amplo, não é de negligenciar, embora só o texto da exposição o possa esclarecer. Esta “guerra” é um fenómeno sociológico abrangente onde é sempre possível encontrar causas a que poderemos chamar menores apenas por serem menos frequentes, embora possam ser influentes.

Quem viveu o ambiente nas unidades operacionais e mesmo nas de serviços – em Bissau, Nova Lamego, Bafatá, etc. – poderá, embora com “efeitos retroactivos”, tentar responder a uma questão que mensalmente se punha no momento em que as unidades de nível companhia respondiam à pergunta: - Como é o moral das tropas? Nunca ouvi que uma unidade tivesse declarado que era mau, mesmo quando as coisas tinham corrido mal durante o mês em apreço e quais as consequências de uma opinião mais pessimista.

António J.P. Costa

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O Moral das Tropas é Bom!

Era das NEPES!

Embora alguns não o conheçam, o SITPES era uma das nossas dores-de-cabeça mensais. Mais um papel que era necessário fazer com resultados pouco palpáveis! Nunca na minha Unidade senti efeitos directos da sua elaboração. Segundo as NEP (Normas de Execução Permanente) da 1.ª Rep. do QG/CTIG, quase todas as Unidades de nível Companhia tinham que o fazer. Hoje, não sei que é feito dele, mas este relatório mensal poderia fazer muita luz sobre o nosso passado. Fui revisitá-lo naquele volume considerável com capa de cartolina castanha, com letras pretas, escrito à máquina com caracteres “micro” e reproduzido em stencil.

Nele ficavam registados todos os movimentos de pessoal e respectivas causas: os mortos, os feridos (ligeiros e graves), os recompletamentos, os louvores e condecorações, as punições de todos tipos e uma série de pequenos detalhes que, hoje, reconstituiriam tantos momentos da nossa vivência. Mas o que mais me atraiu a atenção foi o Anexo 2 – “Relatório do Estado Disciplinar e Moral da Força”. Era uma “exposição concisa sobre o estado moral das tropas” que daria indícios, se bem explorado, sobre o sentir do pessoal, a sua motivação, a sua aceitação das tarefas do dia-a-dia, abreviando: a sua vontade de vencer. As preocupações do Brigadeiro Louro de Sousa inserem-se directa ou indirectamente na Área do Pessoal.

O articulado terminava com três quadros sem designação, o que prova que os peritos em gestão de pessoal esperam sempre que surjam situações que não previram e que terão efeitos na área que dizem dominar. Não creio que estes quadros alguma vez possam ter passado e ser utilizados e com que designação.
Havia quadros a que poderemos chamar menores, pois só com valores consideráveis se tornam significativos, como sejam certas ocorrências: as faltas disciplinares e os acidentes de viação. Outros que se podem ler nas entrelinhas, como é o caso dos pedidos de transferência. Seriam raros, mas quando se tenta trocar uma colocação numa Unidade Operacional por outra em idênticas circunstâncias, algo vai mal no relacionamento entre o militar e a sua Unidade.

O número dos desertores e dos ausentes sem licença mediria a aceitação voluntária e assumida do que se fazia, a saturação e a vontade de ali permanecer. Sabemos que o número de deserções para o campo do inimigo foi muito menos que residual. Porém, a deserção entre os que vinham de férias teve alguma – embora pequena – expressão. Será mais um aspecto a considerar numa das tais causas que o Brigadeiro Louro de Sousa indica. Creio que não se desertava para o inimigo por não haver dúvidas acerca do tratamento que nos estaria reservado. Com muita certeza os maus-tratos seriam longos e abundantes e a possibilidade de comunicação com a família ou eventual repatriamento eram hipóteses que nem sequer se punham. Se não se contactava com a família dos prisioneiros, nem se punha a hipótese do seu repatriamento, como é que tal seria possível com os desertores, criminosos, à luz da legislação em vigor? E que confiança teria o inimigo na colaboração de um desertor? E estaria ele disposto a dá-la? Por outro lado, ao contrário de outras guerras, a deserção, em frente do inimigo, não era possível para outras regiões ou países, eventualmente “neutros”. A ausência sem licença ou por excesso dela só por despiste teria lugar. Tive, na minha Companhia um soldado que ia na nona ou décima ausência e sempre pelo mesmo motivo: frequência assídua do Pilão, em Bissau, durante as frequentes baixas ao HM 241.

Portanto, ficava-se ou regressava-se mesmo sabendo ao que se ia, porque… se calhar, não poderíamos “cá” ficar todos e o que seria se o número de recusas ao reembarque aumentasse? Além disso, começávamos a ser “Homens” e os Homens não fogem. No fundo, ainda nos restava uma ténue esperança de que estávamos a fazer algo válido e necessário.

Instintivamente, temos todos a ideia de que os problemas de 1963, não eram muitos diferentes dos de 1968, 1974...

Das causas referidas por Louro de Sousa encontramos algumas que se prendem directamente com o “Moral das Tropas”: Deficiente instrução das tropas e quadros; Falta de pessoal/insuficiência de efectivos; Falta de enquadramento. Outras influenciam-no (muito), mas não directamente: Deficiente equipamento das Unidades no terreno; Abastecimento (material, munições, víveres e água); Instalações inadequadas, mas todas têm a mesma consequência: Cansaço das NT, sempre ansiosas por acabar a comissão e voltar para a Metrópole.

Os que foram em Unidades constituídas sabem bem as deficiências da sua preparação que era consequência de locais adequados para a instrução, certas restrições (de índole financeira) ao consumo de alguns meios, impreparação dos instrutores – especialmente das praças – que, na maior parte dos casos não sabiam mais do que vagamente se lembravam da sua formação e uma resistência atávica e subliminar, que se radicava numa resistência não escrita nem reconhecida por ninguém a ir para a guerra. Os que foram em rendição individual sabem o que tudo isto significa, mas para pior, uma vez que foram parar a uma Unidade com pessoal já rotinado nas tarefas a desempenhar.

A falta de pessoal e insuficiência de efectivos foi algo que todos pudemos constatar, quer na dificuldade com que se processavam os recompletamentos, quer no embarque de Unidades incompletas em maior ou menor grau. Quem não se lembra do tempo que esperou pelo seu substituto ou pela lentidão com que as baixas de todo o tipo eram colmatadas? Para o fim da guerra há mesmo caso de Unidades que tiveram dificuldades em obter um número considerável de elementos já que o potencial humano do país começou a revelar-se insuficiente para as necessidades, mesmo recorrendo ao “recrutamento da província”. Desta insuficiência resultava um esforço considerável sobre quem estava “lá”, com o correspondente desgaste físico e psicológico.

Da insuficiência de meios humanos resultava também um enquadramento que atingiu níveis baixíssimos especialmente depois de 1972, quando nas Companhias de Quadrícula ou de Intervenção só havia dois profissionais que eram sargentos e, mesmo assim, normalmente com funções administrativas. Este deficiente enquadramento só ampliava os problemas determinados pelas duas causas anteriores. Podemos também referir a redução do número de médicos nos batalhões, que todos notámos.

E entramos na questão do equipamento/armamento ou da falta dele. Ainda recentemente afirmei e ilustrei a deficiência de equipamento da artilharia. Mas, quem não se lembra das dificuldades que tínhamos ao nível das Transmissões? E aquele bendito “algeroz” que dava pelo nome de bazooka de 8,9 cm que se prendia em todo o lado, não dava jeito nenhum e que, tirando em defesa do aquartelamento, não tinha utilidade? E mesmo assim… Já está demonstrado que o abastecimento (material, munições, víveres e água) se processava com “dificuldades”.

Sobre esta questão limito-me a recordar o considerável número de aquartelamentos sem água (Gandembel, Guileje, Banjara, Cutia, entre outros) e as consequências que daí advieram. Poderia falar das dificuldades no reabastecimento de material de aquartelamento, mas isso já pode ser considerado como exigência excessiva. É que, como se recordam, tínhamos camaradas que até censuravam que quiséssemos viver bem (um pouco melhor) no aquartelamento era excessivo.

“Que diabo! Com a Pátria em perigo este gajo quer cadeiras e mesas? Desenrasque-se!”
“Abrigos reforçados com cimento? Vá para as valas para não perder agressividade!”

E as instalações? Compreende-se que uma Unidade que toma conta de um sector “tomado ao In” ou que ocupa uma tabanca no início da guerra se governe com a “prata da casa”, mas tornar esta situação cronicamente provisória só pode ter efeitos negativos. Às vezes de tão inadequadas até se tornavam perigosas. Quem não se recorda de ter herdado esta ou aquela instalação “dos velhinhos” que, pouco tempo depois, estava inutilizável ou perigosa, o que obrigava a sua reconstrução, com o esforço inglório que se adivinha?

Do somatório não necessariamente algébrico e às vezes até em progressão geométrica resultava a mesma consequência: Cansaço das NT, sempre ansiosas por acabar a comissão e voltar para a Metrópole. Se a esta ânsia acrescentarmos a impaciência relativamente ao desfecho favorável ou ao receio de um desfecho desfavorável da população metropolitana e à passividade da população rural – a mais próxima de nós – teremos um caldo de cultura que veio a piorar desde 1963, de acordo com o raciocínio do Brigadeiro Louro de Sousa. Se a isto juntarmos a tendência para embaratecer a guerra perfilhada pelo Salazar e a desproporção entre os meios necessários e os existentes para que a situação se invertesse veremos que pouco ou nada mudou desde 1963.

António J.P. Costa
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Notas do editor

- Negritos e itálicos da responsabilidade do editor

Último poste da série de 18 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15634: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (16): “A Tropa vai fazer de Ti um Homem!”

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15634: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (16): “A Tropa vai fazer de Ti um Homem!”

 
1. Em mensagem de hoje, 18 de Janeiro de 2016, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos mais um artigo para incluir na sua série "A Minha Guerra a Petróleo", desta vez a propósito do tema em discussão "A Tropa via fazer de ti um homem".
 


A Minha Guerra Petróleo (16)

“A Tropa vai fazer de Ti um Homem!”

Era uma frase feita e, como todas as frases feitas, tinha um fundo de verdade à mistura com uma fraca resistência a uma análise de significado mais cuidadosa. Outros diziam que “a Guerra faz os Homens fortes”. Coisas que se dizem…

Desde logo haveria que esclarecer o que é isso de ser “um Homem”. Toda gente daquele tempo – velhos e novos, homens e mulheres – sabia e lembra ainda hoje o que isso significava, mas, ao tempo, o melhor era não aprofundar o conceito, pois ele esboroava-se e as dúvidas surgidas seriam mais do que muitas…

Tinha de ser um “chefe de família”. Aí todos estávamos de acordo. Tinha algo de positivo e construtivo esta espécie de título nobiliárquico que oficializava a afirmação do Homem (do povo) como chefe, no ambiente familiar, mas, ao mesmo tempo, obrigava-o a ser o sustentáculo do agregado familiar e a não ser “marido de modista”, isto é, um alérgico ao trabalho vivendo à sombra da profissão da mulher. Havia, assim, uma espécie de divisão de tarefas pela qual a mulher era responsável, em primeira linha, pela educação e preparação dos filhos para a vida, e o homem que, com certo brio, normalmente no exterior, arranjava pelo trabalho, os meios para o sustento da casa. Sabemos que as novas gerações acham este padrão absurdo e nem sequer tentam entendê-lo, mas que era assim, salvo excepções, lá isso era.

Esquecem-se apenas de que o trabalho feminino se desenvolveu em consequência de uma guerra e que hoje as mulheres trabalham não por uma questão de “independência e dignidade”, mas muito principalmente porque a família só pôde melhorar os rendimentos familiares somando os salários de ambos os progenitores. Além disso, aos patrões agrada a presença de quem ganhe menos, produza o mesmo e tenha uma capacidade de organização sindical e reivindicativa menor. Mas isto já são “outros caminhos da História”.

Naquele tempo “Tropa” era um acidente previsto na vida dos homens, mas que, ao mesmo tempo, funcionava como uma meta a atingir. Há quem diga que era uma forma de controlo da população e é provável que tivesse sido, mesmo que indirectamente.

Antes de 1961, (antes da guerra do ultramar/colonial) assistia-se a um espectáculo triste, mas que se aceitava na esperança de que caísse nos outros e não em nós. A incorporação do contingente disponível não podia ser muito elevada por ser antieconómica – a vários níveis – e muito mais num país a contar os tostões na sua vida pública. Ir às sortes era uma espécie de totoloto destinado a determinar quem seria incorporado e quem voltaria para “a vida fácil”. No sorteio, a corrupção – por vezes caricatamente baixa – fazia parte dos dados a introduzir e, por consequência, “quem não tinha padrinhos, morria mouro”, a menos que o seu fervor patriótico ou a crença de que a tropa fazia bem o levasse a aceitar ficar apurado. Era o tempo dos “pés chatos” (fosse isso o que fosse e às vezes não era nada) que davam direito a “ficar-se livre à tropa”.

Mas a ida às sortes tinha um aspecto muito positivo. Em muitos casos, era a primeira vez que o jovem ia a uma consulta médica e, se ficasse apurado, sabia que tinha saúde e devidamente autenticada. Os “fraquinhos e os enfezadinhos” ficavam de fora, com as vantagens e inconvenientes que isso comportasse. Depois eram as tais “sortes”, às quais se seguiria um alegre retorno a casa, em liberdade, ou “um não há-de ser nada” para os que seriam incorporados. A incorporação e o serviço militar eram feitos normalmente longe de casa e aí começava um choque na vida do homem que, se tinha aspectos negativos, não podemos negar que abria horizontes – e muito mais naquele tempo – pelo contacto com outros homens, de outras terras e com outros hábitos. É uma realidade que não podemos negar e que hoje procuramos. Porém, feita por obrigação… pelo menos nos primeiros tempos, era uma experiência desagradável para muitos.

Seguia-se o contacto na caserna com outros jovens, de outras terras, com outros hábitos e outras maneiras de pensar, especialmente em relação ao meio em que tinham sido mergulhados. Surgiam os pequenos desenrascanços (sempre maus) e os furtos de caserna (revoltantes e, às vezes significativos) que chegavam a atingir peças de fardamento e equipamento, e a falta de higiene e a deficiência das instalações onde os refeitórios e cozinhas tinham lugar de destaque, pela negativa. E o fardamento que, numa demonstração de miséria nacional, era distribuído já usado com períodos de duração por vezes bastante curtos e que tinha que ser ajustado por troca entre interessados. Instalavam-se as pequenas rivalidades e até invejas de certa monta, às vezes de uma estupidez impressionante: ricos versus pobres, “copinhos de leite” versus “copofónicos”, “pintas de Lisboa” versus “alantejanos”, etc.. Quem não se lembra dos “meninos de Lisboa” que tinham a mania que sabiam tudo ou dos “balentáxos” da “Beira Ialta” que escondiam ao garrafão debaixo da cama e traziam a “churicha” embrulhada num guardanapo gorduroso e cortada com um canivete afiadíssimo, mas com gordura profundamente instalada, da base do cabo à ponta da lâmina?

Era o povo português no seu melhor e no seu mais significativo exemplo…

As mulheres não cumpriam serviço militar e, no fundo, os homens, na sua maior parte, se pudessem deixar de o cumprir, assim fariam. Todavia era algo a que dificilmente podiam fugir. Por isso, acabavam por exibir a sua passagem pelas fileiras como um emblema que os credenciava como homens mais completos. Não era o culto da "ideologia do marialvismo". Poderia ser um "rito de passagem" incentivado pela ideologia política e social do tempo.

Seguia-se a recruta onde o homem era confrontado com uns saberes esquisitos cuja finalidade não entendia. Desde as alocuções sobre o patriotismo, ao funcionamento das armas, o tiro dos diversos calibres, passando por uns exercícios físicos que o cansavam sem que percebesse para que serviam. Mas, a pouco-e-pouco, a integração ia-se dando e estabelecia-se até uma certa rivalidade com “os outros”, os civis, os do outro grupo. E vinha o juramento de bandeira, essencialmente uma festa com rancho melhorado, uns gritos, uma alocução patriótica (que se esquecia no minuto seguinte, mas da qual ficava uma ideia, ou mesmo duas, a juntar ao que se aprendera na Escola Primária) e mais exercícios de ginástica e outros que constituíam uma afirmação. De quê? Isso era outra questão, mas lá que era uma afirmação, disso não havia dúvidas. No final da vida de unidade, monótona e pouco atractiva, vinha a “peluda”. Saíam do quartel “à paisana” com a “consciência do dever cumprido”, dotados da valentia que o grupo sempre dá, impondo à contemplação da sociedade a vitória que acabavam de obter. No dia seguinte iniciavam o processo de esquecimento, confrontados com a vida todos os dias, mas, indiscutivelmente, com uma experiência que os marcava para o resto da vida, mesmo que não dissessem senão mal dela. E, às vezes até diziam bem…

Em muitos casos, o mito de que a tropa "forma homens" tinha confirmação. Os pais e a aldeia, ou seja, a família e a sociedade, notavam uma melhor inserção do homem que acabara de passar por aquela “etapa de desenvolvimento”. Embora durante o serviço militar, o homem tivesse de sobreviver autonomamente e com poucos meios, a emancipação, pelo menos para efeitos legais, chegava aos 21 anos, ou seja durante a sua passagem pelo quartel. Na etapa seguinte, vinha a constituição da família própria e a saída de casa com a correspondente independência garantidas pelo trabalho, mais ou menos afincado. Era um desiderato dos homens jovens daquele tempo.

Tudo ficava por aí e... as coisas iam andando.

E veio a “guerra”. Subitamente, o país, em geral, e os jovens, em especial, foram confrontados com a verdadeira “utilidade” das Forças Armadas. As sortes desapareceram. Agora “aproveitavam tudo”. A breve trecho, os quartéis passaram a turbinar cada vez mais aceleradamente na produção de militares, muitos dos quais não passavam de civis fardados (à pressa) que, depois de terem passado por tudo aquilo que os seus pais e irmãos mais velhos haviam passado, iam “aplicar a sua formação” no jogo de vida ou morte – que não conheciam senão dos filmes – e numa terra de que só tinham ouvido falar. No início, esta opção foi bem aceite por todos. Mais uma vez a “informação disponibilizada” e a História aprendida nos bancos da escola funcionaram como determinantes do comportamento cívico colectivo. Se uns aceitavam, pois a “Pátria estava em perigo”, outros não hesitavam e venderiam a sua parte de Angola (É nossa!) por meia garrafa de branco. Mas muitos partiram, e os que não foram permaneceram nas fileiras, sujeitos às suas regras de funcionamento, durante três anos, solução que, não envolvendo riscos de maior, deixava marcas mais profundas do que no passado.

O embarque era outro momento traumatizante e que marcava todos. Os que iam porque tendo tido a secreta esperança de que “comigo vai ser diferente”, viam que, afinal, tinham mesmo que ir; e os que ficavam porque não saberiam se voltavam a ver os que partiam e, se os voltassem a ver, se não seria com um bocado do corpo ou da mente a menos. Apesar de tudo, os que por cá ficavam engrenavam nos que fazeres diários e prosseguiam na vida. Depois eram as cartas, os aerogramas e o resto de todas as formas de comunicação possíveis ao tempo, mas que não transmitiam a experiência vivida. Tudo acabou por entrar na rotina com uns a irem e outros a virem e o país a habituar-se a este vai-e-vem.

E, para quem ia, chegava a parte mais marcante do serviço militar. Tudo era diferente nas terras onde se desembarcava. Umas mais ricas e progressivas; outras muito pobres e outras que quem chegava nem sequer sabia classificar, como as dos interiores, onde eram procuradas semelhanças com as gravuras dos tais livros escolares. E vinha uma enxurrada de situações vividas a um ritmo alucinante, durante dois anos. É absolutamente indescritível o número de situações e as suas características que viviam. A primeira operação, fosse ela uma coluna ou uma acção no final do IAO; a progressão no mato ou na estrada, à espera que os turras surgissem; o assalto a uma instalação ou a reacção a uma emboscada, uma mina, um ataque ao quartel com armas pesadas ou “ao arame”. E vinha a primeira baixa: um ferido ligeiro ou grave que, em sofrimento, era evacuado, ou um morto, a cujos últimos segundos assistiam ou que os olhava já de olhos fechados. A revolta que sentiam era enorme e a impossibilidade de sair “dali” tornava-a insuportável. Surgia a pergunta: o que é que estamos aqui a fazer?

Hoje pega-se nisto tudo, mete-se dentro do mesmo saco e chama-se-lhe “síndrome pós-traumática”. Não se faz nada, mas o tempo remedeia tudo. Mas naquela altura nem nome científico havia para o fluxo das vicissitudes pelas quais se passava.

Claro que havia coisas “giras”, situações cómicas, mas seria necessário ir para tão longe para nos rirmos uns dos outros? A entreajuda, a confraternização e a amizade fortaleciam-se, como normalmente sucede no meio da desgraça, quando o inimigo é comum. As condições de vida eram as que “podiam ser” e aquelas que se podiam ir granjeando na esperança que o tempo passasse, pois ninguém estava interessado em ir além da defesa da sobrevivência, embora houvesse que manter o inimigo em respeito e evitar que nos surpreendesse.

E as horas de incerteza, antes, durante e depois do que acontecia, fosse o que fosse? Um verdadeiro suplício durante o qual eram levantadas as mais diversas hipóteses.
Era um infinito de coisas que sucediam num dia-a-dia sem que se pudesse fazer algo para controlar o que acontecia.

E, no regresso vinham velhos. Muito velhos, às vezes. Não em idade, pois que essa era a mesma, mas de espírito. Algo desenraizados, aprendiam a questionar qual era efectivamente o seu papel e já não ali, mas na vida e na relação com os outros. Concluíam da relatividade da vida e da facilidade com que ela se ia, sem que pudessem fazer nada para o evitar. Podiam ter momentos de nostalgia ao contemplar a beleza natural, que sempre existe nas Áfricas e contactavam com povos que, vivendo no “mesmo país”, eram tão diferentes. Se estivessem atentos aprenderiam, como sempre acontece, mas, se quisessem aprender, a guerra não fazia falta nenhuma e nem todos tinham em si um antropólogo amador…

A soma, não necessariamente algébrica, de todas as amolgadelas que o destino lhes tinha imposto era o seu principal enriquecimento e é daí que, quer se queira, quer não, tiravam um amadurecimento que fazia dos que passaram por esta experiência mais capazes de, numa rápida apreciação, determinarem o que é mais importante na vida que daí em diante iam levar.

Depois de tanta provação ficavam “mais homens”? Certamente, na medida em que ficavam a conhecer melhor a natureza humana no seu melhor e no seu pior e estavam com maior apetência para a prática do bem, da paz e da solidariedade. Pena que a aprendizagem tivesse sido tão dura. Há quem diga que os maiores pacifistas são os que passaram por uma guerra. Nem sempre será assim, infelizmente, mas creio que no nosso caso será.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de setembro de 2015 Guiné 63/74 - P15104: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (15): Afinal houve mesmo guerra?

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15104: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (15): Afinal houve mesmo guerra?

 

1. Em mensagem do dia 5 de Setembro de 2015, o nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos o artigo que se segue para incluir na sua série "A Minha Guerra a Petróleo":



A Minha Guerra a Petróleo (15)

Afinal houve mesmo guerra?

Introdução

Com este texto pretende-se realizar uma abordagem, de um outro ponto de vista, aos acontecimentos que marcaram, porventura do modo mais decisivo, a vivência no nosso país, durante os anos de 1961 a 1974, vulgarmente designados por Guerra “do Ultramar”, “Colonial” ou “de África”.

Dadas as características que a “Guerra” veio a ter – essencialmente uma luta, através das FA portuguesas, entre uma parte da população e as autoridades – a maneira como os africanos nados e criados naqueles territórios se relacionaram com os europeus, chegados da potência colonizante, ao longo de todo o processo de colonização, será a grande determinante do sucedido. Efectivamente, um relacionamento tolerante e amistoso entre quem chegava e quem já estava teria, muito provavelmente, determinado uma interpenetração entre civilizações que, quinhentos anos após a descoberta, daria às sociedades das ex-colónias um fácies diferente daquele que vieram a ter. Não foi esta a regra em quase todas as partes do mundo. Por norma, quem chegava sabia ao que ia, tinha objectivos concretos a atingir e partia da hipótese de que a superioridade tecnológica e até ideológica de que dispunha lhe concedia larga vantagem e direitos.

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Linha Gerais da Evolução do Conflito

Prossigamos na análise, começando por realçar a desproporção entre os mais de quinhentos anos que durou a constituição do império (desde a chegada dos navegadores até à insurreição que terminou com a independência) e a escassez de documentos de toda a espécie, que permitiriam, para cada território, a elaboração da marcha histórica, mesmo que apenas na definição das grandes linhas legislativas e administrativas. Seria importantíssimo ter uma visão, mesmo vaga, acerca do modo como, ao longo dos tempos, se terá processado a vida diária em cada território. Por motivos óbvios não é possível obter esta informação por extrapolação relativamente ao modo de vida na metrópole, este sim relativamente bem conhecido. Podemos até, com bastante legitimidade, tomar a escassez de documentação como confirmação de que as possessões africanas viveram, pelo menos até aos anos vinte do século passado, num certo grau de abandono “descentralizado”. Aquele abandono seria determinado por três causas principais: as comunicações difíceis e lentas1 (que impediriam que a administração central fizesse sentir a sua acção e obrigavam a que o governo fosse localmente exercido de forma pouco controlada), o clima (sempre tido como insalubre e doentio, impróprio para a fixação dos brancos) e, durante vários séculos, uma falta de finalidade na posse dos territórios de além-mar. Com efeito, não se vislumbrou, durante séculos, nada mais útil a obter daquelas terras do que a mão-de-obra escrava, já que a maior parte dos produtos que lá se pudessem obter ou para lá se pudessem enviar não chegariam em condições de utilização.

Ainda no capítulo da documentação, ou da falta dela, poderemos recolher elementos meramente indicativos numa publicação2: Livro das Plantas de todas as Fortalezas, cidades e Povoações da Índia Oriental, de António Bocarro, datável de 1634/35. Nele encontramos 48 plantas, entre Sofala (Moçambique) e Solor (Timor), que apontam claramente para uma tentativa de domínio do mar pela ocupação de posições com elevado valor táctico-estratégico e nunca com uma ocupação, em profundidade, dos territórios onde os portugueses desembarcaram. Desta forma de ocupação, ou melhor, desta disseminação chegaram aos nossos dias as três possessões do Estado da Índia – três vértices de um triângulo marítimo de dimensões muito consideráveis – a cidade de Macau e a meia-ilha Leste de Timor, o que atesta que se terá dado “um passo maior do que a perna permitia”. Outro tanto terá sucedido com a tentativa de ocupação da costa Leste da África do Norte que se saldou por uma impossibilidade e atingiu formas de um dramatismo doloroso, para além de um desperdício de meios de toda a espécie. É sabido que a partir da segunda metade do Séc. XIX a prioridade passou a ser a África, já que o Brasil tinha tido o destino habitual das colónias rebeldes naqueles tempos. Decorreu pouco mais de um ano entre a saída do D. João VI daquela colónia e o Grito do Ipiranga. A Coroa nem esboçou um gesto contra a independência declarada por um príncipe português…nem tinha forças para o fazer.

O ideário que durante os últimos cem anos tem vindo a ser apresentado pelas instâncias do poder e divulgado a quem frequentou os diferentes graus de ensino não ajuda a um conhecimento objectivo da realidade vivida nas fracções do império e do modo como se relacionaram com a administração central, em Lisboa. Tudo é apresentado como se os territórios em causa não tivessem passado e houvesse uma relação de posse (abstracta, mas insistentemente apregoada, diga-se) entre o próprio povo metropolitano e aqueles territórios. Dá assim a impressão de que a situação encontrada foi simples consequência da “dilatação da Fé e do Império” e dos “novos mundos ao mundo” que os portugueses andaram a dar…

Surpreendentemente, nos mesmos territórios onde a “Guerra” teve lugar, as historiografias monárquica e republicana registam um outro conflito insurreccional de características muito semelhantes, ao qual foi atribuída a designação de “Campanhas de África” ou “Campanhas de Pacificação”. Em linhas gerais podemos dizer que se tratou de um conflito intermitente, em alguns momentos fomentado e apoiado do exterior e repetidamente “encerrado”, ou dado oficialmente como tal, de um modo ao qual não podemos deixar de chamar, no mínimo, pouco claro. Esta situação levanta algumas questões e abre perspectivas de outros estudos. Na realidade, o uso do plural (Campanhas) comprova que houve várias (e nos três territórios) e, se foram “de Pacificação”, conviria determinar porque se realizaram, sendo certo que só é pacificado quem se subleva e só se revolta quem tem motivos (fortes) e condições (favoráveis) para tal. Teríamos, por consequência, umas “Primeiras Campanhas” e umas “Segundas Campanhas” distanciadas de um intervalo de tempo que, em alguns casos, nem sequer chegou a cinquenta anos. Dir-se-ia que, ao longo de pouco menos de um século, a agitação social naqueles territórios nunca deixou de estar presente, uma vez que o Poder teve repetidamente de sufocar focos de contestação (mais ou menos intensos) e tentar restabelecer a sua autoridade. Isto para não falarmos das sublevações que a historiografia "perdeu” e cuja pista, hoje, é difícil de seguir.

Concentremo-nos, agora, na análise genérica do modo como as populações das colónias se relacionaram com os europeus. Tudo começou com um contacto, por vezes choque, entre civilizações de diferentes níveis de evolução tecnológica e não só, no qual os europeus tentaram a exploração dos recursos locais – principalmente humanos – e os autóctones que, após um momento de surpresa, procuraram resistir-lhes.

A civilização que chegava, não só era mais evoluída tecnologicamente, mas também, detentora de uma religião que pretenderia expandir e de concepções do mundo e modelos filosóficos, com os quais os das civilizações locais pareciam não poder competir. Acresce que a religião praticada pelos europeus era tida pelos próprios como única e perfeita e à qual, por consequência, todos deveriam converter-se. Tudo indicava, portanto, que as civilizações ditas inferiores seriam rapidamente “subjugadas” e assimilariam as novas regras que regiam as civilizações ditas superiores, cujos delegados acabavam de chegar. Conhecemos genericamente a composição das expedições que sucessivamente partiam de Lisboa, com destino às colónias, e tal é suficiente para confirmarmos que estes delegados ou agentes não seriam os mais representativos da civilização que chegava e os mais aptos para fomentar um bom contacto com a civilização residente.

Contudo, as civilizações africanas não o podendo fazer pela força das armas, concentraram a resistência em três grandes áreas: a língua, a religião e os costumes, em última análise, os três principais pilares definidores de qualquer civilização.

A língua portuguesa que penetrou facilmente no Brasil, devido à fuga e extermínio dos índios e ao grande número de “imigrantes” oriundos de Portugal, nunca foi nem medianamente aceite pelos habitantes das outras regiões que se tentavam colonizar, na África ou na Ásia. Embora hoje o português seja considerado a língua oficial de todas as ex-colónias, há nelas largas áreas onde a população não o fala, mantendo as suas línguas tradicionais. A atestá-lo podemos citar dois exemplos. Ainda hoje o português dificilmente rivaliza com o tétum em Timor e, na Guiné, as populações rurais e muitas citadinas falam os seus dialectos ancestrais, alguns sem expressão escrita ou, como no caso dos fulas e mandingas, exprimem-se num dialecto do árabe. O crioulo sobrepõe-se ao português, sempre que a diferença entre dialectos impede uma comunicação satisfatória. Cabe aqui referir que já à data da independência era assim, apesar dos esforços de alfabetização levados a cabo pelas autoridades, o que confirma, em absoluto, a recusa das populações autóctones em empregar a língua portuguesa.

No fundo, estamos perante algo semelhante à adopção das fronteiras da Conferência de Berlim, durante a implantação das independências africanas. Neste caso, foi a língua que serviu para marcar uma diferença em relação aos povos circundantes. Com efeito, se a definição das fronteiras retalhou etnias e regiões naturais, com os resultados que se conhecem e que dificilmente serão colmatados, a médio prazo, a adopção da língua da potência descolonizante procurou consolidar a separação entre países recém-independentes e dotá-los de um idioma que lhes pudesse dar visibilidade e facilitasse o relacionamento internacional. Não havia, por isso, outra solução que permitisse dar um passo na aglutinação do país e projectá-lo na cena internacional.

A religião foi outra área em que as populações das colónias resistiram à penetração dos europeus. Em alguns casos, como na Índia, em Moçambique ou na Guiné sabemos que o cristianismo teve de competir com religiões muito evoluídas e em expansão ou já fortemente implantadas. Estão neste caso o budismo, o induísmo e o islamismo, mas outras formas de religião ancestrais, porventura menos evoluídas do ponto de vista filosófico e doutrinário, também não desapareceram, ficando o cristianismo, nas suas principais variantes, difundido de um modo muito modesto para quem se propunha converter populações em massa, numa gigantesca tarefa apostólica. Há a referir, todavia, que só Portugal assumiu esta tarefa e, mesmo assim veio a descartá-la algum tempo depois.

É difícil dizer se as religiões já implantadas é que não permitiram a difusão do cristianismo, por estarem mais adequadas às necessidades espirituais e hábitos de vida das populações que as abraçaram, ou se foi o abraçar daquelas religiões que determinou a estrutura social que os portugueses encontraram, mas não restam dúvidas de que as conversões ao cristianismo poderiam ter sido muito mais numerosas.

No caso das religiões animistas, aparentemente frágeis de um ponto de vista a que podemos chamar doutrinário, filosófico ou teológico, verificou-se uma situação de encobrimento das práticas por parte das populações e uma fuga à emulação com a doutrina e filosofia das religiões praticadas pelos europeus. No fundo, não tiveram sequer necessidade de simular práticas religiosas que não eram as suas, pois, a dado momento a expansão das religiões europeias deixou de ser uma prioridade para os colonizadores (Séc. XVIII e seguintes). O número de igrejas abandonadas e em ruina acentuada é hoje prova de que a religião que os portugueses trouxeram não vingou num terreno onde outras já existiam.

Por fim, uma terceira área de resistência que se manifestou na recusa em abandonar muitas práticas e hábitos, alguns bem antigos, para adoptar os correspondentes europeus. É certo que os europeus procuraram não divulgar muitas das suas práticas e técnicas, o que lhes permitia manter a sua superioridade tecnológica e o correspondente domínio sobre as populações locais mas, no que respeita aos usos e costumes, estas preferiram sempre as práticas antigas às dos europeus. Obviamente que houve casos em que as práticas e os hábitos trazidos pelos colonizadores foram aceites pelos autóctones, como sucedeu nas relativas à saúde, mas é ainda hoje, perfeitamente perceptível a semelhança entre muitas aldeias do interior das ex-colónias portuguesas e a reconstituição proposta pela ciência para as aldeias do neolítico. É paradigmático o sucedido hoje na Guiné onde há claras dificuldades, por parte das populações e autoridades, especialmente rurais, em utilizar edifícios administrativos, infra-estruturas logísticas, viárias e portuárias, deixadas pelos portugueses, para não falar do abandono completo de algumas localidades que, no passado, tiveram importância considerável.

Desta longa resistência, a que poderemos chamar passiva, resulta que deveremos aceitar que o chamado “passado comum” que, por vezes, se evoca para justificar a necessidade de se estabelecer uma ligação sólida entre os novos países e a potência descolonizante, foi algo que não foi, de todo, amistoso e, se bem virmos, é elemento aglutinador de qualidade duvidosa. Em última análise, estamos a “varrer para baixo do capacho” uma série de motivos e razões de queixa que até se podem perdoar, mas que não se esquecem. Há mesmo, ao longo de toda a colonização, episódios e situações que envergonham uns povos e revoltam os outros. A História não se esquece, ignora-se ou relembra-se, sempre que se julgar necessário ou oportuno. As tensões foram-se avolumando lentamente e a atestá-lo temos a revolta de uma parte da população das colónias contra as autoridades de direito (segundo uns) ou de facto (segundo outros). A História mostra que a projecção de força contra colónias rebeldes não é boa solução, mesmo que tal possa ser feito com grande violência e riqueza de meios, e terminou, por vezes a curto prazo, sempre com a derrota da potência colonizante. E tanto assim é, que houve países que preferiram conceder a independência às suas colónias, logo que nestas se perfilou pelo menos uma força política que a exigisse, renunciando totalmente ao uso da força contra essa ou essas forças. Tal foi caso da Espanha e da Bélgica.

A solução adoptada por Portugal foi única e há quem diga que nenhum outro país fez melhor ou, pelo menos resistiu tanto tempo, considerando os meios disponíveis ou aplicados e as condições políticas nacionais (principalmente) e internacionais. As autoridades portuguesas procuraram, durante 13 anos, sufocar uma revolta que coroava um descontentamento velho e só poderiam queixar-se de si próprias. Os apoios materiais que conseguiam obter não foram suficientes e revelaram-se dispendiosos e, ao fim de algum tempo, o próprio potencial humano, especialmente oriundo da metrópole, começou a revelar-se insuficiente para o esforço exigido.

Não foi por falta de aviso que a revolta surgiu “surpreendendo” as autoridades. Vários teóricos, mais ou menos próximos do regime político em vigor, a tinham previsto – Henrique Galvão e Hermes Araújo de Oliveira, entre outros – e tinham ficado mal vistos, como mensageiros da desgraça. As suas opiniões foram sufocadas, mas o pior é que não tenham sido tidas em conta. Mas, mesmo assim, a marcha dos acontecimentos políticos em África no final dos anos 50 não poderia augurar nada de tranquilizador para quem fosse inteligente, apesar de defensor das teses ditas colonialistas e imperialistas.

A posição política dos países limítrofes manifestou-se num apoio variado e, por vezes, muito intenso aos partidos revoltosos, sem que, contudo, o governo português, alguma vez, tivesse usado esse apoio como casus belli para os atacar, no terreno. O apoio militante surgiu mesmo de países, como a Suécia, que não praticando um apoio bélico foi dos primeiros países a reconhecer a independência da Guiné, embora os seus interesses diplomáticos e económicos andassem bem longe daquela área. Mesmo a reacção a nível diplomático foi pouco mais do que tímida, talvez porque o governo soubesse bem o ridículo a que se prestaria se tentasse uma atitude mais drástica. O resultado da invasão da Índia e as condições em que se processou deveriam ter constituído um outro sinal premonitório do que se iria passar. Mas não foi assim e o governo optou por desprezar a situação concrecta em que daí em diante teria de actuar. Porém, se a repressão resolvia o problema a nível interno, na cena internacional a situação só piorava.

O guerrilheiro é um cidadão armado, lutando contra um poder constituído. Reivindica para si a designação de resistente, mas não escapa à de terrorista no conceito das autoridades a que se opõe. No caso de Portugal, os guerrilheiros receberam outras designações, por vezes eufemísticas, como tresloucados, ou com a vaga conotação política de “agentes do comunismo internacional”. Numa manobra propagandística que veio a revelar-se contraproducente, o governo começou a usar o vocábulo “guerra” para designar as operações anti-guerrilha que tinham lugar nos três territórios onde a guerrilha tinha efectivas condições para progredir. Esta definição inexacta acabou por criar dificuldades – externas e internas – à política praticada. No exterior, o governo considerava a situação como um problema interno não sendo tolerados reparos ou censuras de qualquer espécie e vindos de quem viessem, enquanto no interior, o fenómeno era apresentado como uma guerra que era necessário ganhar, por múltiplos e variados motivos que, com o tempo, começaram a carecer de significado. Alguns foram hilariantes como a necessidade de realizar a guerra para dar tempo à política para actuar.

De qualquer modo os guerrilheiros não deixavam de ser portugueses – maus portugueses – que deveriam merecer punição severa, como seria óbvio. Contudo, sempre que eram capturados não eram julgados, mesmo que tivessem importantes funções na guerrilha. Tal sucedeu apenas num caso e com um estrangeiro, o capitão cubano Peralta. Carecerá de explicação que se tivesse dado aos guerrilheiros, cidadãos portugueses, embora prevaricadores, um vago estatuto de prisioneiro de guerra e a um estrangeiro que era seu apoiante o de um violador da lei nacional.
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Notas:
1 - Como simples exemplo da dificuldade de comunicações com a Índia, no caso vertente, veja-se o tempo que decorreu entre a ordem de Filipe III (datada de finais de 1632) e a dedicatória de António Bocarro (17 de Fevereiro de 1635) exarada no Livro das Plantas de todas as Fortalezas, cidades e Povoações da Índia Oriental, produzida sob sua direcção, com plantas de Pedro Barreto de Resende. In. estudo sobre a referida obra realizado por Isabel Cid (pág. 13). Basicamente, este conjunto de documentos seria um relatório determinado pela instância máxima da governação. Poderemos imaginar a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de produção de outros documentos de controlo a níveis mais baixos.
2 - Cita-se apenas uma publicação o Livro das Plantas de todas as Fortalezas, cidades e Povoações da Índia Oriental, de António Bocarro, datável de 1634/35 Ed. da INCM, ISBN-972-27-0444-3, Nov. de 1992, analisada e comentada por Isabel Cid, a qual deveria ser apresentada à consideração Real, mas outras há como o Lyvro de Plantaforma das Fortalezas da India, da Biblioteca da Fortaleza de S. Julião da Barra, atribuível a Manuel Godinho Herédia (ou Erédia).

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Conclusões

Apesar de as operações anti-guerrilha que se desenrolaram, entre 1961 e 1974, na Guiné, em Angola e em Moçambique, terem atingido graus de violência muito elevados, não poderemos falar de uma guerra no sentido habitual ou clássico do termo. Tratava-se de uma guerra subversiva o que, por definição, pressupõe a existência dos dois beligerantes seguintes: as autoridades constituídas e uma parte da população. Nesta situação, esta é uma parte relativamente pouco significativa – em número, que não em actividade – do total da população. Não havendo memória de um levantamento total da população de um território contra um invasor ou ocupante, teremos de considerar a existência de uma parte da população – mais ou menos considerável – que colabora com as autoridades, enquanto a maior parte, espera para ver, assumindo numa atitude passiva, visando a defesa do seu padrão habitual de vida. Normalmente sofre muito com violência, mas não deixa rasto histórico muito acentuado. A posse ideológica da população é, portanto, o grande objectivo a atingir, sendo que, estabelecida a contestação, a reversão da situação é uma tarefa lenta a decorrer durante uma ou duas gerações. No caso de Portugal – e talvez, no dos outros seis países que ocuparam a África – nunca poderemos falar de uma aceitação por parte das populações autóctones dos hábitos, religiões e língua dos colonizadores. Estes assumiram uma atitude de sobranceria que atingiu a violência e a escravatura, visando a imposição dos seus valores. A resposta foi a recusa e a resistência passiva que se manteve até aos nossos dias. Esta resistência determinou uma agitação subterrânea que nunca foi extirpada e que se manifestou sempre que as condições o permitiram. Sempre que a repressão se tornou insuportável a revolta estalou, habitualmente afogada em sangue, o que não resolveu o problema, se não o agudizou. Desta política de “tapar o Sol com a peneira”, fingindo que não se passava nada e amaldiçoando os mensageiros das más notícias, resultou uma mistura explosiva que, logo que as condições (especialmente internacionais) o permitiram, determinou o detonar de um fenómeno sociológico em que o racismo – essencialmente uma questão cultural – não deixou de estar subjacente.

A resposta das autoridades sediadas na metrópole manifestou-se através da projecção de força contra as populações rebeldes, materializada pelas forças armadas à custa do potencial humano da metrópole, numa primeira e longa fase. Depois, talvez porque começou a ser perceptível um desenlace desfavorável, procuraram as autoridades realizar a “africanização” da guerra. Esta reacção já é, em si mesma, a confissão pública derrota. Com efeito, se a sintonia entre o sentir das populações, genericamente consideradas, e as autoridades fosse um facto incontroverso, a população apoiante destas teria, desde logo, ajudado a esmagar a contestação. Trata-se, como se sabe, da manobra comum ao ocupante, invasor ou dominador de um território, quando confirma que não consegue prosseguir nos seus intentos. Este novo patamar da guerra subversiva tem frequentemente custos elevados para as populações de um dado território após a saída do exército ocupante. Os EUA puseram esta manobra repetidamente em prática, por vezes de forma muito dramática e com os resultados perversos que são conhecidos. De qualquer modo é a população que volta a estar em jogo o que continua a remeter para o campo da sociologia.

Ainda no caso português, a contradição insanável criada pelo facto de as autoridades terem duas leituras para o que estava a acontecer, consoante falassem ou agissem no exterior ou no interior, cria uma situação insustentável, em ambos os campos. Se, no primeiro, o isolamento e o abandono, sem hostilidade clara, pela generalidade das nações, como a situação internacional aconselhava, não constituía problema de maior para o governo, o mesmo não se podia dizer da grande contradição que se avolumava na população metropolitana. É provável que as populações da Angola e Moçambique nunca tivessem vislumbrado o fim do fenómeno. Na essência, poderemos considerar que eram dois territórios de grandes dimensões, sendo que em ambos, ele decorria apenas em cerca de metade da área. Que fariam aquelas populações se alguma vez tivessem equacionado o modo como a “guerra” poderia acabar? E contudo, não faltavam exemplos por toda a África……

Em resumo, poderemos afirmar que a Guerra “do Ultramar”, “Colonial” ou “de África”, foi essencialmente um fenómeno sociológico. Decorreu do modo como a colonização foi feita e do choque, em diversos planos, de duas civilizações e atingiu graus de violência e contra-violência elevados que conduziram a um desfecho senão previsível, pelo menos altamente provável desde o início e, se se lutava pela posse benévola da população e não pela posse do terreno é a sociologia que terá de fazer a última interpretação deste fenómeno.

TZ
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14794: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (14): Este Feminismo... é "muinta" feio!

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14794: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (14): Este Feminismo... é "muinta" feio!

1. Mensagem do nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), com data de 16 de Junho de 2015:

Aqui vai uma tentativa de participação com um texto que me foi sugerido num convívio a que fui.

Um Ab.
TZ


A MINHA GUERRA A PETRÓLEO

14 - Este Feminismo é muinta Feio!

Sabemos por experiência da nossa vida que as chamadas causas fracturantes, entre as quais o feminismo se encontra, começam por se afirmar de modo exuberante e muito contestatário, agressivo até. No fundo, trata-se de uma afirmação da subversão. Naquele tempo, aprendemos a atribuir a esta palavra uma carga negativa, quando ela pode ser aplicada a diversos sectores da vida como, por exemplo, às artes.

As artes são frequentemente sacudidas por um grupo de artistas que concluem que a sua arte não está a evoluir e se limita a repetir indefinidamente os mesmos procedimentos, a apresentar o mesmo tipo de obras, tanto que, às vezes até dá a impressão de que se entrou a copiar, reduzindo a inovação a pormenores.

Nessa altura, o tal grupo resolve “virar a mesa” e tornar-se notado pela agressividade com que faz a contestação às práticas artísticas até aí vigentes. Não há outra maneira de o fazer. Só se fazem modificações profundas… modificando profundamente.

São então contestadas as regras e as normas que até aí se seguiam, essencialmente perguntando porque é que se faz assim e se não se poderá fazer de outro modo. E, normalmente a resposta dos conservadores é pouco satisfatória, quando não é tão absurda como “sempre foi assim! Mudar para quê?

Dei toda esta volta bastante larga para vos recordar que o feminismo que conhecemos nos anos setenta está hoje ultrapassado, mas que quando surgiu teve de o fazer de forma ruidosa e contestatária, pondo em causa as regras do funcionamento da sociedade até aí tidas como imutáveis. Hoje, aceitamos e defendemos, todos, certos princípios, procedimentos e valores que, naquela altura, tínhamos como ridículos e destituídos de senso.

Nós próprios assimilámos as novas normas e, hoje, achamo-las normais e aceitamo-las como se não houvesse outras.

Mas é frequente que a tal corrente ou grupo contestatário vá para além do admissível resvalando rapidamente para excessos que não estavam de todo no espírito dos contestários que deram o seu melhor, colidindo ruidosamente com a “ordem estabelecida” e enfrentando corajosamente os conservadores, frequentemente retrógrados e ansiosos de que nada mude.

Isto vem a propósito do que tem sucedido ultimamente nos convívios de ex-combatentes a que tenho ido. Tendo pertencido a quatro unidades de nível Companhia tenho sempre que fazer cinco saídas - uma com o blog - para os convívios anuais, aos quais, como é hoje frequente e bem, comparecem também esposas, companheiras, irmãs, em suma: raparigas da nossa geração.

Pois ultimamente em dois desses convívios circulou e impôs-se rapidamente a “novidade”: senhoras para um grupo de mesas e homens para o outro. Nem queria acreditar no regresso machismo, mas de sinal contrário. Vocês lembram-se de que nas festas antigas, as mulheres iam para lado falar “lá das coisas delas” e os machões latinos iam para outro falar dos “seus assuntos”, normalmente “gajas” e aventuras similares não incluídas nos 80% da votação do último inquérito do Luís Graça. E não houve maneira de as convencer. Depois, perguntei as razões para este retrocesso e aí é que eu fiquei cheio de dores no espírito. Eram elas que achavam desinteressantes “aquelas coisas deles” (muitas vezes repetidas), aquela violência toda que não faz sentido nenhum e que “já aconteceu há tanto tempo”. Assim ficavam no aconchego da sua conversinha sobre “cá as nossas coisas delas”. Ainda me disseram que, alguns, no regresso a casa, vinham enervados e perturbados, o que justificaria, por si só uma maior atenção (digo eu…). Sentiam-se mal em contacto com os homens que falavam alto, diziam asneiras e davam palmadas uns nos outros. Alguns riam-se e outros… até choravam. Uma balbúrdia! Uma verdadeira desgraça!

Isto não pode acontecer no meu país!

Todos e todas somos portugueses (talvez infelizmente) e a solidariedade entre homens e mulheres é um valor que já chegámos à conclusão de que devemos cultivar, especialmente nos da nossa geração. Claro que algumas só ouviram falar “daquilo” depois de casadas, mas outras, através das cartas, sabiam bem o que por lá sucedia. E às que só souberam depois de namoradas e casadas ocorre perguntar: em que país é que viveram durante aqueles anos? Como é possível que tudo lhes tenha passado ao lado? É capaz de ser uma questão cultural, digo eu que sou mauzinho…

Já tenho pensado que se tivéssemos estado presos durante dois anos, longe dos nossos e delas tivéssemos mais aceitação. É que o ambiente concentracionário é mais compreensível, por estar mais visível. E aquelas fotos dos “quartéis” não estimularão a imaginação sobre a maneira como ali se vivia? E a alimentação repetitiva e confeccionada como podia ser? E as horas de sol e de chuva, com o suor a escorrer em bagas grossas? E o paludismo, as matacanhas e outras bichezas que o National Geogrphic ali regista?

Como viram não falei da guerra em si. Essa sim é que é difícil de imaginar.

Não falei das minas, das emboscadas, das flagelações do regresso das colunas ou das patrulhas com um camarada em padiola ou às costas. Isto seria mais difícil de imaginar.

Donde virá esta repulsa que se instalou em algumas das nossas companheiras ao ponto de se dedicarem a banalidades?

Mas o pior é que hoje, nos nossos convívios falamos da “guerra”, pois sim, mas certamente, já há muito que outros assuntos começaram a ser falados: os filhos, os netos, a política (porque não?), da saúde ou falta dela e tantos outros relacionados com o funcionamento do país que nos disseram que íamos servir e defender (de quê?) e no qual, no fim de tudo, nos revemos. Talvez porque não temos outro…

Peço, portanto, aos organizadores dos convívios que evitem esta prática sexista - mulheres para um lado e homens para o outro - que não é digna de cidadãos de corpo inteiro num país civilizado, que nós teimamos em tentar ser. Às mulheres peço que não esqueçam o seu papel de companheiras - uma conquista positiva do feminismo - iguais em direitos, mas também em deveres, que passam por aceitar o outro tal como a vida o foi fazendo e muito mais agora quando a idade pesa. Acima de tudo somos companheiros e amigos uns dos/as outros/as e “Cidadões” e Cidadonas(?) que não devem aceitar o retrocesso civilizacional que representa a separação fundamentada no sexo. Senão… vamos arrepender-nos. Mas já começamos a estar habituados.

Mem-Martins, 16 de Junho de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14572: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (13): Uma da nossa Intendência

terça-feira, 5 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14572: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (13): Uma da nossa Intendência

 1. Em mensagem do dia 28 de Abril de 2015, o nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos mais um texto para publicarmos na sua série "A minha guerra a petróleo:



A MINHA GUERRA A PETRÓLEO

13 - Uma da Nossa Intendência

Vou contar esta história tal como me foi contada no longínquo ano de 1968. Não tive possibilidade de verificar se foi assim que tudo se passou, embora tivesse sido contemporâneo, em Cacine, da CART 1659. Por isso corro o risco de exagerar um ou outro pormenor ou, talvez pelo contrário, de deixar para trás algo que foi importante.

A CArt ocupava Gadamael e era comandada pelo Cap. Mil.º Art.ª Mansilha, advogado de profissão, mas que, pelas vicissitudes a tantos outros sucedidas, ali fora parar. Nesse tempo a Intendência fornecia vinho às unidades em dois tipos de embalagens: barris de 50 litros ou garrafões de vidro – transparentes, para o branco, e verdes-escuros, para o tinto – com 10 litros de capacidade, rolhados com uma tampa de plástico, e protegidos por uma espécie de grandes aparas de madeira muito fina e ligadas por arames. Depois de vazios, estes invólucros não eram devolvidos e, por isso, eram frequentemente usados em funções decorativas. Os barris, desmontados e devidamente serradas as suas aduelas, serviam para a construção de pequenas mesas, cadeiras (por vezes de braços), bancos e outros “móveis” que embelezavam e tornavam mais cómodas as “salas de convívio”, “quartos”, “refeitórios”, etc.. Aos garrafões estava consignado um papel mais decorativo, especialmente aos transparentes que, depois de pintados por dentro, serviam de jarrões com pinturas “modernistas”. Quer uns, quer outros, podiam depois receber na estreita boca, folhas de palmeira ou outros arranjos de flores secas e constituir motivos de decoração. A técnica de pintura era, como é de calcular improvisadamente engenhosa. As tintas eram cuidadosamente introduzidas na boca do garrafão e ficavam a escorrer lentamente na parede interior deste e, consoante a posição em que o garrafão fosse posto, surgia uma decoração a várias cores e com formatos que o “pintor” não controlava, mas que lhe permitia obter um efeito muito original.

Ao que parece o vinho de garrafão era debitado a um preço mais elevado que o do barril, mas tenho para mim que a qualidade de ambos os produtos se equivalia e não era possível detectar pelo paladar a embalagem de origem do néctar em apreço.
Por razões que não consegui determinar a CArt 1659 não consumia vinho de barril.

Era frequente surgirem pequenas falcatruas com o vinho durante o transporte, muitas vezes só detectáveis já no momento da distribuição. Quem observasse o interior de um pipo podia, às vezes encontrar pequenos pauzitos, espécie de palitos, cravados em locais “estratégicos” entre as aduelas dos barris que tinham permitido a saída de algum líquido para uma ou outra garganta mais sequiosa.

A violação dos garrafões era mais difícil. Só pela cápsula de plástico que cobria a rolha e uma boa parte do gargalo. Era, porém possível abri-lo, consumi-lo na totalidade e voltar a rolhá-lo com engenho e entregá-lo como genuíno chá de parreira. Era uma técnica mais difícil de aplicar e daí talvez a opção de fornecimento da unidade de Gadamael/Ganturé.

Porém, um dia aconteceu o impensável. Alguns garrafões apareceram rigorosamente atestados… de água. Que fazer neste caso? Havia a possibilidade de se realizar um auto que já não seria de recepção e que, portanto, a Intendência dificilmente aprovaria. No fundo, era a palavra da Unidade contra a do Órgão Logístico distribuidor, cuja palavra, à partida, faria fé.

Mas a CArt não terá seguido apenas esse caminho.
O capitão Mansilha ordenou o envio dos garrafões com a água para a delegação do Laboratório Militar, em Bissau, pedindo uma análise ao respectivo conteúdo. O laboratório, não sabendo a origem do produto remetido, deverá ter pensado que se tratava de água proveniente de alguma fonte ou poço situado na zona de acção da companhia e, pouco tempo depois, respondeu que se tratava de água imprópria para consumo e com matérias orgânicas pútridas em suspensão.

O capitão Mansilha escrevia bem, ou não fosse advogado, e redigiu uma nota a reclamar junto da Intendência contra o fornecimento que esta fizera, nomeadamente informando que o estômago do seu pessoal não era propriamente um tubo de ensaio.
Claro que a “insolência” teve resposta através da ameaça de que, se se voltasse a repetir uma situação idêntica, seria dado conhecimento superior, para o correspondente procedimento disciplinar.

De novo a clarividência e a argúcia do advogado brilhou com uma resposta que, em linhas gerais, podemos sintetizar assim:
- Não há necessidade de incómodo para apresentação do assunto a instâncias superiores pois, da próxima vez – se tal se verificar – será a própria companhia que o fará.

Volto a dizer que não tenho qualquer elemento que me prove que as coisas se passaram exactamente assim. Todavia, algo de parecido terá sucedido, uma vez que o “Jornal da Caserna” publicação satírica que se publica em todas as guerras e mais ainda nas “guerras a petróleo”, registou o evento, o que dá um certo fundamento à notícia que nunca terá chegado a ser uma informação de boa classificação.

Mem-Martins 28 de Abril de 2015
JAPC
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13493: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (12): Como vejo o 10 de Agosto de 1972

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13493: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (12): Como vejo o 10 de Agosto de 1972

1. Mensagem do nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), com data de 12 de Agosto de 2014:

Olá Camarada
Pareceu-me grande demais para inserir como comentário.
Por isso, segue em anexo "A Minha Guerra a Petróleo n.º 12".

Um Ab.
António J. P. Costa



A MINHA GUERRA A PETRÓLEO

12 - Como vejo o 10 de Agosto de 1972 

Ficámos ali junto à margem do Geba, no tarrafo, e reagrupámo-nos. Ainda vimos o sintex à deriva com alguns homens a bordo. Fiquei logo a saber que faltavam três camaradas e não os vendo por ali, decidi que iríamos em direcção a Nhabijões, cujos telhados de zinco brilhavam ao Sol. A progressão foi difícil, porque a bolanha, entre o rio e a tabanca, estava muito alagada. Além disso, o Sol estava muito forte – já passava das 11 da manhã – e o esforço de quem tinha andado dentro de água e agora progredia com o equipamento e o uniforme molhados, era redobrado.

Perto da tabanca, as crianças que por ali brincavam, fugiram quando nos viram. Não sei se de medo se para irem informar a guarnição da tabanca. Fomos recebidos pelo alferes do Reordenamenmto, cujo nome não fixei e fomos tomar duche vestidos, tal era a quantidade de lama que levávamos em cima.


Foto © de Jorge Araújo

Depois dirigimo-nos para a estrada onde fomos recolhidos por uma coluna da CCaç 12 que vinha de Bambadinca, comandada pelo 2.º Cmdt, major Sousa Teles. Dirigimo-nos ao Xime onde deixei o pessoal que estava comigo. Aqui tenho “uma branca” de algum tempo. A idade não perdoa e eu já falei com o Araújo que também não sabe explicar o que se passou.

Sei que fui Bambadinca e vi que havia um helicóptero que serviria para fazer um reconhecimento à área do acidente. Ainda havia a possibilidade de algum dos desaparecidos ter ficado perdido e exausto no tarrafo. Fiz o reconhecimento aéreo e sugeri ao comandante que batêssemos a zona a pé à procura de sobreviventes. Pedida autorização à BA 12, fui largado com o furriel Domingos (homem muito generoso) e três soldados da CCaç 12 nas imediações do local do naufrágio.

Cabe aqui referir que o piloto era um meu ex-colega de liceu Passos Manuel – o Luís Cabanelas – que, em vez de nos largar a cerca de 4 metros, como era “do regulamento” deixou-nos a cerca de um metro. O terreno e a área da operação permitiam-no e evitámos o pancadão, o que, para mim que estava consideravelmente cansado, foi uma boa ideia.

Eu levava apenas a espingarda e os carregadores emprestados pelo comandante, sem qualquer outra espécie de equipamento. Vim depois a aperceber-me de que nem lenço levava. Estava previsto que, no final da batida à margem do rio, seríamos recuperados pelo helicóptero, se o tempo o permitisse, ou, pelo rio, por um sintex, se assim não fosse.

Batemos a margem do rio para montante e jusante e não encontrámos o menor sinal de vida. Entretanto, o helicóptero partira e nós começámos a cortar ramos para podermos chegar o mais à frente possível sobre o lodo, quando o sintex nos viesse recuperar. Era o que esperávamos.

Entretanto, por razões que não consegui determinar, perdemos o contacto rádio com comando do BArt 3873. A noite caiu e tendo falhado o contacto rádio com Bambadinca, entrei em contacto com o Xime e procurei fazer sair um GrComb que viesse recuperar-nos pela estrada. Subitamente, as comunicações com Bambadinca restabeleceram-se e recebemos ordem de para ali nos dirigirmos. O percurso a fazer era maior do que para o Xime, mas começámos a progressão debaixo de uma chuvada tropical acompanhada de trovoada que deixava o céu iluminado durante segundos, de um tom róseo depois de a faísca ter caído.

Aproximámo-nos de Bambadinca num percurso em que mal se via o caminho e orientando-nos somente pelas luzes dos aquartelamentos. Já perto do quartel fomos recolhidos por um pequeno grupo da CCaç 12, sob o comando do capitão Bordalo Xavier, que, com um petromax à cabeça, nos ia orientando.

Já agradeci ao ex-alferes Cabanelas e ao capitão Bordalo, pessoalmente, o apoio que nos foi dado. Deixo-o agora aqui também em público.

Como entrei no quartel não me lembro. Lembro-me que a esposa do comandante ficou admiradíssima de quanto eu estava molhado e concluiu que “felizmente, eu só tinha 25 anos”

Tomei uma bica no bar de oficiais e tenho presente uma cena em que eu sentado no chão do quarto do major Sousa Teles estou a despir-me revoltadíssimo e ele a tentar acalmar-me. Efectivamente, se as minhas relações com o comando já não eram boas, a partir daí… pioraram.

Regressei ao Xime com uma farda n.º 2 que me emprestou.

Depois, foi feito o relatório da acção que eu contestei, enviando a minha versão às mesmas entidades que o tinham recebido emitido pelo Batalhão.

Entretanto, apareceu o corpo do Sousa a boiar no rio. Éramos oito a tirá-lo e eu quero repetir um pouco do meu texto “As Idas ao Fiofioli” (que publiquei no blog) para prestar homenagem à generosidade do alferes Gomes, que tanto sofreu, na sua inadaptação à vida militar:

Quando retirámos da água o corpo sem vida do Sousa, afogado no Geba, queria, recorrendo aos toscos conhecimentos dum primeiro ano de medicina incompletissimamente estudado, retirar do corpo, a água que impedia que fosse metido no caixão. O Sousa acabou por ser sepultado em Bambadinca, dentro de um caixote de bacalhau, ao fim de vários dias de espera pelos ferros e luvas de autópsia que permitissem aproximar o corpo das suas dimensões normais.(1)

As consequências do relatório e contra-relatório não se fizeram esperar. E de tal forma que, no domingo posterior ao naufrágio, um helicóptero demandou o Xime. A bordo, um alferes para a companhia – que tinha falta deles – o adjunto-operacional do general Spínola e o comandante da Defesa Marítima da Guiné. Queriam ver o macaréu que, por casualidade, nesse dia, seria o maior do ano. Assim o dizia a tabela das marés que até dava a hora de passagem em Caió.

Recebi-os e descemos ao cais. Tranquilamente, o barqueiro Adelino navegava no rio. O oficial da marinha mandou-me avisá-lo de que o macaréu estava a aproximar-se. Assim fiz e o Adelino, no seu melhor sorriso gritou, do meio do rio:

- “Ah! Nosso captão inda falta”!...

Calmamente, remou para a margem, atracou o dongo e descarregou o que trazia. Cumprimentou-nos com vénia e continuou o seu caminho. Nós ficámos ali a ver e do macaréu… nada.

Por fim, com um atraso apreciável surgiu um macaréu de altura verdadeiramente “júnior” e que não correspondia às características indicadas na tabela. A Natureza tem destas particularidades!

Entretanto, após um período de “averiguações sumárias” entrou-se num processo de corpo de delito. Fui, como já disse, ouvido como declarante, assim como todos os outros ocupantes do sintex.

Deixei a CArt 3494 em Novembro de 1972 sem nada saber da marcha dos autos. Nunca mais fui inquirido, nem por deprecada, acerca do sucedido. Soube depois do desfecho e, só recentemente, o Jorge Araújo fez um esforço para determinar a data e os detalhes do julgamento.

Preparei este texto que sintetiza a minha visão sobre o sucedido no dia 10 de Agosto de 1972 na margem esquerda do Geba.(2)

Um Abraço
António J. P. Costa
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Notas do editor

(1) - Vd. poste de 13 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5456: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (1): Esta noite fomos ao Fiofioli

(2) - Vd. poste de 10 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13482: Efemérides (171): Relembrando o naufrágio no Rio Geba, no dia 10 de Agosto de 1972, em que perderam a vida três camarada da CART 3494 (Jorge Araújo)

Último poste da série de 6 de Julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11810: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (11): Ainda o poste do Cherno Baldé e outros

sábado, 6 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11810: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (11): Ainda o poste do Cherno Baldé e outros



1. Mensagem do nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), com data de 20 de Fevereiro de 2013:

Aqui vai um texto que será para a minha Guerra a Petróleo.
Penso eu de que...

Um Ab.
António J. P. Costa


A MINHA GUERRA A PETRÓLEO

11 - AINDA O POSTE DO CHERNO BALDÉ E OUTROS

Fiquei deveras surpreendido com a reacção dos participantes no blog a um post onde se descrevia a morte, por fuzilamento, de dois guineenses – dos quais um ex-colaborador das NT durante a guerra colonial – na sequência de uma insubordinação de uma grupo de ex-milícias e ex-soldados do Exército Português, ocorrido em Cuntima, a 14 de Novembro de 1976.

Efectivamente, em pouco tempo, o número de comentários ultrapassou os quarenta e, curiosamente, muitos deles traduziam um antagonismo entre os participantes no blog que ia muito para além do simples comentário ao acontecimento que fora narrado. Na análise de alguns comentários detecta-se até uma espécie de sentimento de culpa que, pelo menos em relação a este facto concreto, não se justificará muito. Para além de estarmos perante algo que sucedeu já em plena independência da Guiné, no fundo, trata-se de uma reacção popular (violenta, é certo) a algo que deveria ser feito e não se fez, embora seja patente que os contestatários, em virtude da sua vivência anterior, não estariam muito dispostos a aceitar as determinações do novo poder. Era de esperar que assim fosse. O mais curioso é que o próprio narrador situa bem o sucedido numa linha de actuação do PAIGC, em relação às populações do país que se incumbiu de governar. Assim, chegado ao poder efectivo havia cerca de um ano (em 10 de Setembro de 1974) procurava afirmar-se nele, como seria lógico. Porém, essa afirmação seria feita não tanto numa acção positiva, materializada pela melhoria das condições de vida das populações, isto é, da acção governativa eficaz, mas antes e pelo contrário de uma acção repressiva que visava manter aquelas num estado de disciplina, mais ou menos imposta pela hierarquia que saíra da vitória na guerrilha.

Enfim, nada que pudesse ser da responsabilidade directa da “guerra” ou das actuações do Exército Português.

Donde veio então este debate de ideias inconciliáveis?

O PAIGC, como movimento guerrilheiro africano do final dos anos cinquenta do Séc. XX, apresentava as práticas de disciplina interna (a tal "disciplina revolucionária" que lhe conhecemos através da documentação de informações) que lhe garantiram a sobrevivência ao longo de uma guerra feroz e desgastante e que lhe teriam sido inculcadas pelos doutrinadores da URSS. Compreende-se. Assim como se deverá compreender que se tenha constituído, após a tomada do poder, como partido único, responsável pelo funcionamento da sociedade guineense. Não é justo que se exija a quem se expôs a tudo e arriscou tudo para tomar o poder que se vá sujeitar a um “referêndum” para partilhar o que tanto lhe custou a ganhar. Depois, com andar dos tempos, ainda se aceita a disputa política, mas naquele momento é sinceramente uma injustiça.

Conhecemos as características das lideranças africanas, quer naquele tempo, quer na actualidade. Porventura mais duras naquele tempo, quando era necessário levar para o combate e sofrimento alguns milhares de guineenses e evitar que desistissem da "luta". Muita da adesão popular foi coercivamente obtida, no início da “guerra”, e mantida por um policiamento apertadíssimo por parte das unidades do partido. Mas o que é inegável é que as deserções de combatentes e fugas da população foram raras, o que não significa que as populações a aceitassem livremente. Por outro lado, após a independência, estender a “disciplina revolucionária” a toda a população não era boa técnica, como já se começava a ver em todos os países onde a doutrina política apontava para o partido único. Além disso, o povo guineense permanecera na sua maior parte sob controlo e protecção das NT o que lhe concedeu um estatuto e condições de vida que o partido cada vez menos podia assegurar. Mas há um outro aspecto importante a considerar, na análise do problema. A ocupação pela força de dado um território (como o PAIGC sustentava que era a situação) nunca pode ser feita sem a colaboração de uma parte mais ou menos considerável da população. Não seria este exactamente o caso da Guiné. As autoridades locais que materializavam a acção do governo central só abusivamente podem ser consideradas como ocupantes, mas dispunham de um considerável número de apoiantes, alguns decididamente colaborantes, outros fazendo-o mais ou menos tacitamente. A retirada de um invasor deixa sempre para trás um número de “colaboracionistas” que não o acompanham na saída. Só a título de exemplo, recordemos a dramática saída dos sul-vietnamitas da embaixada dos Estados Unidos, em Saigão. As características da guerra subversiva aproximam-na muito de uma guerra civil que, frequentemente atinge graus elevados de violência, muitas vezes gratuita, e gera a existência de vencidos da guerra, ou seja, aqueles que combateram por uma causa, perderam a guerra, mas não abandonaram as suas convicções, constituindo-se sempre como resíduos de uma possível contestação aos vencedores.

E não se podem matar todos!...

Sinais dos tempos, pois antigamente e em muitas situações podiam exterminar-se na totalidade. A História está aí para no-lo mostrar e, com se sabe, quanto mais “velho” é um país mais fácil é recolher, no seu passado, bons e maus exemplos…

A retirada das Forças Armadas Portuguesas da Guiné foi feita sob diversas pressões das quais podemos referir apenas as duas principais: uma interna, consequência da fadiga e revolta inerentes a 13 anos de guerra que já fazia parte do nosso “dia-a-dia” e outra externa, proveniente do PAIGC que, nunca tendo esperado que a vitória lhe surgisse assim, ficou ébrio e nada mais queria do que assumir o poder. Claro que há aqui um erro de avaliação. O partido não tinha estruturas nem quadros que lhe permitissem desenvolver a sua acção político-administrativa e, mesmo tendo necessidade dela, a colaboração da administração portuguesa era a última que lhe conviria para o apoiar ou auxiliar.

É à luz destes dois parâmetros que deve ser vista a saída dos militares portugueses da Guiné, deixando para trás muitos guineenses que tinham colaborado, por vezes muito activamente, com as FA de Portugal.

Cheguei a admitir que a maturidade do partido e as raízes unitárias com que foi constituído poderiam ser a garantia de que o ambiente se pacificaria. Não me surpreendeu, por isso, que o PAIGC tivesse assumido como guineenses os “colaboracionistas com as FA” e/ou os “vencidos da guerra civil”. Confesso que tive dúvidas, pois conhecia aquele povo e o partido que tomara o poder, mas… podia ser que fosse assim.

Não contei com uma manobra (de longo alcance) do PAIGC que lhe permitiu constituir um bode expiatório para os seus falhanços e um exemplo para mostrar aos contestatários das suas opções políticas e económicas. Se os "traidores guineenses que tinham lutado do lado dos colonialistas” fossem considerados portugueses seriam intocáveis, por serem estrangeiros, e poderiam sair da Guiné se o desejassem ou serem a tal obrigados pelas novas autoridades. No fundo seria uma forma de punição: a perda da nacionalidade.

Esta actuação do PAIGC, ocorrida em Novembro de 1976, foi assim uma tentativa de disfarçar a sua incapacidade de reconstruir o país. Recorreu a demonstrações de força (esta e outras), a cargo de militantes seus de uma fidelidade canina, capazes de extrema violência, mas dotados de pouca cultura e abdicando do uso da inteligência. Aterrorizar as populações, especialmente as das áreas onde tinha menor implantação ou em que os contornos éticos lhe fossem mais dissonantes passou a ser possível. Se acrescentarmos a prepotência e as vaidades de quem tem “o rei na barriga”, temos todas as condições para que estas situações ocorressem e continuem a ocorrer. Agora, porém, a ligação ao colonialismo é mais difícil, mas é sempre possível de estabelecer. Como já disse, estes exemplos proliferaram por todo o continente na sequência das independências, ganhas ou concedidas, e, às vezes para meu desespero, eram bem previsíveis. Mas não era politicamente correcto anunciá-los…

Tenho para mim que se o Amílcar Cabral fosse vivo naquela altura – e até alguns anos depois – isto também sucederia. O ambiente e os factos, nomeadamente a cisão do partido em PAIG e PAICV confirmam o que digo.

Não vejo, por isso motivo para nos culpabilizarmos por este caso ou casos similares. Outra atitude do PAIGC, mais madura e justa, poderia tê-lo até dado a maior respeito interno e internacional. Era o que se esperava de um partido velho, com muito tempo de luta violenta e dotado de uma maior maturidade, o que não sucedera a tantos outros a quem a independência foi dada de bandeja. Mas a sua opção foi noutra e isso só aos guineenses diz respeito.

Admiti que o povo da Guiné poderia ganhar muito com a independência em áreas como a agricultura, pescas e pecuária, agora que apenas dependia de si mesmo para atingir os seus objectivos e afinal enganei-me.

Talvez seja sina da África ser governada por sistemas de partido único, constituídos por homens imbecis, ou até válidos e bem-intencionados, mas que rapidamente embrutecem e se tornam insuportáveis. Aí não posso, nem devo, nem quero fazer nada (para além de simples conselhos). Será uma espécie de via-sacra que os povos têm que seguir até que, a sua cultura e (porque não dizê-lo?) a sua maturidade lhes permitam reduzir, que não anular, este tipo de procedimentos.

Contudo, estávamos no Séc. XX (e agora já XXI) e, por isso, seria bom que cada povo aproveitasse a experiência dos outros e, pelo menos tentasse evitar cair nos erros cometidos. Não me sinto culpado de nada do que sucedeu na Guiné depois da independência e, muito mais agora que aquele povo “tomou o seu destino nas próprias mãos” há quase 40 anos (duas gerações). Limito-me a observar de longe e constatar que ali não houve excepção relativamente ao sucedido noutros países da mesma área geográfica.

Parece-me, isso sim, que, com a vitória, o PAIGC contraiu uma série de responsabilidades, nomeadamente no que respeita aos seus heróis e à sua história que é uma fracção já considerável da História da Guiné e que lhe deverá servir de arrimo ao seu percurso político.

Por favor não aceitem as culpas que não temos e se digladiem por causa delas.

Não esqueçam que, em Direito, os principais responsáveis são sempre os autores materiais do crime. O facto de existirem “condições” não quer dizer que o crime seja cometido.

António José P. da Costa
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Notas do editor

Ilustração retirada da História do BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74), unidade que foi rendida pelo BCAÇ 4612/74 (Mansoa, 1974)... 
Um exemplar da história desta unidade, o BCAÇ 4612/72, foi-nos oferecido, em formato papel e em pdf, pelos nossos camaradas Agostinho Gaspar e Jorge Canhão (ex-Fur Mil 3ª C/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74).
Este documento tem cerca de uma dúzia de interessantes (e raras) ilustrações, feitas por um ilustre desconhecido, a estilete sobre "stencil"...
Imagens: Cortesia de Jorge Canhão (2011).

Último poste da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11172: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (9): A praxe da Ivone