Mostrar mensagens com a etiqueta Amílcar Ventura. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Amílcar Ventura. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5003: Controvérsias (36): A Justiça Militar e os presuntos implicados (João Seabra)

1. Uma peça (de antologia, de finíssimo humor...) que eu acabo de receber do ilustre jurista João Seabra, ex-Alf Mil da CCAV 8350, Piratas de Guileje (Guileje, 1972/74), e querido (como todos os demais) membro da nossa Tabanca Grande:

Caro Luís,

Recebi, há dias, um mail teu em que vinha anexo o actual RDM (*).

Andando para trás no blogue, encontrei uma sugestão tua para que eu e o Jorge Cabral, entre outros, nos pronunciássemos sobre as hipotéticas consequências criminais do constante numa narrativa do Amílcar Ventura (**).

Antes de mais, deixa-me dizer-te que tenho o Amílcar na conta de boa pessoa. Aliás, já foi muito simpático comigo, a propósito de uma correspondência tumultuária que manteve, há tempos, com um terceiro e que desencadeou, por iniciativa deste último, numa grande agitação em cavalariças e canis.

Todavia, aqui para nós, parece-me (podendo estar enganado) que a história dele é uma fantasia que terá descambado em convicção. Aliás não é a primeira, nem será a última, que aparece no blogue.

O menos que se poderá dizer é que o frete foi muito pouco produtivo. Porque não levou ele mais dois ou três bidons de gasóleo? Era para uma emergência?

De qualquer modo, o RDM dispõe sobre ilícitos disciplinares, e a matéria de que se trata é de natureza criminal e está contemplada no Código de Justiça Militar (CJM). Que eu saiba, ao CJM em vigor em 73-74 seguiu-se outro de 77, outro de 2003, e ainda outro mais recente.

Acontece que as minhas áreas de actuação profissional são as do direito fiscal e do direito das sociedades. Neste momento, por exemplo, estou muito atrapalhado porque tenho de opinar urgentemente sobre a vexatória questão da hipotética neutralidade fiscal da fusão inversa. Se calhar vou-lhe chamar reverse merger porque, como diria o Serafim Saudade, “o verdadeiro artista é o que fala estrangeiro”.

Do CJM ocorre-me – “entre as brumas da memória” – a curiosa figura do “presumido delinquente”, e pouco mais. E mesmo assim, porque – por vezes e com grande gáudio – ouço colegas espanhóis aludirem aos “presuntos implicados”.

Para tratar adequadamente a vertiginosa questão da sucessão de leis penais, e da qualificação da hipótese em causa, a pessoa indicada é, realmente, o Jorge Cabral. Mas seria um desperdício, porque o iria distrair das valiosas opiniões periciais que nos vai dando sobre matérias menos áridas.

No fundo seria preferível encerrar o assunto, como o fez, há muitos anos, um magistrado do Ministério Público, quando soube que tinha sido bem sucedido num concurso para a carreira diplomática.

Os impulsos processuais do Ministério Público, designam-se, no nosso jargão, por “promoções”.

Vai daí o nosso futuro diplomata, no primeiro processo que lhe chegou às mãos, exarou o seguinte:

Tendo decorrido o prazo,
e operado a prescrição
vão os autos para arquivo
- eis a minha promoção.


Aplicando o que antecede a mim próprio, diria que muito me preocupa a eventualidade de, involuntariamente, concorrer para envenenar o ambiente de um blogue fundado por um grupo de amigos e que vive, sobretudo, da inexcedível dedicação dos seus editores.

Assim sendo, vou fazer o possível para, de futuro, escrever apenas para arquivo ou para “presuntos interessados”. Se e quando tiver tempo, já se vê.

Abraço amigo do
João Seabra

P.S.: Uma observação (ou “nota”, como se diz agora) final. Fiz serviço militar na Guiné na condição de “compelido”. Mas, uma vez lá, a situação, para mim, era muito simples: de um lado estavam as nossas forças (às quais eu pertencia) e do outro o inimigo. Tudo o mais são subtilezas que estão fora do meu alcance.

[ Revisão / fixação de texto / bold, a cor: L.G.]

___________

Notas de L.G.:

(*) Dirigido ao Jorge Cabral e com conhecimento a outros juristas da nossa Tabanca Grande:

"Jorge: Aqui tens o novo RDM... Não sei se tens tempo e pachorra para o analisar, do ponto de vista daquilo que pode interessar ao nosso blogue e à nossa Tabanca Grande".

(**) Vd. poste de 24 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5002: O segredo de... (7): Amílcar Ventura: Ajudei o PAIGC por razões políticas e humanitárias

Guiné 63/74 - P5002: O segredo de... (7): Amílcar Ventura: Ajudei o PAIGC por razões políticas e humanitárias

Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 14 - Eu e o carregador de granadas de RPG 7" [ guerrilheiro do PAIGC; foto tirada já depois de 25 de Abril de 1974]
Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 4 - "Viatura [, Berliet,] minada na emboscada de 7 de Janeiro de 1974"

Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 6 - O Furriel Ventura em ambulância capturada ao PAIGC" [, entre Copá e a fronteira, em Março de 1974, pelo Grupo do Marcelino da Mata e o Astérix, nome de guerra do Cap Pára-quedista do BCP 12, António Ramos, já falecido]

Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 7 - Ambulância capturada ao PAIGC"
Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 1 - Vista aérea de Bajocunda" [que ficava a 11 km de Pirada, sede do batalhão].

Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 5 - Evacuação do Capitão Ângelo Cruz" [, que accionou uma mina antipessoal, e ficou sem uma perna no Natal de 1973].
Guiné > Zona leste > Pirada > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 8 - Restos de foguetão [122 mm] do PAIGC" [, presume-se que tenha sido no ataque a Pirada, no dia 25 de Abril de 1974]


Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > Foto 9 - "Poço com água para beber e cozinhar"
Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 10 - Crianças amigas [ , em primeiro plano o Mulai Baldé, que mais tarde viria para Portugal]
Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 11 - Alunos da escola de Bajocunda"
Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 15 - Eu e alguns dos meus condutores"
Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 12 - Eu e o polícia de Amedalai"
Guiné > Zona leste >
Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 2 - Amedalai ardida no ataque de [18 de] Dezembro de 1973" [Amedalai ficava a sul de Bajocunda]

Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 3 - Crianças procurando comida depois do ataque a Amedalai"

Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > "Foto 13 - Encontro das Altas Chefias de Pirada depois do 25 de Abril [de 1974]"

Fotos (e legendas): © Amilcar Ventura (2009). Direitos reservados


1. Texto, enviado em 20 do corrente, peo Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323/73, Bajocunda, 1973/74, natural de (e residente em) Silves, membro da nossa Tabanca Grande desde Maio último (*)


Camaradas

Apesar de me terem advertido para a eventual polémica a propósito da revelação da entrega de gasóleo ao PAIGC , surpreendeu-me a quantidade e agressividade dos comentários produzidos (**).

Vou tentar clarificar as coisas.

Desde muito novo que a polícia política entrava casa adentro, revistava e levava o meu Pai sob prisão. O meu Pai era comunista, não tinha grande cultura, mas tinha capacidade para identificar as injustiças e a arrogância de actos praticados por indivíduos protegidos, que roubavam aos pobres sem castigo, enquanto os pobres, se roubassem aos patrões uma fruta ou um bocado de peixe seco, eram despedidos sem dó nem piedade.

Também eu, ainda jovem, sofri essa experiência amarga de ser privado do meu Pai. Essas e outras levaram-me a ter um espírito crtico, a escolher com cuidado os amigos, e a conter o riso perante os que desenvergonhadamente zombeteavam dos humildes. A minha infância e juventude foram dificeis.

Por acaso tornei-me membro de uma conhecida organização que actuava contra o regime. Tal como o meu Pai, não era intelectual, agia em função da confiança que me inspirava, e das ideias de justiça e solidariedade que, acreditava, trariam a felicidade aos portugueses.

Na Guiné, mais propriamente em Bajocunda, expressei os meus critérios de justiça e relações entre os povos, de cada vez que se proporcionava. Por isso fui informado da ligação de um mecânico-auxiliar ao PAIGC. Era um óptimo rapaz, competente e de delicado no trato. Nutri uma especial atenção por ele, que tinha sido recomendado pelos camaradas que rendemos.

Um dia tive que lhe adiantar o salário que a Companhia estava relutante em pagar, apesar do compromisso. Também os pequenos que ali cirandavam e nos faziam recados, a quem dava petróleo para ajudar as moranças, tornaram-se elos de uma relação
de afecto com a população.

Vim a saber da existência da ambulância [do PAIGC], que evacuava para um hospital distante doentes e feridos, militares e civis, e por vezes não servia de nada por falta de combustível. Foi por isso que dei o gasóleo quando me pediram. Caprichosamente fui eu quem conduziu a ambulância depois da captura, com escolta do Marcelino da Mata que me valeu quando fomos emboscados.

Naturalmente tive informações ou fui avisado para ter cuidado que o IN andaria na zona,e uma vez, sobre a hora, relativamente a um ataque em Bajocunda, o que me levou a dar volta aos abrigos para alertar. Não tinha informações relativamente a Copá e Canquelifá, porque era outro grupo [do PAIGC]que ali actuava.

Reparem, não estive a ajudar o IN a fazer fornilhos, nem me consta de algum rebentamento por essa via.
A minha Companhia sofreu baixas numa emboscada, mas não tive qualquer conhecimento prévio. Quando dei gasóleo só pus uma condição, através dos dois jovens militares com quem me encontrei, que deixassem livre a estrada entre Bajocunda e Pirada, meio fundamental para reabastecimentos e outras ligações eventuais.

E sobre Bajocunda, o nosso quartel, desde que lá chegámos até o dia vinte cinco de Abril 74, só tivemos um único ataque [ a 18 de Dezembro de 1973].

Não contribui para o fim da guerra, mas para minorar o esforço das NT e para ajudar os aflitos do outro lado. Não sei se eles perceberam alguma coisa [do meu gesto de] solidariedade, e, apesar disso, se usaram o gasóleo para outro fim, coisa que remotamente pensava controlar pelas informações que tinha, pois acreditava que lutavam com honra e dignidade por um ideal.

Declaro ainda que mantinha excelentes relações com os meus camaradas e que seria incapaz de os atraiçoar. Eu vivo de consciência tranquila.

Espero que os camaradas, mais cultos do que eu, continuem a manifestar tolerância por aqueles que têm alguma coisa para contar das suas experiências, mesmo que, aparentemente, não sejam histórias dos manuais de guerra, nem do culto xenófobo ao PAIGC, como decorre das frequentes manifestações de solidariedade dos nossos tertulianos em ajudas ao povo da Guiné, (que, pela independência, imaginava lograr a liberdade e a felicidade), contribuindo para que a Tabanca Grande seja um lugar de sentimento, paz, verdade, e construção.

UM ABRAÇO AMIGO PARA TODOS OS CAMARADAS

Amílcar Ventura

[Revisão / fixação de texto / selecção e edição de fotos / título do poste / bold a cor: L.G.]

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

9 de Maio de 2009 >
Guiné 63/74 - P4308: Tabanca Grande (137): Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74

(...) Alguns factos e datas sobre o 1ª CCAV / BCAV 8323/73

(i) Mobilizada pelo RC 3, embarcou, no dia 22 de Setembro de 1973, no navio Niassa com destino a Bissau;

(ii) Foi colocada em Bajocunda, na zona leste, junto à fronteira, a 11 km de Pirada (sede do BCAV 8323/73, comandado pelo Ten Cor Cav Jorge Eduardo Rdorigues y Tenório Correia Matias);

(iii) Teve dois comandantes: Cap Cav Ângelo César Pires Moreira da Cruz (ferido em combate), e Cap Mil Cav Fernando Júlio Campos Loureiro;

(iv) Em 13 de Dezembro de 1973, o sapador de minas Fernando Almeida morre num rebentamento;

(v) Cinco dias depois, a 18, a tabanca de Amedalai, nas imediações de Bajocunda, a sul, é atacada e destruída pelo PAIGC;

(vi) No dia de Natal, o Cap Cav Ângelo Cruz ficou sem uma perna abaixo do joelho, no rebentamento de uma mina, numa patrulha, entre Bajocunda e Amedalai: ficaram ainda feridos o guia e três soldados;

(vii) No dia 7 de Janeiro de 1974, numa emboscada a uma coluna de viaturas, que ia levar comida a um pelotão da companhia, que estava em Copá, a 21 km de Bajocunda, a oeste, morreram o Sebastião Dias e o José Correia; e duas Berliets foram destruídas;

(viii) Em Março de 1974, Copá é abandonada; numa operação mais a norte, é apreendida uma ambulância, de origem russa, ao PAIGC; a viatura, conduzida pelo Amílcar Ventura, sob protecção de helicanhão, foi trazida para Bajocunda;

(ix) A 22 Agosto de 1974 Bajocunda é entregue ao PAIGC;

(x) Partida para Bissau e regressa a Portugal no dia 9 de Setembro. (...)


26 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4740: Estórias do Amílcar Ventura (1): O meu eterno Amigo Mulai Baldé...
...) Como eu era mecânico, essa minha lavadeira estava-me sempre a pedir petróleo para as suas lamparinas, que eram a única forma de iluminação naquelas bandas. A minha missão decorria normalmente, até que um dia acabei por descobrir que o comerciante local, que vendia o petróleo aos civis, chamado Silva, explorava a população na sua venda.

Não vou perder o meu, e o vosso rico tempo, a falar deste comerciante ,, natural de Braga, pois teria muita coisa a dizer, até porque segundo sei ele já faleceu. Dizia eu, que dei então comigo a dar petróleo a toda a tabanca ao ponto de, em alguns finais de meses, me ter visto aflito para fazer os mapas das existências em armazém.

Sempre me senti bem com esta minha faceta que, por um lado foi muito bom para mim, pois caí nas boas graças da população, não me faltando nada sem eu pedir, dando-me ovos, galinhas, carne de gazela, de cabrito, etc. Mas o mais valioso, para mim, foi o carinho com que fui tratado por toda a população, e jamais esquecerei os seus generosos e amáveis convites, para ir comer às suas tabancas.

Conforme vim a constatar, eu que era o único branco que frequentava os seus bailes e podia andar, à noite, livre e sossegadamente pela tabanca sem ter qualquer problema, enquanto alguns dos meus camaradas (por actos que desconheço) chegaram a ser apedrejados.

Nm dos meus dias de rotina descobri, surpreendentemente, que um Grande Amigo meu da tabanca era guerrilheiro do PAIGC. Como uma das minhas assumidas qualidades é: “Amigo não traí Amigo”, guardei penosamente este segredo apenas para mim. (...)

Mal eu sonhava, que se ainda hoje estou cá neste mundo é graças a ele, porque antes de um ataque que viemos a sofrer ao quartel, eu fui informado, por intermédio da minha lavadeira e do Mulai, que ele ia acontecer, com muito perigo para nós, pois seria executado muito perto da cerca de arame.

“Amigo não trai Amigo”, pensei eu, muito menos os meus camaradas-de-armas, pelo que meti-me numa Berliet e dei comigo a andar à volta dos nossos abrigos, a avisar o pessoal de que íamos ser atacados. A certo momento, quando complementava essa volta, um guerrilheiro do PAIGC apontou-me um lança-granadas RPG7 e estava prestes a atingir-me com uma das suas mortíferas granadas. A minha sorte foi esse meu Amigo, que viu quem estava dentro da Berliet, e não permitiu que o seu camarada lançasse a terrível granada, cujo disparo esteve eminente, pois vi bem a orientação do tubo e o seu dedo sobre o gatilho da sua arma. (...)


(**) Vd. postes de:

11 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...

11 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4939: Banalidades do Mondego (Vasco da Gama) (IV): A minha guerra foi outra, camarada Amílcar Ventura

14 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4949: (Ex)citações (43): O exorcismo dos nossos fantasmas... (António Matos)

15 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4953: (Ex)citações (45): Resposta ao Mário Fitas: Luís, deixa sair de vez em quando as G3...(Luís Graça)

Vd. também o poste mais recente > 23 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4996: Controvérsias (28): O caso do Amílcar Ventura... Resistência ou colaboracionismo ? (Vitor Junqueira)

Vd. também postes anteriores desta série O Segredo de...

30 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações

30 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN

6 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3578: O segredo de... (3): Luís Faria: A minha faca de mato

11 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3598: O segredo de... (4): José Colaço: Carcereiro por uma noite

4 de Junho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4461: O segredo de... (5): Luís Cabral, os comandos africanos, o blogue Tantas Vidas... (Virgínio Briote)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4939: Banalidades do Mondego (Vasco da Gama) (V): A minha guerra foi outra, camarada Amílcar Ventura

1. Mensagem do nosso querio amigo e camarada Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Os Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74, que regressa assim ao nosso convívio, depois de uma 'sabática terapêutica' (demasiado longa, porvetura, para aqueles que apreciam a alta qualidade literária e a inteligência emocional dos seus textos, aqui no blogue)...

Camaradas Editores, Camarada Editor Carlos Vinhal: Escrevi num ápice o texto que agora envio.Voltarei em breve.Saúde para todos e um abraço amigo do Vasco



BANALIDADES DA FOZ DO MONDEGO (Vasco da Gama) (V) > A MINHA GUERRA FOI OUTRA


Remetido há já algum tempo ao silêncio, por conselho de um editor sábio e amigo, perdendo a regularidade da leitura do nosso Blogue, dadas as férias no reino dos Algarves durante o mês de Agosto, coloquei agora em Setembro toda a minha disponibilidade de tempo a ler tudo o que havia deixado para trás, como o fazia quando era estudante e tinha os exames à porta, tentando recuperar dia e noite o tempo consumido nas jogatanas de lerpa, nas intermináveis discussões políticas, no acompanhamento constante do meu Glorioso S.L.B. aquando das suas deslocações ao norte, nos tempos em que, calmamente, se vestia a camisola vermelha, sem medo de qualquer enxovalho, estivesse na Póvoa, em Guimarães, em Braga, em Matosinhos ou mesmo na maravilhosa cidade do Porto, essa cidade invicta que me marcou para sempre e que ainda hoje adoro, com as suas gentes simpáticas, solidárias, genuínas e vernáculas.

Tal como nos finais da década de sessenta, quando estudante, era invadido por um nervoso miudinho pois eram tantos os assuntos e matérias a reter, que começava a estudar determinada cadeira já com o pensamento numa outra que se avizinhava, não conseguindo por vezes a concentração necessária para levar a bom porto toda a panóplia de teorias e teses e temas que me permitissem uma época de exames descansado, também agora em finais da primeira década do século XXI, tostado pelo sol quente do sul, regressado do enxameado Algarve, onde o nosso camarada da Guiné e do Blogue, António Manuel Conceição Santos me proporcionou uma caminhada maravilhosa pela Ria Formosa, já comecei a escrevinhar tanta coisa ao mesmo tempo com o mesmo nervosismo o mesmo frenesi e a mesma “desorganização” de há quarenta anos, que me obrigou a dizer de mim para mim, BASTA, começa e termina qualquer coisa!

Assim decidi, assim o faço neste momento, começando pela análise de um poste publicado pelo nosso camarada Amílcar Ventura com o nº 4936 (*), intitulado a bomba de gasóleo do P.A.I.G.C., com uma introdução do editor M.R.

Respeitador dos princípios que norteiam o nosso Blogue, coerente com a formação recebida ao longo da vida, incapaz de, penso eu, beliscar quem quer que seja, gostaria de tecer algumas considerações baseadas única e exclusivamente no exposto pelo nosso Camarada.

Camarada Amílcar Ventura,

A tua confissão que entendeste partilhar com todos os Combatentes da Guiné e que, estou por certo, terá aliviado a tua consciência, causou em mim um sentimento de tristeza e mal estar, pois relembrou-me de uma forma mais pungente e dolorosa as agruras que a minha Companhia de Cavalaria 8351 se viu obrigada a viver nos matos profundos do sul da Guiné no Cumbijã e Nhacobá, a escassos quilómetros de Guileje e cito Guileje, pois voltarei a esse assunto quando conseguir alinhar ideias.

Não tenho, era o que mais faltava!, capacidade para julgar quem quer que seja e sei bem que a as acções ficam com quem as pratica, mas nunca opinarei contra a minha consciência.

Há limites inultrapassáveis para qualquer cedência e colocarei sempre acima do interesse de pessoas ou de grupos a minha sinceridade, daí que gostaria de te dizer como combatente na Guine o seguinte:

Vivemos sempre no mato, sem qualquer população, sem nunca termos tido luz, vivendo em barracas de lona e construindo com as nossas mãos as casernas feitas com blocos que os meus Tigres amassavam com os pés, isto depois de regressarem das operações/patrulhamentos que DIARIAMENTE fazíamos fora do arame. Não tivemos depósito de géneros durante muitos meses, nem água nem pão quente. Fazíamos uma coluna diária a Aldeia Formosa para abastecimentos e também trazíamos bidões de gasóleo…

Tínhamos entre nós gajos de direita e de esquerda e do centro e de cima e de baixo e outros que não eram nada, mas nunca a porra da política nos separou. Os que defendiam o tal Portugal de Trás–Os-Montes a Timor, que não era o meu caso, eram irmãos dos que murmuravam contra a guerra colonial e que eram a favor da solução política para uma guerra estúpida. Sabes, tínhamos em comum as lágrimas que derramávamos pelos nossos camaradas mortos e feridos, pela impotência de não regressarmos todos juntos ao nosso e teu Portugal, estávamos irmanados nos embrulhanços que sofríamos e a nossa raiva, por que não dizê-lo?, ia toda no mesmo sentido – dirigia-se ao P.A.I.G.C.

Estranho, eventualmente por ignorância, que se fale no comentário introdutório ao teu texto em “intercâmbios” entre as N.T. e o P.A.I.G.C. de "prendinhas e cervejas colocadas na picada”. As prendinhas trocadas entre a Companhia de Cavalaria 8351 e o P.A.I.G.C., foram, que eu saiba, arraiais de fogachada, minas q.b. e manga de porrada. Talvez noutros sítios, noutras circunstâncias, com outros comandos. Nunca pertenci à psico.

Camarada, dizes e passo a citar “nunca pus em perigo de vida os meus camaradas mas que ao contrário salvei alguns por ter antecipado a informação que ia haver ataque”, fim de citação. Discordo frontalmente. Quem, como os Tigres do Cumbijã, e tantas outras Companhias apanharam na tarraqueta, sabem perfeitamente que os mísseis ou as morteiradas ou as canhoadas que nos caíam dentro do arame, não traziam olhinhos para se desviarem “da malta que estava avisada”.

Lá no meu mato profundo, interrogo-me como era possível um militar português sair do seu aquartelamento na companhia de um nativo, com uma viatura e duzentos litros de gasóleo. Que controlo era esse? Que sítio era esse? Que comando era esse? Não duvido do que dizes, mas estranho! A minha guerra, Camarada, a minha guerra teve outros contornos, a minha guerra foi outra.

Sabes, uma vez num ataque ao arame, sim num ataque ao arame, Camaradas meus dizem ter visto um cubano. Nesse dia, por motivos diferentes dos teus, também nós gostaríamos de ter conversado com ele e podes ter a certeza que não era para lhe dar gasóleo.

Quase quarenta anos volvidos ainda me emociono com a Guiné. Quem diria!!!

Tive apenas e só a vontade de dar a minha opinião relativamente a algo de totalmente novo para mim. Gostaria imenso, acredita, de contigo debater este assunto, quem sabe
se quando voltar à tua maravilhosa terra de Silves. Ouvir-te-ei mais detalhadamente e eu apresentar-te-ei outros argumentos que não cabem aqui.

Com a conversa todos aprendemos, mas, caro Camarada Amílcar Ventura, mesmo para alguém com a preparação ideológica que então terias, a tua atitude, sem qualquer espécie de julgamento, foi de uma INGENUIDADE muito grande.


Para todos os meus Camaradas um abraço amigo e sincero do,

Vasco A.R.da Gama

[Revisão / fixação de texto / bold, a vermelho: L.G.]

__________

Notas de L.G.:


(*) Vd. último poste desta série:

15 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4532: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (IV): Desertores

(**) Vd. poste de 11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...

Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...

Guiné > Zona leste > Bajocunda > Março de 1974 > O ex-Fur Mil Mec Auto ao volante de uma ambulância russa, usada no transporte de feridos, capturada pelo grupo do Alferes Graduado Marcelino da Mata, comandado pelo capitão pára-quedista Astérix...

Esta ambulância foi capturada, com a ajuda mecânica do Amílcar Ventura e do seu Mecânico Grou, senão tinha ficado no mesmo sitio, pois após a sua captura o motor não funcionava.

Foto: © Amílcar Vantura (2009). Direitos reservados


1. Mensagem enviada, 28 de Agosto de 2009, pelo Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74 (*):


Amigos e Camaradas Editores, há muito que quero contar um facto real que se passou comigo e o grupo do PAIGC da minha zona de guerra que era Bajocunda, mas como é um facto que pode ser sensível a alguns Camaradas de blogue.

Deixo ao critério dos nossos Editores a publicação ou não deste meu texto assim como tratarem o texto para ficar melhor (**).

Como todas as histórias, começa assim. Era uma vez um mancebo, de nome Amílcar Ventura, que foi cumprir serviço militar. Como na escola só queria era passear os livros, acabou o curso de Formação de Serralheiro e uma semana depois apresentou-se no RI 7 em Leiria para a recruta onde esteve só quinze dias. Enviaram-no a seguir para Escola Prática de Cavalaria em Santarém para acabar a recruta.-

Acabada a recruta e por ter o curso do Ferro, saiu-lhe na rifa a especialidade de Mecânico Auto. Foi enviado para tirar a especialidade, para a Escola Prática de Serviço de Material em Sacavém.

Aí chegados, a boca que havia era que não valia a pena ficarmos bem classificados que toda a gente estava mobilizada para o Ultramar. Foram três meses de Especialidade e três meses de estágio.

Ainda não tinha acabado o estágio, e logo saíram as mobilizações. A minha era para Moçambique. Como um Sargento me disse que a nossa especialidade era melhor na Guiné, lá fui a caminho do então Ministério do Exército mexer os meus cordelinhos para fazer a troca. Tinha um amigo lá, que era Furriel, esse do tempo do atletismo escolar, mas tive uma surpresa, ele não queria fazer a troca, dizia que eu ia para o Inferno da guerra e ainda por cima o meu irmão estava no anexo do hospital da Estrela, tinha sido evacuado da Guiné havia pouco tempo com alguma gravidade…

Bem, lá consegui cantar-lhe a canção do bandido de modo a ele fazer-me a troca.

Vou abreviar…. Quando chegámos a Bajocunda e quando me foi entregue a oficina, havia um mecânico Africano que era um assalariado e a quem a Companhia teria que pagar o ordenado pois já vinha de outras companhias… Mas quando chegou o final do mês, os dois Sargentos da Companhia disseram que não havia dinheiro para ele Então eu paguei do meu bolso os respectivos quinhentos escudos que era o que ele ganhava.

Aqui fiquei logo com um grande Amigo, enquanto eu lá estive, ele era a minha sombra, até que um dia me pediu gasóleo. Queria um bidão que, como sabem, era duzentos litros. Disse-lhe que só lhe dava se me dissesse para que fim se destinava…

Depois de muito falarmos, fiquei a saber que o gasóleo era… para o PAIGC. Então eu disse-lhe:
- Vamos os dois levar o gasóleo.

Não tive receio nenhum porque sabia que era respeitado pelo PAIGC e lá fui. Estive perto de falar com eles mas, como era a primeira vez, houve um certo receio das duas partes… Pensei então cá para mim:
- Se houver repetição, da próxima vez só vou dar o gasóleo se eles falarem comigo…- E assim aconteceu, tive o meu primeiro contacto em tempo de guerra com o meu inimigo ( já parecia a guerra do Raul Solnado)…

Só que o meu objectivo era ver o Cubano que lá andava mas saíram-me frustadas todas as tentativas que fiz para o contacto com ele… Mesmo depois do vinte cinco de Abril, o Cubano que lá andava, desapareceu, sempre pensei que ele ia estar no primeiro encontro que tivemos com o PAIGC mas nem rasto dele…

Esta foi mais uma história real na terra do Amílcar Cabral. Um abraço amigo a todos os camaradas do blogue.

[Revisão / fixação de texto: L.G.]

2. Mensagem do nosso co-editor Eduardo Magalhães Ribeiro, de 31 de Agosto de 2009:

Boa tarde Amigos Vinhal, Luís e Briote,

O nosso Camarada Amílcar Ventura enviou-me o seguinte material [ Vd. texto anterior]. Controverso q.b.

Se acharem por bem, eu publico o mesmo, mas como é óbvio terá que se anteceder a publicação com uma nota de introdução, visto que já se prevê a habitual contestação.

Qualquer coisa do género:

Nota de introdução:

Quem é que ainda não ouviu dizer que o soldado condutor 'xis' deixava uma caixa de cervejas na picada, ou qualquer outro alimento e que, os mesmos, passadas umas horas desapareciam como por milagre?

Porque o fazia? Por mórbida curiosidade, ou por estranhos, silenciosos, descomprometidos e raros pactos de 'não agressão', a modos que:
- Deixai-me em paz que eu faço o mesmo em relação a vós e ainda vos deixo uma ‘prendinha’.

São realidades pouco ventiladas pelos seus protagonistas, por motivos evidentes e não eram, como não podiam ser, do conhecimento geral e muito menos daqueles que não admitiam este tipo de ‘traição’, como a malta da PIDE/DGS, alguns Camaradas mais radicais na sua conceito Patriótico e os Comandantes mais severos e conservadores.

Assim, quando estes ‘intercâmbios’ entre alguns elementos das nossas tropas e do PAIGC aconteciam, o segredo da coisa ficava restrito a um pequeníssimo círculo de amigos de extrema e insuspeita confiança.

Já me constou, mais que uma vez, que foi uma realidade da nossa guerra, que foi praticada em alguns pontos da Guiné.

Esta prosa vem a propósito de um texto controverso que publicamos hoje, da autoria do nosso Camarada Amílcar Ventura, que assume uma acção dessas e vem demonstrar bem a outra face escondida da nossa (portuguesa) guerra.

Mensagem enviada, de férias pelo L.G., a 1 de Setembro de 2009, ao Eduardo com conhecimento ao Amílcar Ventura:

Eduardo:

O Amílcar Ventura para que a história tenha credibilidade , tem de acrescentar mais pormenores: (i) em que data é se passou estes episódios ? (ii) em que sítio é que ele deixou os bidões com gasóleo ? (iii) durante quanto tempo; (iv) quem foi (ou era habitualmente) o condutor ? (iv) há testemuenhas ? (v) não lhe passou pela cabeça que corria riscos (de um lado e do outro) ? (vi) qual foi a sua verdadeira motivação: simples curiosidade em ver a "cara do inimigo" ? gosto pelo risco ? simpatia pelo PAIGC ?...

Sem mais estes detalhes, a malta que ler o poste vai ficar na dúvida e pode inclusive pensar que o Amílcar "está a brincar connosco"... Se a história aconteceu, como ele conta, pode e deve ser divulgada no blogue... Mas tem de ser credível... É uma história ou um estória ? Falta-lhe qualquer coisa: o Amílcar deve desenvolver mais o que escreveu, o preâmbulo é maior que o relato do episódio...

Antes de publicares, quero ver... Um abraço matinal...


4. Três mensagens do Amílcar Ventura, do mesmo dia (1 de Setembro de 2009):

(A) Luís Amigo e Camarada de Guiné Luís Graça, não é uma história ou estória, é um Facto Verdadeiro:

(i) A data foi desde que peguei na oficina, em finais de Novembro de 1973 até me vir embora [ Setembro de 1974];

(ii) O sítio onde deixava o bidão com o gasóleo era cinco quilómetros a leste de Bajocunda [, ou seja, no sentido de Copá e da fronteira];

(iii) O o condutor era eu (só podia ser eu);

(iv) As testemunhas eram os miúdos de... Bajocunda;

(v) Os riscos não eram nenhuns (há uma parte que não posso contar...);

(vi) A verdadeira motivação era acabar com a guerra o mais rápido possível…

Vou ser honesto, a minha Pátria era e é Portugal, a Guiné é dos seus habitantes, sempre tive grande admiração pelos grupos de libertação das colónias o quem o Salazar chamava de províncias ultramarinas… Por isso, não pensem os meus Camaradas de Guiné que eu estava a brincar com uma coisa tão séria e de responsabilidade.

Um abraço amigo

(B) Amigo e Camarada Luís Graça:

Estou trabalhando e vou-me lembrando de certas coisas… Quero dizer-te que, se vês que este meu texto é muito polémico, eu não me importo de não o publicarem, mas ao mesmo tempo gostaria de o ver publicado, porque sinto que com a minha ida à Guiné dei um pequeno contributo para que a guerra acabasse mais cedo e que com isto se poupasse muitas vidas de Camaradas nossos.

Um abraço amigo

(C) (...) Quero dizer-te sob PALAVRA DE HONRA que tudo o que fiz na Guiné nunca pus em perigo de vida os meus Camaradas mas que ao contrário salvei alguns por ter antecipadamente a informação que ia haver ataque.


Mais teria a te dizer mas acho que chega para compreenderes as minhas palavras. Quero-te dizer que tenho um irmão que é deficiente das Forças Armadas e, se não lhe acontecesse o acidente, eu juntava-me com ele na Guiné: era o Furriel de Artilharia que estava em Gampará com três obuses 10,5.

A história dele é engraçada: ficou em primeiro lugar no curso de Transmisões, viram o cadastro político da família e já, Furriel, enviaram-no para Vendas Novas e, no mês seguinte, para a Guiné. É, como tu vês, o que o Salazar fez com a minha família [, familiares presos pela PIDE/DGS, etc.]. Amigo Luis Graça, fico-me por aqui.

5. Comentário de L.G. (o mesmo, com as necessárias adaptações, que foi escrito para o P3544, do Santos Oliveira):

Obrigado, camarada, por quereres (e poderes...) partilhar este segredo da Guiné connosco, teus amigos e camaradas. Já com o Mário Dias [, P 3543, ] (**) se passou o mesmo: há pudor e relutância em contar episódios como estes, de alguma maneira insólitos e, muitas vezes, inverosímeis aos olhos dos outros, constrangedores, etc... O Mário fê-lo por razões de coração e amizade... Tu terás tido uma motivação política...

Seria uma pena que tu e o Mário Dias [, e os restantes camaradas que já aqui 'revelaram segredos', ] levassem, para a cova, pequenos/grande segredos como estes... São histórias fabulosas que humanizam a guerra, que engrandecem os seres humanos que as protagonizam, e que nos tocam fundo, que nos fazem sorrir [, à maneira do saudoso e genial Raul Solnado], que mexem connosco, que nos interrogam ou até nos incomodam... Mas segredos são isso mesmo: são segredos, aquilo que em caso algum deve ser revelado... a não ser na hora da morte!

Espero que, a partir desta série, mais camaradas nossos decidam abrír a sua caixinha de Pandora... antes de baterem a bota (passe o humor negro!).

PS - Amílcar, seguindo as regras do jogo do nosso blogue, não faço (nem posso fazer) qualquer juízo de valor sobre o teu comportamento... Mas os nossos leitores quererão saber mais pormenores e perceber o contexto... É claro que à luz do RDM em vigor, poderias ter ido parar a tribunal militar... Dá-me entretanto mais alguma informação factual: (i) afinal, quantos bidões de gasóleo de 200 litros 'dispensaste' ao PAIGC até ao 25 de Abril de 1974 ? (ii) sabias qual era o uso (civil ou militar) que o PAIGC fazia desse combustível 'dispensado' por mim ?, (iii) como se chamava o comandante do PAIGC que já conhecias antes do 25 de Abril ? (iv) como justificavas, na tua subunidade, a quebra de stocks de gasóleo ?, etc. etc.

6. Esclarecimento adicional do A.V, respondendo às nossas últimas perguntas:

Amigo e Camarada de Guiné Luís Graça, do nome do Comandante só me lembro o apelido, Sanhá, mas segundo me diziam o cubano é que comandava o gasóleo que levava, e que era para viaturas civis e militares. Eu justificava o gasóleo nos mapas de combustível nas Berliet que tinha, e que eram duas. A quilometragem era feita por estimativa.

O desvendar do meu segredo... Quero-te dizer que só o meu irmão é que sabia e como já tinha lido alguns postes com coisas parecidas, resolvi dizer só que o meu é um pouco pior que os outros, mas como já disse estou preparado para o que vier. Esclarecerei todos os meus Camaradas sem entrar em polémica, pois fiquei vacinado com o que aconteceu com o Camarada Constantino. Também te quero dizer que o texto com as fotos estão bem. Faltou-me dizer que foram seis as vezes que levei combustível ao PAIGC.

______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 9 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4308: Tabanca Grande (137): Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74

(...) Amilcar José das Neves Ventura:

(i) 57 anos, nascido a 9 de Dezembro de 1951, em Silves, onde vive e trabalha;

(ii) Tem o 9.º ano de escolaridade (Curso de Formação de Serralheiro);

(iii) Foi chefe de armazém da Cooperativa de Retalhistas de Mercearias Alicoop, em Silves (1974/84);

(iv) Foi depois fotógrafo profissional por conta própria, durante 24 anos, tendo trabalhado, nesse período, para vários jornais, nacionais (Record, Correio da Manhã) e regionais;

(v) Tem dois filhos, de 34 e 30 anos;

(vi) Gosta de caçar e pescar;

(vii) É coleccionador de tudo o que tenha o emblema do Sporting;

(viii) Actualmente é fiel de armazém na Câmara Municipal de Silves.

Sobre a sua comissão militar na Guiné, conta:

(...) "Entretanto, veio o 25 de Abril de 1974 e a partir daí foi tudo um mar de rosas.

"Tivemos o primeiro encontro com as tropas do PAIGC da zona dois dias depois. Sinto um grande orgulho por ter liderado esse encontro, onde os guerrilheiros nos contaram com faziam os ataques e as emboscadas. Hoje ainda guardo um gorro que troquei por uma lente com o comandante do PAIGC da nossa zona, que já conhecia há muito tempo.(bold meu)

"No dia 22 Agosto 1974 entregámos Bajocunda ao PAIGC. Foi dos dias mais alegres de todos os que estive na Guiné, ver finalmente aquele país libertado. Depois seguimos para Bissau e no dia 9 Setembro regressei à minha Pátria" (...).


(**) Vd. postes anteriores desta série:

30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações

30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN

6 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3578: O segredo de... (3): Luís Faria: A minha faca de mato

11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3598: O segredo de... (4): José Colaço: Carcereiro por uma noite

4 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4461: O segredo de... (5): Luís Cabral, os comandos africanos, o blogue Tantas Vidas... (Virgínio Briote)

sábado, 9 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4308: Tabanca Grande (137): Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74

1. Mensagem de Amílcar Ventura, ex-Fur Mil da 1.ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74, com data de 26 de Abril de 2009:

PERFIL

Amilcar José das Neves Ventura, tenho 57 anos, nasci a 9 de Dezembro de 1951, em Silves, onde resido.
Tenho o 9.º ano de escolaridade (Curso de Formação de Serralheiro).
Entre Novembro de 1974 a Dezembro de 1984, fui chefe de armazém da Cooperativa de Retalhistas de Mercearias “Alicoop”, em Silves, e depois fui fotógrafo profissional por conta própria, durante 24 anos. Neste período, trabalhei para vários jornais, entre os quais o Record, o Correio da Manhã e alguns regionais do Algarve.
Tenho dois filhos, de 34 e 30 anos.
Gosto de caçar e pescar e sou coleccionador de tudo o que tenha o emblema do Sporting. Tenho perto de 800 objectos com o símbolo dos leões. Hoje sou fiel de armazém na Câmara de Silves.

CAIXAS

Assentei praça no dia 18 de Julho de 1972, no Regimento de Infantaria 7, em Leiria. Duas semanas depois fui transferido para a Escola Prática de Cavalaria, em
Santarém, para tirar a recruta de Sargentos Milicianos. Foram três meses em que passámos, como costuma dizer-se as passas do Algarve. A seguir parti para Sacavém, para tirar a especialidade de mecânico auto, na Escola Prática de Serviço de Material. A especialidade e o estágio duraram seis meses. Nessa altura, saiu a minha mobilização para Moçambique, mas eu sabendo por diversas informações que era melhor cumprir a comissão na Guiné, consegui trocar de destino por intermédio de um amigo que estava no Ministério do Ultramar. Em Abril de 1973 fui para o Regimento de Cavalaria 3, em Estremoz, para ajudar a formar o batalhão que iria para a Guiné: o Batalhão de Cavalaria 8323 (‘Os Cavaleiros de Gabú’). Gabú é o nome do sitio para onde fomos.

Sempre quis esquecer a guerra, mas vi na revista Domingo a história do meu amigo Ferreira, camarada da 3.ª Companhia, que me deu coragem para contar alguns episódios vividos na Guiné. Sempre quis esquecer o que passei, menos os meus camaradas.

No dia 22 de Setembro de 1973 embarquei no navio Niassa com destino a Bissau.
A viagem demorou seis dias: para nós, sargentos, foram umas férias, porque os nossos camarotes eram bons, mas os soldados iam no porão, pior instalados do que animais. Eram autêntica carne para canhão, como costumava dizer-se.
Quando chegámos, seguimos numas lanchas de transporte de gado com destino à ilha de Bolama, onde fizemos a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, que durou um mês. Voltámos a Bissau e no dia 31 de Outubro, subimos o rio Geba até Xime, seguindo depois em coluna por Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego, até Pirada, no Leste da Guiné, na fronteira com o Senegal.
Aqui, rendemos um batalhão que já estava na Guiné há 28 meses.

As Companhias do meu batalhão foram distribuídas pelos aldeamentos em volta de Pirada e a minha, a primeira, foi para Bajocunda, a 11 km de Pirada.
No primeiro mês em que estivemos com a Companhia que íamos render não nos aconteceu nada de especial, mas o martírio de cinco meses estava para breve e começou no dia 13
de Dezembro, quando ficámos sem o nosso Sapador Fernando Almeida.

Passados cinco dias, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) atacou Amedalai, uma tabanca que ficava a cinco quilómetros de nós. Só lá estavam civis e, como também fomos atacados, não pudemos ir em seu socorro. Queimaram quase toda a tabanca, como represália por a população não lhes ter dito que nós lá tinhamos estado em patrulha. Foi aqui que vi que a guerra era muito a sério, pois os guerrilheiros do PAIGC até atacaram familiares.

No Dia de Natal 1973, o capitão Ângelo Cruz quis fazer uma patrulha. Eu, apesar de muito contrariado, arranjei-lhe as viaturas para ele poder sair. No dia 18 de Dezembro, quando os guerrilheiros atacaram Amedalai e Bajocunda, deixaram, durante a retirada, várias minas espalhadas pelo campo. Uma rebentou à passagem de um macaco, outra matou uma vaca. Quando a coluna ia a passar perto, o capitão quis ver o local, contrariando as regras de segurança. Infelizmente, teve azar e pisou uma mina. Ficou sem uma perna abaixo do joelho e com a outra muito maltratada. O guia e três soldados também ficaram feridos.

No dia 7 de Janeiro 1974, numa emboscada a uma coluna de viaturas, que ia levar comida a um pelotão da minha companhia, que estava em Copá, a 21 Km de Bajocunda, morreram o Sebastião Dias e o José Correia, e duas viaturas Berliet foram destruídas: uma rebentou uma mina e a outra ardeu. A partir daqui, seguiu-se uma série de ataques do PAIGC, com todo o tipo de armamento. O nosso maior receio eram os ataques com os morteiros de 120 mm, com granadas perfurantes, que depois de embaterem no solo explodiam a dois três metros de profundidade.

Em Março entrou em acção a aviação. Copá estava há vários dias debaixo do fogo e os nossos militares quase não dormiam. Pedimos apoio aéreo, mas o avião Fiat que veio em nosso auxílio foi abatido com um míssil terra-ar. Os militares já estavam a ficar malucos e as chefias ordenaram-nos que abandonássemos Copá. Tivemos de fazer uma operação de resgate de grande envergadura, com mais de 300 soldados, porque senão as tropas do PAIGC matavam-nos a todos. Nessa operação, mais a Norte, limpando a zona de guerrilheiros, seguia o célebre grupo do alferes Marcelino da Mata, comandado pelo capitão pára-quedista ‘Astérix’. Numa emboscada ao PAIGC, conseguiram apanhar aos guerrilheiros uma ambulância russa, utilizava no transporte de feridos.

Eu fui contactado pelo meu comandante, o coronel Jorge Mathias, para ir buscar a viatura, pois o grupo do Marcelino não a conseguia pôr a trabalhar.
Disse-me que a ambulância estava na coluna que ia para Copá, só que quando me dirigi, com o soldado mecânico Grou para o helicóptero, o piloto, meu conhecido, disse-se que a viatura estava no Senegal. E era preciso trazê-la a todo o custo, mesmo com perda de vidas humanas, pois seria a primeira apanhada em todo o Ultramar.

Com a ajuda de um héli-canhão conseguimos trazer a ambulância até a coluna, mas sempre em alerta máximo, pois sabíamos que as tropas do PAIGC nos seguiam com a intenção de resgatar a viatura. Tivemos de passar uma noite no mato, junto da coluna. De manhã, partimos em direcção a Bajocunda, com o grupo do Marcelino a fazer protecção à viatura. Ele avisou-me de que íamos ter uma emboscada, o que viria a acontecer. Não se registou qualquer baixa e, com esta operação, conseguiu-se resgatar o pelotão que estava em Copá, sem registo de mortos ou feridos.

Entretanto, veio o 25 de Abril de 1974 e a partir daí foi tudo um mar de rosas.

Tivemos o primeiro encontro com as tropas do PAIGC da zona dois dias depois. Sinto um grande orgulho por ter liderado esse encontro, onde os guerrilheiros nos contaram com faziam os ataques e as emboscadas. Hoje ainda guardo um gorro que troquei por uma lente com o comandante do PAIGC da nossa zona, que já conhecia há muito tempo.

No dia 22 Agosto 1974 entregamos Bajocunda ao PAIGC. Foi dos dias mais alegres de todos os que estive na Guiné, ver finalmente aquele país libertado. Depois seguimos para Bissau e no dia 9 Setembro regressei à minha Pátria.

2. Comentário de CV:

Caro Amílcar Ventura, bem-vindo à Tabanca Grande.
És de há bastante tempo um elemento activo no nosso Blogue.
Temos cá muito material teu, incluindo fotografias. Tudo isto tem que ser tratado para ser publicado por ordem cronológica de chegada. Vamos pedir ajuda ao nosso novel editor Magalhães Ribeiro, para no mais breve espaço de tempo possível começarmos a publicar as tuas coisas.

Embora precises de ser apresentado à tertúlia, conheces já os cantos da casa e as nossas dificuldades em atempadamente dar saída aos picos de trabalho. Com a tua, e a de todos, compreensão havemos de levar a carta a Garcia.

Posto isto, resta-me deixar-te um abraço de boas-vindas em nome da Tertúlia e desejar-te a melhor saúde, aí pela antiquíssima cidade de Silves, uma das mais bonitas cidades portuguesas que conheço.

Vista aérea de Bajocunda

Viatura Berliet danificada por uma mina, durante a emboscada de 7 de Janeiro de 1974

Evacuação do Capitão Ângelo Cruz

Fur Mil Ventura na ambulância capturada ao PAIGC

Restos de um foguetão do PAIGC

Poço onde se ia buscar água para beber e cozinhar

Amílcar Ventura e alguns dos seus condutores

Amícar Ventura na actualidade

Fotos: © Amílcar Vantura (2009). Direitos reservados

__________

Vd. último poste da série de 6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4294: Tabanca Grande (136): Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde (1972/74)