O teu "caluanda" mora(va) na ilha de Luanda, perto do centro aonde foste dar formação. O trabalho de motorista de ambulâncias, diga-se de passagem, não é pêra doce: há uns largos anos atrás, talvez em finais da década de 1990, a sua ambulância fora metralhada num musseque dos arredores (ele disse-te o nome, que não fixaste, talvez Sambizanga, onde vivem cerca de 250 mil almas emparedadas ), quando um "grupo de bandidos" tentava assaltar a casa de um "fulano ricaço" (sic)...
Os "bandidos, que não sabiam ler" (sic), confundiram o "tinonim" da ambulância com o carro da polícia... Houve feridos graves, doentes baleados dentro da ambulância; mas, mesmo com os pneus furados, e o assento do motorista "crivado de balas", o teu herói lá conseguiu safar-se, são e salvo... Na altura até foi louvado (pelo "nosso Mais Velho", em visita ao hospital)...
Revelou um extraordinário sangue frio e coragem, dois atributos essenciais para se poder sobreviver numa cidade como Luanda de 5 ou 6 milhões de habitantes onde só uma escassa elite, privilegiada, vai tendo por enquanto vida segura e decente. (Só a Norte, no concelho vizinho de Viana, devem viver mais de milhão e meio.)
Esse sangue frio e coragem vêm-lhe do tempo da guerra. É um duplo ex-combatente. Fez duas guerras, ao serviço de duas pátrias... que, aos seus olhos, se completam: "Nasci português, hei de morrer angolano"....Tem muitas histórias para (e por) contar.
Rapidamente criaste com ele um laço de cumplicidade e empatia, típicas dos ex-combatentes.
De facto, nada como dois ex-combatentes encontrarem-se, beberem um copo e começarem a desatar os nós da memória .... Não foi preciso copo nenhum, ele era um homem simples, prestável, falador e afável...
Resumindo: fizera a "guerra colonial" , do lado português, com "muita honra" (sic), por volta de 1972/74 ou até talvez 1973/75 (já não podes precisar). Era furriel miliciano.
Serviu "a sua pátria de então" (sic), diz-te com naturalidade e sem qualquer subserviência nem complexo de culpa. Sentia-se português, tinha sangue transmontano do lado paterno, o trisavô, desterrado (como muitos outros primitivos colonos), ainda conhecera e privara com o "Kimuezo", "o homem das barbas grandes", o lendário Zé do Telhado. (Falecido em 1875, está sepultado na aldeia de Xissa, Mucari, Malange; o seu túmulo ainda hoje é venerado pela gente local.)
Quando "os sul-africanos, os zairenses e outros bandidos" (sic) invadiram Angola, "sua terra natal", as FAPLA (Forças Armadas para a Libertação de Angola) convocaram-no para as suas fileiras. Foi então promovido ao posto de 1º tenente de infantaria, comandando cerca de 70 homens (se bem percebeste). Participou em várias batalhas. E lá ficou na tropa e na guerra até à desmobilização, em finais de 1980... Como "já não sabia fazer mais nada", aos 37 anos deram-lhe uma ambulância para conduzir... Ganhava mal mas tinha um emprego.
Também se queixava, tal como os antigos combatentes portugueses, de o Estado angolano os ter abandonado à sua sorte, com "muitas centenas de milhares de camaradas deficientes, incapacitados"... (Curiosamente, deixaste de ver, como há 10 anos atrás, os "estropiados de guerra", atravessando as ruas sujas da cidade, como cangurus, aos saltos nas suas muletas de pau.)
Também esteve na província do Cuando Cubango. onde foi um dos bravos da batalha de Cuito Cuanavale, de trágica memória para todos os contendores de um lado e do outro, angolanos, cubanos, sul-africanos, e até conselheiros soviéticos (quando o muro de Berlim ainda estava, fisica e simbolicamente, de pé)... Nessa altura fazia a segurança ao hospital de campanha na retaguarda onde viu coisas que nunca contará aos filhos e netos: amputar pernas e braços a sangue frio, sem anestesia; fuzilamentos de "rebeldes da Unita"; atos de sodomia entre angolanos e cubanos, enterrados nas trincheiras lá nas "terras do fim do mundo"....
Mas a cena mais dramática da guerra que tera vivido, não foram tanto os bombardeamentos maçiços da artilharia, cavalaria e aviação dos sul-africanos no sul, foi sim uma emboscada às portas de Luanda (a cerca de 100 km, se bem percebeste), a um coluna de várias viaturas guarnecidas por um grupo de combate que ele comandava, composto por cerca de 30 homens.
Tens dúvidas se foi na altura da batalha de Quifangondo (em 10/11/1975) nas imediações de Luanda, ou se foi no âmbito da batalha do Ebo, mais longe, a sudeste... Em qualquer dos casos, o desfecho destas duas batalhas foi fundamental para reforçar a posição do MPLA e do seu braço armado, as FAPLA
Pela descrição da batalha do Ebo (no portal cubano EcuRed (que não pode todavia ser considerado uma fonte independente), inclinas-te mais para a primeira hipótese, a da emboscada em que caiu a coluna comandada pelo teu motorista, ter ocorrido no âmbito da batalha de Quifangondo, a escassa centena de quilómetros de Luanda, a nordeste.
Nessa altura as forças que apoiavam a FNLA, o Exército Nacional de Libertação de Ang0la (ELNA), já tinham tomado o Caxito, estando às portas de Luanda. Eram constituídas pelos "comandos do coronel Santos e Castro" (sic), por forças do exército regular do Zaire, e por uma unidade de artilharia dos sul-africanos, mais um grupo de mercenários, esclareceu-te o teu motorista.
Sobre batalha de Quifangondo (em 10 de novembro de 1975), vd. aqui o depoimento do general António França 'Ndalu' (chefe do Estado-Maior da 9ª Brigada, uma unidade das FAPLA, criada uns meses antes para "defender Luanda das investidas do inimigo contra a capital, nos dias que antecederam a Independência, no dia 11 de Novembro de 1975").
Já agora leia-se, com atenção, também o seguinte comentário de um anónimo (entre muitos outros, que entretanto surgiram no seguimento daquela entrevista):
"O que o General António dos Santos França, na altura Comandante N´Dalu, não mencionou, talvez por não lhe ter sido perguntado, foi a constituição da 9ª Brigada . Estavam incluídos nela os melhores guerrilheiros das então FAPLA, e principalmente militares angolanos desmobilizados das forças portuguesas, onde se incluiram também paraquedistas e comandos portugueses.
Ouvi pessoalmente oficiais cubanos a elogiarem a preparação destes militares do contingente de Angola nas forças portugueses. Foi a 9ª Brigada e os cubanos quem destroçaram as forças da FNLA/Zairenses/sul-africanos a norte, e perseguiram os sul-africanos estacionados próximos de Porto Amboim até à fronteira, no Cunene.
Paradoxal e infelizmente, a maioria dos militares da 9ª Brigada foi fuzilada dois anos depois, nos acontecimentos do [27] de Maio [de 1977]".
É muito possível que o teu motorista fosse um daqueles jovens, desmobilizados do exército português, que se ofereceram como voluntários para a 9ª brigada, ou foram recrutado à força... (Sobre os trágicos acontecimentos de 27 de maio de 1977 tiveste o bom senso de não lhe fazer perguntas, era um assunto-tabu em Angola naquela época; mas recordas-te de um jovem economista, assessor do ministério da saúde te ter confidenciado, à meia-voz: "sabe, o meu pai saiu de casa na madrugada do dia 27 de maio, e nunca mais voltou")
Tens de admitir também a hipótese de o teu motorista ter participado na batalha do Ebo onde haveria de morrer o comandante cubano Raul Díaz-Argüelles (1936-1975), em 11 de dezembro de 1975 (um mês depois da proclamação da independência de Angola).
Recorde-se que o Diaz-Argëlles também passou pelo teatro de operações da Guiné, em 1972, ao tempo da guerra colonial, tendo ajudado o PAIGC a planear a operação contra Guileje.
A batalha do Ebo, a sudeste de Luanda, a par da batalha de Quifangondo, a nordeste de Luanda, foi decisiva para suster o avanço das forças anti-MPLA que pretendiam impedir a proclamação da independência em Luanda pelo partido de Agostinho Neto.
É bom lembrar que, à revelia da potência colonizadora, Portugal, e do Acordo do Alvor (janeiro de 1975), cada um dos três movimentos nacionalistas proclamou a independência de Angola em sítios e datas diferentes: a FNLA no Uíge, a UNITA no Huambo e o MPLA em Luanda.
Não tiveste oportunidade, nas conversas esporádicas que mantiveste com o teu motorista (afinal , em escassas e fugidias duas vezes, em que o assunto veio à baila, no trajeto até ao aeroporto) de esclarecer este e outros pormenores importantes das suas histórias de guerra... que ele sempre te contou, "sem filtros", com a espantosa naturalidade e candura dos africanos...
Ias em geral com um ouvido atento à conversa com o condutor e um olho no vidro da janela do teu lado... Reconstituias a tua conversa com ele, já depois no avião de regresso a Lisboa, no teu "diário de bordo".... E podes estar a ser traído pela memória. Mas confias na boa fé do teu amigo angolano.
Essa emboscada (com apoio de artilharia) poderia ter sido quando as forças sul-africanas, que invadiram Angola, chegaram até ao sul do Ebo, na província do Cuanza Sul, ameaçando Luanda. Os angolanos e os cubanos destruiram as pontes e sustiveram o avanço dos invasores justamente no Ebo (município a 300 km de Luanda).
Segundo o depoimento do teu motorista, nessa emboscada, as viaturas foram todas destruídas, as FAPLA tiveram cerca de 2/3 de baixas mortais, incluindo 7 cubanos.
Conversa puxa conversa, diz-te que "já não há bandidos na ilha de Luanda e no centro de Luanda". A polícia "limpou-os" (sic). A esta hora, 6 da manhã, há grupos de 3 e 4 brancos (presumivelmente estrangeiros, incluindo portugueses, a viver e a trabalhar em Luanda) que andam a fazer "jogging" na marginal. Com relativa descontração.
As praias estão "limpas", contrariamente ao que se via há uns anos atrás... A zona agora é "turística" (sic), as barracas dos pescadores desapareceram... Enfim, a cidade mudou, "para melhor", há obras por todo o lado... "Bandido é no musseque onde a polícia não entra" (sic). Também por delicadeza não abordas a questão dos "esquadrões da morte", de que ouviras falar.
Tinhas-lhe prometido trazer uma garrafa de vinho de Lisboa. Deixaste-lhe kwuanzas para beber um copo à tua saúde e à condição de ambos como antigos combatentes, homens da mesma geração, nascidos sob a mesma bandeira, falando a mesma língua...
Percebeste então melhor porque é que os nossos amigos angolanos, são pessoas que vivem com tanta intensidade o dia que passa e manifestam publicamente a sua felicidade, através da comida, da bebida, do sexo, da música, da dança.
Confessas, por outro lado, a tua grande ignorância em relação à história e à geografia de Angola, apesar de lá ires já desde 2003...
Por exemplo, Cuando Cubango... É uma província situada no sudeste do país. Verificas que é limitada a norte pelas províncias do Bié e Moxico, a leste pela República da Zâmbia, a sul pela República da Namíbia e a oeste pelas províncias da Huíla e do Cunene (onde a guerrilha da SWAPO tinha bases e campos de refugiados, e onde as tropas sul-africanas faziam "raides" punitivos, atravessando impunemente a fronteira).
A capital da província é a cidade de Menongue e dista de Luanda mais de mil km e de Cuito menos de 350 km. Tem cerca de 140.000 habitantes e ocupa uma superfície duas vezes superior a Portugal...
É constituída pelos municípios de Calai, Cuangar, Cuchi, Cuito Cuanavale, Dirico, Mavinga, Menongue, Nancova e Rivungo. O clima é tropical no norte da província e semi-árido no sul. Esta região de Angola, "terras do fim do mundo", é conhecida atualmente como "terras do progresso», devido ao seu grande potencial económico, praticamente por explorar.
Mas voltando à guerra, à chamada segunda guerra da independência em que participou também o teu motorista.... Durante muito tempo alguns municípios (como Mavinga, Dirico, Cuchi e Cuito Cuanavale) serviram como bases de apoio à guerrilha da UNITA, liderada por Jonas Savimbi, que só abandonou completamente estes territórios (a "Jamba") em finais de 2001, aquando da última (e decisiva) ofensiva das forças armadas angolanas.
É sabido que o movimento do Galo Negro recebeu apoio dos EUA e da África do Sul, na luta contra contra o MPLA, que por sua vez era apoiado pela União Soviética e Cuba. Estava-se em plena guerra fria. Angola era uma peça importante no tabuleiro do xadrez da geopolítica mundial, sendo cobiçada pelas potências neocloniais pelas suas riquezas (o petróleo, os diamantes) mas também era fundamental para a sobrevivência do regime de supremacia branca na África do Sul...
A batalha de Cuito Cuanavale terá sido o maior confronto militar da guerra civil angolana. Foi um batalha sangrenta e prolongada durante mais de 4 meses, entre 15 de novembro de 1987 e 23 de março de 1988.
Foi aqui , na província de Cuando Cubango , e mais concretamente no munícipio de Cuito Cuanavale, que as FAPLA, apoiadas pelos cubanos e com armamento soviético, se confrontaram com as forças da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), apoiada pelo exército sul-africano.
Foi considerada a batalha mais longa travada no continente africano desde a Segunda Guerra Mundial. Nesta batalha de Cuito Cuanavale, foi posto em cheque o mito, aos olhos dos angolanos, da invencibilidade do exército "racista" da África do Sul, garantiu-te, com visivel orgulho e patriotismo, o teu motorista.
Independentemente das duas partes terem clamado vitória, a África do Sul terá sido obrigada a reconhecer tacitamente senão a superioridade, pelo menos a capacidade de resistência, resistência e coragen demonstrada pelas FAPLA (e seus aliados cubanos) no campo de batalha. (Para os cubanos, Angola terá sido o seu Vietname, é bom não esquecê-lo...).
Isso explicará a posterior assinatura dos Acordos de Nova Iorque, ponto de partida para o fim de um conflito que afinal não era apenas uma guerra civil, nem um simples conflito regional.
Como é sabido, a implementação da resolução 435/78 do Conselho de Segurança da ONU vai levar à independência da Namíbia e apressar o fim do regime de segregação racial, que vigorava na África do Sul.
Se tu conseguires ainda voltar a Angola (o que já te parece cada vez menos provável) , esperas poder reencontrar, vivo e com saúde, o teu amigo motorista, que serviu duas pátrias, e agora andará pelos os seus 70 anos... e se possível com a mesma sabedoria e alegria de viver do homem comum angolano. E continuar a tua conversa, agora à mesa d me uma esplanada de um bar da ilha de Luanda com vista para o nosso comum oceano Atlântico....E, de preferência com um bom copo de vinho tinto português. Há conversas, entre combatentes, que não acabam mais (ou merecem ser prolongadas, melancolicamente, pela tarde dentro, aguardando o pôr-do-sol tropical)...
Lisboa, julho de 2013. Revisto, janeiro de 2024.
_________________
Nota do editor:
(*) Último poste da série > 7 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24926: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (13): O cruzeiro das nossas vidas