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sábado, 21 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23282: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte V

1. Parte V da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Buba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte V

Como já tive ocasião de mencionar atrás, tudo fiz para criar todas as condições que me levassem a ter uma comissão tranquila o mais possível nesta minha passagem pela Guiné. Porém, nem o Comandante nem o segundo Comandante me deram tréguas até ao último dia que passei no Pelundo.

Depois de logo no início ter recusado ao segundo Comandante (Major Pinho) o álcool para limpar o cachimbo, tivemos mais uma pega passado pouco tempo.

De Bissau, e juntamente com os medicamentos que mensalmente eu requisitava, o primeiro-sargento da CCS, que chefiava este serviço, juntou particularmente umas embalagens de Dum-Dum para o pessoal de saúde. O Major, que mal desconfiava da chegada dos caixotes com material sanitário, aproximava-se da porta do posto médico para dar uma espreitadela ao que vinha nos ditos caixotes. Ao ver as embalagens de Dum-Dum, voltou-se logo para mim dizendo que ele e o Comandante também tinham direito a serem contemplados. Para me ver livre dele, dei-lhe duas embalagens com a condição de uma delas ser para o Comandante.

Passados dois dias já estava a pedir mais uma embalagem porque já tinha gasto a que lhe tinha dado. Disse-lhe que não, já que as existentes eram do pessoal de saúde porque se tratava de uma oferta tal como dois frascos de “Oratol” que me eram oferecidos. Zangou-se ficando furioso comigo. Acabei de o comtemplar com um frasco de inseticida para encher uma bomba a fim de matar os mosquitos.

Este Major criou o hábito de pedir às jovens que o deixassem tirar-lhes fotografias. Mas tentava sempre que colocassem as mamas ao léu para mais tarde as poder projetar. Não concordando eu com a atitude deste homem e militar com grandes responsabilidades, contrariando também com tudo que eu tentava fazer junto da população, falei com as jovens para não se deixarem fotografar. Sabendo que a recusa delas se devia a uma ordem minha, fez-me ameaças de prisão para mim mal me apanhasse em falta. A guerra entre nós dois acentuou-se. Eu já não podia ver semelhante militar.

Deste modo, e dado me ameaçar com prisão constantemente, todas as oportunidades que fui tendo para lhe moer o juízo, tudo fiz para não deixar perder nenhuma.

Em frente da residência que tinha sido construída para os Professores que fossem colocados no Pelundo, para dar aulas na Escola anexa a esta residência e, quase também em frente desta, foi também construído um chafariz. No dia da sua construção, foi colocado um Milícia a vigiar o mesmo, enquanto o cimento estivesse fresco.

Nessa tarde, e como era meu hábito entre o fim da hora de serviço e o jantar, fui dar o meu passeio pela aldeia. Aproveitei também para ir dar uma injeção à Professora. Esta, encontrando-se adoentada, solicitou-me que o tratamento que o médico lhe havia receitado não fosse efetuado senão por mim e na sua residência, já que no Posto Médico não havia a privacidade que ela desejava ter.
Nessa tarde, aproveitei também para ver o chafariz e conversar um pouco com a Professora mais o irmão que vivia com ela. Depois de lhe ter administrado a injeção convidaram-me para jogar com eles uma partida de cartas.

Estávamos os três (eu a professora e mais o irmão desta) assim entretidos, quando o Major passou de jipe em frente do chafariz e não parou, seguindo em frente nessa estrada que poucas casas ou palhotas tinha. O tempo passou e começou a escurecer. Comentei para a Professora e para o irmão que estava a achar estranho não ver o Major de regresso para o Quartel. Nisto, o Milícia, que se encontrava como atrás descrevi a guardar o chafariz, veio ter comigo dizendo-me baixinho que o Major se encontrava na esquina de uma palhota e atrás da residência da Professora a espiar-me. Como já era bem escuro, levantei-me do lugar onde me encontrava sentado e, elevando bem a minha voz preguntei: – Quem será o filho da p… que se encontra ali no escuro a espiar-nos? – Ora se fosse a espiar a c… da mãe dele! Regressei ao meu lugar e reparei que a Professora tinha ficado vermelha que nem um tomate bem maduro apesar de ter cor bem morena. Baixinho, foi-me dizendo que eu poderia vir a ter graves problemas com Major. Voltei a levantar a minha voz dizendo que de noite todos os gatos são pardos. Continuei dizendo que quem quer que fosse e que estivesse ali a espiar-nos não passava de um cobarde. Deixei-me ficar por mais cerca de uma hora e só depois me dirigi ao Quartel. Confesso que mal dormi nessa noite.

Na manhã seguinte e como me era habitual, fui tomar o pequeno-almoço já com a messe de Sargentos fechada. Estava eu tranquilo a beber o café com leite quando entra de rompante o Major gritando para os cozinheiros e dando-lhes uma grande reprimenda por me estarem a servir o pequeno-almoço aquela hora. Foi dizendo que ele o Major e Segundo Comandante levantava-se antes das sete da manhã para tomar o pequeno-almoço antes das oito horas e, por isso, não tinham que me estar a servir naquela hora. Estes, muito aflitos e tremendo como varas verdes, responderam-lhe que não eram capazes de me negar o pequeno-almoço naquela hora até porque eu estava sempre disponível para eles fosse a que horas fosse. Achei então que deveria interferir e virei-me para o Major disse-lhe. – Eu, Figuinha de nome e Furriel Enfermeiro, levanto-me pelas oito horas da manhã para tomar o pequeno-almoço antes das nove horas, mas Major, se o senhor partir a cabeça pelas três da manhã, esteja descansado que me levantarei para lhe cozer a cabeça. Vendo que eu lhe tinha tirado os argumentos, virou o disco à conversa e pediu-me para ir ver uns pés de tomateiros que havia mandado plantar em volta do refeitório das praças e que, segundo ele, estavam a morrer. Respondi-lhe que fosse andando que eu lá iria dar uma espreitadela. Assim o fiz.

Na verdade, quando cheguei junto aos tomateiros, verifiquei que estavam morrendo.
Apareceu junto a mim o condutor do Major muito aflito com o que estava acontecendo e foi-me contando que tinha perdido o adubo que o meu colega da Granja de Teixeira Pinto lhe tinha entregado a meu pedido. Como o adubo era parecido com o sal, foi à cozinha pedir aos cozinheiros uma quantidade que aplicou junto aos pés dos tomateiros. Fiquei rapidamente a saber as causas da morte destas plantas. Baixinho, não fosse o Major ouvir já que não se encontrava muito afastado de nós, disse-lhe que o sal tinha queimado as plantas.

O soldado ficou logo a tremer de medo das possíveis consequências que lhe poderiam acontecer acaso o Major viesse a saber. Tranquilizei-o, dizendo-lhe que eu não diria nada ao Major e que iria tentar encontrar outras justificações para o sucedido. Calmamente, fui verificando os caules das plantas procurando alguma causa. Encontrei logo de seguida um tomateiro atacado pela rosca que perfurando o caule o fragiliza. Esta lagarta, eliminando o cerne por onde a planta se alimenta, provoca-lhe a morte. Chamei o Major para lhe mostrar a lagarta causadora da doença.

Neste mesmo instante passava por nós um cabo cripto que vinha assobiando de contente. O Major chamou-o gritando e perguntou-lhe de onde vinha. O cabo respondeu que vinha da aldeia. Então, a besta do Major aplicou-lhe logo uns murros e pontapés ao mesmo tempo que lhe ia dizendo que sendo detentor de segredos militares, não podia nem devia andar a passear fora do Quartel. Eu, apercebendo-me que o Major estava a vingar-se nele por não ter tido hipóteses de se vingar em mim, intervim dizendo-lhe que era uma barbaridade o que estava a acontecer. Parou, respirando fundo, lá foi pedindo-me desculpas dizendo-me que tinha perdido a cabeça.

O dia não ficou por aqui. Disse-lhe para ir até ao Posto Médico que eu iria a seguir ter com ele para lhe dar um remédio para aplicar nos tomateiros a fim de matar a lagarta.

Estava eu aproximando-me do mesmo, verifiquei que o Major atrevido foi apalpar as mamas de uma moça que esperava por consulta. Ela virou-se num repente, pregando-lhe uma valente bofetada. O Major recuou atarantado. Porem, foi perguntando se só o Furriel Figuinha tinha ordem de lhe apalpar as ditas mamas. A moça, sem mais, levantou a blusa e virando-se para mim pediu para lhas apalpar dizendo que a mim dava autorização para o fazer. Ele, ficando pálido, virou as costas, mas foi-me dizendo que ao meu mais pequeno descuido me aplicaria quarenta dias de prisão. Não lhe dei qualquer troco. Até ao fim da comissão as guerras entre nós os dois foram uma constante.

Um outro acontecimento, bem desagradável entre nós os dois, aconteceu numa altura em que o Médico se encontrava ausente, como no caso anterior. Numa das noites e após o jantar, encontrando-me ainda na messe com mais uns Sargentos e alguns Furriéis, entrou o Major que dirigindo-se a mim foi dizendo que se sentia adoentado com muitas dores de garganta. Pediu-me então medicação para o seu posto, ou seja para Major. Respondi-lhe que não entendia onde queria chegar já que todos os medicamentos que possuía não tinham posto militar. Estes, tanto eram para os Soldados como para os Oficiais. Voltou de novo ao princípio da conversa dizendo que ele tinha razão dando como exemplo as aspirinas do Laboratório Militar e as da Bayer. Que as da Bayer seriam para os quadros superiores e as do Laboratório Militar para os soldados e quadros intermédios. Perante o olhar perplexo de todos, já que segundo a ótica do Major se encontravam no segundo escalão, respondi-lhe que não concordava com a sua análise, ao mesmo tempo perguntei-lhe senão confiava nos medicamentos do Laboratório Militar e, caso afirmativo, teria que informar a Direção de Saúde Militar, em Bissau, bem como lhe disse que as aspirinas da Bayer, que possuía no Posto Médico, se destinavam ao pessoal do mesmo, pois tinha sido uma oferta de Bissau. Aproveitei sim, para lhe dizer que na verdade eu lá possuía material com divisas militares. Um desses materiais eram as agulhas para dar as injeções e, como tal, tinha lá uma com o posto de Major. Esta era comprida e grossa e já com a ponta bem virada e com alguma ferrugem. Deste modo, só lhe restava escolher entre a agulha ou os comprimidos. A agulha, apesar de ponta virada, entraria nem que fosse a murro e, ao sair, lhe faria um rasgo na nádega de modo a nunca mais se esquecer de mim. Prefiro engolir as pastilhas, disse-me ele logo a seguir, acrescentando que lhe fosse levar os comprimidos ao seu gabinete.

Logo que o Major saiu da messe, vários comentários foram feitos pelos presentes. Uns dizendo que eu me tinha excedido e como tal poderia ter consequências desagradáveis. Uns outros, mas poucos, enalteceram a minha coragem perante a arrogância do Major. Confesso que fiquei extremamente nervoso, mas não poderia deixar passar a imagem de que o exército possuía medicação conforme as patentes e, como tal, eu faria tratamentos diferenciados. Saí da messe e dirigi-me ao Posto Médico para encontrar medicação de acordo com as queixas que ele me apresentou, e que eram de uma gripe.

Com a medicação em meu poder, lá fui ter com esta encomenda ao seu gabinete. Aqui, voltou a provocar-me. – O que me estás a dar não serão comprimidos anticoncessionais? Respondi-lhe que não possuía tais medicamentos dado que não havia mulheres no Quartel. Respondeu-me dizendo que eu estava muito errado já que no Quartel havia muitas meninas disfarçadas em homens. – Mas não será veneno para me matares? – Voltou ele perguntando. Respondi-lhe de novo que ficasse descansado pois não tencionava matá-lo já que, se o fizesse, teria que gramar com um outro que o viesse substituir. Acrescentei que a ele já lhe conhecia as manhas e, acaso viesse outro, teria que demorar tempo a conhecer. Virei costas não lhe dando mais conversa.

Ao passar pela porta do quarto do Capelão, este chamou-me baixinho, dizendo-me que tinha ouvido a conversa entre mim e o Major e que tinha ficado preocupado. Foi-me dizendo que tivesse mais cuidado. Neste momento senti uma pancada nas minhas costas. Era o Major que, dirigindo-se ao Capelão, lá foi dizendo que eu era uma grande encomenda. Calmamente, retirei-me não alimentando mais o assunto.

A minha guerra com este personagem continuou. Um fim de tarde, altura em que por norma as jovens da aldeia e algumas já menos jovens levavam a roupa aos nossos militares, fazendo estas entregas junto da porta de armas e recolha de roupa suja, como também, recebiam o pagamento pelo trabalho prestado. Dizia eu que, numa dessas tardes, encontrava-me mais o Médico Dinis Calado e o Alferes Tunes em conversa com a jovem Judite que cuidava da minha roupa, bem como da do Médico, do Major Pinho e do Tenente Coronel Romão Loureiro. O tema da conversa era sobre a forma como ela se relacionava comigo. Os dois (Médico e Alferes) estavam fazendo-lhe perguntas provocatórias que ela, muito inteligente que era, ia dando a volta. Eis que aparece o Major vindo de Jipe e dirigindo-se à jovem, a íntima a ir cumprimenta-lo. – Então Judite, não vens cumprimentar o teu Major? Respondeu-lhe ela logo de seguida. – Não Major, o Figuinha não deixa. Bem, fiquei sem fala e o mesmo acontecendo ao Médico e ao Alferes que, ao meu lado, permaneciam. O Major baixou a cabeça e, carregando no pedal do Jipe, entrou em aceleração no Quartel. Médico e Alferes olharam para mim e comentaram que mais um problema eu teria pela frente. Ela, sorridente com a vitória que acabava de obter sobre aquela espécie de militar, acabou com a conversa e foi de regresso a casa. Sobre esta jovem escreverei mais na parte final do meu testemunho.

No dia seguinte, mal o Major me avistou de novo, ameaçou-me dizendo que no dia que me apanhasse em falta, me aplicaria quarenta dias de prisão. Para mim, foi mais uma que me passou ao lado.

Por orientação superior ou por vaidade dele, mandou construir no meio do Quartel uma espécie de monumento com as inscrições e emblema do nosso Batalhão. No dia anterior ao por ele destinado a ser inaugurado, mandou para a prisão (dez dias) o Alferes Tunes meu amigo e do Médico. A consternação deste caso foi geral entre todos nós. Nessa noite, eu, Médico e vários soldados e Furriéis fomos curtir as mágoas no bailarico. Procuramos regressar perto da meia-noite e, já no Quartel, o Médico fez um pequeno discurso virando-se para o local onde o Major estaria a dormir e, ao mesmo tempo, um pequeno grupo onde eu me incluía, demos início à inauguração, urinando sobre o dito monumento. O grupo era fixe para não dar com a língua nos dentes já que, se o Major viesse a saber, tínhamos o caldo entornado!

Por último, e para não escrever muito sobre esta personagem, no fim da comissão e no dia de regresso a Bissau, procurou-me para me dizer que eu não iria juntamente com os outros militares, mas sim, com ele no Jeep. Achei muito estranho este convite, mas calculei logo quais os motivos. Deste modo, mal chegamos a Bissau e o condutor nos levou até à porta do Hotel onde ele se alojava, dirigi-me ao Major dizendo-lhe que o convite que me havia feito foi para lhe servir de guarda-costas no percurso. Atrapalhado por verificar que eu tinha descoberto os motivos da minha companhia no jipe, começou a gaguejar e pediu ao condutor para me levar sem mais demoras ao local onde eu fosse ficar alojado, esperando o dia de embarque para Lisboa. O Major, sabendo do quanto eu era estimado pela população e estes tendo familiares na guerrilha, não me iriam fazer mal como em outras tantas vezes, eu já tinha feito aquele percurso.

(Continua)

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Nota do editor

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quinta-feira, 19 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23278: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte IV

1. Parte IV da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte IV

Sobre o assassinato dos Majores e para que fique registado como a mancha mais negra que trouxe da Guiné, foi este acontecimento.

Recordo como fosse hoje. Dia vinte de Abril de 1970. Cerca de dois meses antes sentimos sopros de liberdade e que a guerra se aproximava do fim. Naquela zona da Guiné, as nossas tropas movimentavam-se com liberdade havendo ordens de se evitarem contactos com o PAIGC. As escoltas para Bissau faziam-se sem armas. O Chefe da guerrilha da zona esteve no nosso Quartel trocando impressões com o nosso Comando. Levou umas caixas de batatas porque disse ele terem armas, mas não alimentos. Soldados nossos que gostavam de caçar, infiltravam-se no mato com muita tranquilidade.

Dia vinte de Abril. Levantei-me cedo para apanhar a escolta em mais uma ida minha a Bissau. Manhã cinzenta e triste.

 Verifiquei um movimento fora do normal no Quartel. Procurei saber o que se estava a passar. Baixinho me disseram que uns Majores iam para uma reunião com a guerrilha para acertarem o fim da guerra na Guiné.

Parti na escolta para Bissau sem qualquer arma de defesa tal como todos os militares que na mesma iam, com a missão de me protegerem e aos outros que a consultas externas iam ou para férias.

De regresso ao fim da tarde quase noite depois de a jangada ter atravessado o Rio Mansoa, uma patrulha chefiada pelo alferes Francisco da nossa Companhia 86, muito nervoso por nos ver sem qualquer arma de defesa, se dirigiu a mim como o mais graduado da escolta, para termos o máximo dos cuidados de não ligarmos as luzes dos meios de transportes que tínhamos porque se encontrava um grupo de guerrilha estranho na zona e que os Majores ainda não tinham regressado do mato o que era muito estranho e que algo estava fora do controle. 

Fiquei como todos os que comigo se encontravam em pânico.
Felizmente fazia luar. Todos nós apoquentados por não termos meios de defesa em caso de ataque da guerrilha. Em grande aceleração já que a estrada bem alcatroada o permitia como também, o luar nos iluminava.

São e salvos chegámos já bem noite ao Quartel no Pelundo. O ambiente que encontrei era pesado demais para o habitual. Toda a gente de rosto cabisbaixo. Na aldeia quando por lá tínhamos acabado de passar não se viu ninguém nas ruas. Perguntei ao primeiro militar com quem me cruzei o que se passava. Resposta seca. – Os Majores ainda não regressaram!

Aproximei-me da zona de Comando e o vai e vem era enervante. Soube naquele momento que a maior tristeza era não poder sair qualquer patrulha nossa ao encontro dos nossos Majores e demais acompanhantes. Tinha sido negociado um compromisso de, durante vinte e quatro horas, não haver qualquer movimento das nossas tropas para se evitarem confrontos. Tudo bem estudado pelo inimigo. Mesmo assim, os nossos militares e acompanhantes arriscaram já que, tinham como missão tentar acabar com a guerra.

Com uma noite mal dormida derivado a toda a agitação do dia anterior, levantei-me mais cedo que o habitual e, logo deparei com o General Spínola muito agitado e a chorar.

Soube que as nossas tropas tinham saído de madrugada à procura dos nossos Majores e demais acompanhantes. Dirigi-me rapidamente para o Posto Médico para saber pelo Dr. Dinis Calado quais os preparativos a tomar. Não foi necessário esperarmos muito porque vimos chegar a patrulha com as viaturas onde os nossos se tinham deslocado e, os corpos esfacelados, noutras viaturas.

Acompanhei o Médico até junto dos corpos para este examinar as causas das mortes e, se possível há quantas horas os casos teriam acontecido.  Com eles tinha seguido também um representante do Governo da Gâmbia que também todo cortado apresentava as suas mãos esfaceladas só em pedacitos de pele tanto como, os dois ex-guerrilheiros que com eles seguiram para servirem de intérpretes.

Verifiquei também que os jipes tinham os capôs com descrições a giz onde se podia ler o seguinte: - Nem só com homens as guerras se ganham.

Uma onda de raiva percorreu todo o meu corpo. Andei dois dias sem poder encarar um negro. A população da aldeia receosa não saiu de casa. Porem, ao fim da tarde do segundo dia, um grupo de homens vieram pedir armas e seguirem com os nossos para o mato procurando os assassinos. Este gesto da população veio a acalmar os ânimos.

Esta era a quarta e última reunião agendada com a guerrilha do Norte da Guiné para, a partir desta parte do território levar ao fim o conflito.

O Major Pereira da Silva que tinha conhecido em Buba, por várias vezes tinha-se encontrado com a guerrilha inclusive, dormido em seus acampamentos. O Major Passos Ramos conheci-o pouco tempo antes, quando veio ter comigo ao Posto Médico pedir-me uma aspirina para as dores de cabeça que naquele dia sentia, mas, só se não fizesse falta para os soldados. Homem extraordinário e muito estimado pelos nativos daquela zona. Do Major Osório, só de ouvir falar muito dele e das suas capacidades operacionais que tantas baixas iam causando ao PAIGC.
 
O Alferes Miliciano Mosca (meu colega de profissão civil) fazia parte dum grupo destinado à acção psicológica, da qual eu fazia parte também.

Devo acrescentar que os nossos militares foram para esta reunião sem com eles levarem qualquer arma conforme o combinado e, era também norma, a guerrilha não ter armas nestas reuniões. Acontece que estes guerrilheiros foram surpreendidos por um outro grupo de altas patentes contrárias ao fim do conflito. No grupo da guerrilha que se encontrava com os nossos, havia um infiltrado para dar o golpe final e liquidar de uma só vez a chamada fina flor dos nossos oficiais na Guiné.

Muitos fuzilamentos viemos a saber que aconteceram entre aqueles com quem os Majores se encontravam. Aos naturais de Cabo Verde que chefiavam o PAIGC não interessava os objetivos que se prepunham nestas reuniões e que eram acabar com a guerra. Daquela forma eles não faziam parte dos resultados finais, ou seja, de dois países unidos e independentes. Cabo Verde ficava sem qualquer hipótese de se tornar um país independente porque nunca foi Colónia de Portugal, mas sim, ilhas povoadas pelos Portugueses.

Com aqueles acontecimentos foi meu pensamento que Amílcar Cabral tinha os seus dias contados. Os guerrilheiros interessados no fim da guerra, e que escaparam aos fuzilamentos, não mais lhe perdoariam ter autorizado aquele massacre, isto porque Spínola mandou bombardear todas as bases conhecidas causando muitas baixas à guerrilha.

Ainda hoje ao escrever estes acontecimentos, retenho as imagens do passado que são as lembranças mais dolorosas daqueles tempos. Soube anos mais tarde por um colega meu natural da Guiné e que várias vezes com ele me encontrava em Lisboa, que o infiltrado naquele grupo e se gabava de ter matado os Majores, tinha posto fim à sua vida na prisão onde foi parar numa das várias revoltas que lá aconteceram, enforcando-se nesta. Teve o fim que merecia.
Pelundo > Dia da inauguração da escola e da residência para o professor, pelo General Spínola. Este fez um discurso arrasador para o Régulo Vicente. Isto aconteceu pouco tempo após o massacre dos três Majores, do Alferes, do representante do governo da Gâmbia e dos três ex-guerrilheiros do PAIGC.

Voltando ao meu dia a dia no Pelundo, breves dias depois da inauguração do Posto Médico Civil e da Escola, esta começou a funcionar com uma professora de origem cabo-verdiana, mais um irmão que a complementava. Cabe-me dizer, que a Escola possuía lateralmente residência para os professores.

Um dos casos de saúde que muito, desde então até aos dias de hoje, me preocuparam e me deixam indignado, está relacionado com as jovens, e algumas já menos jovens mulheres, que vão sofrendo mutilações sexuais.

A certa altura no ano de 1970 fui chamado por dois adultos ligados à família de Régulo Vicente, para os poder acompanhar a uma zona nos arredores da população e, deste modo, verificar alguns casos de saúde. Achei estranho, pedirem-me para ir fora do perímetro da população já que, ou vinham ao posto médico ao quartel ou solicitavam ajuda à companhia para fornecer meios de transporte para estes casos. Confesso que pensei duas vezes mas, falando para dentro de mim, achei que não deveria mostrar receio e confirmei que os seguiria e só, conforme o pedido deles.

Receoso à medida que muito me afastava para o interior do mato, chegamos a uma clareira onde se encontrava um grupo de jovens, neste caso rapazes. Seminus, com uma espécie de forquilha presa à anca para que o pénis ficasse no meio e, deste modo, não tocar nas suas pernas. Espantado e meio aterrorizado com o que meus olhos observavam, perguntei que barbaridade era aquela? Furiosos com a minha pergunta, resolveram entrar em ameaças já que me encontrava sozinho. Respondi, logo de seguida, que não lhes tinha medo, mas sabe Deus como eu me encontrava fragilizado. Então o que se passava. Fizeram a circuncisão com lâmina e a sangue frio àqueles jovens. Alguns deles apresentavam grandes infeções. Teriam que ser rapidamente tratados com antibióticos, mas queriam que eu me deslocasse lá ao que me recusei imediatamente. Pensaram bem e acabaram por ceder na condição de ser só eu a saber do caso e também apenas ser eu a tratá-los. Aproveitei, a ignorar os acontecimentos e exigir que me informassem do que estava a acontecer às jovens que eu soube se encontravam fora da população. Responderam-me que fazia parte do “Fanado” nas meninas e que constituía no corte do clitóris.

A minha indignação naquele momento foi enorme e acabei por lhes dizer que tudo o que observei e o que não vi, mas que me acabavam de descrever, era um crime de saúde pública pois, no caso das meninas, estavam a privá-las de satisfação de prazer sexual a partir daquele acto. Voltaram a não gostar de me ouvir e repetiram novas ameaças. Virei costas e regressei ao Quartel.

Durante os dias seguintes lá fui tratando das infeções aos rapazes e em algumas jovens também. Acrescento que por fim, aquando na festa final da realização do “Fanado”, reparei que duas ou três mulheres já com filhos faziam também parte do grupo.

Já em Portugal, por várias vezes citei este crime de saúde pública sempre que tinha na minha frente pessoas ligadas à saúde e naturais de África. Houve uma Médica que me respondeu dizendo que este assunto era culpa política do tempo de Salazar. E hoje? Pergunto de novo!
Pelundo > Refeitório dos Sargentos > Um colega da Granja de Bissau mais o chefe da secretaria. Este meu colega de nome Elói ,veio para Lisboa logo a seguir ao 25 de Abril, com quem continuei a encontrar-me.

Voltando de novo à parte militar, cabe-me dizer que quando tive que me ir juntar ao Batalhão no Pelundo e após a travessia do Rio Mansoa, a estrada que tínhamos de percorrer durante muitos quilómetros se encontrava em terra batida tal como a que nos separava da cidade de Teixeira Pinto. Como tal, os sapadores iam primeiro na frente picando o percurso, não fossemos apanhar minas na estrada. Assim, nos primeiros meses, verifiquei não só a construção das nossas novas instalações como aquelas estradas foram alcatroadas e lateralmente foi desmatado, de modo a dificultar ao inimigo realizar emboscadas.

Além do posto Médico e da Escola, foi também construída uma Igreja mais ou menos ao centro da aldeia.
A minha aproximação com a população foi diariamente aumentando, contribuindo para tal a jovem que cuidava da minha roupa de nome Judite. O carinho que ela me começou a dedicar e também todos os seus familiares, tornou-se conhecido na aldeia e no Quartel. Ainda hoje, aquando nos encontros para almoços do Batalhão alguns me falam dela.

Como referi em páginas anteriores, a minha missão na Guiné não se resumia apenas a cuidar da saúde dos nossos militares que comigo se encontravam, mas também da população. Uma outra missão me foi solicitada e se referia a ajudar os locais a cuidar das suas safras, de modo diferente da que efetuavam, de modo a poderem aumentar os seus bens alimentares.

Assim, além do arroz e mandioca, também semeavam feijão e amendoim (aqui conhecido por mancarra). Outras culturas como a bananeira, a papaia, a manga e o coco, sem esquecer o milho e a castanha de caju (esta uma das grandes riquezas da Guiné) mais as palmeiras das quais extraíam o óleo de palma para temperar os seus alimentos.

No Pelundo verifiquei que as culturas de sementeira (exemplo do feijão e do amendoim) após esta, os possuidores destas culturas só lá voltavam para a colheita. Deste modo, observei que as plantas infestantes eram mais que as plantas cultivadas. Acresce, e antes que me possa esquecer, que praticamente todo este trabalho era efetuado por mulheres, muitas delas com idade avançada que, bem cedo, ainda antes do Sol nascer, lá iam de sachola ao ombro para o campo.

As árvores que produziam as mangas, encontravam-se espalhadas ornamentando as ruas da aldeia. Estas árvores frutificavam com abundância, embora do meu ponto de vista técnico de fraca qualidade, já que seus frutos eram resinosos e muito fibrosos. A população mordiscava os frutos sugando o sumo.
As bananeiras que pude ver e observar bem, produziam bananas de tamanho muito reduzido embora muito saborosas. O tamanho do fruto era resultante das plantas não serem podadas. O pé da bananeira que produzir fruto deve ser eliminado para que outro que rebenta possa ser mais forte e assim produza cachos com frutos mais desenvolvidos.
Papaeiras vi muito poucas naquele local. Plantamos no último ano que lá estivemos, e em frente da entrada do Quartel, várias destas plantas frutíferas que foram fornecidas pelo meu colega da Guiné que chefiava a granja de Teixeira Pinto.

Assim, cumprindo a minha tarefa de ajuda técnica agrícola à população, falei com um dos filhos de Régulo Vicente, para acertarmos o dia e o lugar onde poderia dar uma palestra com os chamados Homens Grandes. Deste modo, acertei com eles uma manhã de fim-de-semana para não complicar com o meu horário de trabalho na saúde.

Com todo o grupo reunido num terreno que servia duma espécie de quintal, como previamente se tinha combinado, a palestra seria sobre o cultivo da mandioca cuja farinha era uma das bases da sua alimentação.
 
Este terreno encontrava-se inculto, não cavado e cheio de plantas infestantes. Esta escolha feita por mim teve um propósito de poder verificar em loco, como preparavam a terra. Pedi-lhes então que me fizessem a preparação do terreno conforme os seus hábitos para plantar as estacas de mandioca.

Um dos homens presentes segurou numa espécie de enxada e, com ela, foi virando leiva sobre leiva executando assim o camalhão sobre o qual se espetariam as estacas de mandioca.

Acabado por eles este trabalho, tomei a palavra, dizendo-lhes que com aquele amanho da terra se justificava terem plantas com raízes tão rudimentares que produziam tão pouca farinha tão necessária para a sua alimentação. Aconselhei-os primeiro a cavarem toda a terra, sacudirem dela todas as ervas e então, construírem o camalhão onde com a terra fofa aplicariam as estacas de modo a produzirem raízes grossas e, como tal, mais farinha.

Responderam-me em coro que daquela maneira dava manga de trabalho. Nega doutor, disseram-me eles. Respondi então que de outro modo não valia a pena eu ensinar-lhes formas da aumentarem a produção de bens alimentares. Fiquei desiludido.

Falei dias depois com o meu colega guineense, pessoa muitas vezes já citada nesta minha passagem por este país Africano. Alertou-me para desistir de lhes dar conselhos, dizendo-me serem pessoas que não gostavam muito de vergar as costas.

terça-feira, 17 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23270: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte III

1. III Parte da publicação do texto de memórias intitulado "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte III


Com a Companhia de Comando e Serviços já quase toda no Pelundo por alturas do mês de setembro, fui mais o Médico e um Sargento para os Adidos. Por esta altura, eu já tinha reservado viagem de férias ao Continente. Aconteceu também, adoecer com sintomas de apendicite, e com os Médicos do Hospital Militar a querer que eu embarcasse o mais rapidamente para Lisboa de modo a poder aqui ser observado.

Logo em Bissau me deram uma injeção anti-inflamatória, e mal cheguei a Lisboa dirigi-me ao Hospital Militar Principal para ser tratado. Aproveitei também passar pelo Porto antes de ir visitar meus pais e demais família, ir medicar-me ao Hospital Militar desta Cidade onde por sinal havia realizado o meu estágio. Devo dizer ainda, que foi nestes dois Hospitais Militares que eu passei meu tempo antes de embarcar para a Guiné.

Nesta minha passagem pelo Porto, fiquei uma noite numa República chamada “Deixa cá Ver”. Nesta República passei muitas noites durante a minha permanência no Porto durante o meu estágio, convivendo com estudantes universitários de vários cursos e de várias regiões do País. Aqui assisti a muitos serões de debates políticos. Nela encontrava-se um jovem também de Foz Côa que era como um irmão para mim e eu para ele. Criados na mesma rua e cuja família se encontrava ligada à minha por laços muito fortes. Nunca esquecerei na minha vida o quanto ele me ajudou naquela época. Também tentei ser prestável aos frequentadores da República dando algumas injeções a quem por vezes necessitava. Fui muito acarinhado por todos.

Aconteceu nessa noite de passagem mais uma vez por lá vindo da Guiné, para se gerar discussão sobre a guerra. Verifiquei como as notícias eram destorcidas. Falaram-me em acontecimentos que não eram verdadeiros. Eu vindo da Guiné três dias antes, tive que fortemente os desmentir dizendo-lhes que aquelas notícias eram totalmente falsas. Foi difícil convencê-los. Para eles, já em 1969 a Cidade de Bissau encontrava-se cercada por todos os lados. Já bastante melhor das dores e febre que me traziam debilitado, fui descansar e continuar o meu tratamento em Foz Côa junto da minha família. Foi muito bom para mim ter vindo de férias naquela altura até porque sabia que logo que chegasse a Bissau, teria que apanhar escolta que me levasse para o interior Norte da Guiné e para a aldeia do Pelundo.

Passados os meus repousantes dias de férias e com o estado de saúde melhorado, lá apanhei o avião em Lisboa de regresso à Guiné.

Mal cheguei ao aeroporto de Bissau, um jipe esperava-me para me conduzir até ao Quartel dos Adidos onde uma escolta já se encontrava pronta para me levar, mais uns soldados que tinham vindo a Bissau à consulta externa bem como, mantimentos para as nossas tropas do Batalhão.

Cheguei ao Pelundo já ao fim da tarde. Ao contrário de Buba onde tinha estado quinze dias conforme já aqui referi, o ambiente aqui era diferente bastante calmo. Em Buba, só por duas tardes consegui ter algum descanso e confraternizar com companheiros militares, mas somente, dentro do arame farpado. Não tomei conhecimento de nada daquela aldeia. Ao contrário, ao chegar ao Pelundo vi logo à entrada da aldeia soldados confraternizando com jovens locais. É certo que para Buba fui de helicóptero que me deixou já dentro do Quartel e da mesma forma de lá saí para Bissau.

Como uma das minhas missões era fazer ação psicológica com a população, verifiquei que seria um bom lugar para o meu feitio e gosto de conviver e aprender os hábitos de vida daquelas gentes, iria ser bom.

Também só agora iria tomar conhecimento próximo com os militares da minha CCS e, da Companhia operacional 2886 do meu Batalhão que, juntamente com a Companhia de Comando, se encontrava no mesmo local.

Após deixar a minha bagagem no abrigo onde ficaria alojado juntamente com quase todos os Furriéis da CCS, fui até ao Posto Médico reencontrar-me com todos da minha equipa (Médico, Cabo Enfermeiro e Maqueiros).

Depois de os cumprimentar e deitar uma olhadela ao edifício que mais não era que um barracão um uma parte mais ampla que funcionava como sala de consultas e tratamentos e, ao lado, uma outra divisão separada com porta para o exterior que servia de armazém. No mesmo local e separados por uma ruela, ficavam as messes de Oficiais e de Sargentos e, num outro edifício, os quartos dos Comandantes (Major e Tenente Coronel).
 
Mais afastados, encontravam-se os alojamentos da Companhia operacional 86. Todos estes espaços se encontravam cercados com arame farpado tendo à sua entrada uma guarita com sentinela.
Separados por uma estrada que vinha desde o início da povoação, encontrava-se o novo Quartel ainda em construção, mas já com algumas funcionalidades.

Este quartel situava-se num amplo espaço plano com os abrigos à prova de morteiros nas paredes externas e espessura normal nas paredes voltadas para o interior do mesmo. Estes abrigos que a maioria eram os dormitórios de todos nós menos dos comandantes como já descrevi, circundavam o quartel em formato octogonal. Atrás com um espaço ainda considerável era cercado por arame farpado que, creio, porque nunca perguntei nem observei, que fosse eletrificado como acontecia em Buba.

Num destes abrigos e próximo da entrada do quartel, veio mais tarde a funcionar como Posto Médico. Nele dormiu o Médico desde a sua chegada até ao fim da Comissão.

Não resisti de, logo nesse fim de tarde e após o jantar, dar a minha primeira caminhada pela rua principal e juntar-me a um grupo de soldados mais um Alferes de origem cabo-verdiana que confraternizavam com jovens locais. Este Alferes que só lá conheci, era de apoio ao Comandante e detentor de todo o sistema de informações. Profissionalmente meu colega.

Logo no dia seguinte, apresentou-se-me uma jovem dizendo-me que seria ela a tomar conta da minha roupa. Nem tive hipótese de escolha. Disse-me que seria ela e mais ninguém e que já tomava conta da roupa do Médico, do Major e do Comandante e que só ela tinha autorização de entrar no Quartel buscar e trazer roupa. Todas as outras lavadeiras ficavam fora do arame farpado para receberem e entregarem roupa. Esta jovem de nome Judite tornou-se uma pessoa muito importante para mim durante toda a Comissão, e lhe serei toda a minha vida grato por tudo o que fez por mim, lhe devo o meu bom estado mental com que regressei daquelas paragens. A ela me referirei com mais pormenores na parte final desta minha narrativa.

Tive também a surpresa de ter um conterrâneo aqui em Pelundo e na Companhia 2886. O Adriano Sousa, natural da Freguesia das Chãs e Concelho de Foz Côa, era Soldado atirador dado não ter completado o quinto ano dos liceus. Estudou no Colégio de Foz Côa. Dado ele não ter feito parte das minhas amizades habituais em Foz Côa naquele tempo, e nos últimos anos eu tê-los passado fora de Foz Côa, não o conhecia. Ele, ao ouvir o meu nome abeirou-se de mim identificando-se. Construímos uma amizade até ao dia que Deus nos levar. O Adriano é testemunha de muitos dos meus factos que aqui transcrevo. Era meu confidente.

No momento que estou a escrever estas linhas, tenho meu coração triste ao tomar consciência da pequenez moral dos políticos responsáveis que o representam Portugal.
Acabei de assistir ao vídeo do funeral do militar Português mais condecorado do meu país de nome Marcelino da Mata. Desprezado no direito às honras merecidas que a Pátria lhe devia e, por aqueles que a representam, a Pátria que com sangue e lágrimas ele como nenhum outro soube defender. Não teve honras de abertura de telejornais, nem comunicados dos Estados-maiores e, principalmente, do atual Presidente da República.

A qualquer pé descalço afeto ao poder político, a bandeira é colocada a meia haste e decretado três dias de luto Nacional. Ao Tenente Coronel Marcelino da Mata nascido na Guiné, soldado Comando detentor da Torre Espada Lealdade e Mérito e mais cinco cruzes de guerra de 1.ª Classe por coragem demonstrada em combate, nem uma salva de tiros teve direito no momento do seu corpo descer à sepultura. Porém, seus companheiros de armas, brancos e negros, não o deixaram só e nunca será esquecido por muitos anos que passem. Honra à sua memória e que sua alma descanse em paz. Conheci-o um dia em Bissau.

Voltando à minha escrita sobre a minha passagem pela Guiné, direi que as minhas primeiras preocupações foram o verificar, as funcionalidades e existências do Posto Médico, conversar com o Médico sobre o meio em que nos encontrávamos e sobre todo o exterior que nos rodeava.

Quando o segundo Comandante ainda em Bissau soube da minha ida de férias à Metrópole, pediu-me para que no meu regresso à Guiné eu levasse de Portugal e, principalmente da minha terra, sementes hortícolas para criarmos uma horta nas periferias do Quartel. O objetivo era podermos ter vegetais frescos para serem utilizados na alimentação dos nossos militares, serem semeadas numa horta a construir no Quartel do Pelundo de modo a termos produtos verdes e frescos na alimentação senão para toda a tropa, mas, pelo menos, para as messes (Sargentos e Oficiais).
Entrada do aquartelamento do Pelundo
Foto: © António Teixeira (2011)

Assim fiz. Logo no segundo dia da minha chegada ao Pelundo, criei um pequeno canteiro junto ao Posto Médico onde semeei tomates e alfaces.
 
Como esta iniciativa havia partido do Segundo Comandante Major Pinho, ele foi logo nesse dia de manhã falar comigo. Primeiro, porém, pediu álcool para limpar o seu cachimbo duma forma que eu não gostei. – Dá-me álcool para eu limpar o cachimbo - disse-me ele. Eu respondi-lhe que não estava a ouvir nada. – Não ouves? – Voltou ele. Sou o teu Segundo Comandante. Eu, serenamente respondi-lhe que daquela porta para dentro era eu que mandava e, como tal, ou me pedia o álcool educadamente por favor ou não levava nada. Disse-lhe mais já um pouco fora de mim que, ficasse a saber, que não estava na tropa para ser criado fosse de quem fosse e, quando alguém me pisasse os calos, lhe responderia, f….-se que já me pisaste.

Estou a ver que me saíste uma grande encomenda – observou ele pedindo-me por favor algodão e álcool. Aproveitei logo para lhe comunicar que não iria tomar conta da dita horta. Mas tu és o engenheiro – voltou ele à carga. – Sou disse-lhe. Mas não quero contratos com o Comando. Chega-me os cuidados de saúde para os quais sou um dos responsáveis, continuei. Assim o fiz a partir daquele dia.

Logo nos primeiros dias da minha presença naquela localidade, aproveitei os momentos livres e após o almoço, fim de tarde e depois do jantar para familiarizar com a população local. Cedo me apercebi que a jovem que tomava conta da minha roupa possuía grande influência não só nos jovens, mas também nos mais adultos da população. Assim, comecei a socializar-me com todos eles. Para tal, comecei a juntar-me com ela e outros e outras jovens durante noites para ganhar a sua confiança e, também, eu começar a captar os seus hábitos e anseios e, acima de tudo, aprender frases do seu dialeto. Cheguei a permanecer fora do quartel até cerca da meia-noite em muitos os dias.
 
Comecei deste modo a conquistar amizades que me foram muito úteis até ao fim da minha estadia nesta terra, já que tinha duas missões a cumprir para com eles. Tratar da saúde e ensinar-lhes dentro do tempo que me fosse possível melhores técnicas agrícolas sempre que para tal me fosse solicitado.

Mensalmente, recebíamos medicamentos não só para os militares a meu cargo como também para a população da aldeia. Felizmente, durante toda a minha comissão pude utilizar na população medicação que era destinada aos militares porque para estes não foi necessária.

Durante toda a comissão levei muito a sério a minha missão. Sentia-me muito feliz quando percorrendo as ruelas do Pelundo as crianças se vinham agarrar às minhas pernas solicitando afetos. Os mais idosos me cumprimentavam baixando a cabeça e, passados poucos meses me beijavam as mãos. Sempre lhes ia dizendo que não fazia sentido aquela forma de afeto já que eu não fazia mais que o meu dever de cuidar deles com dignidade. Criei assim um ambiente saudável junto da população. Os gestos dos mais idosos me faziam lembrar meus pais que em Portugal não recebiam apoios e tratamentos de saúde que nós ali estávamos a proporcionar às populações locais. A este propósito, muitas e muitas vezes alguns militares graduados me faziam acusações de possivelmente, eu desviar medicamentos destinados às nossas tropas para os civis. Felizmente, foi possível tal poder fazer, já que não foram necessários para as tropas a meu cuidado.

Já quando me deslocava a Bissau e aos Serviços de Material de Saúde que se encontravam junto ao Hospital Militar para resolver determinadas faltas de material, me perguntavam quais os contratos que eu tinha com o PAIGC, dado que as nossas colunas não sofriam emboscadas enquanto outras colunas de outros Batalhões eram atacadas no mesmo percurso. A minha resposta foi sempre a mesma. Porque eu tratava bem dos seus familiares.

Estas perguntas que me eram feitas tinham razão de ser, dado que não muitos dias antes, uma Companhia de Paraquedistas tinham sofrido uma penosa emboscada na mesma estrada que eu percorria e, semanalmente, escoltas do meu Batalhão eram feitas duas vezes. Alguns daqueles Paraquedistas foram tratados no nosso Posto Médico por mim e o Dr. Dinis Calado.
 
Talvez por isto, o Diretor do Serviço de Saúde em Bissau Dr. Bissaya Barreto, sempre que eu aqui vinha me chamava ao seu gabinete para falar comigo e me tratou sempre com muito carinho. Também não foi por acaso que uma fotografia minha foi colocada numa capa da revista do Exército, tratando um garoto, e com o título – Assim tratamos as populações.

Uma das particularidades que encontrei no Pelundo foi a existência de uma espécie de discoteca. Esta situava-se mais ou menos ao meio da aldeia e numa palhota. Possuía apenas a porta de entrada e uma janela que nem sempre se encontrava aberta.

Para este espaço, e durante os fins-de-semana e em dias alternados da mesma, as jovens e os jovens da aldeia se deslocavam à noite com o fim de se divertirem dançando ao som de um Gira-discos a pilhas. Quanto ao tipo de músicas, elas iam das africanas às brasileiras.

Eu comecei a frequentar assiduamente aquele espaço. Só não ia quando me encontrava adoentado ou por motivos de serviço ao Quartel. Muitos outros militares começaram a frequentar aquele lugar como o Médico (que eu o arrastei) e este sempre acompanhado pelo Alferes Tunes. O Médico ia para dançar e se divertir, mas o Tunes ia apenas para observar o ambiente. Também vários Furriéis da Companhia 2886 eram assíduos daquele espaço. Da CCS, tirando eu e o Médico e o dito Alferes, apenas os soldados para lá se deslocavam.

Verifiquei com certa admiração, como os e as jovens locais confraternizavam com os nossos soldados e alguns graduados como eu. A jovem que me cuidada da roupa ajudou-me a entrar naquele ambiente que não mais larguei durante todo o tempo que por lá me mantive.
O preço da entrada na discoteca era de dois pesos e meio, moeda local. Para nós, um preço acessível, mas para os jovens e alguns menos jovens da população local já lhes custava a pagar.

Este Alferes Tunes e eu, passados anos, viemos a viver perto um do outro no Concelho do Seixal. Resolvi com o bailarico, quebrar o stress dançando à noite sempre que me era possível.

A frequência na procura de cuidados de saúde pela população aumentava de dia para dia. Nos mais idosos eram frequentes as queixas de dores respiratórias e musculares. O clima quente e húmido contribuía para as pneumonias e dores reumáticas. A estes, com tratamentos injetáveis e em corpos pouco habituados a receber medicamentos, o seu efeito benéfico transmitia resultados a olhos vistos. Porém, com o decorrer do tempo, mesmo com muitas melhoras, lá estavam diariamente a pedir que lhes aplicássemos injeções, principalmente, vitaminadas. Cá miste Campingo diziam eles e elas.

Ainda nos adultos mais idosos, as doenças de pele e, em especial, as bilharzioses conhecidas também por elefantíases, muito difíceis de curar, tivemos pela frente.

O paludismo era uma doença complicada para todas as idades e para todos nós. No meu caso, felizmente que me passou ao lado. Sobre esta doença e sequelas nos militares escreverei mais à frente citando alguns casos mais especiais.

Continuando com os adultos, as doenças sexuais foram um bico-de-obra. Muitos casos tivemos, apesar das palestras preventivas que eram dadas aos militares informando-os dos meios preventivos que lhes seriam fornecidos sempre que nos fossem solicitados. Estes meios preventivos tanto eram fornecidos aos militares como a elementos da povoação, acaso nos fossem solicitados. As mulheres que se prostituíam tinham receio que o preservativo lhes ficasse dentro da vagina. Com tantas explicações que tive o cuidado de dar a algumas que conheci, verifiquei a pouca aceitação para obrigarem os seus clientes a usarem o preservativo. Pelo menos tentei dar-lhes conhecimentos de prevenção.

No caso das crianças, as otites foram os casos mais complicados que fomos tendo, derivado não só a falta de higiene como por fatores climatéricos. Como para estes casos era necessário a aplicação de antibióticos e como tal, a necessidade de regras na sua aplicação, o Médico resolveu o caso com a dissolução dos antibióticos em frascos de xarope até porque não possuíamos no quartel antibióticos próprios para crianças. Além deste drama, tivemos a dificuldade de comunicação com os pais das crianças, dado não entenderem bem o Português, e não muito habituados a terem assistência médica perto de casa.

Outro caso de saúde que me impressionou negativamente não só nesta localidade, mas também em quase todo o interior da Guiné, foi a desnutrição das crianças. Corpos muito magros e barrigas aventadas e umbigos excessivamente salientes.

O aventamento era provocado pelo tipo de alimentação com base no arroz e farinha de mandioca. O caso dos umbigos salientes tinha a ver com a falta de aperto com ligaduras após os partos.
Assim, nos primeiros meses todos nós, Médico, eu e Cabo Enfermeiro, mais os Maqueiros, procuramos aprender um pouco do dialeto local. Para isto, o convívio já descrito atrás, ajudou-nos muito nestas nossas tarefas.

A nível militar, fomos tendo uma certa acalmia, mas outras tropas que se movimentavam nas mesmas estradas já não tinham a mesma sorte como já atrás descrevi.
A minha aproximação com a população local foi dia após dia aumentando. Fui convivendo dia a dia mais não só com os mais jovens, mas também com mais velhos. Começaram aqui os meus problemas com as chefias do Batalhão que não viam esta minha atitude com bons olhos.

Em meados dos anos 70, o General Spínola mandou construir um Posto Médico e uma Escola Primária no Pelundo. Soube na altura que o mesmo aconteceu em muitos outros locais da Guiné. Esta Escola foi mobilada com o de mais moderno havia. Na terra onde nasci não tínhamos escolas iguais a esta. Assisti, como não podia deixar de o fazer, à sua inauguração. O General Spínola fez um discurso dirigido principalmente para o Régulo local não muito meigo para este, chegando a chamar-lhe traidor. Pouco tempo antes tinha acontecido o assassinato dos Majores. A meu lado tinha o chefe da Granja de Teixeira Pinto e, meu colega de profissão civil, que me ia comentando, dizendo que o General era maluco pois aquele discurso colocava-o em perigo ali mesmo.

(Continua)
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Nota do editor

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quinta-feira, 12 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23258: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte II

1. Parte II da publicação do texto de memórias intitulado "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Buba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte II

L
ogo na primeira tarde que cheguei à Granja, deparei-me com uma situação que em Portugal muito se comentava, ou seja, que o Português batia com facilidade no Africano. Vi um Técnico de origem Cabo Verdiana, com uma verdasca, fustigando as costas de dois jovens que se encontravam transplantando arroz. Na Guiné por essa época, o arroz era primeiro semeado em viveiros e só depois era transplantado no local definitivo neste caso, na bolanha. Nos tempos atuais não sei como é cultivado.

Ao assistir aquela sena, gritei bem alto pedindo para que parasse, caso contrário eu teria que participar dele. O Técnico em causa, respondeu-me que só daquele modo trabalhavam como devia ser. Eu respondi-lhe que à minha frente não voltaria a acontecer, acrescentando que na metrópole se dizia que eram os brancos que batiam nos negros em África, mas aqui na Guiné, afinal, eram os naturais de Cabo Verde a bater neles. Pediu desculpas acrescentando que não voltaria a acontecer. Passado este episódio, tivemos um companheirismo muito grande até ao último dia que por aquele lugar passei. Acrescento que, por várias vezes fui convidado e aceitei, ir a casa dele que ficava no Bairro de Santa Luzia.  Acrescento também, apenas o Engenheiro-Chefe era banco, por esta altura na Granja.

A minha ida para a Granja, proporcionou-me criar amizades com civis, e principalmente com os meus colegas técnicos com os quais muito sobre a vida na Guiné vim a saber.

Este meu estágio veio a ser interrompido em Junho desse ano (1969), praticamente duas semanas depois de o ter iniciado. Fui por urgente necessidade dos serviços de saúde para o Sul da Guiné, mais concretamente para Buba, durante cerca de quinze dias.

Fui até ao aeroporto apanhar um héli destinado a levar-me para aquele local.
A viagem foi magnífica. O piloto fez questão de subir ou descer de altitude de maneira a eu tomar melhor noção sobre a paisagem florestal e pastagens daqueles locais. Eu tinha-lhe dito que na vida civil era Técnico Agrícola.

Cheguei a Buba e logo me fui apresentar ao Comando local e, de seguida, aos Médicos que na altura lá se encontravam.
A azáfama era grande naquele aquartelamento, tanto no enorme número de militares de várias especialidades (tais como Fuzileiros, Comandos, Páras, Cavalaria e Infantaria). Aqui conheci os Majores que no ano seguinte seriam assassinados na zona militar do meu Batalhão.

Além daqueles oficiais que vieram a ficar muito conhecidos pelo infortúnio que lhes aconteceu, também o Comandante Alpoim Calvão se encontrava neste Quartel, e um Capitão de uma Companhia Independente que eu tinha conhecido nas Caldas da Rainha, concretamente na 5.ª Companhia de Instrução, em Outubro de 1967, pela altura da minha recruta. Eu, nas Caldas da Rainha, estive na 6.ª Companhia comandada pelo Capitão Vasco Lourenço.

Este Capitão acabaria por ser castigado com vinte dias de prisão mais os seus Furriéis Milicianos, estes com quinze dias de prisão cada um. Tudo isto aconteceu logo uns dias a seguir à minha chegada a Buba. Vi chegar o General Spínola a quem se juntou logo o Régulo local. Este falou com o General acerca de umas mulheres que se encontravam retidas no Quartel. Elas tinham sido capturadas pela Companhia daquele Capitão que seria castigado com vinte dias de prisão por ter consentido que os seus Furriéis tivessem abusado sexualmente delas. Os Furriéis Milicianos foram castigados com quinze dias de prisão.

A minha primeira noite em Buba poderia ter sido fatal para mim. Éramos muitos Furriéis naquele abrigo. Todos os espaços livres estavam ocupados com as nossas camas. Eu, habituado a dormir descansado em Bissau, cedo peguei no sono. Por volta das duas e pouco da manhã, fui de repente acordado por um dos Furriéis para saltar da cama e me dirigir ao abrigo interno que na camarata se encontrava, mas, que eu ainda desconhecia. O quartel estava a ser atacado naquele momento.

Ensonado, não reparei que o abrigo era baixo demais para a minha altura e, como resulltado, bati com a minha cabeça no topo do muro da entrada caindo para trás desmaiado. Não mais dormi como necessitava em todos os restantes dias que ali permaneci.

O número de civis que lá se encontravam para a desmatação da estrada Buba/Aldeia Formosa era grande. Quando na segunda noite estive de serviço ao posto médico e, ao encaminhar-me para este, pisei vários homens que dormiam no chão ao ar livre em cima de papelões.

Tive aqui também a minha primeira experiência com alguém à beira da morte. Numa destas noites aconteceu que, tendo entrado no posto médico uma jovem em estado muito adiantado de gravidez e em coma, não sendo possível evacuá-la para o Hospital em Bissau pelo adiantado da hora, tentou-se que ela aguentasse até ao amanhecer. Entrei naquele turno por volta das duas horas da madrugada. Tive como principal missão fazer tudo o que fosse possível para que ela respirasse. Tinha apenas para isso uma ventosa para lhe extrair da boca o aglomerado de expetoração. Eram cerca de pouco mais das três da manhã quando a senti estremecer e verifiquei na quantidade de urina que corria debaixo do seu corpo. Uma lágrima corria-lhe dos olhos ao mesmo tempo que o a criança dava saltos na barriga da sua mãe já moribunda

Todo eu esmoreci. Chorei pela minha incapacidade para a salvar, ou pelo menos à criança que ali vi morrendo aos poucos naquela barriga inerte. Esta imagem ainda agora aviva a minha memória e a minha sensibilidade. Ajudou-me, porém, a ganhar estofo para poder vir a enfrentar outros casos traumáticos que poderia encontrar durante a guerra que se travava.

Nestes dias, e, enquanto lá permaneci, nunca tive um jantar à mesma hora. Evitava-se assim que do outro lado da bolanha nos enviassem uma morteirada para a messe como já tinha acontecido noutra altura. Outro caso peculiar naquele Quartel de Buba, foi o de, para tomarmos banho, só ser possível com a ajuda de um copo ou outro utensilio parecido para se retirar a água de um bidão e tantas vezes cheia de ferrugem, lançando-a pela cabeça e percorrendo o resto do corpo. Deste modo sentíamo-nos frescos e ferrugentos. No entanto, Buba situa-se na margem direita do Rio Grande de Buba com o seu cais muito falado e escrito de local de embarque de escravos. As suas águas eram salobras e, como tal, impróprias para tomarmos banhos.

Enquanto durou a desmatação da estrada, o nosso trabalho no posto médico foi intenso. Todos os dias as tropas e a população sofriam emboscadas. Os feridos eram sempre muitos. O material sanitário principalmente agulhas eram escassas. Foram uns dias para mim de grande experiência que me ajudou durante toda a restante comissão.

Aqui em Buba, vim a conhecer um Furriel Miliciano Enfermeiro natural da Freguesia da Lousa do Concelho de Moncorvo e, portanto, vizinho do meu concelho (Vila Nova de Foz Côa), que me pediu que enquanto eu lá estivesse e se acaso ele não regressasse vivo de alguma das patrulhas que quase diariamente efetuava, quando eu regressasse ao Continente, fosse contar à sua família como era o dia-a-dia dele para tal acontecer. Estranho pedido me era feito! Até aos dias de hoje não mais soube deste meu amigo que me ajudou a enfrentar o dia-a-dia naquele local onde praticamente todos os dias havia ataques ao aquartelamento. Durante pouco mais de duas semanas que aqui permaneci, muito trabalho tivemos (Médicos e Enfermeiros) com principalmente civis que lá se encontravam a trabalhar na desmatação da estrada que ligava este local a Aldeia Formosa. Um dia, verificamos que o material de pensos, seringas e agulhas estavam na penúria. Tive que deixar de cozer alguns golpes por falta de agulhas. A pele das pernas dos nativos era de tal modo dura, que muitas vezes, o bico da agulha se partia. Estes trabalhadores foram durante aqueles dias o alvo preferido da guerrilha. Eram dezenas de feridos diários.

Com o fim dos trabalhos de desmatação, deixou de ser necessária a minha permanência em Buba. Tratei de me escapulir o mais depressa possível daquele ambiente. Para tal, dirigi-me a um dos Oficiais do CAOP (Comando de Agrupamento Operacional que lá naquela altura se encontrava e que no Ano seguinte viriam a ser assassinados numa reunião com o PAIGC que relatarei na altura devida) que me disse para sondar os vários pilotos que lá diariamente se encontravam. Só não vim de boleia num Fiat (avião de combate) porque o piloto não tinha paraquedas para mim pois caso contrário eu tinha arriscado.

Um dos pilotos que sondei, indicou-me que fosse falar com o Coronel Paraquedista Alcino que iria para Bissau naquela manhã. Assim o fiz. Este senhor não hesitou em me dar boleia.
Durante o percurso e ao sobrevoarmos a povoação de Tite, o Coronel pediu ao piloto para baixar um pouco de modo a verificar a razão de fumos que pairavam no ar. Comentou que poderia ser rescaldo de algum ataque da guerrilha.

O Coronel Alcino aproveitou para me pregar uma partida. Pediu ao piloto para nos colocar de cabeça para baixo dando umas quatro voltas. Eu ia deitando as tripas fora. Não vomitei, mas devo ter ficado de tal modo pálido que ele pediu ao piloto para nivelar o voo.

Chegados ao aeroporto de Bissau, agradeci ao Coronel a boleia e ofereci-me para lhe levar ao meu ombro a G3 que ele transportava. Agradeceu e respondeu-me que naquele momento eu nem com as minhas pernas podia quanto mais com a G3! Voltei a encontrá-lo meses mais tarde no Pelundo. Homem extraordinário este!

De regresso a Bissau e ao Quartel Seiscentos, o meu dia-a-dia voltou a ter a rotina de na parte da manhã desenvolvendo serviços na enfermaria e ajudando o médico nas consultas, bem como orientar o material sanitário ao meu cuidado e repor as faltas de medicamentos necessários para os militares. De tarde, uma viatura militar continuou-me a levar à Granja Agrícola.

Durante os meses que aqui passei estagiando, fui aumentando os meus conhecimentos sobre as culturas tropicais. Também granjeei muitas amizades de naturais da Guiné e de descendentes de Cabo Verde. Praticamente, os meus contactos passaram a ser de civis, que ao fim de semana me convidavam para almoçar ou simplesmente lanchar.
Um destes era o chefe da secretaria da Granja na altura. Muitos fins-de-semana passei na sua companhia mais do meu colega de nome Elói. Este meu colega, após a independência da Guiné, veio trabalhar para Lisboa e no Ministério da Agricultura pois manteve a nacionalidade Portuguesa. Sei que voltou a visitar a sua terra Natal só após a saída de Luís Cabral da Guiné. Neste seu regresso, contou-me novidades que eu tive dificuldade em acreditar no que me dizia.
– Queres saber Figuinha que o chefe da secretaria da Granja em quem nós tanto tínhamos confiança com as nossas conversas era informador do PAIGC? - Eu fiquei aparvalhado!

Um outro colega e que me forneceu muitos conhecimentos durante todo o tempo que estive na Guiné foi o É Mê. Quando fui para o Pelundo ele foi para Teixeira Pinto chefiar a Granja local. Até ao fim da comissão mantivemos contactos. Apesar de ser familiar de Amílcar Cabral, sempre que necessitava de ir a Bissau procurava fazê-lo quando eu ia também na escolta. Há poucos anos vim a saber que tem casa na zona do Montijo/Barreiro.

Outros colegas vieram para Portugal logo após a Independência da Guiné. Um deles veio até viver para a margem sul perto da minha casa e aqui morreu. Mas, houve um muito especial e dos mais novos que lá conheci. No dia anterior ao meu embarque para Lisboa, encontrámo-nos num café onde ele me disse que brevemente nos iríamos de novo encontrar em Portugal. Achei naquele momento que não passava de mais uma das suas graçolas. Porém, passado pouco mais de um ano de eu ter chegado a Lisboa, o Borges Galvão estava junto de mim trabalhando no Instituto de Cereais.

Este Borges Galvão tinha um irmão que foi o primeiro representante do PAIGC na antiga Jugoslávia. O pai deles possuía uma farmácia em Bissau. Foi uma grande alegria minha tê-lo reencontrado. Brincalhão como era, havia sempre boa disposição junto dele. Recordo que um dia após ter vindo dum serviço externo na zona da Cidade de Lamego, me fez saber que os burros daquelas paragens não gostavam de ver pretos. Dei uma gargalhada e preguntei-lhe as razões daquele disparate. Então com um ar muito sério contou-me que junto a um ribeiro, perto de uma aldeia onde tinha que ir fazer um inquérito relacionado com a panificação, máquinas existentes, cereais utilizados, inquéritos estes, que decorreram em todo o País, verificou que ao tentar passar um pequeno ribeiro, um burro, que se encontrava a pastar, deu em correr em direção a ele zurrando com ar ameaçador. Então recuou e pensou que o dito burro poderia ter sido ensinado a morder aos pretos pelo dono. Que o dono do burro talvez tivesse tido um filho que por ventura tivesse morrido na Guiné, e, como tal tenha ensinado o burro a morder os pretos que lhe aparecessem pela frente. O Borges contou esta história com um ar tão sério que deu para galhofa durante meses.

Ambos fizemos na altura parte do Instituto dos Cereais e, a pedido do Governo, pretendeu-se ter informações precisas sobre a Indústria de Panificação. Tal como o Borges, eu andei também a fazer este levantamento.

Após a Independência da Guiné, o Borges regressou de novo para lá. A sua jovem mulher foi a primeira Ministra da Educação da Guiné-Bissau Independente.
Como um grande jogador que o Borges Galvão sempre foi, segundo me tinha contado, antes de vir para Lisboa trabalhar, limpou do seu ficheiro que tinha no arquivo da Granja em Bissau, as informações que ele tinha escrito de trabalhadores da Granja Agrícola de Bafatá onde esteve com responsável. O Borges não dava um passo em falso. A vida deste meu colega e amigo passou pela América e Paris pelo menos que eu saiba, conforme os cargos políticos que a mulher ia tendo. Perdi-lhe o rasto desde o ano dois mil, por força do encerramento da EPAC onde eu trabalhava. Deste modo consegui durante vários anos ser informado sobre o que se ia passando naquele País.

Voltando à minha atividade militar, enquanto permaneci em Santa Luzia no Quartel Seiscentos, aconteceu aqui um grande incêndio com muitos rebentamentos de granadas e a destruição de instalações lá existentes. O acontecimento deu-se a seguir ao almoço, encontrava-me no quarto que ocupava com mais dois Furriéis Milicianos e um Segundo Sargento Corneteiro. Os Furriéis eram o Martins (Vaguemestre) e o Wilson Ribeiro meu colega civil de profissão. Os estrondos eram tão fortes que o edifício estremecia a cada rebentamento.
O primeiro a zarpar dali foi o dito Sargento que numa corrida só deve ter parado no centro da Cidade de Bissau. Nós os três tivemos mais calma e zarpamos na mesma para a Cidade.

Por este quartel passavam muitas companhias de militares de regresso ao Continente. Aqui permaneciam durante tempos elementos do quadro permanente encargados das comissões liquidatárias de Batalhões ou de Companhias independentes.

Conheci de perto alguns primeiros-sargentos preocupados com os acertos de contas das respetivas unidades a que pertenciam. Constou-se que foi um destes casos que por descuido ou não, deixou no cesto de papéis um cigarro mal apagado. Parecia que o quartel estava a sofrer um bombardeamento. Saí como outros demais para a cidade não fosse cair uma granada nos aposentos onde me encontrava. O General Spínola apareceu e mandou logo a polícia militar investigar o caso. Outros detalhes não fiquei a saber ou a minha memória pode falhar e não escrever a verdade.

Como o material sanitário do quartel estava sobe a minha responsabilidade e as movimentações eram muitas de outros Furriéis Enfermeiros que por lá passavam, sempre que me ausentava de tarde para a Granja Agrícola ficava tenso. Aconteceu que aquando tive que me preparar para ir juntar-me aos restantes elementos da Companhia que aos poucos foram indo para o Pelundo, tive que fazer ajustes no material e, para tal, contei com a boa ajuda do pessoal do Material Sanitário de Bissau que se encontrava junto ao Hospital Militar.

Durante este período, houve um caso de saúde de um militar duma Companhia que se preparava para regressar ao Continente que me deixou perplexo e ao Médico também. Apresentou-se queixoso dos órgãos genitais e cheio de febre. O Médico solicitou para baixar as calças e tirar as cuecas e, nesse momento, um cheiro fedorento transmitiu do seu corpo. Eu nunca pensei ver de perto um caso daqueles. O Médico que tinha a especialidade de Urologia disse-me que nunca tinha visto algo igual. De um dos lados dos testículos apresentava um buracão de tecidos podres. O Médico perguntou-lhe como era possível deixar-se chegar aquele estado, ainda para mais homem casado. Chamou-lhe de porco para cima. Este caso foi um alerta para mim dos perigos de doenças sexuais em climas quentes e húmidos.

Pelos conhecimentos que adquiri ao longo da comissão, creio ser uma das causas de muitos militares com stress dessa época devido a casos que nunca os conseguiram curar devidamente. Tive casos em que já não tinha antibióticos capazes de os curar. Infelizmente muitos destes casos já foram do Continente para lá.

Durante os meses que permaneci em Bissau e, também em outros momentos que do mato tive que vir a esta cidade, fui encontrando um ou outro conterrâneo. Um deles, quase todos os fins de semana me procurava para lhe arranjar uns xaropes que lhe completassem deficiências da alimentação que tinha na sua unidade. O Carlos (conhecido em Foz Côa mais por a alcunha de Fatinário) muito meu amigo, estava encargado de vigiar uns militares nossos presos que ao fim de semana lhes era permitido arejar e dar um passeio fora da prisão.

Outros encontrei de vez em quando como seja o Adriano (conhecido pelo Pote) o Sequeirinha, o filho da Ratoeira, o Aventino Guerra e um dos Maximinos que era filho de um pastor de ovelhas.

Ainda durante o tempo que passei pela Granja, vim a saber lá que Amílcar Cabral durante a sua permanência na chefia e na sua construção, foi desviando cimento que era destinado à construção de casas para os seus trabalhadores e, principalmente, para as Granjas de Bafatá e Teixeira Pinto. Este cimento foi utilizado na construção de abrigos subterrâneos nas duas matas mais densas da Guiné.

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 10 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23253: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte I

terça-feira, 10 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23253: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte I

1. Damos hoje início à publicação de um texto de memórias intitulado A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra, de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau Buba e Pelundo, 1969/71)[1]


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte I

Introdução

O meu objetivo com este texto é tão só, deixar um pequeno resumo, do que foi o meu dia-a-dia naquela época, para os meus filhos e netos. Como tal, e provando que não é ficção, menciono os nomes reais de cada um dos intervenientes neste meu texto.


Aproximava-se o fim do mês de Abril de 1969 quando, numa manhã, recebi um telefonema da Secretaria do Hospital Militar Principal dando-me a notícia que tinha dez dias para me ir despedir da minha família, comprar o fardamento e me apresentar, dia seis de Maio até às vinte e quatro horas no Porto Brandão, de modo a poder embarcar no dia seguinte para a Guiné no navio Niassa.

Tinha passado pouco mais de um mês a ser alvo de uma participação que me levaria também para a Guiné, mas, desta vez como soldado. O meu posto na altura era o de Cabo Miliciano, e a pouco mais de quinze dias de ser promovido a Furriel Miliciano.

Tudo aconteceu ao fim do jantar. Era Domingo e a refeição foi bife com batatas fritas.

O refeitório encontrava-se no edifício do Hospital Militar ao Jardim da Estrela. Aqui eram fornecidas refeições juntando no refeitório Cabos Milicianos, Cabos RD e Soldados.

Naquela noite de Domingo tudo parecia correr bem até ao momento que um dos Cabos Milicianos recém-chegados a este Hospital para realizarem o estágio de Enfermagem, resolveu acender um cigarro. Este esqueceu-se que não era permitido fumar no refeitório, mas, entusiasmado na galhofa com outros cometeu este lapso.

Nesse dia, encontrava-se de Sargento de dia à Formação o Primeiro-sargento de nome Nunes. Ao ver o Cabo Miliciano acender o cigarro, levantou a voz vinda do fundo da sala e da porta de entrada ordenando ao infrator que fosse fumar para fora do refeitório nestes termos:
- Ó nosso Cabo, não sabe que não se pode fumar no refeitório!
 
O Miliciano infrator, como havia dois tipos de Cabos no refeitório, não se apercebeu que era para ele a reprimenda. Eu, não gostando da forma como a ordem tinha sido dada, com ironia cheguei junto do Cabo Miliciano infrator dizendo-lhe em voz alta que o Sargento se estava a dirigir a ele. Como eu citei Sargento e não Primeiro-sargento, atirou-se a mim furioso, dizendo que lhe tinha faltado ao respeito perante todos os presentes e como tal, iria participar de mim. Respondi-lhe que para ser respeitado ele teria que se dar também ao respeito e ter chamado de cabo Miliciano ao infrator e não apenas de Cabo, dado encontrarem-se outro tipo de Cabos no refeitório. Mais, disse-lhe que as Ordens de Serviço ao Hospital ou à Formação para fazermos os mesmos serviços que ele estava desempenhando naquele momento nos referenciava com Cabos Milicianos e não apenas como Cabos. Se para ele, nós não passávamos apenas de Cabos também, me sentia no direito de apenas o tratar por Sargento e não como Primeiro-sargento. Mais eu já de cabeça perdida e olhos nos olhos lhe disse que quando eu saísse do Serviço Militar tinha um curso para trabalhar enquanto ele, acaso acontecesse o mesmo, restava-lhe ir para pastor de gado.

Saí de seguida porta fora numa pilha de nervos. Este homem, vim a saber, tinha fama e proveito de nos provocar.

Nessa noite fui vaguear por Lisboa tentando acalmar e, só de madrugada, me deitei um pouco.

Na manhã do dia seguinte, ao atravessar os portões da entrada principal do Hospital, soube que a minha situação como militar estava complicada porque só faltava a participação ser assinada pelo Director do Hospital.

Voltei de imediato a sair para o exterior do Hospital e dirigi-me de imediato à Escola de Serviço de Saúde, para solicitar ao Capitão que dirigia esta Escola o seu apoio.
Toquei à porta do seu gabinete pedindo para poder entrar já que tinha um assunto muito urgente que me envolvia e, para o qual necessitava do seu apoio.

Ao reparar no estado nervoso que eu apresentava, solicitou que com calma lhe narrasse os motivos que me levavam a pedir a sua ajuda. Contei-lhe então com todos os pormenores que levaram o Primeiro-sargento Nunes a querer participar de mim ao Director do Hospital. Despois de me ter ouvido, levantou o seu telefone ligando para aquele Sargento pedindo-lhe para que ele de imediato se dirigisse ao seu gabinete e fosse portador da participação que tinha em seu poder porque tinha urgência em falar com ele.
Enquanto o Sargento Nunes não chegou, o ajudante deste Capitão também um Primeiro-sargento, dirigiu a palavra ao seu chefe dizendo-lhe que eu era merecedor do castigo já que no entender dele, sabia de mais e, como tal, ao ser castigado, daria um exemplo a todos os outros Cabos Milicianos. Ao ouvir estas palavras, o Capitão levantou a voz dizendo-lhe que eu não tinha de ser castigado para servir de exemplo a ninguém! Tinha as melhores referências a meu respeito e, como tal, me iria defender a todo o custo. Olhou para mim dizendo-me para me acalmar pois tudo se ira resolver e, instruiu-me que, mal chegasse o Primeiro Nunes lhe pedisse desculpas pelos males entendidos por ele já que nunca tinha sido minha intensão faltar-lhe ao respeito o que era verdade.
Assim, mal o Primeiro Nunes entrou no gabinete, o Capitão estendeu-lhe a mão para que nela fosse colocada a referida participação. Surpreendido, recuou um passo dizendo que não o podia fazer. De novo o Capitão levantou a voz dizendo que fizesse o favor de lhe entregar a folha de papel para ser ali em frente de todos nós rasgada. Felizmente para mim assim aconteceu.

Mal me vi na rua e liberto daquele pesadelo, jurei para mim mesmo que doravante, nenhum filho da mãe militar me voltaria a pisar pois tinha acabado de levar um forte murro no estomago ao ter que pedir desculpas a um dos mais patifes Sargentos do Hospital Militar Principal.
Porém, o meu confronto com este militar não ficou encerrado naquele dia. Mais tarde e passado mais de um ano e encontrando-me de férias no Continente vindo pela segunda vês da Guiné, antes de embarcar de novo para aquele território Ultramarino, passei uns dias em Lisboa. Como namorava com uma Fisioterapeuta (mais tarde minha mulher), que naquela altura trabalhava no Hospital Militar Principal, fui visitá-la e, para isso, apanhei transporte num elétrico na Rua da Conceição que se dirigia para o Largo do Jardim da Estrela. Qual o meu espanto ao ver que na plataforma do elétrico se encontrava o dito Primeiro-sargento Nunes, que no passado tinha tentado destruir a minha vida. Não resisti e lancei-lhe as minhas mãos ao seu pescoço apertando-o e chamando-lhe todos os nomes que me vieram à cabeça. Dois outros passageiros me seguraram e, ao mesmo tempo perguntaram-me das minhas razões para te tomado aquela atitude. Contei-lhes e prontificaram-se a atirar com ele da plataforma do elétrico em andamento se fosse o meu desejo. Acalmei e segui a viagem sem mais olhar para ele.

Visitei a minha namorada combinando com ela me encontrar antes de apanhar o avião da TAP para Bissau. Contou-me mais tarde que o dito Primeiro-sargento ao ver-me falar com ela no Hospital, preguntou-lhe se me conhecia ao que ela lhe respondeu ser seu namorado. Remédio santo, sempre que a via a tratava com as melhores simpatias do Mundo.

Voltando ao momento da minha mobilização para a Guiné, logo na manhã do dia seguinte, (7 de Maio de 1969) e após ter tomado o pequeno-almoço, encaminhei-me com outros militares para uma das camionetas que nos levariam com destino ao cais de Alcântara em Lisboa, onde se encontrava o navio que nos iria levar até à Guiné.

No local, uma multidão de pessoas se encontrava para uma despedida cheia de emoções. Despediam-se dos seus filhos, namorados ou simplesmente amigos, dado a incerteza que havia, de um regresso com saúde. Não nos podíamos esquecer que partíamos para um teatro de guerra.

Como as minhas origens familiares eram do interior Norte e de precários recursos, não tive nenhum familiar próximo na despedida, mas somente, uma namorada recente e uma grande amiga quase familiar.

Na altura das despedidas, e quando me preparava para iniciar a subida das escadarias para o navio, vi uma cara bem minha conhecida da minha terra natal que também ia embarcar no mesmo navio. Era o Alferes Jorge Fachada, natural de Foz Côa como eu. Também ia para a Guiné, mas fazendo parte de um outro Batalhão e para locais diferentes do meu.

Apesar de verificar que não iria fazer parte do Batalhão onde eu estava inserido, senti-me mais confortado porque já não me iria sentir tão só durante a viagem.
Ao lado dele e no convés do navio, fomos correspondendo ao adeus dos nossos à medida que o navio se ia desviando do cais. Os gritos de adeus eram muitos. Senti que o meu peito se apertava angustiado. Não consegui deitar uma lágrima. Todo eu era um vazio.

Durante os sete dias da viagem fui conhecendo aqueles que comigo iam estar próximos (Médico, Cabo Enfermeiro e os quatro Maqueiros) mais, alguns Furriéis Milicianos da Companhia CCS do Batalhão 2884. Também eu e o Jorge fomos aproveitando umas iguarias que a minha namorada e familiares dele nos deram antes do embarque.

A viagem decorreu sem sobressaltos. Ao aproximarmo-nos do Golfo da Guiné, um bafo quente e húmido se ia sentindo. Piorou ao entrarmos no estuário do Rio Geba com a Costa à vista e as águas turvas.
Antes do navio encostar ao cais em Bissau, despedi-me do Jorge Fachada para não mais o voltar a ver naquelas paragens. Voltei a vê-lo felizmente já em Lisboa.
Conforme o navio se preparava para atracar, via o cais cheio de pessoas, mas, principalmente, muitos garotos que nos solicitavam para atirarmos moedas para a água a fim de eles mergulhare apanhando-as. Estas imagens deixaram-me triste e meditei se Deus algum dia teria passado por aqueles locais. Foi o primeiro grande sentimento de mágoa ao começar a verificar o atraso daquele território.
Salta Periquito salta, gritavam os miúdos em coro conforme íamos descendo para o cais.

Fui levado dali para um Quartel Seiscentos em Santa Luzia que ficava perto do Quartel-general em Bissau. Aqui ficou instalada a Companhia CCS da qual eu fazia parte. As restantes três Companhias Operacionais foram respetivamente para o Pelundo, Jolmete e Có.

A primeira noite foi dormida em cima de uma manta que tapava as folhas de zinco da cama. Acordei todo marcado pelas folhas de zinco e pelas mordidelas de tantos percevejos. Resolvi fazer logo uma limpeza a estes parasitas. Procurei uma vela fazendo-lhes um belo churrasco.

No dia seguinte fui conhecer o Posto de Saúde acompanhado pelo Médico do Batalhão com quem vim a aprender muito de saúde ao longo da comissão, mais o restante pessoal de saúde da CCS.

O meu primeiro trabalho foi receber e verificar todo o material sanitário que iria ficar sob a minha responsabilidade durante o tempo que permanecesse naquele Quartel. Logo ali começou a minha grande lição no sentido de estar com os olhos bem abertos ao inventário daquele material. Este meu cuidado viria a dar-me muito jeito no futuro. Mesmo estando ao meu lado o Médico, conseguimos ainda ser enganados. Aprendi que a tarimba dos mais velhos e o meio militar em tempo de guerra é diabólico. Estes pequenos erros fui conseguindo resolvê-los durante o tempo que ali permaneci de modo que, no final, entreguei o material ao que me rendeu, deixando tudo bem resolvido.

Este Quartel era um centro de passagem de tropas. Umas que chegavam do mato de passagem para Lisboa, e de Lisboa para determinadas zonas da Guiné. Durante este tempo, a azáfama foi grande.
Ainda sobre o alojamento, logo no dia seguinte foi-me destinado um quarto amplo com a companhia de mais dois Furriéis Milicianos e de um segundo Sargento do Quadro Permanente. Eu ligado à saúde, os dois Furriéis à alimentação e o segundo Sargento era corneteiro.

Logo no primeiro fim-de-semana com folga, fui começar a conhecer a Cidade de Bissau e tentar encontrar alguma morada de ex-colegas de estudo naturais da Guiné. Fiquei logo a saber que um tinha moradia à saída da porta de armas do Quartel onde me encontrava, portanto, no Bairro de Santa Luzia.

Comecei por conhecer a família Baticã (não sei se é assim que se escreve). Fiquei a saber por eles que o Pai era o Régulo de Teixeira Pinto (Régulo significa ser o chefe da etnia local), portanto, a cidade à qual a aldeia para onde eu estava destinado ir pertencia administrativamente aquela cidade. Mais tarde, este conhecimento tornou-se útil.

Encontrava-me ainda na adaptação à nova vida militar, quando, numa manhã da segunda semana após a minha chegada a Bissau, fui chamado ao Comandante da minha Companhia que me informou ter para nessa tarde me apresentar no Quartel-General. Fiquei deveras apreensivo e receoso do destino que me iria ser dado. Todo eu era nervos. Mal cheguei já me vão dar outro destino? - Pensei para os meus botões.

O Quartel-General ficava logo nas traseiras do Seiscentos. Sendo o percurso mais curto. Como a minha apresentação era a um Oficial-General e o documento da convocatória tinha o seu nome, pedi à ordenança, que lá se encontrava, que me indicasse o gabinete do Oficial que me queria falar.

Bati à porta, pedindo licença. O Oficial mandou-me entrar e que me sentasse na cadeira em frente da sua secretária.
Tenho comigo um ofício de que é desejo do Comando-Chefe que o senhor vá fazer um estágio na Granja Agrícola aqui em Bissau e, deste modo, possa vir a utilizar os seus conhecimentos junto da população do Pelundo. Aceita? Não hesitei na minha resposta que lhe dei afirmativa. Então, a partir de amanhã, uma parte do dia será destinada ao seu estágio.

Fui assim portador de um ofício a entregar ao meu Capitão da Companhia que ficou de olhos em bico. Quanto aos meus companheiros de jornada, bem como os Furriéis da CCS, todos fizeram cara de espanto, ficando com alguma inveja que, em alguns, perdurou durante toda a comissão.

O meu Médico da Companhia (Dr. Dinis Calado) ficou com mais trabalho, mas contente pela oportunidade que me era dada. A partir daquele dia, todas as tardes a seguir ao almoço, uma viatura militar levava-me à Granja. No regresso, vinha em viatura civil daquela instituição.

(Continua)
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Nota do editor

[1] - Vd. poste de 9 DE MAIO DE 2022 Guiné 61/74 - P23249: Tabanca Grande (534): António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Bula e Pelundo, 1969/71). Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar n.º 861