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terça-feira, 25 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16637: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (8): Abibe Tal tinha um coração grande, o dos sentimentos e dos afectos



1. Mais uma memória, enviada em 17 de Outubro de 2016, pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68).


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

8 - Abibe Tal


O Abibe era muito feio. Negro como um tição. A única coisa que no seu corpo branqueava eram os dentes, inseridos à distância da boca. Mas tinha um coração grande, muito maior que a feiura. Não o coração de carne que lhe batia no peito, mas o irmão gémeo, o coração dos sentimentos e dos afectos.

O Abibe pertencia à milícia e era nosso empregado, ajudando na cozinha e na limpeza. Fez-se por sua livre vontade meu impedido, afeiçoado e amigo. Limpava o quarto, fazia a cama, conseguia arranjar uns mangos e umas bananas e tratava de tudo o que eu lhe pedia.

A densidade de incidentes bélicos no pequeno território da Guiné era muito maior do que nas outras colónias. A terrível fama da sua guerra alastrou como fogo. Ser destacado para a Guiné constituía uma condenação ao apodrecimento e ao risco de regressar encaixotado. Os aquartelamentos eram rodeados de arame farpado e troncos de palmeira, com abrigos subterrâneos, frequentemente flagelados. Eu próprio ajudei a cavar trincheiras, ligando os nossos quartos às casernas e a uma enfermaria subterrânea, onde guardava soros e medicamentos de urgência, indispensáveis em situações de ataque. Em tais condições de vida, era grande o valor de um companheiro e amigo como o Abibe Tal.

Mas não era só a guerra o mal que se temia. As doenças constituíam outro flagelo que a ninguém poupava. Nem ao médico. Por isso adoeci com paludismo. Mais do que uma vez. Para quem não sabe, contrair o paludismo ou malária é uma coisa terrível. A doença mais espalhada no mundo, uma das mais frequentes nos trópicos, e terrivelmente penosa nos acessos agudos. Mais de 250 milhões de pessoas afectadas em todo o planeta. De características clínicas particularmente graves nas regiões tropicais. O surto febril é indescritível. Arrepio súbito e violento, grandes picos de febre, mal-estar do outro mundo, astenia intensa, machadadas na cabeça, palpitações, contracções, sufocação, sede de toda a água, fenómenos sensoriais indefiníveis, corpo derretido em suores por dentro e por fora. O tremor generalizado mais parece uma terramoto com epicentro no peito. O vómito não mede distâncias.

Neste estado o Abibe me encontrou.
- Ché dotô, tu tá memo lixado, mim ter que dar mezinha, mim ter que ser dotô de dotô!
- Meu caro Abibe, preciso que me descubras sem falta uma galinha, custe o que custar, não consigo comer nada, e uma canja sabia de mais.
- Mim fala no Seco, dotô manga de favor a Seco, dotô sempre trata filho de ele, mulher de ele, dotô sempre dá mezinha todo família, ele tem que arranja galinha.

Pouco tempo depois o Abibe entra no quarto com a cara do avesso. Os dentes pareciam mais salientes e uns laivos de espuma apontavam os cantos da boca. Os olhos faiscavam de raiva.
- Dotô, aquele fideputa diz ca tem galinha, manga de ingrato, mim sabe que ele tem galinha, ele escunde galinha mas eu mato ele.
- Deixa lá Abibe, tudo se há-de arranjar.

A noite caíra, mansa e quente, noite da Guiné. O meu corpo sossegara, trégua das sezões e da acção dos remédios. Novas réplicas do terramoto seriam de esperar, mas o que contava era o momento. Estava eu ruminando a fraqueza, quando entra o Abibe, sorridente, com todos os dentes de fora, segurando entre as mãos um prato de canja fumegante.
- Dotô aqui tem canja, toma ela.
- Onde encontraste a galinha?
- Munto fácil, dotô, mim espera noite, Seco vai na reza, mim faz emboscada e fana dois galinha, pa hoje, manhã e outro dia.

O Abibe era solteiro e mais tarde ou mais cedo haveria de casar. Por isso precisava de quinhentos pesos e duas vacas, o preço da noiva. Eu disse que lhe daria tantos quinhentos pesos quantas as mulheres que ele comprasse, mas vacas é que não tinha.
Quando me vim embora o Abibe continuava solteiro. Choramos os dois num abraço eterno de despedida onde cabia o mundo. Sei que ele faria feliz quem dele se achegasse.

Escreveu-me muitos anos depois, dizendo que tinha duas mulheres e oito filhos. Soube há pouco tempo que estava quase cego.

Se fosse mais perto levava-lhe um prato de canja.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16485: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (7): Guiné - Irkutsk

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16528: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (8): O Tanque

1. Mais uma memória do nosso camarada Adão Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68).


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

8 - O Tanque

(Mais um conto – verdadeiro – da Guiné)

O Alferes Almeida foi meu companheiro de quarto em Bigene, no norte da Guiné, se é que podemos chamar quarto ao alpendre onde dormíamos. Cerca de oito anos mais novo do que eu, o Almeidinha fez-se meu amigo de verdade. Amigo desde o acampamento da Fonte da Telha, do quartel de Porto Brandão e da Amadora.

Embarcámos para a Guiné no velho Uíge, empurrados pelo magnífico patriotismo de Salazar, entalados entre o belo gesto das senhoras do Movimento Nacional Feminino e o malabarístico safanço dos filhos dos ricos e patriotas da situação. Embalados pelas ondas do mar da Mauritânia, e sossegados pelas ricas ementas flamejantes do cozinheiro de bordo, demos à costa da Guiné no dia 13 de Maio de 1966.

O Almeida e eu pertencíamos à mesma Companhia. Eu como médico e ele como atirador, comandante de pelotão. Nos primeiros tempos da nossa comissão na guerra da Guiné, estivemos separados. Eu fui destacado para Canquelifá, perto da fronteira da Guiné-Conakry e ele esteve de intervenção durante algum tempo. Quando a Companhia se fixou em Bigene, já eu lá me encontrava.

Um avião fora buscar-me a Canquelifá para vir prestar assistência à última Companhia de farda branca que em breve regressaria à metrópole, sendo substituída por aquela em que estávamos integrados. De novo juntos, o Alferes Almeida e eu, programámos o nosso futuro no sentido de transformar os dias quentes (em sentido térmico e bélico) e incertos que se anteviam, nos melhores dias da nossa vida. Outra coisa não era de esperar do seu espírito folgazão e irrequieto, da sua grande alma de vinte anos.

E vivemos juntos acontecimentos fabulosos. Ele era todo patriota, à sua maneira. Cascava nos colonos, a cuja família pertencia, e gramava bestialmente os pretos. Mas soberania era soberania, e por isso alia estava para a defender. Ele lia, na altura, Morreram Pela Pátria de Mikail Cholokov. Eu lia Os Condenados da Terra de Frantz Fanon, que ele dizia ser a minha bíblia de anticolonialista subversivo. Penso, no entanto, que poucas pessoas gostaram tanto de mim como aquele moço.

Ajudou-me, quase sem querer, a conhecer as gentes e os costumes da Guiné, e contribuiu de forma sublime, ainda que um tanto inconsciente, para o maravilhoso entendimento do internacionalismo, do anti-racismo e da solidariedade entre os povos. Julgo que, se ele tivesse vivido até ao fim da comissão, deixaria de chamar turras aos guerrilheiros que o mataram.

Foi num dia em que eu me sentia muito triste. Talvez pelo falecimento da Sónia, na África do Sul, uma lindíssima amiguinha de vinte anos, que conheci em férias em Lisboa, e que me escrevia com muita ternura. O Almeida procurou animar-me, lembrando-me o chuveiro que havíamos improvisado a partir de um bidon e de um ralo de regador, e que borrifava sobre nós os mais belos minutos do dia.

Linhares de Almeida [foto à esquerda], quando ainda estudante do Liceu Honório Barreto, em finais de 1959, princípios de 1960; terá nascido em 1942, em Bissau; aparece numa foto de grupo (14 elementos) do Liceu, identificado com o n.º 2 como sendo o "Juca" - Carlos Linhares de Almeida (irmão do 'Banana')!... 

A foto, sem data, é da autoria de Armindo do Grego Ferreira, Jr. 
Cortesia do blogue NhaGente, de Amaro Ligeiro (**)

Desta vez era um tanque, que construímos com uns restos de cimento encontrados numa arrecadação, e que iria proporcionar-nos, apesar da sua estreiteza de três metros por um, algumas deliciosas banhocas. A inauguração estava marcada para esse dia, e o Almeida, atrevido, imprudente como sempre e um tanto irresponsável, já se tinha deslocado sozinho a Barro, a fim de arranjar uma galinha que servisse de manjar no festejo. Barro era uma pequena aldeia nativa a onze quilómetros de distância, onde a Companhia mantinha um pelotão. Toda a estradeca estava minada e as emboscadas eram constantes. Mas o que é certo é que a galinha já estava do lado de cá.

A meio da madrugada o Almeida acordou-me:
- Já que não vens comigo fazer a patrulha, meu cobardesito de merda, fazes um bom xabéu com essa galinha para mereceres o mergulho no tanque.

Eu respondi-lhe:
- Tem mas é juizinho nessa bola, não te armes em herói, senão nem a galinha provas.
- Cobarde, um cobardesito é o que tu és, retorquiu ele sorridente, com um aceno amigo que nunca mais haveria de fazer.

Eram dez horas da manhã quando a nossa velha GMC irrompeu pela cerca de arame farpado, em correria demasiada para o seu velho e gasto motor, como se ela própria sentisse a tragédia que transportava no bojo: o corpo do Alferes Almeida crivado de balas dos pés à cabeça.
Puxei de um cigarro mas não consegui segurá-lo entre os dedos. E nunca tomei banho no tanque.

A única recordação dele, que hoje ainda mantenho, é o livro que tinha na mesinha de cabeceira: Morreram pela pátria.


2. Comentário do editor:

Pelos nossos registos, o Alferes Almeida desta história (verídica) é/era Carlos Manuel Sousa Linhares de Almeida, morto em combate em 1/4/67, em Bigene. Faz parte dos 75 alferes mortos no CTIG.

Vd. postes de:

e
26 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13946: In Memoriam (208): Carlos Manuel Sousa Linhares de Almeida (Bissau, 1942 - Bigene, 1967), alf mil da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Fá Mandinga, Nova Lamego, Bula, Bigene, 1966/68), Juca para os amigos do Liceu Honório Barreto (Manuel Amante da Rosa / António Estácio)

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16485: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (7): Guiné - Irkutsk

© Adão Cruz


1. Mais uma memória do nosso camarada Adão Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68).


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

7 - GUINÉ - IRKUTSK

Não chovia, mas o céu ameaçava desfazer-se em água. Era plúmbeo, presumivelmente a oeste, e carregado de negro do lado oposto. Uma faixa mais clara nascia por cima de Irkutsk e desfibrava-se ao longo do rio Angorá. Mais parecia um quadro de Fiódor Vasiliev ou de Ivan Aivasovsky. Como a vida tem tantas formas de circularidade, sentei-me num banco de jardim à beira do rio, e dei ordens à memória para me buscar aquele rapaz soviético que, há muitos anos, num ardente dia de sol, as nossas tropas aprisionaram no norte da Guiné. Era de Kiev, mas tinha nascido em Irkutsk, na Sibéria.
Técnico de máquinas automáticas, oferecera-se, como voluntário e internacionalista, para ajudar os guerrilheiros do PAIGC a combater as tropas colonialistas.

Na pequena sala onde funcionava a secretaria do nosso aquartelamento, estava o prisioneiro como que pregado a uma cadeira. Tinha na sua frente o capitão da nossa Companhia, o capitão da Companhia de intervenção que o capturou, dois ou três sargentos e outros tantos alferes, e eu.

Os lábios do jovem soviético nascido em Irkutsk estavam gretados de sede e de sol. Um sorriso feito de água, terra, fogo e ar, iluminado por um sol negro de melancolia, denunciava um grande medo dos homens que tinha na sua frente.

O capitão foi buscar um copo de água e entornou-o lentamente a uma mão travessa da boca do rapaz. Os olhos quase saltaram das órbitas. Pedi ao capitão que me desse o copo, enchi-o de água e raiva, e dei-o a beber ao prisioneiro. Valeu-me a firmeza com que o fiz e o facto de ser médico.

Se algum dia a minha vida pudesse ser música!…

Desconfiado, levou o copo à boca…

Ainda hoje eu não sei falar de tudo o que treme nas mãos de uma criança!

O céu arrependeu-se de chover. Seguimos para o lago Baikal, a maior reserva de água doce do mundo. Segundo os cálculos, daria para matar a sede à humanidade durante oitocentos anos. Quando senti nas mãos a água fria das margens, lembrei-me de um copo de água lá nos confins da Guiné.

Eu não sou capaz de crescer para as palavras, mas dava tudo para cruzar os tempos que ainda são tempo, e mostrar ao mundo a dimensão que o homem é, e a pequenez que usa por força da fraqueza.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16453: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (6): Pequenas Grandes Verdades

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16453: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (6): Pequenas Grandes Verdades



1. Mais um belíssimo texto enviado pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), este com pequenas grandes verdades.


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA


6 - Pequenas Grandes Verdades

Fiquei sempre com esta paradigmática sensação desde que, por volta de 1970, encontrei no átrio da Faculdade de Medicina da Salpêtrière, em Paris, um busto holográfico de Hipócrates que parecia dizer-me: Mon fils, la vie est le chemin pour la rencontre de nous-mêmes [, "Meu filho, a vida é o reencontro de nós mesmos"]. Mas já muito antes, na guerra colonial, as longas horas a olhar para o vazio se enchiam inesperadamente de pequenas explosões, não de granadas, mas de pequenas grandes verdades de um pensamento acorrentado à la rencontre de nous-mêmes.

Sentado numa pedra junto à margem, no meio do dilema entre vida e suicídio, depois de encontrar um dedo humano na boca do peixe-serra, que tinha um fígado de um metro quadrado, dizia o filósofo, condenado a mais nove meses de mato por tentar embarcar para a metrópole uma G3, com o fim de matar o sogro que lhe havia violado a mulher:
– Este é um sítio porreiro para alguém se suicidar, não acham?

Mas não havia ninguém à volta para receber a pergunta. Concluiu que falava para si mesmo:
- Ora merda, ninguém me ouve. Mas têm de concordar que é um poço fundo, tão fundo que não dá tempo para chegar vivo lá abaixo.
– A verdade procura sempre o amor na densidade dos processos e na empatia do sofrimento. – clamava bem alto o meu amigo arquitecto, pés bem assentes no escuro do pequeno cais de madeira, entre a amplidão do espaço de uma noite estrelada e os limites das margens do Cacheu.
– Muito se tem falado sobre o facto de umas coisas da vida imitarem as outras ou não coincidirem com as outras. Não se trata de uma questão de imitação ou discordância, mas de procurar saber o que acontece quando duas coisas se juntam, naturalmente, para criar algo de novo, isto é, saber o que acontece se ambas descobrem a verdade absoluta ou se a verdade absoluta não é mais do que a verdade relativa e circunstancial dos momentos das nossas vidas.

Não entendi muito bem, mas compreendi perfeitamente porque é que ele trazia debaixo do braço meia dúzia de discos de Beethoven, em vez da espingarda.

Assim que for dia, se dia chegar a ser nesta escura paisagem, lembraremos o amigo que na véspera escrevia versos com sangue da primeira bala, com a força da vida que cedo se apagou na segunda bala, gritando entre sonhos para os jagudis que o miravam e esperavam comer-lhe o corpo:
– O valor simbólico da percepção da vida está para além das filosofias baratas, e lembra que entre as grandes verdades da vida, outras mais pequenas se encontram a uni-las, como o amor, a poesia… e a morte.

A lua ia já muito alta, e caía a pique nas águas fundas do Cacheu. Eu e o padre capelão embarcávamos numa LDM [, Lancha de Desembarque Média,] , semelhante às que fizeram o desembarque da Normandia, em direcção a Binta, que ficava vinte milhas a norte. Ele levava como missão confortar as almas e eu levava como missão tratar uma caganeira geral do pelotão que ali se encontrava. A margem esquerda do Rio Cacheu, o Oio, era uma mata completamente cerrada de tarrafe, e território dos guerrilheiros.

A meio do caminho, nas entranhas do mais absoluto silêncio, apenas apunhalado pelo arrepiante pio de alguma ave nocturna, o padre perguntou-me:
 –  O que é para si a verdade?

E eu respondi:
– Neste momento, para mim, a verdade não é esta enorme lua andar à volta da terra, mas as bazucas que, eventualmente, estarão por trás do tarrafe e nos farão mergulhar no fundo do rio, onde uma legião de jacarés esfomeados nos espera. A verdade para mim, caro padre, está no facto de estarmos aqui os dois, no coração da selva, sem termos a coragem de confessarmos um ao outro que não nos cabe um feijão no cu. O senhor com o Breviário e eu com Les Damnés de la Terre [, "Os Condenados da Terra", de Frantz Fanon], duas realidades completamente diferentes, unidas pela força de uma pequena verdade circunstancial, o cagaço.

E o Padre, com duas lanchas no fundo do rio [, possível referência à LDM 302,] desde há dois meses, ancoradas na sua cabeça, pedia explicações não se sabe a quem:
– Alguém tem de me indicar a saída da noite sem regresso, não pode haver quem não saiba o caminho da derradeira fome, do calor do resto de lume do último verso, não acha,  caro doutor?

E eu respondi:
– Já viu estes passarinhos fritos, amavelmente e inesperadamente oferecidos por dois fuzileiros, no meio do rio Cacheu, noite fora, nos confins da selva? Somos quatro dentro de uma lancha perdida no tempo, meu amigo, dois fuzileiros, um crente e um ateu. Enquanto deus anda à deriva, esta metralhadora com balas do tamanho de um palmo, não.

Os gritos sem voz das mães dos filhos que por aqui ficaram, nem sequer beliscavam o silêncio. Não havia mães nem filhos, nem momentos de aflição. Apenas medo. A sensação de que o tempo era de morte, e a superfície espelhada do rio como um vidro vermelho de sangue deram para conversar:
– A noite e o vazio estão na origem cosmológica do mundo. Sofrer pode ser apenas sorrir. A pequena grande verdade do ser dissolve-se na tensão interna de quem ama a vida. Não será verdade?

E o fuzileiro, ainda com alguns passarinhos na sertã de meio metro de diâmetro,  avançou:
– Já fiz muitas missões por este rio fora, mas nunca com um padre e um médico. Uma bênção e um privilégio, mas que, nem por sombras me dão a segurança desta Browning.

E deu um beijo na metralhadora.

Já a lua se havia sumido e o sol faiscava nas três ou quatro garrafas vazias, quando abrimos os olhos, estendidos no convés. Ainda ecoavam nos ouvidos as pequenas grandes verdades, libertadas pelo estimulante whisky que os dois fuzileiros conseguiram no contrabando:
– Parecendo às vezes um lago tranquilo de um qualquer paraíso  – diz o segundo fuzileiro–  … e embora os rios corram para o mar, este parece nascer do mar, avançando sobre nós e tentando afogar-nos como aconteceu no último afundamento da lancha.
– Pois é – comenta o padre–, parece uma blasfémia, mas os desígnios de Deus nada mais são do que interacções sensoriais e perceptivas entre realidades virtuais e realidades reais, indispensáveis à compreensão da vida e do papel do ser humano.

Esta grande verdade nada mais produziu nos presentes do que um eructante soluço.

Não se riam. Assim como a dor transforma em humilde ignorante todo o que a sofre, também a mente humana, no meio do cagaço, discorre sabiamente sobre todas as filosofias, respondi eu, com as palavras ainda envoltas em vapores etílicos: nada se confunde plenamente, nada se distingue de forma absoluta, mas toda a nossa vida comporta áreas de intersecção muito importantes. Na relação gemelar entre os seres humanos, só a queda da hegemonia dos disparates torna possível as pequenas verdades da simplicidade da vida, no seu sentido antropológico.

Ao fim de dois dias, estancada a diarreia e reacesa a luz do Espírito Santo, alguém levantou, mais ou menos a despropósito, não o modus faciendi do seguimento para norte, mas a questão da transdisciplinaridade da vida, relação profunda e não superficial entre os saberes, uma das atitudes e estratégias fundamentais no avanço do conhecimento para a justiça, para a ética, para a solidariedade e cidadania, a fim de acabar com a puta da guerra. Dizia o alferes, já no fundo da garrafa de bagaço que trouxera de férias:
– Ainda há quem pense que existe um qualquer tipo de antagonismo entre imaginação de natureza poética, política, e bélica, mas não há. O que há é uma relação podre entre a razão e anti-razão, levando à morte das pequenas verdades e à destruição do ser humano.

Ora, nada destas filosofias tinha a ver com a terrível picada de vinte quilómetros que tínhamos pela frente, através da selva, durante sete horas, entre Binta e Guidage, já na fronteira do Senegal, onde íamos tentar acalmar alguns apanhados da cuca, pertencentes ao pelotão que lá se encontrava desterrado. O ataque de um enxame de abelhas selvagens a meio do caminho, ataque mais temido do que uma emboscada, foi uma daquelas pequenas grandes verdades que se agarram como crude ao caminho da memória. Como não havia qualquer deus na farda do padre capelão a receber as angústias dos homens, concedi a mim mesmo a difícil tarefa de ser eu o senhor e dono do nosso desígnio. Com muita sorte e pequenas verdades dentro de uma caixa de ampolas de hidrocortisona, conseguimos reverter dois graves choques anafilácticos.

– Diga-me lá meu caro padre, de que nos servem as grandes verdades?
– Servem para lhe pagar, com todo o gosto, a pequena verdade de uma cerveja, quando chegarmos a Guidage.

As pequenas grandes verdades da vida continuam a dizer-me que a relação do Homem com os inúmeros fenómenos que o rodeiam, com tudo o que vê e ouve, com tudo o que entende e não entende, é a mais poderosa essência da vida. A razão do Homem, fruto da obediência ao facto de existir… é um facto.

Três perguntas:
– Não será esta cerveja, saída do fundo do bidon de gelo para uma goela a quarenta graus, um milagre?
– Acha que, algum dia, a terra engolirá os exércitos genocidas que se empanturram de vidas e se embebedam de sangue para glória do Senhor dos Exércitos?
– Há alguma razão para andar com um colar de orelhas ao pescoço ou dar um sabonete Lux às bajudas e fuzilá-las de seguida?

O capelão, com um pé no Senegal e outro na Guiné – a fronteira era o caminho da fonte – encolheu os ombros, sorriu e sentenciou:
– Sempre haverá espinhos nos olhos e aguilhões nos flancos da vida.
– Sim – respondi– , sempre haverá grandes verdades na noite do Homem, a tapar as pequenas verdades do nascer do sol.
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Nota do editor

Poste anterior de 16 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16392: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (5): O diagnóstico

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16392: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (5): O diagnóstico

Adão Cruz com meninos de Bigene
Foto: © Adão Cruz


1. Memória enviada pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), relatando uma consulta com diagnóstico bem difícil, tal a dificuldade de comunicação entre médico e doente.


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

5 - O DIAGNÓSTICO

(Mais um conto da Guiné. Espero que saboreiem como eu saboreei)

O sol baixava a sua fogueira comendo a sombra à medida que a luz crescia. Como sempre, meti o corpo dentro de uma velha bata branca e dirigi-me ao posto de socorros, onde me aguardavam soldados e nativos para a consulta matinal. Hora respeitada. Ritual.
Logo que cheguei, os olhos caíram-me na figura de uma velha, cuja idade mirrara na secura das carnes. A pele parecia colada aos ossos, e a silhueta nem sombra dava. Os sorrisos esqueceram-se para lá da boca, e dois ninhos de rugas guardavam os olhitos faiscantes.
O “Manjaco”, nome da etnia de que era originário, um dos meus ajudantes nestas tarefas clínicas, alto e desengonçado, sempre feliz e afável, surgia acima de todas as cabeças.

- Manjaco, vamos ao trabalho.
- Dotô, manga pessoal, manga chatice!

Quando chegou a vez da velha, o Manjaco torceu o nariz, dando a perceber que era de língua difícil e de terra sem lugar, lá onde acabam bolanhas e começam mangueiros e coqueiros. Por universal defeito de raças e linguagens, as nossas falas não se cruzaram. O Manjaco olhou em volta, procurando intérpretes para aquele resto de corpo. Bateu o pé no chão para espantar a pequenada, debruçada na curiosidade.
- Maldita canalha, maldita velha qui só vem no chateanço. Tu, vem cá, e tu.

Os dois rapazes entreolharam-se como se mutuamente se desconfiassem. Um deles era mandinga e o outro não me lembro.
Puseram a velha a queixar-se. Ela sacudiu os ossos em imitação de tosse, ao mesmo tempo que apertava entre os dedos a pele seca da garganta. Numa espécie de dança, mexia o corpo para a frente e para trás baloiçando a magreza. Agitava-se em tremuras fingidas, emitindo uma espécie de grunhidos salpicados de baba, enquanto as mãos apanhavam o baixo-ventre ou se espalmavam nas hipotéticas ancas. O Manjaco ia observando toda aquela mímica com ar enfastiado:
- Ché! A velha é maluca!

Olhou de maneira inquisidora os dois moços, apontou para a velha, e já com a paciência a apagar-se, exclamou:
- Fala pá, fala maleita di velha.

Os dois esquinaram o olhar, torceram a boca, e a aflição somou as duas caras. O primeiro virou-se para o segundo e disse numa lenga-lenga:
- blá, blá, blá.
O segundo voltou-se para o Manjaco e traduziu:
-blé, blé, blé.

O manjaco encolheu os ombros, esboçou o gesto de quem nada percebeu, olhou-me de soslaio e exclamou:
- Dotô, isto estar grande merda!

De novo solicitada, a velha repetiu a cena escorrendo as palmas das mãos pelas pernas abaixo, esboçou um espasmo figurativo de dor, enroscou-se num ar felino e cravou os olhos desafiadores na cara do Manjaco. Disso é que ele não gostou. Com ar zangado, agarrou os dois rapazes pelos ombros, e numa última tentativa interpelou de novo:
- Tu ca sabi pá, tu ca sabi puto língua di velha, puxa por mimória, pá.

O primeiro virou-se para o segundo e disse:
- Blá, blá, blá.

O segundo voltou-se para o Manjaco e traduziu:
- Blé, blé, blé.

O Manjaco não atingiu e enraivou o anterior desabafo, espaçando as palavras:
- Dotô,… isto… estar… grande… merda!

Caracoleou então por entre queixas e deixas, desmontou os arrebiques da velha, denunciou a incapacidade dos intérpretes, e bufou de furor e impaciência. Tomou ele a iniciativa. Ensaiou uma cantoria zombeteira e atirou à cara da velha uma autêntica algaraviada. Furiosa, a mulher fez assomar ao nariz uma lágrima de ranho, fincou no chão os pés calçados de lama seca, olhou os dois intérpretes, fulminou o Manjaco, calou uns segundos de silêncio e voltou aos mesmos gestos e grunhidos, com força redobrada e descrição veloz, como cena de filme a correr em acelerado. Parou de repente, fitou de maneira desafiadora os circunstantes e cravou pela primeira vez os olhos em mim, como que a dizer: Então, já percebeste?

O Manjaco estava desorientado. Começou a dar uns passos curtos e outros compridos, rodopiou sobre si mesmo, volveu os olhos ao céu, e a despeito da vontade de estrangular a velha, voltou-se calmamente para mim e disse:
- Olha Dotô, corpo de ela tá todo fodido.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16381: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (4): Joãozinho, nunca na vida te deixarei sozinho

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16381: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (4): Joãozinho, nunca na vida te deixarei sozinho

1. Deliciosa história de amor, enviada pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com todos os ingredientes: amores, desamores, violência conjugal e o inevitável perdão.


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

4 - Nunca na vida te deixarei sozinho

Nunca na vida te deixarei sozinho, disse a Isabel ao seu marido joãozinho, na véspera de meter outro homem na sua cama.

A Isabel não andou na Faculdade, para assim falar tão bem nas traseiras do sentimento, mas foi criada de servir em Bissau, o que, numa aldeia do mato, era um curso superior. Isabel era uma mulher muito bonita, daquelas que são sempre futuro, ainda que a pele se engelhe. As suas formas afeiçoavam-se aos olhos, mais despindo a existência do que o corpo. Uma espécie de mulher à flor da pele, bem calculada por dentro. Mulheres paridas de si mesmas, sem vida nos outros. Mulheres de além-desejo, voo de ave, caminhando fora dos passos. Isabel, o torvelinho das tonturas do Joãozinho.

Joãozinho, servente da messe, sabia a mulher que tinha e todo se babava quando a gente dizia que ela era mais linda que surucucu empinada, mais pura que fruto de caju. Todo ele era uma viagem por dentro da Isabel, adivinhando-lhe o mundo no contar das coisas. Manhã levantada era sol de todo o dia, noite deitada era sonho que não morria.

Um dia…

Encontrava-me eu frente à palhota da Isabel, limpando com uma compressa embebida em permanganato de potássio, as feridas do dorso das vacas, verdadeiros buracos abertos pelos estilhaços das granadas e pelos pássaros pica-sangue, impiedoso tormento dos animais, quando ouvi atrás de mim uma voz de asas, leve de tempo, onde não havia destino, medida por lonjuras de sonho.
- Sr. Doutor, Sr. Doutor.

Do peito me nasceu um soluço que só anos mais tarde se escapou.
- Olá Isabel, que bela surpresa!
- Doutor, tenho galinha que consegui arranjar e vou fazer frango à cafreal para Doutor e nosso Capitão.
- Isabel, tu és um anjo, e nosso capitão, todo católico, vai pensar que é dádiva do céu, quando eu lhe contar.

Todos somos fingimento quando o sangue não se entorna no desaconchego da solidão. O provisório serve o regresso da alma, o fogo de outros calores invade os olhos através de janelas que há muito se não abriam. O capitão não mediu a fome nem a galinha, esqueceu a comunhão do Padre Gama, sonhou o despir da Isabel até à nudez pecaminosa e espetou os olhos no cair da noite.

Ao cair da noite, lá fomos os dois à palhota da Isabel, enquanto o Joãozinho lavava a loiça na messe. A Isabel estava no último acto da confecção do delicioso cafreal da tabanca. Primeiramente refogado, apenas em sumo de limão e piri-piri, depois grelhado na brasa e em seguida frito com cebola.
Notei que os olhos do capitão se cruzavam constantemente com os meus, não na galinha mas nas ancas da Isabel. Seguiam a luz sensual do petromax, que penetrava abusivamente na malha de tule até às roupas que vinham de dentro. Senhora de reflexos e de encontros, Isabel não prestava menos atenção à sedução do que à galinha.

- Doutor, nosso Capitão, tenho gira-disco e morna, mim dançar para doutor e nosso capitão.

Não nos empenhámos em perceber como é que uma pequena caixa e um disco de madeira giravam música. O esvoaçar do tule era o centro do mundo, o arder da fogueira de todo o nosso frio. Toda a força daquele colo maternal, toda a ternura da silhueta envolta em cabelos penosamente desfrisados durante longos anos, toda a firmeza das carnes subtis, todo o trigo desse abrigo adormecido, toda a tempestade recolhida nesse pedaço de noite tombaram sobre nós quando a Isabel iniciou o strip-tease.

Não me lembro do sabor da galinha. Recordo apenas uma espécie de vento fustigando as entranhas, reduzindo-me a um calção e uma camisa, ardendo dentro de mim com sabor a cinza.
Olhámos um para o outro, sorrimos, assumindo o que sempre estivera assumido, antes de darmos ao espírito a momentânea liberdade de um passeio pelo sonho que morre ao pé dos coqueiros.

Aconteceu nessa noite ou na noite seguinte. O Joãozinho entrou em casa e deu com alguém a fugir da cama da Isabel. Pobre do Joãozinho, sofreu mais com a sova que deu na mulher do que com a traição. Sofreu mais pelo avesso do que ela dissera na véspera, nunca na vida te deixarei sozinho, do que em todas as noites que passara enterrado na bolanha à espera de turra.
Doeu muito mais do que picada de escorpião.

Isabel apresentou queixa no Chefe de Posto. Argumentava e provava com as equimoses, dificilmente visíveis na sua pele de negra. Dolorosas como as equimoses em pele de branca. Afastara bondades de Joãozinho, denegrindo sua violência, grande de mais para coisa de momento. Não ser vontade de ela, mas força de imaginação que vem de dentro. Destino de todo fogo que acende rápido.

Foi constituído o tribunal. Perante o Chefe de Posto, Capitão e eu, compareceram queixosa e réu. O Joãozinho estava disposto a perdoar, a despeito de um sonoro desabafo, bengala de toda a sua alma, letra de toda a sua filosofia, resguardo de toda a sua defesa.
- Boca de ela ser boca de mim, olho de ela ser olho de eu ver, dor de ela corpo de mim qui dói, vida de ela valer morte de mim, mim ca pude pensar que Zabel durme cum gajo na cama de mim, dibaxo di memo tecto… inda si foi sinhô dôtô ou nosso capeton…!

NOTA: O capitão, personagem desta história, foi o capitão Brito e Faro, grande amigo, residente no Porto, há pouco tempo falecido.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16363: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (3): Os prisioneiros

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16371: (In)citações (97): Ainda a história (verdadeira) da Cadi... Tive um grande orgulho quando a população de Bigene, em peso, se veio despedir de mim à pista, com lenços no ar e lágrimas nos olhos (Adão Cruz, ex-alf mil médico, CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

(i) Comentário de Adão Pinho da Cruz, médico cardiologista, ex-alf mil médico, CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68) (*):

Caro Cherno Baldé, muito prazer em falar contigo. Tratemo-nos por tu, pois assim é que deve ser, e é muito mais democrático.

Muito obrigado pelos oportunos esclarecimentos, que registarei, pois estamos sempre a aprender. Sim,  meu caro Cherno Baldé, a história da Cadi, rigorosamente verdadeira, é enternecedora e constitui um marco indelével, de relação humana, na minha vida de homem e de médico. 

Como tu dizes, não seria fácil acontecer noutras terras, mas ali em Bigene, e um pouco pela minha acção, passe a presunção e a vaidade, a tropa e a população eram quase uma família. Como médico fiz tudo o que pude, como militar, nada de relevante. Até era tido como subversivo. A minha "bíblia" era o livro "Os Condenados da Terra" (Les Damnés de la Terre) de Frantz Fanon. 

O comandante de batalhão gostava muito de mim, mas dizia que eu parecia um médico de asilados, ao que eu respondia: meu comandante, eu fui feito médico civil e não militar

Mais uma vez perdoa-me a vaidade, mas tive um grande orgulho quando a população de Bigene, em peso, se veio despedir de mim à pista, com lenços no ar e lágrimas nos olhos. O próprio piloto da avioneta confessou-me que nunca tinha visto tal coisa e deu meia dúzia de voltas no ar antes de subir. Talvez o Cherno tenha razão, só num ambiente destes a história da Cadi poderia ter acontecido. (**)

Um grande abraço do Adão

8 de agosto de 2016 às 11:24
 

(ii) Comentário de Cherno AB:

Caro amigo Adão Cruz,

Obrigado por fazeres fé na minha observação, como sempre digo aos meus amigos do Blogue, eu fui um simples faxina no quartel, melhor dizendo, "um rafeiro de quartel",  como haviam muitos, mas que durou por mais de 4 anos e que me deu a possibilidade de observar e de questionar muitas coisas que se passavam ao meu redor.

Sensibilizou-me bastante a descrição que acabas de fazer sobre os prisioneiros (***), facto verídico que eu posso confirmar pela minha própria experiência no quartel onde passei a minha infância.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de agosto de  2016 > Guiné 63/74 - P16369: Em, bom português nos entendemos (14): a história da Cadi do dr. Adão Cruz e a expressão em crioulo "ka-misti" ou "n'ka-misti"(não quero) (Cherno Baldé, Bissaau)

(**) Último poste da série > 15 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16306: (In)citações (96): Nova Lamego, 15 de novembro de 1970, uma das noites mais longas das nossas vidas... Nós, miúdos, achamos que os nossos pais não choram, mas eu sei que também se chora em silêncio e sem lágrimas.... (Adelaide Barata Carrêlo, filha do ten SGE Barata, CCS/BCAÇ 2893, 1969/71)

(***)  Vd.poste de 6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16363: Os nossos médicos (88): Os prisioneiros (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)

sábado, 6 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16363: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (3): Os prisioneiros

1. Dramática narrativa das condições em que foram encontrados 4 prisioneiros, enviada ao nosso Blogue pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), em mensagem do dia 25 de Julho de 2016:


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

3 - Os prisioneiros

No tempo de sem janelas e sem vistas para o mar, eu dormia a madrugada dessa noite igual a tantas outras. Igual, não seria. Dois gritos lancinantes atravessaram a noite, degolando o silêncio. Como ecos do inferno. Os ataques não explodem assim! Nenhum homem grita do fundo do tempo! Nenhum animal selvagem ruge tão perto!

Virei-me para dentro do medo e verguei-o à razão. A razão das sobras do medo.
Passos na picada. Voz de sentinela apunhalando o escuro.
- Sr. Doutor, Sr. Doutor.

Dei um salto da cama levando de rosto a rede mosquiteira. Não dei com a luz, mas o raiar da madrugada permitiu que eu visse a silhueta do soldado.
- Algum problema?
- Um prisioneiro.
- Prisioneiro? Que prisioneiro?
- O Sr. Doutor não sabe?

Entre a minúscula enfermaria e a pista térrea de aviação havia um bloco de cimento com meia dúzia de metros por outra meia. Uma porta, duas sentinelas, outra porta. Esta última era uma barragem de tábuas pregadas e entrelaçadas, com uma frincha no meio por onde enfiavam restos de comida.
Dentro do ventre de cimento, disseram que eu iria encontrar quatro pessoas, três homens e uma mulher. Da garganta de uma delas haviam rebentado os gritos que arrepiaram os soldados. Maior este medo do que o medo das balas. Soava a algo do outro mundo, a almas penadas.

Tínhamos chegado ao mato há poucos dias. Os soldados sabiam de quatro prisioneiros deixados pela companhia anterior. Mas não sabiam o que continha aquela enxovia. Que seres havia para lá daquela porta. Entrei. Ia desmaiando. Devo ter inalado o cheiro mais nauseabundo que algum dia a minha imaginação concebeu. Misto de excrementos putrefactos, de fetidez condensada e de gangrenosas decomposições liquefeitas em suores, lágrimas e merda. Nem um buraco. Nem uma nesga de luz.

Arrastámos para o pequeno átrio o corpo que gritava. Um monte de trampa invadido de convulsões epilépticas. A boca espumava sangue. As carnes eram de pedra.

Já o sol enchia a entrada. Mandei retirar os prisioneiros daquele túmulo de cimento e deitei-os sobre a terra seca. Abri os olhos. Em toda a minha vida nunca vi tal coisa. Na explosão da luz, todos aqueles pares de olhos se injectaram de sangue como se houvessem rebentado. Uma violenta conjuntivite, reacção imediata a uma luz que não viam há muitos meses. Não é fácil descrever este quadro mesmo a anos de distância. Ainda sinto o espírito retorcido como pano de limpar o chão. Perguntava-me eu, ao olhar aqueles corpos dilacerados, o que teria acontecido. Um deles tinha um pedaço de lábio fendido cicatrizado por segunda intenção, a par de inúmeros golpes na face e no pescoço. Outro tinha parte da orelha colada à cara e um sobrolho caído. Outro era apenas um velho. Os cabelos cresceram e formavam uma pasta de alcatrão agarrada à cabeça. Restos de trapos colavam-se aos corpos. Um deles parecia uma mulher. Era uma mulher. A não ser que lhe tivessem cortado o pénis. Pela vagina escorria pus esverdeado e chamava-se Maria. Provavelmente era virgem, apesar de tantos soldados terem violado a sua podridão.

Atravessei num vómito a parada e fui falar ao capitão. Ele não assumia a responsabilidade da libertação. Assumi-a eu, como médico.

Foram tratados e alimentados. O epiléptico, que era o mais novo, fugiu. Atravessou a pista, galgou o arame farpado, e desapareceu na selva. A sentinela ainda engatilhou uma rajada que não chegou a disparar. Outro foi integrado. Quando vim embora cultivava arroz e algum medo pela minha ausência. O velho, recuperadas as forças, gastou-as a cortar a garganta com os vidros de uma garrafa. Poupados os vasos do pescoço, vi que valia a pena pedir uma evacuação “Y”, ou seja, emergente. Duas semanas depois o helicóptero trouxe-o de regresso, curado. A Maria foi cuidadosamente tratada durante meses, de todas as infecções físicas e psíquicas. Teve um filho nascido do amor de um soldado. Quando a deixei, não consegui ver o que havia por detrás do mar de lágrimas dos seus olhos.
Penso que era vida.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16356: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (2): Cadi suma outra mulher

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16356: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (2): Cadi suma outra mulher

1. Mensagem do nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com data de 22 de Julho de 2016:

Amigo Carlos
Aí vai mais um conto, rigorosamente verdadeiro, de alguns que escrevi e publiquei há vários anos, e que considero um dos mais belos poemas que me aconteceram na vida.

Adão Cruz


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

2 - Cadi

Cadi era uma mulher esbelta. Uma verdadeira Balanta-Bravo. Não tão bonitas como as Futa-Fulas, as balantas tinham um corpo de fazer inveja a quaisquer outras. A Cadi era o ver-dos-olhos de soldados, sargentos e oficiais. Mas apenas o ver-dos-olhos. Mais do que isso Cadi não permitia. Nós vivíamos dentro de uma cerca de arame farpado, de onde só se podia sair, praticamente, de avioneta. Uma companhia militar e uma população rondando os mil e oitocentos negros. Não é de admirar que qualquer mulher pusesse “os olhos em bico” aos militares. Cadi sabia-o muito bem, e, com uma postura digna e distanciada, contrabalançava a sua condição de negra. Cadi sabia que todos gostariam de “fazer conversa gira” com ela (fazer amor), mas tinha grande orgulho em não deixar que lhe tocassem. Eu admirava muito a maneira de ser da Cadi, que assim se valia do que a natureza lhe dera para impor a sua dignidade de mulher, ainda que negra, faminta, e rudemente colonizada pela “supremacia” branca.

Um dia, começou a constar na tabanca que Cadi não era normal. Cadi “ca tem catota, Cadi ca suma outra mulher”. Na mais rudimentar tradução à letra, isto queria dizer que Cadi não era igual às outras mulheres, pois não tinha “buraquinho”, e, por conseguinte, não podia “fazer conversa gira” nem ter filhos. O boato explodiu como uma granada, e, em pouco tempo, a Cadi transformou-se em “avis rara”, vítima da vingança dos que nunca puderam tocar-lhe e da chacota dos que, mesmo assim sendo, gostariam de o comprovar pessoalmente.

Como as neuroses e as depressões não são apenas doenças de brancos e ricos, Cadi começou a andar muito triste e cabisbaixa. Não parecia a mesma, aquela que todos os dias atravessava a picada com ar garboso, peitos erectos, cabeça erguida e um menear de ancas capaz de provocar desmaios

O meu amigo e Chefe de Posto, cabo-verdiano, numa daquelas conversas que nos ajudavam a matar as intermináveis horas que faziam o eterno tempo de guerra que éramos obrigados a viver nestas paragens do norte da Guiné, disse-me com ar pesaroso:
-Doutor, ando chateado com aquele problema da Cadi. Coitada da moça, quer ir embora, quer ir viver para Binta. Sente uma grande vergonha por aquilo que dizem. Não seria possível fazer alguma coisa por ela? Por exemplo o doutor examiná-la? Ela aceitaria imediatamente. Apesar dos seus vinte anos e de nunca ter saído daqui, é uma rapariga com mentalidade evoluída e uma personalidade admirável.

Combinámos o dia e a hora do exame. Exigi a presença do Chefe de Posto e do meu enfermeiro, o qual, apesar de ser electricista de profissão, foi dos melhores enfermeiros que tive na Guiné.

O exame ginecológico da Cadi era absolutamente normal. Tinha “buraquinho” no mesmo lugar do buraquinho das mais famosas artistas de cinema, e com todos os demais apetrechos com que a natureza dotou as mulheres, brancas ou negras. Cadi podia fazer “conversa gira” com quem quisesse e podia ter filhos.

No dia seguinte, o Chefe de Posto reuniu, debaixo do mangueiro que ensombrava o pátio da sua pequena casa, todos os “Homens Grandes” da tabanca. Eram mais de dez, vestindo a túnica branca de cerimónia, e ostentando o turbante que a sua origem muçulmana impunha. Com ar grave, compenetrados da importância da sua presença, ouviram a comunicação em crioulo que o Chefe de Posto lhes fez.

Não sou capaz de reproduzir na íntegra, e tenho pena, mas posso dizer que foi das coisas mais bonitas que ouvi na minha vida de médico e de homem:
- Homem Grande de tabanca, toda gente conhece Doutor. Doutor ser aquele homem que cura meningite de tanto menino, que ensina maneira certa de parir, que faz fanado limpo de infecção, que levanta de noite toda hora para acalmar sezões. Doutor ter palavra sagrada. E Doutor disse: "Cadi suma outra mulher, Cadi ter catota suma outra mulher, Cadi pude fazer conversa gira e ter filho”.

Os “Homens grandes” da tabanca desfizeram-se em vénias e Cadi foi reabilitada. Ganhou até uma certa auréola de heroína, não só entre a população negra como entre os militares.

Eu tinha um jipe muito velho, quase só rodas e chassi. Com ele costumava ir ver o pôr-do-sol na orla da floresta, junto do arame farpado. Embora a distância não fosse grande, cerca de oitocentos metros, dava uma certa ficha e era motivo para entreter a pequenada em gincanas à volta da tabanca.

Já o sol se havia posto há muito. Demorei-me um pouco mais com a ternura desta gente negra e com as carícias que um velho cego de noventa anos me fazia, todos os dias, à volta da cara e nos cabelos, quando desligava o motor frente à sua palhota, onde me esperava sempre à hora do crepúsculo. Na pequena subida para a povoação, já fora da zona das palhotas, em contraluz, vi um vulto de mulher em estilo de aparição, com os pés na terra mas bem desenhado no céu, que parecia querer falar-me. Aproximei-me o mais possível e parei. Com o seu rosto de diamante negro espelhado de orgulho balanta, envolto num lenço negro como ele, eu tinha na minha frente a Cadi.

- Cadi, que surpresa!
- Dôtô, Cadi manga de satisfação, Cadi feliz, Cadi ca sabe como agradecê, dôtô tudo merece. Cadi mist conversa gira.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16235: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (1): O Parto - ou o nascimento do Adão Doutor em Bigene

terça-feira, 26 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16335: Tabanca Grande (491): Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Adão Pinho da Cruz(*), Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com data de 22 de Julho de 2016:

Amigo Carlos Vinhal

Obrigado pelas vossas palavras.

Aí vai a informação que pedem:

Adão Cruz
Alferes miliciano médico na Guiné, de 1966 a fim de 1968.
Companhia 1547 do Batalhão 1887, salvo erro.
Locais onde estive com maior permanência: Canquelifá e Bigene.
Outros locais: Bissau, Bafatá, Gabu-Sará, Piche, Farim, K3, Binta, Guidage, Jumbembem, Cuntima, Barro e… Bijagós.

No início da minha carreira de médico fiz clínica geral em Vale de Cambra, três anos antes de ir para a Guiné e mais três depois de vir.

Fiz a especialidade de Cardiologia, com sub-especialização em ecocardiografia, tendo sido um dos pioneiros desta técnica em Portugal.

Exerci clínica privada no Porto e S. João da Madeira. Fui médico do quadro de cardiologia do Hospital de Santo António durante duas décadas, acabando a carreira hospitalar no Hospital de Gaia como assistente hospitalar graduado.

Ainda hoje, já bem velho, tenho a honra de ir semanalmente à reunião do prestigiado Serviço de Cardiologia deste hospital. Ainda vou ao consultório dois dias por semana.

Escrevo desde jovem e pinto desde a década de oitenta. Tenho onze livros publicados, entre pintura e literatura, especialmente poesia.

Vivo no Porto. Tenho três filhos e quatro netos.

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 2. Apontamento do editor:

Lembramos que o nosso camarada Adão Cruz chegou ao conhecimento do Blogue, e vice-versa, porque o seu filho Marcos é amigo da Joana, que por sua vez é filha do nosso camarada tertuliano Francisco Baptista. Sendo o mundo pequeno e a nossa Tabanca (tão) grande, natural esta aproximação. Há já duas entradas de Adão Cruz no nosso Blogue, textos enviados por Francisco Baptista.

Do muito que encontrei na Net sobre o nosso novo camarada, aqui fica:

I - Biografia transcrita, com a devida vénia, publicada na página "A Viagem dos Argonautas":

APRESENTAÇÃO DO ARGONAUTA ADÃO CRUZ

Adão Pinho da Cruz nasceu no lugar de Figueiras, freguesia de Castelões, concelho de Vale de Cambra, em 1937.

Licenciado em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, especializado em Cardiologia e sub-especializado em ecocardiografia.

Prestou serviço militar na Guiné, entre 1966 e 1967, como alferes médico. Usando palavras suas: «a profunda vivência da guerra e o profundo contacto com uma população miserável, constituíram uma das mais ricas e marcantes experiências da sua vida».

Apanhado pela explosão do 25 de Abril, não fugiu ao novos deveres de cidadania criados pela Revolução e, nomeado pelo Governador Civil de Aveiro, exerceu durante um ano as funções de Presidente da Comissão Administrativa da Câmara municipal de Vale de Cambra.

É membro da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, da Sociedade Europeia de Cardiologia, da Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos e foi também membro da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos.

Para além da sua actividade como médico, é escritor e pintor, com diversos livros publicados, de contos, poemas e pinturas. Fez várias exposições, individuais e colectivas, realizadas em Portugal e no estrangeiro.

Principais obras publicadas: Esta Água Que Aqui Vem Dar (poemas e pinturas-1993), Vem Comigo Comer Amendoim (contos, ilustrados por Manuel Cruz-1994), Palavras e Cores (prosa poética e álbum de pinturas-1995), Adão Cruz – Tempo, Sonho e Razão (álbum de pinturas e textos de Albano Martins e César Príncipe-2003), Nova Ponte Sobre um Velho Rio (conjunto de três pequenos volumes de poesia, com capas sobre pinturas do autor-2006), Adão Cruz – Hora a hora rente ao tempo (álbum de pinturas e texto do autor-2007), Adão Cruz – Um gesto de silêncio (álbum de pinturas e poemas, com texto do autor -2010), VAI O RIO NO ESTUÁRIO, poemas de braços abertos (poesia e textos) e VAI O RIO NO ESTUÁRIO, cores de braços abertos (pintura e texto do autor).


II - Vídeo no Youtube referente a uma Exposição de pintura de Adão Cruz, inaugurada em 14 de Maio de 2011, na galeria Zeller, Rua 14 nº 750 - 4500 ESPINHO - onde se pode ficar com uma ideia do seu trabalho.

Ver aqui  
Com a devida vénia a Carlos Wanzeller


III - No Jornal Labor, Secção Sociedade

Com a devida à autora do texto, Anabela S. Carvalho

Adão Cruz, poeta da natureza, pintor da liberdade

Médico, poeta e pintor, Adão Cruz exibe na biblioteca um excerto da sua intimidade. Razão para uma conversa que começou nas artes e atravessou, de forma ligeira, uma vida que se cruza com a história recente do país


O cardiologista Adão Cruz tem na biblioteca municipal uma exposição de quadros e poemas, inaugurada em clima de “Poesia à Mesa”. É uma das raras oportunidades para ver em S. João da Madeira o trabalho do médico, que já publicou sete livros de poesia e nove de pintura. E motivo de conversa com o labor sobre a poesia, a arte e a vida.

Adão Cruz cresceu no lugar de Figueiras, freguesia de São Pedro de Castelões, Vale de Cambra, em completa harmonia com a natureza. Essa infância, que tanta nostalgia lhe traz, transborda facilmente para os versos, que escreve desde catraio. É talvez o único tema, por assim dizer, da poesia de Adão Cruz, que, na verdade, não tem tema nenhum.

Já a pintura surgiu mais tarde. O médico tentou transpor os mesmos sentimentos para a tela e saiu-lhe uma espécie de “expressionismo ficcionista do sentimento”. Um figurativo à sua maneira, ou seja, “rude” e “espontâneo”, sem regras ou preocupações técnicas e académicas que, como disse Júlio Pomar, “é a doença congénita das artes”. Uma espontaneidade e liberdade que o médico mantém também quando escreve e que, na sua opinião, mais fielmente respeita o sentimento que o move.

Falar com Adão Cruz sobre poesia e arte é falar sobre o próprio conceito de uma e de outra. A questão tem-no ocupado nos últimos anos. “Qualquer expressão artística tem na sua essência o sentimento poético”, afirma. O que é o mesmo que dizer que a poesia está em todas as formas artísticas. O que é a poesia? Defini-la é como tentar definir o próprio amor, exemplifica. “O sentimento poético e o sentimento artístico não nascem do dia para a noite. Pode haver algum componente genético mas têm de ser vividos, esculpidos pela vida”, explica. E essa depuração só se faz através daquela que para o médico de 77 anos é a maior riqueza dos homens: o pensamento e a razão. Depois o desafio é expressar esse sentimento, sem tender para o sentimental. “Costumo dizer que somos uma espécie de garimpeiros a peneirar o cascalho das palavras”, afirma.

Para Adão Cruz, na poesia e na pintura, de pouco vale a forma. É no efeito das suas palavras ou traços em quem os observa que está o real valor da obra. Por isso não dá nomes aos quadros, por exemplo. “Essa coisa da obra ser nossa, é de facto. Mas depois é de toda a gente que a vê”, revela. Essa gente verá no poema ou no quadro algo que não estaria na sua origem mas é uma interpretação válida porque gerada através dos estímulos que o artista criou. A consciência disto alicia Adão Cruz, avesso a descodificações que muitas vezes “empobrecem a obra e as capacidades de interpretação” da mesma.

O seminário, a guerra e o 25 de Abril

A vida do médico cardiologista está repleta de episódios que marcam e definem um rumo de vida. Aos 11 anos, depois de uma infância em total “ordenação com a natureza”, foi internado num seminário jesuíta, donde fugiu três anos depois. “Aquilo foi a trucidação da minha vida de infância. Foi um corte radical que me marcou a vida toda. Até hoje!”, revela. Na hora de rezar o jovem Adão brincava com o terço e na hora de meditar olhava irrequieto em volta. Estava entre os piores comportados do seminário e o reitor, resignado, até já tinha concluído pela ausência de vocação no jovem. Numa manhã, Adão pirou-se.

Daí foi para Colégio de Vale de Cambra mas as boas vindas do reitor - outro padre que, numa das primeiras abordagens ao novo aluno, deu-lhe uma chapada - não o convenceram. Acabou por mudar-se para o Colégio de Oliveira de Azeméis, que frequentava com a irmã, a professora Eva Cruz.

Fez-se médico e andou seis anos a calcorrear montes e vales de Vale de Cambra e da região, numa altura em que a medicina transitava para a era moderna. “Foi a minha grande escola de medicina”, comenta. Chamado para a guerra colonial, esteve destacado na Guiné durante dois anos. Nesse período, o jovem médico, que já levava de Portugal sentimentos antifascistas e anticolonialistas, despertou a consciência social e política. Assistiu à exploração dos agricultores, fez-se amigo dos nativos e até hoje troca correspondência com alguns.

Quando voltou, foi recebido em apoteose. Os habitantes de Vale de Cambra receberam o médico com a pompa e circunstância da época: banda de música e missa solene. Mas o 25 de Abril virou o bico ao prego. A oposição de Adão Cruz ao regime fascista e os ideais de esquerda empurraram-no para a presidência da comissão administrativa da câmara de Vale de Cambra, período do qual não guarda especial saudade. Em pleno PREC, os ânimos estavam acerbados e o extremismo eclodia. A população estranhou ver o médico ao lado dos comunistas e, estimulada pelos líderes de direita, começou a contestá-lo. Adão Cruz chegou a correr para Vale de Cambra a meio da noite porque uma multidão de 300 pessoas ameaçava invadir a câmara. Quando lá chegou, nenhum dos contestatários o olhava de frente. O episódio não deu em nada porque o respeito que granjeou no passado acabou por falar mais alto.

A ruína dos sonhos

Desiludido, um ano depois de tomar posse, candidatou-se à Assembleia Constituinte. Era a única forma de abandonar o cargo e o médico estava decidido a fazê-lo. “Fiquei muito magoado porque dei tudo para dar alguma dignidade àquela gente”, recorda. Lembra nomeadamente as reuniões de câmara com representantes das freguesias e com quem mais quisesse aparecer, em oposição ao que acontecia durante o fascismo. “O nosso empenho era democratizar”, conclui, ainda com mágoa.

Por esta altura, o médico já vivia em S. João da Madeira, onde até hoje mantém um consultório modesto e discreto na Rua do Visconde. Desde que se mudou para o Porto, é o consultório com 40 anos que o traz à cidade duas vezes por semana.

Aposentou-se há anos mas esporadicamente ainda volta ao Hospital Santo António, onde fez o grosso da carreira. Olha com muito desalento para a evolução do Serviço Nacional de Saúde em particular e do país em geral. “Estou convencido que qualquer pessoa vê que isto é a destruição de tudo o que se adquiriu até aqui”, lamenta, convencido de que só muito mais tarde se voltará a adquirir tudo o que se perder agora. Teme que a ganância, a escassez e a pressão sobre a população façam emergir uma sociedade pobre e individualista onde os seus filhos e netos viverão. “Dos direitos mais importantes do homem é o direito ao trabalho. Qualquer sociedade devia tê-lo como prioritário”, comenta, lembrando que o SNS chegou a estar na 12.ª posição mundial mas hoje não dá resposta a quem precisa. “Nunca pensei que os meus sonhos ruíssem desta forma”, confessa.

A conversa com Adão Cruz esteve para terminar neste tom mas a fotografia dos netos e o regresso à poesia rapidamente lhe mudaram a expressão.

Por: Anabela S. Carvalho


IV - No Blogue Jardim das Delícias, estão publicados alguns textos e reproduções de trabalhos de pintura do camarada Adão Cruz, do qual extraímos, com a devida vénia ao autor da obra e ao editor do Blogue, esta bela pintura intitulada "Mãe".



3. Ficam agora algumas fotos enviadas por Adão Cruz que o remetem para a Guiné e para a sua nobre função de médico militar.








O nosso camarada Adão Cruz actualmente

OBS: - As fotos não vieram legendadas, só com a indicação de que eram de Bigene e Canquelifá. Se a todo o tempo o camarada Adão Cruz quiser identificar os seus companheiros, proceder-se-á à inclusão das respectivas legendas.


4. Era suposto agora publicar uma pequena história, habitual no postes de apresentação, mas como este já vai longo, e porque temos já dois belíssimos textos em carteira, estes serão publicados brevemente.

Ao nosso novo amigo e tertuliano Adão Cruz, um dos médicos militares, aos quais, assim como a todo o pessoal do serviço de saúde, tanto devemos, damos as boas-vindas e convidamo-lo a sentar-se à sombra do nosso poilão, não para descansar, mas para nos falar da sua experiência como médico em teatro de guerra, cuja missão era salvar vidas, amigas ou não, ao contrário de nós tínhamos de defender, a todo o custo, as populações amigas e as zonas de acção que nos estavam confiadas.

Correndo risco de esquecer algum, aqui ficam os camaradas médicos militares que fazem parte da nossa tertúlia:

Amaral Bernardo (BCAÇ 2930)

José Pardete Ferreira (CAOP 1 e HM 241)

Manuel Valente Fernandes (BCAV 8323)

Mário Silva Bravo (CCAÇ 6)
e
Rui Vieira Coelho (BCAÇ 3872 e 4518).

CV
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

25 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16134: (In)citações (91): "Um gajo não sabe o que foi a guerra colonial", diz Marcos Cruz, filho do Dr. Adão Cruz, um dos médicos do BCAÇ 1887 (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)
e
25 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16235: Os nossos médicos (86): O Parto - ou o nascimento do Adão Doutor em Bigene (Adão Cruz / Francisco Baptista)

Último poste da série de 11 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16294: Tabanca Grande (490): Adelaide Barata Carrêlo, filha do ten SGE Barata, CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71)... Com sete anos apenas, sofreu a brutal flagelação do IN ao quartel e vila do Gabu, em 15/11/1970, que causou 3 mortos e 4 feridos graves entre as NT e 8 mortos e 80 feridos (graves e ligeiros) entre a população... Passou a ser a nossa grã-tabanqueira nº 721

sábado, 25 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16235: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (1): O Parto - ou o nascimento do Adão Doutor em Bigene

1. A Joana, filha do nosso camarada Francisco Baptista, é amiga de Marcos Cruz, filho do ex-Alf Mil Médico Adão Cruz que passou pela CCAÇ 1547/BCAÇ 1887.

Como o Mundo é (muito) pequeno comparado com o nosso Blogue, criou-se aqui uma cadeia que começa nas memórias do Dr. Adão Cruz, que passam para o seu filho Marcos, que as envia à Joana, que as envia ao pai Francisco, que por sua vez as faz chegar ao Blogue.

Esperemos que esta seja a primeira de muitas e belíssimas histórias que só o pessoal de Saúde pode contar, a exemplo de tantas outras que felizmente recheiam o nosso espólio.


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

1 - O Parto

Quando cheguei à Guiné, uma das primeiras preocupa­ções que tive foi começar a conhecer as pessoas e os costumes. Para além de ser uma tarefa aliciante, era a melhor forma de me libertar do medo da guerra e da perspectiva pouco animadora de um regresso encaixotado.

Conhecer um povo, ainda que pequeno, originário de quarenta grupos étnicos, fragmentado e encurralado física e psicologicamente em zonas estanques por impo­sição de uma violenta guerra de guerrilha, não era fácil e a desvirtuação constituía um perigo possível.

Tentei iniciar a penetração neste novo mundo através da abertura que a minha missão de médico facultava e facilitava.
Com o tempo as janelas foram-se abrindo e hoje revejo com alguma saudade o imenso painel de mil cores, esse mar de sensações e vivências que nenhuma memória pode esquecer.

As mulheres de Bigene, e não só de Bigene, pariam no mesmo local onde defecavam, uma pequena cerca de esteiras nas traseiras da tabanca, longe da vista das pessoas e sobretudo dos homens, como se o acto de parir fosse indigno e imprudente, obrigando ao mais submisso recato.

Como se não bastasse, uns dias antes da data prevista para o parto atulhavam a vagina com bosta de vaca, a qual sofria pútridas fermentações que exalavam o cheiro mais nauseabundo que imaginar se pode.

Os tétanos, quer da mãe quer do recém-nascido, eram extremamente graves e frequentes, soube eu mais tarde. 

Neste primeiro contacto fiquei boquiaberto e decidi actuar. Não seria difícil imaginar a resistência destas pessoas a qualquer tipo de reforma dos costumes, se não fosse tido em conta um facto importante.

Ao contrário do que se diz e do que se pensa, os negros, sejam eles homens ou mulheres, são muito espertos, nada ficando a dever aos brancos e superando-os em muitas coisas dentro da mesma escala de cultura.Estou disposto a comprová-lo através de exemplos sérios nascidos da minha experiência.

Só assim foi possível a rápida aceitação e compreensão dos esclarecimentos que fiz na tabanca acerca de infec­ções e higiene, acerca do papel da mãe, da dignidade do parto e das vantagens de este ser efectuado na nossa enfermaria, ainda que pequena e modesta.

Não demorou muito tempo a aparecer a primeira parturiente.

Era uma linda mulher grávida de termo que não falava nada que se percebesse. Não sou capaz de precisar nesta altura a etnia, mas lembro-me que nem os outros negros entendiam o seu dialecto.
Mas o seu sorriso, apesar das dores, era tão aberto e confiante que não precisávamos de melhor forma de comunicação e entendimento.

Até os olhos do meu enfermeiro Pimentinha brilharam de entusiasmo, entusiasmo que o levou a ler de ponta a ponta a minha sebenta de obstetrícia e a transformar-se em pouco tempo num habilidoso parteiro e carinhoso puericultor.

Nas minhas mãos um pouco trémulas eu segurava o fruto do primeiro parto que assisti na Guiné.
Era um belo rapazinho que, apesar da pobreza alimentar daquela gente, nasceu bem nutrido e de uma cor rosa-marfim.

Os negros nascem brancos, como se sabe. Uma deliciosa ironia anti-racista da natureza.

Embora as nossas dificuldades logísticas e económicas fossem grandes, lá consegui oferecer-lhe o alimento, sob a forma de leite condensado, indispensável aos primeiros meses de aleitamento, pois a mãe parecia ter esgotado todas as reservas das suas entranhas ao gerá-lo de ma­neira tão eutrófica e tão perfeita.

Umas semanas após o nascimento vem ter comigo o Chefe de Posto e diz-me sorridente:
- "Doutor, vou dar-lhe uma linda notícia que a mim, pes­soalmente, me enterneceu. A mãe daquele catraio... aquele primeiro parto que o doutor fez, lembra-se?... A mãe veio registá-lo há dias, oficialmente, com o nome de Adão Doutor".

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Comentário do editor:

Utilizando a mesma cadeia que faz chegar a nós as memórias do Dr. Adão Cruz, convidámo-lo a fazer parte da nossa tertúlia, esta família de ex-combatentes da Guiné, onde o pessoal da Saúde tem um lugar especial.

Nem só de operações militares se fez guerra, as operações cirúrgicas foram bem mais importantes pois não distinguiam amigos ou inimigos.

Caro Dr. Adão, ficamos à sua espera, tem a porta sempre aberta.

CV
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Notas do editor

(*) - Vd. poste de 25 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16134: (In)citações (91): "Um gajo não sabe o que foi a guerra colonial", diz Marcos Cruz, filho do Dr. Adão Cruz, um dos médicos do BCAÇ 1887 (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16134: (In)citações (91): "Um gajo não sabe o que foi a guerra colonial", diz Marcos Cruz, filho do Dr. Adão Cruz, um dos médicos do BCAÇ 1887 (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)

1. Mensagem de 20 Maio de 2016, do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72):


A minha filha Joana, que na adolescência me fez perguntas insistentes sobre hipotéticos perigos que eu teria passado na guerra da Guiné e eu que lhe respondia sempre que somente ouvi por vezes o som de algumas canhonadas a rebentar a quilómetros de distância, e que de resto passei lá umas agradáveis férias tropicais.

Já na passagem para a idade adulta, quando por uma ou duas leituras que lhe dei a ler neste blogue se apercebeu que passei por algumas situações de relativo perigo e convivi de perto com a morte de alguns camaradas ou feridos graves, ficou zangada e furiosa comigo e pelo menos durante quase três anos nunca mais quis ler qualquer texto meu sobre o assunto.

Hoje já mais indulgente e compreensiva enviou-me este texto do seu amigo Marcos, filho do médico Adão Cruz, nosso camarada da Guiné, que eu achei muito interessante e expressivo e que me pareceu que merecia maior divulgação.

A Guiné, para nós, foi um misto de sensações, boas e más, algumas dolorosas com um luto muito prolongado e muito difíceis de verbalizar. Muitos esperaram longos anos para se conseguirem libertar do arame farpado, das matas e bolanhas, alguns morreram sem nunca o conseguirem.
Durante muitos anos depois do meu regresso, sendo até já a Joana adolescente, lembro-me de um sonho que se repetia por muitas noites. Sonhava que voltava de novo para a Guiné e reclamava junto das chefias militares porquê outra vez, se eu já lá tinha passado lá dois anos. Não obtinha quaisquer respostas e o sonho diluía-se em solidão e silêncio.

Este ano, falei neste sonho, a três ou quatro camaradas, num convívio recente e dois deles disseram-me que tiveram sonhos idênticos. Os nossos filhos, os nossos netos que muitas vezes adivinharam a nossa tristeza envolvida no nosso silêncio, nem sempre compreenderam que não queríamos passar para eles essa mancha negra, essa mágoa, provocada pela violência da guerra quando éramos jovens. Não fomos heróis, Tínhamos entre vinte e trinta anos e uma imensa vontade de viver e ficámos chocados ao ver que essa vida, que nessa idade nos parecia eterna, era tão efémera que acabava num estilhaço de granada, numa mina ou numa bala certeira.


2. Mensagem de Joana Baptista, enviada a seu pai:

O meu amigo Marcos, filho do médico Adão(1), escreveu isto:

"Um gajo não sabe o que foi a guerra colonial. O meu pai, Adão Cruz, fartou-se de me contar histórias da comissão de serviço dele na Guiné – umas mais felizes, como a de um puto chamado Marcos que terá motivado a escolha do meu nome, ou a de um bebé que ficou Adão Doutor em homenagem ao médico que lhe desenrascou o parto, e outras menos, como a de um amigo a quem ele não conseguiu tirar a ideia de se arriscar no mato, debaixo de tiros, para apanhar uma galinha e cozinhá-la à cafreal e que chegou, pela mão de outros militares, todo furado, ou a de um colega que lhe morreu nos braços – mas pouco mais pude fazer com elas do que imaginar, especular, fantasiar. 

É exactamente o que a minha filha faz. 

A tantos anos de distância, ela pergunta-me coisas a que não sei dar resposta, como se eu tivesse vivido aquilo. No próximo sábado, dia 21, avô e neta vão a um almoço-reunião do que resta da Companhia 1547, e eu estou para ver o que a baixinha traz de lá. Entretanto, escreve o meu pai: 
- “Muitos já partiram. Os que restam não vão apenas dar um abraço esporádico, mas garantir com a sua presença, a despeito das vidas de cada um terem seguido caminhos muito diversos, o abraço perene e permanente, sabe-se lá porquê, com que nos mantivemos ligados até hoje, ao fim de meio século. 

Eu próprio sinto que não é apenas um abraço de braços, mas um abraço de alma vivida com profunda intensidade, o abraço de uma parte da vida aprisionada dentro e fora do arame farpado, que de tal forma explodiu no futuro que ainda hoje nos reúne, para alguns com muita dificuldade. É verdade, faz 50 anos que desembarcámos do velho navio Uíge, no cais de Bissau, sob um calor escaldante, para uma aventura que custou a vida a muitos dos nossos saudosos colegas”.

Aqui fica uma fotografia dele, em boa companhia:"

Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil (?) Médico do BCAÇ 1887
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Notas do editor

(1) - O nosso camarada Domingos Santos, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), no seu poste de 15 de junho de 2013 Guiné 63/74 - P11706: Os nossos médicos (48): O BCAÇ 1887 (1966/68) tinham três médicos, mas a minha CCAÇ 1546 não chegou a ter nenhum em permanência... Um deles era o dr.João Gomes Pedro, mais tarde ilustre pediatra no Hospital de Santa Maria e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (Domingos Gonçalves), a certa altura escrevia:
[...]
(vi) Os três médicos pertencentes ao batalhão a que pertenci eram os seguintes: (a) Dr. João C. Gomes Pedro. Penso que na altura era, ainda, clínico geral. Foi, quando passou à vida civil, - e continua a ser -, um insígne professor de pediatra [no Hospital de Santa Maria e na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa]. Como pessoa, apenas posso referir que era um homem excepcional. (b) Os outros dois médicos chamavam-se: Carlos Alberto, um, e Adão, outro.
[...]

Último poste da série de 9 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16070: (In)citações (90): Colonização versus descolonização - fenómeno de aculturações inter-raciais (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679)