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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15473: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXV Parte): Uns continuaram nessas guerras, outros noutras - 1

1. Parte XXV de "Guiné, Ir e Voltar", série do nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXV

Uns continuaram nessas guerras, outros noutras - 1

Depois de um curto período de adaptação em Braga junto da família, e sem outros motivos que o prendessem, Black resolveu esquecer tudo. Mudou-se para a terra dos Beatles, casou com uma inglesa de uma família estabelecida no comércio, não quis ficar no negócio, enveredou pela carreira de vendedor internacional, os filhos a nascer em Manchester, quando deu por si, estavam do tamanho dele. Nunca perdeu o contacto com alguns amigos de Braga, até que se decidiu pelo regresso. Vive só numa linda quinta em Vila Verde, nos arredores de Braga, onde de vez em quando é visitado pelos filhos e neta. Voltaram a encontrar-se em 2015, 50 anos depois de terem partido para a Guiné no “Alfredo da Silva”. Um reencontro inesquecível.

O Tenente Tomé da PM que o encontrou na Amura numa manhã de Janeiro de 1965, continuou a carreira, fez várias comissões, foi Ajudante de Campo em Moçambique do General Kaulza de Arriaga, o da operação “Nó Górdio”, meteu-se a fundo nos Abris todos até Novembro, enveredou pela política, foi secretário-geral de um partido da extrema-esquerda, deputado uma série de anos até se retirar. Muito tempo em major foi promovido a coronel depois de tudo sossegado.

Voltou a cruzar-se com o Leite, o alferes apanhado à mão em Sare Bacar, em finais dos anos 60, na Norma, uma empresa que prestava serviços de recrutamento e selecção, quando casualmente se encontraram para os psicotécnicos para a refinaria da Sacor em Leça da Palmeira. Depois voltaram a ver-se no Porto, na rotunda da Boavista, ambos já casados e com filhos. A última vez que se encontraram foi em meados de 80, em Braga, ia o Leite ao volante de um Mercedes.


O Capitão de Cuntima, deu-se a conhecer a muitos portugueses naquela fotografia1 do 25 de Abril em que aparece ao fundo com a mão na cabeça, numa das ruas da baixa lisboeta, aquando da sua rendição ao Major Jaime Neves e ao Capitão Salgueiro Maia. O poder revolucionário de então não esteve com contemplações, passou-o à reserva.

Chegou a ser director desportivo de um dos grandes da capital. Depois de terem regressado da Guiné viu-o de relance, em Lisboa, para os lados do Areeiro, os cabelos brancos, o resto quase na mesma.

O médico açoriano, aquele de Cuntima, foi para Coimbra, especializou-se, regressou a Angra, foi durante muitos anos o único médico a cuidar dos ouvidos, do nariz e da garganta dos açorianos. Reformou-se, mas há poucos anos ainda passava as tardes no consultório de Angra. Encontraram-se duas ou três vezes, uma delas em Angra.

O Didi! Quase uma dezena de anos sem o ver, pensou que devia ter regressado para os Brasis, lá para o Leblon dele. Uma manhã, já depois do tal Abril, viram-se frente a frente no Porto, no Hospital de S. João. Estás doente? Não, venho falar com um médico que está a tratar um parente meu.

Combinaram encontrar-se num daqueles dias na avenida da Boavista ainda mais uma vez. Dentro do carro de um deles, estiveram a pôr em dia acontecimentos passados e não é que a certa altura da conversa voltaram a trocar-se de razões por causa de um caso em Cuntima? Passou-lhes depressa o amuo, foram tomar um café ao Orfeusinho da rua Júlio Dinis. Um abraço, pá! Até sempre, Didi!

O BCav 490 continuou a encontrar-se todos os anos. Muitos encontros depois telefonaram a convidá-lo para o próximo encontro. À hora marcada, lá estava em Montemor-o-Novo. E o Didi não vem? O Didi morreu o ano passado.

O Coronel Fernando Cavaleiro, Coronel com letra grande, o melhor "alferes" do Batalhão de Cavalaria 490, não aceitou o método de escolha política para promoção ao generalato, passou à reserva como Coronel. Chegou a regressar à Guiné, para chefiar uma comissão de inquérito a um acidente com uma jangada que vitimou dezenas de militares no Corubal. Nos tempos que se seguiram ao 25/4, acusado de ter sido o promotor da manifestação da maioria silenciosa ao General Spínola, foi fechado a sete chaves em Caxias.

Num dia de Março de 2008 localizou-o num lar das Forças Armadas, em Oeiras. Vivo, o Coronel Cavaleiro? Ó meu caro senhor, o Senhor Coronel está aqui para as curvas, respondeu-lhe do outro lado do fio, o bem disposto telefonista.

Quer falar com ele? Aguente aí um pouco, faz favor, que eu vou ligar para o quarto. Atendeu uma voz de senhora. Sou um ex-alferes do BCav 490, estive em Cuntima. O meu marido deve estar no 1.º piso, sentado a ler um livro numa mesa com as cartas, à espera que apareçam parceiros para o bridge. É sempre assim, no fim do almoço.

E no dia seguinte em Oeiras, no IASFA (Instituto Acção Social das Forças Armadas), ainda não eram 14 horas, lá estavam eles, o Miranda e o Raimundo, os dois da operação “Tridente”, e o que o localizou, os três às voltas, a subirem e a descerem escadas, o senhor Coronel esteve agora aqui, procurem-no no 1.º piso. Uma sala, numa mesa ao fundo, de costas para a janela, talvez para melhor ver as cartas e as caras dos parceiros, um senhor que lhe pareceu ser ele, é o nosso Coronel. Nada que se parecesse com o Tenente Coronel que conhecera nos meados dos anos 60. Mas era mesmo ele, o Coronel Cavaleiro, talvez mais baixo uns centímetros e mais leve do que naqueles tempos. Sorriso gentil nuns olhos com manchas, ar algo débil, o Coronel de pé à frente de jovens de 60 e muitos anos. Sou o Miranda, meu Coronel, o Como, Farim, Comandos. Eu sou o Raimundo, o foto-cine da operação “Tridente”, as imagens que o Joaquim Furtado tem passado na Televisão fui eu quem as filmou. Meu Coronel, eu trabalhei poucos meses consigo, estive em Cuntima, na 489 do capitão Pato Anselmo. Pois, vocês têm que falar mais alto, o dedo apontado para um ouvido. A Guiné, bom, a Guiné foi uma doença que se entranhou em nós, Coronel Cavaleiro. Quarenta e tal anos depois voltámo-nos a descobrir uns aos outros, almoçamos uma vez por mês, falamos das nossas vidas de agora e da que levámos naquelas terras.

O Coronel, que naqueles anos media para aí um metro e oitenta e pesava seguramente oitenta quilos, à frente do trio visitante era o mais pequeno e mais magro. Estou com 70 e poucos quilos, eu que pesava 80 e tal, também estou com 91 anos, é altura de ter um pouco de cuidado. Leio, jogo bridge, ando um pouco a pé, olhem, ando aqui a ver os dias escorrer. Netos? Oito filhos, muitos netos, bisnetos, não me perguntem quantos.

Sim, vi na TV a Guerra do Furtado, só não entendi porque é que não transcreveu integralmente a carta, aliás muito pequena, que nós apanhámos a um mensageiro, aquela em que o Nino dizia que já não tinha nem gente nem população para aguentar a guerra no Como.
Sempre lúcido até morrer no verão de 2012, com 94 anos.

O Fininho, do bar de oficiais de Cuntima, meteu-se no negócio de electrodomésticos. Durante a década de 70 frequentava a zona do Carvalhido na cidade do Porto, ao volante de um Mercedes azul eléctrico. Continuou magrinho durante uns anos mais, agora está mais cheio e mais baixo. Nunca falta às reuniões anuais do 490.

O Tenente Capelão, o do Dornier ferido, passou à peluda, andou pelos Brasis, regressou a Portugal, deu aulas num seminário, tomou conta de uma paróquia, baptizou, casou e foi enterrando os paroquianos até chegar a vez dele.

Pois os vivos acabam por se encontrar, é só uma questão de os procurar. Temos que nos encontrar todos outra vez, nem que seja a última coisa que a gente faça.

É só uma questão de pedir ao Fonseca as direcções.

O João Parreira marcou um encontro para um almoço, na outra banda. Quando o barco atracou no Barreiro, figuras de cabelos brancos juntaram-se. O Mário Dias, o Valente pequeno e uma figura alta, de óculos, o Miranda, o lendário Miranda, conhecido também por Lejaune, uma figura da BD da Legião Estrangeira. O Miranda regressou à metrópole em Agosto de 65. Depois de um mês de férias foi para Moçambique e por lá viveu os conturbados tempos pré-independência. Depois deu às-de-vila-diogo, foi para a Rodésia. Também aqui sopraram outros ventos, nova retirada, desta vez para Lisboa. Com o jeito para a BD sempre na ponta do lápis.
Abraçaram-se todos, puseram as memórias em dia, descobriram coisas que tinham acontecido entre eles, que nem sonhavam. Depois mantiveram-se em contacto, trocaram fotos, livros, ideias daquele tempo. Até que um dia, sentado na cadeira da dentista, o telemóvel assinalou a chegada de uma mensagem.

Já cá fora, abriu a caixa das mensagens, era do Miranda a dizer que acabava de ser internado no Amadora-Sintra.

Que está aí a fazer, Miranda? Um cancro na bexiga, dizem eles. Vou ser operado amanhã.

O Tony Ramalho, estudante de medicina em 1963, foi mandado apresentar-se em Mafra para efectuar a recruta, após a qual foi destacado para a EPC em Santarém, onde tirou a especialidade das Panhard. Logo a seguir, que o tempo urgia, foi mobilizado para a Guiné como alferes miliciano, recebendo como missão dar instrução a naturais da então Província, organizando-os em companhias de milícias.

Companheiros assíduos, sempre que coincidia estarem em Bissau, na esplanada do Bento e nos jantares à mesma mesa do Hotel Portugal, falavam dos contrastes. A guerra ainda no princípio, mas já na brutalidade em mortos e estropiados pelas minas, armadilhas, emboscadas e flagelações, enquanto os olhos se perdiam nas maravilhosas paisagens, a presença de Portugal de mais de 400 anos praticamente ausente no interior da Província, de tal forma que, em certos locais, julgavam ser os primeiros brancos a pisá-los e a vê-los. António Ramalho, que perdera a mãe muito cedo, prometera-lhe que havia de ser médico. Fiel à promessa e ao seu desejo pessoal preparou-se para o ser. Quando regressou ao Porto deixou a música, amarrou-se aos books, não parou enquanto não se formou. Foi clínico geral, abriu consultório, especializou-se em Pneumologia, foi um dos autores do Programa Nacional contra a Tuberculose, dirigiu o serviço de Pneumologia de uma das unidades hospitalares do grande Porto, ainda há anos mantinha o lugar cativo no Dragão onde ficava mais tempo de pé que sentado, a vibrar com os golos do seu clube de sempre, e em 1975 ainda teve tempo para ser médico do Boavista do Pedroto. Já depois de reformado ainda o viu nas televisões, a falar nos cuidados a ter com o aparelho respiratório e a lutar contra o tabaco.

Em 2013 publicou as suas memórias daqueles anos. Deu-lhe um título actual “Guiné Mal Amada, o Inferno da Guerra”.

O Marcelino da Mata voltou a pegar na G3 no tempo do Governador Spínola. Fez um grupo especial de naturais da Guiné, o processo de promoção por distinção que tinha sido suspenso foi retomado, num ápice passou de cabo a sargento, cruzes de guerra incluídas, quase sem saber ler e escrever que a guerrilha exige outras habilidades. 

Em Abril de 74 estava em Lisboa e por cá ficou. Quando o filme de Abril estava a ser rodado queixou-se de que tinha sido torturado por “educadores da classe operária” no famoso RALis. Considerado como um dos militares mais condecorados por feitos em combate, aparece, às vezes, em cerimónias oficiais e em convívios.

Muitos anos depois, uma filha a estudar em Londres, quis saber mais sobre o pai, que lhe tinham dito que se apanhassem o Marcelino na Guiné o metiam num forno a arder. Dias depois recebeu a resposta.

"Conheci o seu Pai, então 1.º Cabo do Exército, em Maio ou Junho de 1965, em Brá, um aquartelamento do Exército Português a meia dúzia de quilómetros de Bissau, na estrada para o aeroporto de Bissalanca. Era um jovem com bom aspecto, ar de reguila, enérgico. Optou pelo Estado Português e como militar combateu o PAIGC, o Partido que encabeçava a luta armada. Foi a decisão que tomou, tal como milhares de Guineenses e, por isso, passou a ser um inimigo do PAIGC.

Fez parte dos primeiros Comandos que existiram na Guiné. Participou em inúmeras batalhas em praticamente todo o território. Foi sempre um militar muito valente e, por isso, várias vezes condecorado, desde a Cruz de Guerra (várias) até à Torre e Espada. O 25 de Abril encontrou-o acidentalmente em Lisboa, a independência veio logo a seguir em Setembro de 1974 e o seu Pai, tal como vários militares que se distinguiram na luta, ficou com a vida em perigo.

Muitos dos que lá ficaram foram fuzilados e ele escapou-se e fez muito bem porque se lá tivesse ficado já não era vivo há muito. Penso que hoje, com tanto tempo passado, se ele regressasse ao chão que o viu nascer, nada lhe aconteceria. Mas as previsões são apenas previsões, nunca se sabe o que poderia suceder. Quanto a essa história do forno, pode ser só isso, uma história apenas.
Podíamos estar aqui a falar do seu Pai o dia todo e, se calhar, ainda nos esquecíamos de muita coisa."

O Jamanca, o Sisseco, o Justo Nascimento, o Tomás Camará, o Bacar Jassi, o Bacar Mané e tantos outros envolveram-se a fundo na guerra contra o PAIGC. No fim, quando a paz foi assinada, ficaram-se por aquelas terras, confiaram nas promessas que lhes fizeram, não quiseram sair da Guiné. De qualquer maneira, abandonados às sortes. O PAIGC do Luís Cabral, o Presidente de então, prendeu-os. Uma rajada para o peito de cada um, nalguns casos com direito a assistência, a bater palmas, entusiasmada. Os cadáveres foram exumados quando Nino tomou o poder ao Luís Cabral, como a querer justificar o golpe da destituição.

"Acabo de ler depoimentos muito impressionantes que me fizeram recuar a minha infância em Xime, que você e muitos outros bem conhecem de outros tempos. Eu, com os meus quase 11 anos, e muitos outros, em 1974, vimos os militares do PAIGC em dois camiões de fabrico russo, um deles completamente tapado com um toldo. Passaram por Xime, de manhã, para Madina Cudjido. Passados uns 30 minutos ouvimos muitos tiros. Só que por volta da hora do almoço ouvimos dizer que foram lá fuziladas 8 pessoas. E das pessoas que nós ouvimos que tinham sido fuziladas - não sei se corresponde a verdade ou não - um deles era o tal Abibo Jau que esteve na CCAÇ 12 no Xime. A outra pessoa seria o Tenente Jamanca, da CCAÇ 21 que estava em Bambadinca.”
Extracto de uma carta de José Carlos Mussá Biai, naqueles anos menino residente no Xime.

O Sany, que lhe tratava do quarto e das roupas em Brá, depois de um episódio pouco claro em 1966, foi metido na prisão e expulso dos Comandos. Meses depois foi impedido de um capitão do QG. E para mal dele ingressou no grupo do Marcelino. Morreu em combate, esfacelado por uma granada.

O Kássimo, por feitos em combate ao serviço dos Comandos, ganhou um Prémio Governador, uma viagem à metrópole de uma semana. Antes de regressar à Guiné reencontraram-se no Porto, onde jantaram.

Depois, a vida dele levou grandes voltas. Em determinada altura foi destacado com os Comandos, Páras e Fuzos para Buba e terá sido combinado que os banhos nos balneários seguiam uma regra. Num dia, os primeiros eram os Comandos, a seguir os Fuzos e por fim os Páras. No dia seguinte, alterava-se ordem.

O Kássimo, num dia em que não tinha prioridade resolveu assumi-la. Seguiram-se empurrões, insultos, ameaças. Os camaradas não sabiam que com o Kássimo era preciso ter cuidado, muito cuidado. Foi à caserna, pegou na G-3 com o carregador metido, entrou pelos banhos e terá dito "vamos ver a ordem", antes de esvaziar o carregador da G-3, matando de imediato dois fuzos e um pára e causando um número indeterminado de feridos.

Detido, não há gente capaz de explicar os motivos que levaram à sua libertação. Os Comandos tudo fizeram para o desculpar, mas não o quiseram nas fileiras. Passou para o grupo do Marcelino. Tempos depois, envolveu-se numa rixa e matou um polícia (há quem fale em dois) em Bissau. Ninguém quer dizer também como é que se evadiu. Apareceu, já depois do 25/4, nas fileiras do PAIGC.

Depois, as informações divergiram. Uns diziam que, após novo sarilho com um dirigente da segurança do PAIGC, tinha aparecido morto. Outros, que tinha sido segurança de um importante elemento do PAIGC (da mesma etina) depois de ter eliminado dois (?) polícias e que terá desertado realmente para o PAIGC,. A informação, que parece ser mais fidedigna, diz que o António Kássimo está vivo e vive em Bissau, a trabalhar para uma empresa de um português.

Adulai Jaló foi dos primeiros Comandos. Esteve em Angola, onde participou num estágio, participou na operação "Tridente", na Ilha do Como, entre Janeiro e Março de 64, foi soldado dos GrsCmds "Panteras"(64/65) e "Diabólicos"(65/66) e fez parte do Batalhão de Comandos da Guiné até morrer em Morés, em 23/12/1971.

Um camarada africano relatou: "Uma operação da 1.ª e da 2.ª CCmds Africanos foi a Morés. Eu fiquei com um grupo de reserva no aeroporto de Bissalanca, à espera que algum grupo pedisse a nossa ajuda. No primeiro dia não aconteceu nada, mas o grupo do Mamasaliu Bari sofreu várias baixas e pediu reforço, porque não podia sair do local. Tinha o grupo reduzido e foi, então, que o meu grupo foi lançado de helis, com o objectivo de contactar o grupo do Demba Chamo Seca e formarmos um bi-grupo para tirarmos o Bari daquele local. Depois de seguirmos uma linha de cajueiros, em Morés, encontrámos um Grupo de Comandos chefiado pelo comandante da operação, que era o Capitão Zacarias Saiegh. (...) Fiquei junto ao capitão, ele disse que estava no local desde o meio-dia, à espera que os outros grupos se reunissem a ele. E que íamos dormir naquele local, que ninguém nem nada tirava os Comandos dali. Mas eu tinha dúvidas. Tínhamos tropa a mais naquele local, tanta que podia atrapalhar. Quando eu estava nos Comandos em Brá, no tempo dos comandos velhos, nós saíamos sempre em grupos pequenos e era mais fácil executar uma operação, havia menos barulho e menos riscos.

Também só dávamos tiros quando era pela certa. Quanto maior é o número de pessoal envolvido mais difícil a operação ter sucesso, sem baixas. E ensinaram-me naqueles tempo, nos Comandos em Brá, que sucesso era chegar de surpresa, atacar e retirar logo, com o material que apanhávamos.

Mas, desta vez não estava a ser assim e a nossa dificuldade maior estava na coordenação dos nossos comandos. Eu, nessa altura, estava a recordar essas memórias, quando ouvimos alguém a chorar, parecia criança. Cada vez que menino chora, Capitão Saiegh dizia para ninguém abrir fogo, que devia ser população a regressar para os acampamentos para arranjar comida para meninos. Logo aconteceu um soldado, chamado Jaquité, do grupo do alferes Tomás Camará, que trazia uma HK 21, com uma fita de balas muito comprida, que rolava no corpo durante o andamento. A HK 21 é uma arma que tinha um bipé. Ele tinha-a apontado para fora dos cajueiros e viu um grupo fardado que vinha na nossa direcção. Então, ele disse ao alferes Tomás Camará, "meu alferes, disse para não fazer fogo, vem ali um grupo armado na nossa direcção e agora?" O Tomás disse "se vem gente abre fogo" e ele fez uma rajada muito comprida para eles. Quando quis sair dali, para mudar de local, uma roquetada acertou-lhe em cheio, teve morte imediata. As morteiradas começaram a chover, umas atrás das outras, saímos todos dali, a correr em direcção aos cajueiros. Não sei como foi, tinha deixado as minhas cartucheiras no local onde estivemos deitados. E agora, tinha que ir buscá-las lá. Tinha que ser, voltei para trás.

Eu, antes de sermos atacados, perguntei ao Adulai Jaló do que é que ele achava de irmos dormir naquele local, onde o Capitão Saiegh tinha dito. O Adulai respondeu-me que era melhor, para não termos contacto com o IN durante a noite e não disse mais nada. O Adulai era um soldado muito corajoso, era de 1961, tinha combatido sempre na guerra desde o início. Conhecemo-nos em Farim, éramos da mesma etnia, os nossos pais conheciam-se há muito tempo. Era mais antigo nos Comandos que eu, foi um dos que foi para Angola com o Alferes Saraiva e outros. Nunca foi graduado porque era o indisciplinado número um em todo o Batalhão de Comandos. Nenhum comandante de grupo o aguentava mais que um mês.

Levavam-no ao comandante a dizerem que não o podiam comandar, o comandante de Companhia mandava-o para outro grupo e foi assim conhecendo quase todos os grupos, sempre a fazer as mesmas coisas. Até que um belo dia, o comandante da Companhia ficou com ele. Quando o capitão sai, ele sai com ele, é o guarda-costas do Capitão Saiegh. Quando o capitão não sai, se ele quiser também não sai. Por isso ele não foi graduado em nada e foi-lhe oferecido o posto de 1.º Cabo, para que os soldados o pudessem respeitar.

Quando cheguei ao local, o Adulai estava sentado ao lado do Capitão Saiegh e, depois de ouvir o drama de passar a noite naquele local, fui juntar-me aos meus colegas. Então, quando começou a chuva de morteiros, levantámo-nos para abandonar o local e, depois de recuperar as minhas cartucheiras, vi um corpo deitado à minha frente, que na precipitação de sair dali nem reparei quem era. Depois voltei atrás e vi que era o Demba Demo, guarda-costas de Sada Candé. Era um cadáver. 

Quando eu e mais companheiros, numa grande confusão, estávamos a sair da zona dos cajueiros, onde a chuva de granadas de morteiro continuava a cair, ouvi um gemido. A voz pareceu-me do Adulai Jaló. Quando eu andava à procura, perguntando quem era que gemia, ouvi a voz do Adulai, a dizer que era ele que estava ferido. Encontrei-o e ele estava sentado. Quando me pus a observar o que ele tinha, estava muito escuro, o PAIGC lançava de vez em quando very-lights para nos ver melhor, reparei que o Adulai tinha as pernas, dos pés às ancas, esfaceladas e partidas. Achei que ele não iria viver mais que uns minutos. "Não me deixem aqui", disse-me ele. "Não te deixo cá, ficas garantido, vou buscar reforço, para te levar para um local mais seguro". Corri para um colega meu e disse-lhe que o Adulai estava com feridas muito graves e que estava também um corpo perto dele, não descobri quem. Arranjei sete homens que vieram comigo até ao local, sempre a corrermos, e quando olhei para trás só estava um comigo, o 1.º Cabo Mussa Djamanca, da 1.ª CCmds. Então, ouvi alguém dizer-nos para levarmos o Adulai e o corpo do Demba Demo, enquanto iam procurar outro ferido que gemia também na zona dos cajueiros.
Para levarmos o Abdulai éramos 4 pessoas. Como os pés estavam desfeitos, não podíamos arrastá-lo pelo chão, duas pessoas pegaram nos braços e levámo-lo até debaixo de um mangueiro, onde estava o comandante, o Capitão Saiegh. Quando depositámos o Adulai no chão, com todo o cuidado, ele perguntou quando vinha o heli buscar os feridos. "Agora não pode ser, Adulai, só de manhã". "Coitados de nós, vamos morrer, não aguentamos."

Nós na altura, tínhamos três feridos deitados neste local. Eram eles, o Adulai Jaló, o Samba Bangura e o Male Fo, todos atingidos nas pernas. Como gemiam alto, pedi ao enfermeiro, que era um Comando também, chamado Samba Tala e pedi-lhe para dar umas picadas neles todos, para as dores. Jaló foi o primeiro a quem o enfermeiro deu uma injecção e ouvi-o dizer Ala Acbar, Ala Acbar, Ala Acbar. Quando acabou de falar em nome de Deus três vezes, calou-se de uma vez, boca e olhos abertos, olhando fixo. Notei que o Adulai já tinha morrido. Então, abandonei o local e fui ao encontro do Capitão Zacarias Saiegh".
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Nota

1 - Imagem da Net - Créditos ao autor que não consegui identificar

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 3 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15439: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIV Parte): "Regresso, dois anos depois" e "Tantos anos depois: por quê recordar?"

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15439: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIV Parte): "Regresso, dois anos depois" e "Tantos anos depois: por quê recordar?"

1. Parte XXIV de "Guiné, Ir e Voltar", série do nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXIV

1 - Regresso, dois anos depois 

O Uíge zarpou à hora prevista. Tripulação civil e transporte de tropas com as comissões dadas por findas. Como era costume naqueles tempos, os oficiais e sargentos ficaram alojados em camarotes, as praças iam nos porões, lá em baixo. Repartia o compartimento com um alferes do QG, um camarada simpático e muito falador, daqueles que nem precisam de troco, só parava de falar quando adormecia e mesmo assim ouviu-o mais que uma vez durante o sono.


De farda verde emprestada para o jantar, com camaradas alferes e o capitão Silva Viegas1

Ao jantar, o comandante do navio2, com o comandante de bandeira ao lado na mesa, deu-lhes as boas-vindas, desejou-lhes boa viagem. Que iriam directos a Lisboa, sem escalas.

Óptimo, vai ser mais rápido. Depois jantaram com aquelas cerimónias todas que a marinha, seja mercante ou de guerra, gosta de se tratar bem e gosta também que se veja. Quando terminaram, Bissau era uma mancha iluminada, já muito longe.

Encostado à amurada, sozinho, a olhar para trás, luzes já muito longe, uma brisa fresca, sentia-se febril, olhos com água.

O que fizeste aqui, que levas na memória? Farim, o Tenente-Coronel Cavaleiro, o Mealha, o infeliz do capitão de Cuntima, o Didi, o Fininho do bar. O enxerto de porrada que vira um deles dar a um que caíra na emboscada em Sitató. As mãos e os nós dos dedos a martelarem, e o infeliz não dizia nada, que não sabia nada. A cena do batuque. O pedido que lhe tinham feito para fazerem uma festa entre eles. Que sim, mas só até às 11 da noite. O batuque, muito para lá da meia-noite, não parava nem com o piquete ali, à espera que tudo acabasse. A ordem que dera para darem a festa por terminada. Vai já, vai já e nunca mais acabava. A tropa a querer descansar, iam sair para o mato lá para as cinco. Mande-os parar o batuque!

Porrada no gajo, o tipo no chão aos gritos, os batucantes em alvoroço. Parou tudo. Começou foi uns dias depois, um auto de averiguações e, se houvesse matéria, um auto de corpo delito, que só não teve seguimento porque o Ten-Coronel Cavaleiro lhe pôs ponto final. O administrador de Posto, civil, vira tudo de longe, fizera uma participação ao Governo-Geral, a relatar o que vira, um cabo a espancar um nativo. A psico, que chatice, a dar passos para trás.

Dias depois, em Farim, o Ten-Coronel pegou-lhe num braço, levou-o para um canto, quis ouvir a história da boca dele. Mandou vir à sua presença o oficial responsável pelo processo de averiguações, pô-lo ao corrente do que ouvira do alferes. Antes de terminar, ouviu-o dizer, não se bate nesta gente, nunca permita uma coisa dessas, ouviu? O que lhe custara mais nesta história foi a reacção do Didi, o camarada de Cuntima. Se eu for chamado a depor, ficas avisado que vou testemunhar contra ti, tu eras o responsável de serviço. Não se bate em ninguém, muito menos num desgraçado que não se pode defender contra uns tipos de G-3 na mão!

Custara-lhe ouvir, mas acabara por aceitar. Voltaram a falar-se e a ficar amigos, mais tarde.
Uma vez que foram lançados num final do dia na zona de Canjambari, nem queria acreditar, não podia ser, viu o saco, o que o capelão das calças do cocó lançara do Dornier, em Maio de 65! Não pode ser. Mas era! Farrapos do saco do pão, a olharem para ele, formigas brancas, enormes por todo o lado.

Os gajos de Canjambari, do alferes ao corneteiro, todos com os cabelos oxigenados, as gargalhadas interrompidas com as boas-vindas do PAIGC, duas morteiradas a caírem-lhes em cima.

A bela mulata escura, de Cuntima, que reencontrara quando lá voltara em 66, os dois sentados no alpendre da casa dela, a noite a abrigá-los. A estadia em Barro e Bigene a dar-lhe a volta, a marcá-lo.

Achas que a tua presença foi benéfica para a população, como te disseram tantas vezes? O capitão que conheceste em Bigene, todos os “rascas” com quem tiveste de conviver, em quartos espalhados por Buba, Tite, Xitole, Mansoa, no Hospital, pela Guiné toda. Até em ti encontraste um rasca, não uma vez, vezes demais.

O Joaquim com as costas todas furadas, eram balas 7,62, das nossas, de quem haviam de ser! Estou aqui há dez meses, conheço quase todos os calibres e formatos, estou habituado a ver disto, o médico feito legista para ele, no Hospital Militar. O Kássimo, o António Kássimo, voz de menina, um bailarino no mato, o Roberto e a carta da mulher endereçada ao capitão Leandro. A nossa filhinha morreu, cuidado com o meu marido, peço-lhes por tudo, senhores alferes e capitães, por tudo! Desenrasque-se, alferes, o capitão a chutar.

O Matos, o miúdo do AN-PRC103 com a coronha partida da G3 no meio do fogaréu, e agora, que porra? O Álvaro com um estilhaço alojado no ombro, a dizer que era porreiro, que não sentira nada.

O Caeiro, um bigodinho fino que lhe raparam no hospital, para lhe tirarem pedacinhos de metal e areia da cara, O Angola, um grande soldado, a saída prematura do Azevedo e a falta que fez.
E o Silva à procura da morte, mais de quinze dias depois de terminar a comissão, uma aselhice sem remendo. E logo ali, um minuto antes ou depois, um guerrilheiro desesperado, arma branca na mão para os dois metros curvados do Albino com dedos de artista para a MG-424, capaz de desenhar numa parede a cara de um tipo com um cigarro na boca, até o fumo subia. A carta do padre da aldeia do Silva a querer saber pormenores, a pedido da família. Que é que o padre quer que eu diga, meu capitão? Desenrasque-se, escreva qualquer coisa que fique bem, o capitão sempre a chutar. O Guimarães das Taipas, um falador e o Adulai Jaló que só falava quando alguém se dirigia a ele. O Moura, um beirão com pouco mais de metro e meio de altura e, pelo menos, três de valentia, o Bacar Jassi do caso de Barro, intelectual e com vontade própria, um assunto bem arrumado. O Black, o Pascoal, o valente Carvalho, um tipo quadrado cheio de força, a quem dera o fato novo que comprara em Lisboa, numa alfaiataria junto ao elevador de Santa Justa, um dia antes de embarcar. Para que queres o fato na Guiné, pá? É um azul invulgar, lá isso é, o Leite, o tal apanhado à mão em Sare Bacar, a opinar na Rua da Prata. O fato mudou de cor em Bissau, parecia um espelho, um azul eléctrico, faíscas para todo o lado.

O Caleiro, calças numa poça escura, sem um ai, encarrapitado nas costas de um deles a caminho do heli, “amor de Mãe e de fetura noiva” no braço tatuado pelo Albino. O Furriel Valente de Sousa e o Sargento Valente, a moderar-lhe os ímpetos.

E o caso de Jolmete, a arrastar-se quase até ao fim. Uns dias antes de ir para Mansoa, um alferes dos serviços de justiça do QG dissera-lhe que o Ministro do Exército lhe tinha agravado a pena para 10 dias de prisão disciplinar agravada. Como é? Isso ainda mexe, tantos meses passados? Ora, vamos lá ver. Era verdade, pois claro, estava lá na ordem de serviço, acabada de sair. Vou falar com o Brigadeiro! Vais mas é o caralho, pá!

Os caminhos com que nos cruzámos, nós e os nossos Inimigos. As bolanhas, o sol a arder, as chuvadas que entravam quico dentro pelas nossas cabeças e que saíam em esguicho de torneira, camuflado abaixo, até pela pila, água misturada com urina e quando o sol rasgava secava e passava a ferro tudo num rápido. A nós e a eles, em campos opostos, num diálogo a tiro, à morteirada e à roquetada nos Jabadás, Guileges, Guidages e Gadamaeis, conversas repetidas vezes sem número e sem nunca chegarem a acordo.

Odiei esta guerra. Mas cumpri a missão de que me incumbiram e orgulho-me de ter servido nos Comandos. Não quis morrer de graça, nem que alguém morresse. O que tivesse de ser seria e se chegasse a minha vez confiava que nem dava por ela.

Nunca hei-de contar a ninguém o que aqui vivemos, tenho vergonha que me chamem mentiroso. E por mais anos que viva, estes tempos passados aqui chegaram-me. Dou a vida por cumprida. Sinto-me velho, faço 23 dentro de dias, lembrei-me agora.

Deitava-se tarde, levantava-se tarde, ainda não arrumara as horas do sono. Tomava o pequeno-almoço e o almoço ao mesmo tempo. As tardes passava-as nos conveses, junto à balaustrada, sentado naquelas cadeiras que os navios têm. Sempre com bom tempo, mar também, olhava para longe, vinham-lhe lembranças, adormecia, voltava a olhar, e agora, como vai ser, como seria o reencontro com os seus, com a namorada. Arrepios de febre, de medo e contentamento.
Não deveria ter ninguém à espera, não avisara ninguém. Numa correspondência cada vez mais esporádica com o conhecimento de Angra, meses sem lhe dar notícias, ela na mesma. Recebera para aí há um mês um postal dela, de Lisboa, tinha vindo para o continente, fixara-se na Parede. Deves estar a sair daí, não?

Não voltes a escrever, não vale a pena, arranco no mês que vem, parece que vou no Uíge. No dia em que entrara com a mala nova ao quarto, tinha uma carta dela. Que ia procurar saber a data da chegada do navio a Lisboa, contava poder estar lá e, quem sabe, reeditar a correspondência ao vivo.

Não, agora é outro tempo. Foi bom, passou.


Uma noite daquelas, já se deviam ver as ilhas de Cabo Verde, o comandante do Uíge informou-os que teriam que escalar S. Vicente. Atracariam no Mindelo, só o tempo para meterem águas. Como é possível, para meter águas? Não as meteram antes, só agora é que se lembraram que lhes está a faltar água?
Nunca mais chego a Lisboa.


Metade de um dia no Mindelo. Tanta vontade de partir dali, que nem saiu do navio.

Ficou-se aquele tempo todo no barco, a olhar para a cidade, para os montes, clicks na Ricoh até acabar o rolo. Leva a máquina, tira umas fotos por mim, Black.


Mais horas do que lhes tinham dito, finalmente tiraram as amarras, outra vez o navio em boa rota.


Nem acreditava, devia estar a sonhar, um ponto ao longe primeiro, uma recta de pontos uns minutos depois, uma curva cada vez maior a olhar para ele, o Tejo a levá-lo até Lisboa, desde a manhã cedo desse dia, 27 de Janeiro.

Dois anos! Tinha embarcado em Lisboa em 10 de Janeiro de 1965, pôs os pés pela primeira vez em Bissau em 19 do mesmo mês e ano. Embarcou em Bissau em 19 de Janeiro de 1967, exactamente dois anos depois.

Uma cena já filmada muitas vezes, uma multidão no cais, na Rocha Conde de Óbidos, gente com roupas escuras, de inverno, algumas jovens e crianças também.

Tinha tudo preparado, mala e saco em cima da cama. Vais assim, só com a camisa vestida? É Janeiro em Lisboa, não sentes? Não tinha nada mais para vestir, também não tinha frio, o calor da Guiné, mais o calor que sentia de deixar para trás aquele tempo todo.

Foi lá para cima, para o ponto mais alto que pôde, ver a multidão, lenços no ar, os militares aos gritos, ó Nuno olha-me para aquela brasa, uma moça lá em baixo com um lenço na mão a acenar cá para cima, um contentamento que não há palavras que contem. Saíam aos trambolhões, malas com eles a rolarem pelas escadas.

Não vens? Fico para o fim, não tenho ninguém à minha espera, nem sequer quem eu queria.
Saíram todos, uns mais lentos, agora mais espaçados e lá em baixo, os abraços intermináveis, os choros de alegria.

É pá, os teus pais estão aqui em baixo! Saiu mais depressa do que contava, num rápido passava-se com ele o que se estava a passar com os outros, abraços e lágrimas nos olhos do pai, a mãe, o meu menino, o choro pela cara abaixo, uns óculos escuros no meio de um cabelo farto até aos ombros, um casaco preto comprido, uma figura que lhe fez lembrar a Juliette Grecco, era ela, o conhecimento de Angra, a meia dúzia de metros, sem saber o que fazer, depois discreta a acenar-lhe com um sorriso, a dizer-lhe adeus.

Depois, a carrinha a andar por aquela Lisboa, a 24 de Julho, o Terreiro do Paço, a rua da Prata, até ao Rossio. Os olhos a passarem por tudo.

Mataste muitos turras? Juntaste umas massas, não? Tinha perdido a fala, não sabia que dizer. Eram horas de tirar a farda. Passou por uma loja, na esquina do Rossio com os Restauradores, um casaco de lã azul-escuro, calças cinzentas de flanela, camisa branca e uma gravata a condizer, nem reparou que as calças e o casaco eram de um número abaixo, pelo menos.
Enquanto almoçavam no Solmar, o olhar perdia-se pelo salão do restaurante, dois anos e tudo na mesma, como se tivesse estado lá ontem.

No fim do almoço, Depósito de Adidos, um 1.º Sargento enfastiado disse-lhe que aguardasse. O que tiver que mandar envie pelo correio. Não demora, é só o tempo para lhe passar um papel para as mãos.

Passa à disponibilidade desde amanhã o Sr. alferes mil., indo domiciliar-se em, freguesia de, concelho de. O portador deste documento deverá apresentá-lo quando lhe for exigido pela autoridade militar ou civil, em substituição da sua caderneta militar. Quartel em Lisboa, 24 de Fevereiro de 19675. O Comandante, Fulano Ferreira de tal, coronel.

Na estrada para o Porto, mal deu pela viagem, fartou-se de dormir. Nem se lembra onde ficou, se em casa dos pais se na da madrinha no Porto.

Recorda-se, isso sim, do dia seguinte, a seguir ao almoço. O eléctrico na avenida dos Aliados para o Monte dos Burgos, o 6 por ali acima até ao Carvalhido, o passo acelerado até à rua dela, o toque na campainha, escadas duas a duas a subir, ela a vir por ali abaixo e um abraço sem palavras. Vamos? Vamos.

Um dia frio de fins de Janeiro. O Porto era o Porto do Sol escondido, o eléctrico chiava pela Carvalhosa e Cedofeita abaixo até aos Aliados. Os olhos nem sabiam para onde se virarem, o aroma era o mesmo Lancôme, de há dois anos. Dois anos depois, quase tudo na mesma. O que é? Por que olhas assim para mim?

Ao lado dele, ela linda, de sobretudo azul-escuro de botões prateados, os olhos levemente pintados, a cara lisa e redonda, os olhos magníficos. Atrix nas mãos dadas, rua de Santo António acima até à Batalha, muito mais silêncio que palavras de ocasião.

Um embaraço, tanto tempo depois, não tinham nada para dizer. Por que não dizes nada? Mais perguntas, maior a dificuldade em falar. Um mundo diferente passava-lhe à frente. Pessoas nas ruas, sorridentes, a vida a correr e as recordações, confusas, não despegavam. Bolanhas, camaradas, coladeras, cerveja, colunas de viaturas verdes, picar estradas, minas, tiros, terra vermelha a ferver, pés queimados, noites escuras e brilhantes como se dia fosse. Outro mundo, uma semana e pouco depois.
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Notas

1 - Chefe do Estado-Maior do Exército em Março de 2001
2 - Oficial da Marinha Mercante. Nesses navios de transporte de tropas ia sempre embarcado um Oficial da Armada, o Comandante de Bandeira
3 - Transmissor-receptor portátil de frequência modelada que equipava as forças terrestres e meios aéreos
4 - Metralhadora ligeira muito apreciada pelos nossos militares
5 - Data da passagem à disponibilidade

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2 - Tantos anos depois: por quê recordar? 

Estava reformado há dias, ainda não tinha passado a primeira semana.
Daqui fala o Sargento-Mor R. Fonseca, também estive nos Comandos em Angola, estou a contactá-lo porque faço parte de um grupo encarregado de proceder à recolha de toda a informação que houver sobre os Comandos. O seu nome tem-me aparecido aqui em relatórios de operações e numa série de documentos. Tenho contactado com várias pessoas que fizeram a guerra da Guiné consigo, o Sargento Mário Dias, o Furriel João Parreira, o Marcelino da Mata, o Vassalo Miranda e outros.

A razão do meu telefonema é saber se dispõe de alguma documentação desse tempo e que me possa ajudar a reconstituir a história dos Comandos. Dos anos mais recentes temos tudo, agora dos primeiros anos da formação dos Comandos, da chamada fase de grupos, falta-nos muita informação.

Que já tinham passado muitos anos, quase quarenta, que sim, que se lembra de ter trazido da Guiné alguma documentação e fotos, e que a deixara em casa do pai, no Minho. Que, quando lá fosse, procuraria o material que tinha trazido e se o encontrasse, pois teria muito gosto em o entregar ao Arquivo Militar.

Quando se voltou a sentar em frente ao computador, os olhos saltaram pela janela para o movimento da avenida. Por uns momentos, a cabeça andou para trás.

As guerras não têm muito que contar, são todas iguais, a história é sempre a mesma, tiros, granadas, feridos, mortos, estrondos, nuvens de pó a subirem, folhas de árvores a caírem, rebentamentos, chicotadas de balas, gritos de ataque e de dor. É sempre igual, só isto, não há muito mais a dizer.

Cadetes em formatura na parada da Academia Militar, Amadora, 1963. 

Fornadas de jovens arrancados ao trabalho e ao estudo, espalhados pelas Mafras e Taviras do País, encaixotados nos comboios, nas camaratas, nos camarotes ou nos porões sujos e escuros dos Uíges e Niassas, de G3 na mão pelas matas, savanas, tarrrafos, bolanhas, corações aos saltos, T6 e Fiats G-91 no ar, helis à procura de locais para pousarem, macas com feridos e mortos, os regressos aos abarracamentos, partir para outra, sempre assim, até ao fim dos dois anos. As guerras são todas assim, Comos, Quirafos, Bubas, Madinas, Guidages, Guilejes, Gadamaeis, Xitoles, em toda a Guiné, foi tudo igual.
O que depressa se esqueceu foi o que se passou a seguir. O regresso, o esquecimento, o deles não, que muitos bem queriam mas não conseguiam. Até o sentimento de culpa por terem participado naquela guerra passou a viver com muitos deles.
E, valha a verdade, tudo foi feito para que vivessem assim, esquecidos. Para que aqueles jovens que deram o que tinham, se envergonhassem de terem defendido um governo colonialista. Foi o que Portugal lhes deu, interrompeu-lhes as vidas, ainda no começo, depois despacharam-nos com uma guia de marcha para as famílias, que tomassem conta deles.

Tempos depois, entrou no escritório que o pai tinha na casa, no norte. Olhou para a papelada acumulada, mais de quarenta anos de pó, do pai e dele. Gavetas para fora, virou-as ao contrário. Papéis amarelecidos, fotos daquele preto e branco com muitos anos.

Estava tudo mexido, alguém por ali tinha andado. Tudo fora da ordem, coisas misturadas, um papel com uns apontamentos à mão, numa letra de alguém que devia estar com uma pressa danada, uma data de Janeiro de 65, uma foto logo a seguir com quatro camaradas sorridentes, empoleirados numa barcaça de um navio, as fardas novinhas, ainda com os vincos a notarem-se nos calções, as pernas e os braços muito brancos, o sol a dar-lhes com um mar calmo à volta. E logo a seguir outra foto, com um deles a escorrer sangue que foi com certeza vermelho por uma daquelas pernas abaixo, 12 de Setembro de 65, granada, fulano de tal, nas traseiras da foto.
Há pretas bonitas aí onde estás? Dizem aqui que elas andam nas ruas sem soutien, já viste alguma, uma madrinha de guerra curiosa. Uma boina que já foi preta, um emblema de plástico, uma Playboy com a Marilyn na capa, as folhas da revista com sinais de muito uso, muitas mãos passaram por ali, pelo menos uma companhia inteira, capitão, corneteiros e tudo.

Um papel azul de 35 linhas, oficial, do Exército Português, DESPACHO, o título a meio, meia dúzia de linhas muito bem arrumadas, que é para aprenderes a respeitar a ordem pública. Mais uma foto, uma balanta, sorridente, uma cabaça com água na cabeça, as mãos a segurá-la, a água, sorridente também, a escorrer-lhe pelas mamas empinadas, mais apetitosas ainda.
Uma clareira, o sol a inundar a imagem, um pelotão em fila de pirilau, uns a olhar para o chão, outros para muito longe dali. Um relatório de operações, um ataque fulminante das NT desbaratou totalmente as forças IN que os emboscaram. Perseguidos pelo pelotão foram deixando para trás o material que abaixo se indica. E indicava-se. Uma granada de mão ofensiva, um porta-cartucheiras, cerca de 100 munições de vários calibres e mais material não especificado.
Uma carta de Bissau, uma foto com uma dedicatória, para te lembrares de mim.
E outra foto, numa mesa cheia de garrafas de cerveja um tipo com cara de sono, olhar morto, apalermado para a câmara.

E mais papéis. Outro documento do Exército, tão oficial como o outro, com o título a meio, PUNIÇÃO e mais uma série de linhas muito bem organizadas, letras a baterem certinhas, como se tivesse sido um desenhador a arrumá-las.

Meu filho, nesta altura que te escrevo já deves estar a fazer as malas para te vires embora. Embora ainda não, pai, há ainda muita tralha para pôr na ordem.

Outro documento do Exército, letras muito bem organizadas, o s também, sempre a insistir em querer ficar um pouco acima das outras letras, mas o título sempre a meio, LOUVOR do Comandante Militar. Não tarda e estás feito um militar como deve ser, se continuares assim ainda te espetam uma medalha, vais ver.

Escrevo-lhe esta para lhe dar conhecimento que o meu marido, o soldado tal do seu grupo deixou de me escrever, já não me manda uma carta vai para dois meses e meio. Eu sei que não lhe aconteceu mal nenhum porque as más notícias correm muito depressa. Peça por tudo ao meu marido que me escreva, por amor de quem lá tem, senhor alferes, que eu sei que é um homem direito.

Sabes de onde te estou a escrever? Na cama, com a televisão em frente, a ver o diário da volta, os ciclistas, serra da Estrela acima, com um calor que não imaginas. Fui sair depois do jantar, apanhar um pouco de fresco, encontrei o idiota do Pardal, não me larga nem por nada, não gostei da conversa, vim para casa. O calor, aqui dentro, pega-se. À falta de um balde de gelo onde eu coubesse, meti-me no chuveiro, e deixei-me estar com a água a correr até a mãe bater à porta. Nem roupa nem nada, estou assim, com o livro em cima dos joelhos, a servir de secretária e a escrever-te. Ainda te lembras do pôr-do-sol do Monte Brasil? E daquelas tardes loucas nos Biscoitos?

Ordem de serviço, abates à carga e ao efectivo, transferências, punições, louvores, comissões dadas por finda, prorrogações de comissão por mais um ano. Mais e mais fotos, uma cópia de uma operação, setas a vermelho e verde no croqui a papel vegetal. Não viemos por aqui. Que é que interessa agora se este croquis mente, se a entrada para o acampamento não foi por aí, mas sim pelo trilho que vem do Senegal?

Estojo, que é isto? A Star do pai, uma 6,35. Pegou nela, seis balas no carregador, a cor dos cartuchos, os projécteis dourados, como se tivessem saído ontem da fábrica! Veio-lhe à memória a jura que fizera a si próprio, ainda na Guiné, de nunca mais voltar a pegar numa arma.
Afinal os dois anos de há tantos anos ainda ali estavam. Uma data de horas a separar a papelada, cartas, fotografias, tanto tempo passado e parecia-lhe ter sido ontem. Vieram as recordações, uma, depois outra, uma catadupa a seguir e a Guiné a voltar à tona do charco.

No dia seguinte, no princípio de uma tarde de Janeiro, com a Star do pai no bolso do blusão, montou na bicicleta e foi pelo caminho fora, a caminho da Barca do Lago.

O areal imenso de há quarenta anos estava muito mais pequeno. Teria sido sempre assim ou os olhos já não eram os mesmos? Bicicleta encostada a um eucalipto, meteu-se pela areia fora, sentou-se em frente à casa dos Reids. Uma história infeliz nos meados dos anos 50 veio-lhe à lembrança. O dono daquela casa magnífica, nunca se soube porquê, metera uma bala na boca. Pegou na Star, esteve uns momentos a mirá-la, levantou-se e lançou-a, bem para o meio do rio. Sentado, uma tarde num instante, reviu a vida toda para trás, os rascas todos que conhecera, ele próprio. O Cávado, em frente, cheio de preguiça, sem vontade de se perder no mar.

Às 4 horas de uma tarde de Janeiro de 2005

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(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 27 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15417: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIII Parte): Lifna Cumba, o "Joaquim"; Um longo Dezembro e Os Últimos Dias

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15417: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIII Parte): Lifna Cumba, o "Joaquim"; Um longo Dezembro e Os Últimos Dias

1. Parte XXIII de "Guiné, Ir e Voltar", série do nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXIII

1 - Lifna Cumba, o “Joaquim” 

Parou no Taufik Saad, manequim na montra, mexeu-se no meio daquelas novidades, umas calças finas, antracite, uma camisa branca made in Macau, meias pretas nos sapatos pretos, parecia outro quando saiu, pela rua fora.

Em Brá, a 3.ª Companhia de Comandos estava a caminho dos quatro meses de comissão. Já tinham medido forças várias vezes com a guerrilha. Um dos alferes na primeira saída foi atingido por um estilhaço. Apesar do ferimento não parecer muito grave teve que ser evacuado para o Hospital Militar de Bissau. Recuperado, duas ou três semanas depois, voltou a sair e voltou a ser atingido. Evacuado, foi novamente internado no Hospital. Dias depois teve alta e após uns dias em repouso em Brá foi a vez do grupo que chefiava voltar a alinhar.

Não há duas sem três, deve ter sentenciado um filósofo há centenas de anos e passou a ser corrente na voz do povo. Pois o nosso alferes voltou a ser atingido, desta vez com mais gravidade. Três saídas para o mato, três ferimentos em combate, não era nada animador, de facto. Só havia uma saída, abandonar o palco.

Ainda estavam os Diabólicos nos últimos dias de actividade operacional, foi uma tarde contactado em Mansoa pelo Capitão Alves Cardoso, o comandante da 3.ª Companhia de Comandos.
Dê-me os nomes de dois guineenses do seu grupo, que possam vir a fazer parte da minha companhia.

E deu, não dois mas três. Foi assim que o Joaquim passou a integrar a 3.ª CCmds. Teve conhecimento, mais tarde, pelo próprio capitão, de que teria entrado em duas ou três operações e tinha inspirado confiança aos jovens candidatos a Comandos.

Em Outubro, talvez no final da primeira semana ou início da segunda, soube que o grupo de que o Joaquim fazia parte andava algures para os lados de Mansoa. Num daqueles dias encontrou o Furriel Valente de Sousa na esplanada do Bento. Então que tal têm corrido as coisas aos novos, perguntou a certa altura ao Valente de Sousa, que mantinha uma relação de maior proximidade com alguns camaradas da 3.ª CCmds.

Têm corrido bem, o Joaquim, ontem, é que teve azar. Um azar que, aliás, podia acontecer a qualquer um de nós. Que azar?

“Joaquim”, o Lifna Cumba, de pé, em segundo plano, de frente para a máquina. Regresso da Operação "Atraca". Julho de 1966. 

E o furriel, continuando como se estivesse a falar só, que o comandante do grupo tinha mandado o Joaquim internar-se na mata, que alguém do grupo terá visto um vulto a movimentar-se entre as palmeiras, e precipitou-se, disparou e depois foi uma fuzilaria para a mata. Olhe meu alferes, ficou como um crivo.

Levantou-se, enfiou-se no Fiat, directo ao Hospital Militar.

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2 - Um longo Dezembro

Uma eternidade, aquele mês de Dezembro nunca mais acabava.

Olhou para as tralhas acumuladas nestes dois anos. Não é que fosse muita, livros, papelada e fotos sim. Andava a aproveitar as noites de subalterno de dia no QG para lhes pôr alguma ordem, cópias de relatórios das operações e centenas de fotos. Estas são para rasgar, isto onde foi, como é que se chamava este tipo, apontamentos ao lado, nomes dos camaradas atrás, e depois disto, para onde fui? Anotava o que se lembrava, folhas e folhas, dois anos quase, ali à sua frente.

Correspondência! O aroma dela nas cartas, falta pouco, um mês só, não vou a Lisboa esperar-te, mas quando puseres os pés em terra, lembra-te, estou contigo. Está tudo dito, já não há mais para dizer. À frente dele, uma folha toda em branco, enorme, com tanto espaço para responder, sem ideias, nem sabia como começar. Quero estar contigo, sem mais ninguém por perto. Uma frase só numa carta. Não tenho mais para dizer, não sei o que escrever.

Vinte e quatro meses de cartas para lá e para cá. Palavras para encher papel, que de guerra não havia que dizer. Tinha cumprido, sem um desvio, que se lembrasse, o que tinha prometido a si próprio, falar de tudo menos de guerra, que era assunto que não lhes interessava. Que havia de dizer aos Pais e à namorada? De bazucas, de morteiros, de PPSHs1, de feridos, de estropiados, de evacuações? De uma guerra que se discutia? Não, não à namorada nem aos Pais.

Quando lhes falava da Guiné, era das paisagens, dos rios, dos enormes poilões, da gente boa que conhecia, e do tempo que fazia. Um calor e uma humidade que nunca sentira, vê lá tu, às vezes acabo de tomar banho e só de me limpar com a toalha fico outra vez a suar. Por vezes volto ao chuveiro e deito-me sem me secar. Escrevia-lhe do tempo que faltava para ir de férias, ainda nem quatro meses tinha de Guiné! Umas férias que nunca vieram, por culpa dele. Quem havia de se meter em sarilhos na Associação Comercial de Bissau? Quem havia de fazer frente a um tenente-coronel, na ordem de batalha, dizer-lhe nas trombas, com oficiais presentes, que ele, senhor tenente-coronel, estava pouco informado? Um garoto com 21 anos, quem é que ele se julgava? Não posso ir de férias, fui castigado, na tropa diz-se punido, por falta de respeito a um oficial superior. Já passou um ano, só falta o outro. Estou bem, em descanso, tenho muito pouco para fazer, espero o dia em que te vou ver. Não é preciso testemunhas, só quero estar contigo, os dois sós.

O sono leve, intermitente, e as malas, o que vou levar? Tem que caber tudo numa mala, não levo mais. Já pensaste no que vais levar, o que é que vai contigo? Os livros, todos, uma muda de roupa civil, as coisas do quarto de banho. Os sapatos civis, as botas, o camuflado, tudo no saco da tropa. Levaria vestida a farda amarela, a que envergara aquele tempo todo, as botas de cabedal e a boina. O resto ficava, podia servir a alguém.

O despertar súbito, outra vez muito acordado, uma sensação estranha a aparecer, a tomar conta dele, uma vontade irreprimível de fugir, os pés fora da cama, o que vou fazer, para onde, a tremer como se estivesse com febre. No quarto de banho, frente ao espelho, este sou eu com as mãos na cara, isto vai passar, nem um mês falta.

Talhão militar do cemitério de Bissau. 
Foto do autor. 

Tinha que ser, tinha que lá ir. Numa daquelas tardes entrou no cemitério, directo às campas dos camaradas. Parou em frente ao túmulo do Silva, a olhar para a relva. As diligências que fizeram, até o dinheiro que receberam pelas armas que apanharam, reverteu todo para as urnas de chumbo, para as trasladações dos corpos dos camaradas mortos. E o que resta do Silva ainda aqui está, aqui mesmo à frente. Soldado António Maria Alves da Silva. Nasceu em 17 de Janeiro de 1942. Faleceu em 6 de Março de 1966.
Sem uma flor, sem nada.

A guerra via-a de muito longe, como se fosse um assunto que já não lhe dizia respeito. Mas mesmo assim, às vezes não podia esquivar-se aos relatos dos recém-chegados do mato. A 3.ª CCmds andava por Tite. Raramente saía com efectivos inferiores a dois grupos.


Entretanto chegara outra Companhia de Comandos, a 5.ª, comandada por um jovem capitão, um tipo simpático. Então como é isto aqui, fresco, não? As zonas da guerrilha são todas iguais ou há diferenças? Antes que me esqueça, cumprimentos do Capitão Saraiva. Quando chegar a Lisboa contacte-o.

Visto como inexpugnável, no sul as NT estavam praticamente confinadas aos aquartelamentos. Madina do Boé, um inferno, o Diem-Biem-Phu dos portugueses, o capitão de lá a dizer que a única coisa que podiam fazer era viver de dia e de noite dentro dos abrigos cavados no solo, suportados por troncos e enchidos com cimento em barda. Passavam os dias e as noites a verem a vida em frente por entre os buracos. Abastecidos do ar, dizia para quem o queria ouvir, que os aviões faziam malabarismos para não serem atingidos. Madina vai ser o primeiro aquartelamento a ser tomado pelo PAIGC, ouvia-se em muitas bocas que era um assunto arrumado.


Os Fiats G-91 já estavam operacionais, a esperança da manutenção da superioridade via-se em algumas caras, confirmavam-se notícias de acções sobre antiaéreas do PAIGC. E os lobos maus, os Alouettes III armados com canhão e metralhadora, passadas as experiências, também já apoiavam as forças terrestres.

Alouette III armado. 
Foto da net. 

E os ataques dos guerrilheiros com foguetes a vários aquartelamentos também começavam a ser frequentes. O norte em brasa, Barro, Bigene, Guidage, o Oio nem se fala, o sul quase fora do controlo, o leste ainda assim-assim.
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Nota:
1 - Pistola metralhadora utilizada pelas tropas da URSS durante a 2.ª Grande Guerra. Nos anos a seguir a PPSH foi utilizada por numerosos movimentos guerrilheiros apoiados pela URSS. Encravava com alguma facilidade, especialmente com o carregador em forma de tambor, e a alta cadência de tiro (cerca de 900 por minuto) aliada à facilidade de disparo faziam com que rapidamente se gastassem munições disponíveis, o que acarretava alguns problemas logísticos à guerrilha. A elevada cadência de tiro levou a que as NT lhe pusessem o nome de costureirinha.

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3- Os últimos dias 

Natal à porta, as montras de Bissau mudaram a cara, muitos militares nas ruas a entrarem e a saírem das lojas. Há um ano andava por Barro e Bigene, foi um fim de ano diferente.
No QG organizaram uma Ceia de Natal como devia ser, bacalhau e os doces todos. Estava lá toda a oficialada superior, Comandante Militar incluído, e familiares, mulheres e filhos, alguns vindos de Lisboa para passar o Natal com os papás.

Bebeu-se muito bem, alguns demasiado, como acontece sempre. Depois, ao ar livre, viram um filme italiano, com o Gianni Morandi, um cantor italiano que estava na moda, a fazer o papel principal dentro da farda de um soldado, estavam à espera de quê, que fosse de um capitão? Um apaixonado, aquele Morandi, tirava canções atrás de canções. Tantas que a maralha lá de trás, entusiasmada, começou a acompanhar a música, primeiro um, muito baixo, depois já se sabe como é, outros entusiastas também, até o Morandi se virou para eles, a cantar de lágrimas nos olhos. Falta de respeito! Uns alferes de merda, uns comunistóides, que é para isso que agora servem as universidades, sussurrava um major voltado lá para trás!

Entrou Janeiro, a primeira semana nunca mais acabava, minuto a minuto, até de noite! A confirmação da data de chegada do Uíge também chegou naqueles dias. A 17 deste mês, disse-lhe o Manaças, a par de tudo o que fosse transportes. Estou a dizer-te, pá, já saíram de Lisboa, estão neste momento a caminho daqui!

E o navio chegou mesmo. As tropas, verdinhas de novas, demoraram uma eternidade a desembarcarem, uma vontade enorme de não mexerem as pernas.

Navio “Uíge” em Bissau. Foto de Torcato Mendonça. Com a devida vénia. 

Estava a vê-los ao longe, na marginal, encostado a uma palmeira. É aquele o navio que te vai levar, amanhã por estas horas estás com a mala na mão, prontinho a entrar. Ficou-se a olhar para eles a saírem devagar, um a um até às lanchas, depois já no cais, perdidos, para um lado e para outro, pareciam formigas. Alguns daqueles não voltam a ver Lisboa.
Bom, vamos lá embora, até ao Bento, mais uma cerveja para veres melhor, o Manaças sempre ao lado, não o largava nem um segundo. Veio-lhe à memória a despedida do Godinho dos “Camaleões” naquele mesmo cais. E o gesto dele, de um jovem virado ao contrário. Tira do bolso uma pequena caixa de plástico e da boca sai-lhe uma frase: aqui a ganhei, aqui fica! E manda a caixa pelo ar até ao Geba.

Sabias que na noite de consoada, um soldado em Tite descarregou a G-3 no capitão?
Não quero saber de mais nada, Manaças, quero é ir-me embora. Da Guiné, agora só quero ostras no Fonseca.

Nem no Fonseca se podia estar, tanta gente nas mesas. O Augusto, um guineense que a sua companhia de Cuntima recolhera no mato e que depois aprendera com eles a ler, recebeu-o com um abraço, até se esqueceu que estava de serviço às mesas. Arranja mesa, pois claro, alferes, tem que arranjar! A sala cheia de fumo, aromas de álcoois, de muita gente também.

As cores da pele desta gente, das roupas, são quase todas iguais. As cores daqui são diferentes das que estamos habituados a ver na metrópole, um periquito da mesa do lado.

A Guiné não tem cor, tem cores, as que eu vejo andam todas à volta de tons de verde do claro ao escuro, o Manaças sonhador. A cor de fundo, a que vai comigo, é a cor do uísque e da cerveja, Manaças.

Tanta pressa que chegasse a manhã e ela nunca mais vinha. Deitou-se e levantou-se a noite toda. Mal a luz entrou pela janela atacou a mala. Afinal estava cheia, um peso para burro, o saco ao lado. Os camuflados, as botas de lona que trilharam quilómetros sem conta, as meias esverdeadas, lenços, os restos todos arrumados ao canto do quarto. Antes de sair volto a despedir-me destes camuflados que me chuparam o suor e a água das chuvas, desta tralha que me acompanhou estes tempos todos.

Depois o andar das horas acelerou, nem deu tempo para se despedir de ninguém, tudo para trás. Ficara sem olhos, não via nada. Mal deu pelo Major Pereira da Silva, só reparou quando ele o interpelou, sorridente. Isso é que é pressa, alferes! Não se esqueça, a sua vida vai agora recomeçar, as guerras vão ser outras! E pense naquela escola de que falámos, a de Lausanne.

Leva a Guiné aqui dentro, não? Mala nas mãos do motorista do Manaças, saco nas costas dele, o quarto numa desarrumação, deixa estar, a malta arruma tudo. Parou, olhou para trás, para os restos que deixava, dois anos ali no chão. Ainda pegou no lenço negro, do pescoço, que sempre o acompanhou por aquelas terras. Siga a marinha, para o cais antes que a piroga se pisgue. Ainda falta muito, pá, só embarcas depois das 5 da tarde. Ainda tens duas ou três horas à tua frente, vamos até ao Bento, sentamo-nos lá um bocado.

Uma emoção no cais. Rostos magros, amarelos, sorriso tristes, ausentes, ar de cansaço, sentados em cima das malas alinhadas, etiquetas coladas. Outros, mais exuberantes a dançar o malhão, o vira e o corridinho. Tudo pronto à espera da ordem de embarque para as lanchas. A primeira a partir, a segunda meia hora depois. Qual meia hora, cinco minutos para aí, ainda ali vai, pá! Outra, outra, nunca mais chegava a vez dele. Mas chegou, foi das últimas, mas foi. Manaças amigo!

Pá, vai direitinho, olha o chão, cuidado com as escadas. 
As luzes de Bissau ali e só tinha olhos para o Uíge, ainda tão longe, mas desta vez deve ser, devo mesmo ir-me embora.

Mal subiu a escada, o camarote onde é? Meteu-se lá para dentro e fechou a porta. Acabou-se a Guiné. Porta fechada? Julguei que não abria, um camarada com a mala. Está a ouvir estes rebentamentos? Deve ser em Jabadá, não?

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(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15385: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXII Parte): Outros horários; Contas com os fornecedores; Um mês e meio para o fim; Um Folgado no QG e VAT 69

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15357: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXI Parte): Grande Hotel; Água IN; E agora para onde? e CCS, QG

1. Parte XXI de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 11 de Novembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXI

1 - Grande Hotel 

Parece que lançaram mau-olhado em Mansoa, os tipos andam danados, o Ten-Coronel Lemos. 
Um olhar de simpatia para o comandante do Batalhão sentado no seu cadeirão com o outro coronel ao lado, o do ah, hum…. O velho Lemos, velho só porque tinha para aí o dobro da idade dele, que ainda era muito novo para outras, sabia há muito que a coisa só tendia para piorar, vinha nos livros das escolas militares, devia até ter ouvido camaradas que estiveram na Argélia, estava agora ali, no palco de Mansoa, na Guiné que lhe saíra na roleta no último terço da carreira. Só para piorar, isto não está a ter a saída que julgávamos vir a ter, e muito menos, a que queríamos. 
O PAIGC está mais atrevido, anda por aí, está cá dentro, parte mantenhas a toda a hora connosco, atreve-se a fazer coisas que antes só pensavam, estamos um pouco parados, se calhar. 
Uma simpatia, este Tenente-Coronel, o olhar para a chuva a cair, o outro coronel ao lado, o alferes a apetecer dizer-lhe mas a guardar para si, meu Tenente-Coronel, com todo o respeito, como diz o outro, é como na Figueira, nunca mais chegamos à água e quando lá chegamos já estamos cansados, temos é vontade de nos sentarmos.

Desandara para Bissau matar saudades. Uma volta pelos sítios conhecidos e ao princípio da noite entrou no restaurante do Grande Hotel, uma grande merda, porque de grande só se fosse nisso. Era como aquelas senhoras já de uma certa idade que ainda arriscavam uma racha quase até meio das coxas, meia de seda preta com costura por ali abaixo, o cabelo louro bem arranjado, a escorrer costas abaixo.

Foto do Grande Hotel de Bissau. Imagem da net. 

Pois o Grande Hotel era frequentado por algumas dessas senhoras, quase todas mulheres de oficiais superiores espalhados por tudo quanto eram gabinetes e de militares de outras patentes que não se sabia bem por onde andavam. 
Dos senhores frequentadores, o custo da presença impunha que fossem os maiores da terra, os maridos das senhoras e alguns civis brancos, muito poucos, cabo-verdianos ainda menos, os negros serviam às mesas. 
Era assim, com tão dignas presenças, o ponto de encontro mais selecto de Bissau, o local para levar lá alguém mais importante ou comemorar alguma data especial. Há uns bons tempos o Capitão Leandro tinha-o encarregado de levar ao Grande Hotel um jornalista, Amândio César1 de nome, que lhes tinha feito uma visita a Brá, tendo jantado com todo o pessoal da Companhia de Comandos. Amândio César era um conhecido e, para alguns, controverso jornalista com tendência e gosto pela escrita entusiasta. Tão apreciado era que alguma personalidade com influência, não certamente pequena, quisera aproveitar-lhe o jeito e convidara-o a passar para um livro a informação que a sua curiosidade e argúcia recolhesse nos bares dos Grandes Hotéis de Luanda, Bissau e Lourenço Marques. 
Tinha lido, na altura em que estava a frequentar o curso de comandos, um livro que o Capitão Saraiva lhe emprestara, “Guiné 1965: Contra Ataque”, da autoria do mencionado escritor. Livro excitante, com descrição pormenorizada e arredondada de feitos, em que o conceituado escriba relatava acções militares com tamanho empenho e minúcia que, a alguns e ao alferes também, levantaram dúvidas, que tratou de as tirar junto de alguns que estiveram nesses combates e que ainda se encontravam em Brá. 
Verificou com desgosto, diga-se, que essas testemunhas não tinham tido olhos para tão agudos detalhes. 
E quando no Grande Hotel, no intervalo de uma golada de cerveja, lhe pôs a questão exactamente como atrás se escreve, o escritor-jornalista, óculos de massa preta na testa a escorrer de suor, que o que entrava por algum lado tinha que sair, de pronto lhe retorquiu em linguagem futebolística, o alferes ou está a ver o Eusébio a marcar um livre, ou está a tirar a foto ao livre! Acha que consegue ver tudo ao mesmo tempo? E, no entanto, foi golo! E de seguida despediu-se, alegando ter que preparar uns trabalhos para enviar para Lisboa, pedindo-lhe ainda que renovasse os agradecimentos ao capitão pelo agradável acolhimento que tivera. 
Acontecera há já alguns meses esta peripécia, ainda a Companhia estava em Brá a todo o vapor. 

E agora aí estava outra vez, meses depois do tal jantar com o jornalista. Olhadela pelo salão já praticamente cheio, viu uma mesa para quatro a um canto. Sentou-se. 
A carne do bife? É melhor não? Então o quê, arroz de caril de frango, pode ser. O pão acabado de sair do forno, aos bocadinhos, a manteiga das Marinhas, talvez de meses, o olhar pelos comensais, animados nas conversas com as senhoras das mesas respectivas e a vir-lhe à lembrança o jantar que lá comera com um cabo guineense do seu grupo, há um ano atrás. Um dia destes vamos jantar ao hotel, ao Grande Hotel, ok? 
Ao Grande Hotel? No Grande Hotel nunca se sentou nenhum preto, meu alferes! Então vamos depressa, antes que vá outro antes de ti. Tens andado por todos os buracos, disparaste em tudo o que mexeu, do norte ao sul, em todo o lado, sem pedir licença, porque é que havias de a pedir agora para entrar no Grande Hotel? Vamos amanhã! Leva este Old Spice que está por estrear, põe no fim da barba para te acalmar as borbulhas, e a Couraça com esta escova para os dentes. 

O valente cabo apresentou-se à hora marcada junto ao quarto, em Brá, caqui amarelo que no Grande Hotel a guerra era mais fina, a boina preta a cair para o lado direito, a carapinha a sair-lhe de todo o lado, o lenço de seda negro ao pescoço, um espelho acabado de limpar nas botas, ao ataque para Bissau, Grande Hotel, olhos na estrada, Alegre. 
Quando entraram no salão, a esfregarem os olhos das luzes dos pingentes dos candeeiros, outros olhos, sentados, levantaram-se para eles, para baixaram outra vez para os pratos, a conversarem baixo uns com os outros. O salão estava com muita gente, mais de meio, dois ou três civis e oficiais superiores, à paisana, coronéis, majores, as mulheres, umas com pele nova, outras com muito creme em cima. 
O que o meu alferes comer eu também como, o camarada com os dentes de cima em cima do lábio de baixo, olhos pequenos muito vivos, viam tudo até de noite. Um arroz tem que ser aqui para este senhor, agora o que tem para acompanhar, frango? 
O empregado ajudou-os com as cadeiras, algum aperitivo antes, não, só pão e manteiga. Jantaram tranquilamente, os barulhos das conversas voltaram ao normal. À medida que os comensais iam saindo, reparou que invariavelmente desviavam para a mesa deles olhares pouco aprovadores, pareceu-lhe, mas nada mais que isso e também nada que o incomodasse. 

Agora estava só numa mesa, três lugares vagos que até davam jeito, as pessoas de pé a olhar para ver se demorava muito, estava ainda no início, e a comida não andava, enrolava, água, enrolava com água, o costume nestes últimos tempos. 
Uma senhora loura, vestido vermelho colado ao corpo, um pouco acima dos joelhos, como diziam que se usava agora na metrópole, aberto no peito e nas costas, sapato de tacão bem alto, lábios e unhas a condizer, deu entrada no salão. Senhoras a olharem, homens também, não era exagero nenhum dizer que até as vozes se calaram todas, ao mesmo tempo. 
Olha o alferes aqui, está à nossa espera, podemo-nos sentar, o cCapitão Marques, à civil, dentes a sorrirem. Já não se viam desde os tempos em que ambos frequentavam a esplanada do Hotel Portugal. 
O piano recomeçou a tocar o Danúbio Azul, o alferes para a frente com a cadeira, a senhora loura, com um perfume daqueles que se colam às outras peles, a abanar os cabelos, um dedo a passar pelos lábios, um espelho na mão e o capitão de olho a piscar-lhe e o alferes, de repente, a lembrar-se da história que lhe contaram, passada no aeroporto. Ela, toda loura, acabada de chegar a Bissau, a bambolear-se ao encontro do capitão, os olhos do maralhal todos em cima, os do capitão dentro dos ray-bans voltou-se para um mais entusiasta, gaja boa não? É minha mulher, quer que a apresente?
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Nota
1 - Amândio César Margarido Pires Monteiro, uma personalidade muito ligada ao antigo regime. Entre várias funções que desempenhou, foi ensaísta e crítico literário, dedicando parte da sua actividade à divulgação das literaturas brasileira e africana de expressão portuguesa, nomeadamente a angolana. Das suas estadias na Guiné publicou "Guiné" e "Em Chão Papel Na Terra da Guiné"

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2 - Água do IN

Falava-se no caso do Mamadú em todas as esquinas de Mansoa, que tinha sido o PAIGC que o mandara nessa missão, que o caso tinha sido um nó que o partido atara ao homem grande da tabanca para a população ver quem tinha os trunfos, que havia um libanês, com um comércio próspero, a vender para os dois lados, que sabia da história toda, que tinha sido um milícia que, por dinheiro que o libanês lhe passara para as mãos, o metera na tabanca. O libanês sempre na berlinda, fulano vira, sicrano também, quem eu, mas quem disse, afinal ninguém sabia, o comerciante ofegante a ficar cada vez mais pálido, ia desmaiando na sala de operações, em frente aos dois coronéis. 
À primeira vista tinha-se a ideia de que a população estava quase toda com a tropa, só com a ideia, claro. Mas a rede de informações das NT, embora incipiente, há já algum tempo dava indicações que as milícias de Mansoa, a grande maioria de etnia balanta, não eram de confiar. 
As informações, mais falsas que verdadeiras, continuavam a chegar a toda a hora ao batalhão. Passou ontem um bi-grupo por Jugudul, em Jugudul já há muito tempo que ninguém vê bandido, outra informação a chegar, reuniões todos os dias, uma agitação contínua. Os movimentos das NT continuavam, as colunas de reabastecimento e os patrulhamentos faziam-se normalmente em todo o sector, embora com os incidentes do costume, minas, emboscadas e flagelamentos, estes especialmente nocturnos, para além da habitual resistência que a guerrilha opunha às investidas das NT. 
É preciso sair, montar emboscadas, fazer nomadizações, qualquer coisa, o Tenente-Coronel ansioso, à espera que houvesse alguém voluntário para fazer tudo de seguida. 
O IN, sem grande esforço, está a fazer uma guerra inteligente, passa informações contraditórias umas atrás das outras, durante uns dias cala-se, nós aqui ansiosos, até agora praticamente tem sido tudo fogo de vista, meu tenente-coronel, um dos elementos do staff do batalhão a querer acalmar o ambiente. 
Fogo de vista para si, que está aqui resguardado, feridos e mortos para os que andam na mata, o tenente-coronel, furioso como nunca o vira, pingalim a estalar em cima da mesa, mapa, papeis, alfinetes, clipes, tudo ao ar, porra, já estou com pouca paciência! 
Mão pela testa, eu sou calmo por natureza, mas esta agitação está a dar cabo de mim, sempre à espera que comecem a cair morteiradas em cima de nós. Alferes, vai sair com o seu grupo. Se há informação? Claro que há, informações não faltam! 

Despejos de água aos baldes em cima deles, relâmpagos, estrondos de bombardeamentos para norte, a lua a jogar ao esconde-esconde, o pessoal ensopado até aos ossos, foram andando até clarear. Pararam para aí meia hora, começaram a pôr-se a pé e ele, o comandante do grupo, não conseguia, não sentia as pernas, frias, as únicas em todo o grupo que não obedeciam à sua ordem de marcha. Mãos a massajar, demorou tempo, lá se levantou com muito esforço, o Valente de Sousa a ajudar, arrancou, bamboleante, por ali fora. Pronto, acabou-se, tens que mudar o filtro, os óleos, olha, aproveita e muda tudo, tudo não, mas quase, a rir-se por dentro, a força a voltar, o frio no corpo a manter-se. 
Andaram, como se fosse um treino, para desentorpecer os músculos, os trilhos cheios de água, não se via nada, o Tenente-Coronel Lemos feito Águia no ar, montado no PCV, novidades? 
Águia, guias dizem que caminho não tem sinais recentes, mata ao lado também não, é água por todo o lado, nos trilhos, fora deles, por todo o lado água, água do IN. 
Ok, Diabo Maior, entendido, mostramos-lhes que vamos aonde queremos e quando queremos, retirem, ok, ok, Águia, afirmativo, terminado. Não podia andar mais, nem com a imaginação a trabalhar. Até a cabeça não queria andar mais. 

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3 - E agora para onde?

Em Mansoa desde princípios de Julho, com Setembro a entrar estava terminado o período de tempo de reforço ao Comando de Agrupamento de Mansoa, chefiado pelo tal coronel alto, de cabelos brancos, ar calmo. E a colaborar com o Batalhão comandado pelo Tenente-Coronel Ferreira de Lemos.


Os tempos em Mansoa, naquele final de 66, mantinham-se agitados. Muita informação, a ansiedade entre os militares andava à solta. E aumentava com a aproximação da noite, quando se tinha de proceder à rendição das secções na segurança à povoação. 


Furriel V. Sousa, 1.º Cabo Faria e 2.º Sargento Cordeiro (joelhos)
 

No grupo de comandos, de vez em quando, lá ia mais um, comissão terminada. Já não passavam da dúzia e meia de homens. E foi com esta dúzia e meia que regressou da área de Jugudul, por onde, diziam as fontes, andava o tal bigrupo da guerrilha. O regresso dessa acção, como toda a operação, aliás, feita debaixo de muita água, foi-lhe fisicamente muito difícil. Quando disse para a parelha da frente começar a andar, quando todos obedeceram e as pernas dele é que não, nessa altura concluiu que a comissão, como operacional, estava no fim. A crise de paludismo tinha-o deixado de rastos. 

Dias depois, o Tenente-Coronel Lemos chamou-o. Que tinha recebido uma mensagem do Comandante Militar a ordenar que se apresentasse no QG, no seu gabinete em dia e hora que indicou. 

No dia marcado, no QG em Bissau, dirigiu-se ao gabinete do Comandante Militar, Brigadeiro Reymão Nogueira, que já o conhecia bem de razões que não vêm agora ao caso. 
Mal o mandou entrar, talvez para aquecer a conversa, fez-lhe duas ou três perguntas sobre a situação em Mansoa. A seguir ouviu-o dizer que iria dar por finda a missão do grupo de comandos e que devia apresentar-se, dois dias depois, na 1.ª Rep. do QG, onde lhe seria comunicado o destino do pessoal. E para ele, alferes, dado o escasso tempo para dar a comissão por finda, talvez não fosse má ideia ficar adstrito à CCS do QG. 

No decorrer da conversa, sem perceber a que propósito, entraram cavalos no discurso do Comandante Militar. Que era oriundo de Cavalaria e que lidar com homens não era muito diferente de lidar com cavalos. Foi assim, de forma algo equídea que estava a sair da cena operacional.

Não acho que a história dos cavalos se me aplique, não me parece que seja uma questão a resolver com um molho de palha e torrões de açúcar, nem com 15 dias de licença nas praias de Bubaque, não que me fizesse mal, é mais vasto, não é só físico, é também um cansaço muito grande cá dentro!

Assim, a falar para dentro. Para fora saiu-lhe o que queria dizer. Que, para ele, não era muito importante o local onde iria ser colocado, importante, para ele, era regressar à metrópole, logo que acabasse os 24 meses de comissão.

E agora para onde? Para qualquer lado, Alegre, para Brá não, já não somos de Brá. A esplanada do Bento, àquela hora com pouco movimento, os dois sentados, uma cerveja para cada um, um miúdo a cuspir-lhe nas botas, a puxar o lustro, a pirueta da escova ao ar, o ar triunfante do garoto com ela na mão, a puxar o lustro outra vez, outros miúdos ao lado, nosso alfero, mancarra quer? 
E agora, se nos puséssemos a caminho de Mansoa? Subiram até à Sé, porque vais por aí Alegre? Não queria olhar, mas olhou para aquela casa, o portão, as escadas, a porta fechada, as janelas também, ninguém no jardim, tudo arrumado como se tivessem ido para férias.

Em Mansoa, prepararam-se para sair. Arrumar sacos, armas, tudo, a seguir ao pequeno-almoço, formatura do grupo frente ao Comando do Batalhão, para as despedidas aos Comandantes do Agrupamento e do Batalhão. 
Uma cerimónia simples para um grupo tão pequeno, o tenente-coronel a passar revista, a parar em frente de um, tu donde és, quanto tempo te falta. E depois de algumas palavras, o grupo a desfilar frente aos dois coronéis, em direcção às viaturas, alinhadas para Bissau. 
Óleos, Alegre, óleos? Então, força com essa chocolateira. 


Quando passaram a ponte, voltou-se, viu Mansoa a afastar-se, a ficar para trás. Depois dos cinco meses em Cuntima, 16 nos Comandos, já nem se lembrava de quantas operações, só contou de início, quase tudo golpes de mão, algumas emboscadas e nomadizações, um sem número de contactos com o, quase sempre, competente IN, um morto, o Soldado António Silva, 9 feridos sem gravidade, nem numa emboscada caíram. Há infernos piores, mas no meio deste era difícil ter tido melhor sorte. 

Uma das últimas operações, em Buba, 'Olinda' de código, de grande importância estratégica, segundo rezava a ordem de operações, quando se ia para lá era de escacha-pessegueiro, o grupo a entrar-lhes pela porta dentro, outra vez sem ninguém dar por eles, nem convidados nem nada, não os quiseram receber a bem, o carago a quatro, para não dizer pior. 
A guerra, já que tivera de ser, fora feita, assim. E parabéns ao IN e um sentimento de respeito também, que para os combatentes as guerras são sempre justas. E cansaço, muito cansaço!

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4 - CCS, QG2

Entre, entre, o Capitão Valente, a caminho dos 60, valente no físico pelo menos, para aí 90 quilos. Sentado, óculos na ponta, montes de papelada, Parker 51 na mão, entre, que está aí a fazer à porta? 
Alguns dos seus homens ficam à sua responsabilidade directa, vão prestar serviços aqui no que se entender, dos restantes tem que tratar na 1.ª Repartição, disseram-lhe lá, não foi? 
O nosso alferes fica como meu adjunto no comando da Companhia e acumula com a responsabilidade da cantina, ok? 
Meu capitão, não tenho qualquer experiência na gestão de messes nem de cantinas, nem sequer simpatia pela actividade, e agora, encrencas é que não me dão jeito nenhum. 
Bem, para já, aqui quem manda fazer o serviço é o Capitão Valente, que é este senhor que está a falar consigo, sentado nesta cadeira. E falta de experiência até pode ser bom, nosso alferes. Com a sua idade, que experiência é que tem, ora diga lá? Aqui na CCS do QG, faz-se o que é preciso, com os militares que cá temos. Experiência, experiência! Temos que a ganhar alguma vez, olhe, gajos com experiência em messes e cantinas, aqui são aos pontapés, um alferes que esteve aqui ganhou tanta experiência que em meia dúzia de meses já sabia mais que eu, tive que o mandar fazer uma viagem, a experiência que ganhou aqui nas cantinas deve estar a ser-lhe muito útil agora. 
Fecho de contas diárias, existências e movimentos dos géneros, entradas e saídas ao mês, relatórios de fecho até ao 5.º dia útil do mês seguinte, contactos com os fornecedores mais pequenos, os maiores ficam à minha responsabilidade, entendido? 
A olhar para o grande Capitão Valente, se calhar Mansoa seria melhor, amanhã a que horas, meu capitão? 
Às horas do regimento, porquê, não lhe dá jeito? 
Então, com a sua licença, meu capitão, até amanhã. 
Assistiu ao desembarque do grupo, à escolha das camas, as parelhas a manterem-se, a arrumação dos materiais, o habitual nestas andanças. Alegre, dá cá as chaves do jeep. Entrou pelo bairro residencial do QG, onde fica a casa do Alferes Neves3, aquela ali, junto à piscina?

Com licença, posso? Viva, um tipo que nunca tinha visto, de Minolta na mão, deitado na cama. Manaças4 da 4.ª, tudo o que seja transportes aqui na Guiné tem que passar por mim! Disseram-me ontem que eras tu o novo morador! Conheço-te por causa dos jeeps, isso é que foi bater recordes, tanto jeep gripado em tão pouco tempo, e o Major Gama como uma barata, todo lixado! É pá, tiveste sorte, aqui é tudo malta fixe! Onde ficas? No quarto lá de dentro tens duas camas vagas, escolhe uma.


Um conjunto de vivendas térreas, todas pequenas, dispostas em roda, de frente para a messe, a piscina logo ali, meia dúzia de passos abaixo. A vivenda que lhe tinha sido destinada tinha uma única porta, à entrada um quarto grande, duas camas, uma de cada lado, encostadas às paredes, um armário em frente, uma aparelhagem Akai, de um deles, com gravador de bobines. Depois, um pequeno corredor, armários nas paredes dos dois lados, o quarto de banho em frente, à esquerda outro quarto, duas camas, como no da entrada, encostadas às paredes, um luxo. 

Escolhe a cama, o amigável Manaças. 

Agora, a minha nova morada é aqui, até ao fim, os olhos a passarem pela estante-armário vazia, os tapetes de fio indígena no chão, a mesinha de cabeceira com um candeeiro, as paredes a cheirar a tinta fresca, tudo muito melhor do que esperava. Abriu o saco verde de lona, virou-o para baixo, sacudiu-o em cima de uma das camas, duas camisas de manga curta, dois pares de calças à civil, as meias da guerra, as poucas coisas que tinha, ora vamos arrumar esta tarecada toda, dez minutos, tudo nos sítios, o espaço nas prateleiras da estante iria enchê-lo com os livros que trazia no caixote. 
O outro saco, as botas para fora, o par de sapatos para civil e militar, os dois camuflados, o que restava arrumou tudo em pouco tempo.

(Continua)
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Notas:
2 - Companhia de Comando e Serviços do Quartel General, em Santa Luzia, Bissau
3 - Nome fictício
4 - Nome fictício
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Nota do editor

Últimos 10 postes da série de:

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27 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15044: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XII Parte): Guia em fuga; Um descapotável em Bissau e Entram os Alouettes

10 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15098: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIII Parte): Conversa em Brá e Nunca digas adeus a Cuntima

24 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15149: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIV Parte): Fuzileiros, Páras e Felupes; O que se terá passado em Catió; Casamento com data marcada e Ponto da situação em Brá

1 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15186: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XV Parte): ME-14-04; Partir mantenhas; Buba, outra vez e Vamos ser independentes

8 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15221: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVI Parte): Cabral no Oio; Uma carta e Galinha à cafriela

15 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15254: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVII Parte): Fima, enfermeira do Partido; Cassaprica e Correspondência

22 de outubro de 2015> Guiné 63/74 - P15280: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVIII Parte): Extinção da Companhia de Comandos do CTIG; Mansoa e Valium

29 de outubro de 2015 Guiné 63/74 - P15303: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIX Parte): Chegou a 3.ª Companhia de Comandos e Pesadelo
e
5 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15330: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XX Parte): Hospital Militar 241; Mamadú; Fuga? e Só água fria por baixo