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quarta-feira, 17 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11413: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (12): A morte se fez visita estrondosa

1. Em mensagem do dia 14 de Abril de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima segunda "Carta de Amor e Guerra". 


CARTAS DE AMOR E GUERRA

12 - A Morte se fez visita estrondosa

Quantos de nós, na Guiné, não passámos por dias e dias seguidos sem o “cheiro” da Morte, em que esta parecia ter ido de férias, esquecendo-nos da sua ameaça de regressar ao “trabalho” a qualquer momento? Às vezes até a podíamos sentir a pairar sobre nós, qual abutre sereno e vigilante, à espera de atacar a sua refeição mas, com o correr do tempo e à falta de ataque, o “abutre” chegava a convencer alguns que estava em “greve de fome”.

Fora da área de guerra, nada é diferente a não ser haver a consciência de que a morte andará mais ou muito mais arredia. Pensa-se menos nela, alguns vivem como se ela estivesse “em greve” por tempo indeterminado.

Nas cartas abaixo transcritas vêm à tona os “caprichos” da Morte. Num período de 17 dias, ela atacou nos nossos espaços vivenciais, nos meus e nos da minha namorada*, com resultados inesperados. Nos dela, onde se presumia não haver perigo de maior, as vítimas mortais foram 41 e nos meus, a priori considerados locais de residência da morte, esta só agarrou quatro. E quanto a resultados anímicos, não sei quais os mais duros, se foram os meus por ter perdido alguns amigos e camaradas se os dela, no imediato a lidar com as angustiantes emoções dos familiares dos mortos e depois, durante muito tempo e presencialmente, com as dos feridos graves e suas sequelas físicas, psíquicas e económicas.

*Trabalhava na área jurídica e de contencioso da C.P. Todos os processos subsequentes, relativos a vítimas dos acidentes ferroviários, passavam por aqueles serviços.

Detalhe de cartas: Lisboa (22/12/1965) e Bissorã (6/1/66).


Lisboa, 22-Dez. 1965
(… … …)
(…) sinto hoje uma enorme vontade de viver! Uma imperiosa necessidade de mostrar quanto valho! A vida é uma maravilhosa caixinha de surpresas onde os bons e os maus momentos se alteram com espantosa facilidade.
Ontem, ainda, encontrava-me tão desalentada, melancólica e até revoltada. E contra quem? Incógnita, não sei especificamente. Mas revoltada contra tudo e contra todos, até. Porém hoje sinto uma enorme vontade de viver, de acreditar.
(… … …)
Este fim de ano parece estar a ser manipulado por mãos criminosas, diabólicas, entretidas em espalhar a dor e a angústia por tantos lares onde falta um ente querido que já os não acompanhará na noite de consoada. No passado dia 18, em Vilar de los Álamos, localidade próxima de Salamanca, deu-se um violento embate entre o Sud-Expresso que rodava rumo a Lisboa e um comboio-correio. (…)resultou a morte de 13 portugueses e mais 17 feridos, emigrantes que regressavam da Alemanha e da França.
Ontem, (…) outro desastre (…). Este, na linha de Sintra, entre uma composição eléctrica e um comboio de mercadorias que avançou desordenadamente sobre o primeiro. Do sinistro há a lamentar a morte de 23 passageiros e dezenas de feridos com gravidade. O maquinista do comboio responsável pelo acidente é teu conhecido. É o (…) de Pombal (…).
Nesse mesmo dia, na Praia do Ribatejo, um outro comboio (…) destinado a trazer emigrantes de França e Alemanha, chocou com uma automotora. Felizmente não há mortes a registar, apenas alguns feridos.

Detalhe de “O Triunfo da Morte” de Jan Brueghel, o Jovem, uma cópia com o mesmo nome de um quadro de seu pai, Pieter Brueghel, o Velho.
Biblioteca Nacional de Paris

Esperemos que fique por aqui. O público pagante e muitos dos componentes do grupo administrativo da C.P. não se cansam de terçar armas (…) no sentido de haver uma maior segurança no material (…) e que o pessoal tenha tempo suficiente para descanso e uma habilitação prévia para desempenhar cargos de tão graves responsabilidades. Mas … nada feito. (…).
(…) muito grata pelas amáveis cartas que recebi. Foram logo cinco de uma vez. Que alegria, meu querido!… As tuas palavras são um estímulo, um incentivo precioso para o meu sentido de viver. (…)
(… … …).
Sempre tua, N.



Bissorã, 2 Jan 66
(… … …)
Eu, minha querida, palavra que ando um pouco desorientado. Sou uma contínua pilha de nervos. E eu que era tão calmo! (…) tenho o espírito em tal estado de alerta que a mais pequenina coisa me provoca uma tal irritação que dou por mim, muitas vezes, num sofrimento angustiante (…) a tornar-me ainda mais ciente de quanto a juventude portuguesa está a sofrer em África. (…).
E vejo o futuro tão negro, meu amor… Não no que se refere a nós dois mas ao ambiente em que iremos viver, isto se eu chegar a pisar terras da Europa.
No aspecto militar a coisa vai correndo bem para mim. Mas nesta guerra nada se sabe. A calma de hoje não implica a de amanhã. Se, até agora, isto tem corrido de modo a que um indivíduo menos avisado julgue que afinal o papão não existe, de um momento para o outro o desastre pode acontecer. Não menosprezo o poder dos guerrilheiros (…). Olho para 1966 como o ano crítico de toda a minha vida. Conseguirei ultrapassá-lo? (…).


©Manuel Joaquim

Desculpa, (…), se te aflijo. (…). Não julgues também que isto está de corda no pescoço. Não é tanto assim. Mas o perigo é muito grande.
Minha querida, vai escrevendo frequentes vezes, sim? As tuas cartas são o bálsamo para minorar a angústia que me envolve. Custa-me ver-me, por vezes, tão unido a ti. Faço-te sofrer e corres o risco de sofreres inutilmente. (…).
Cubro-te de beijos, (…). E … confiemos na sorte.
Muitas saudades do teu M.


Bissorã, 6 JAN 66
(… … …)
Tivemos cá hoje a visita de algumas senhoras do Movimento Nacional Feminino, entre elas a presidente da delegação da Guiné e a presidente geral, a srª. Cecília Supico Pinto. Muito amáveis e comunicativas; a sua presença veio animar-nos bastante pois ontem, pelas cinco horas da manhã e durante uma operação que fizemos, caímos numa armadilha dos guerrilheiros e tivemos a “linda” soma de quatro mortos e cinco feridos, dois em estado gravíssimo. Foi o primeiro azar da minha companhia. Parece-me que estava a prever isto. Comuniquei-to no último aerograma que te escrevi [2 de janeiro].
(…). Estava a uns três ou quatro metros [do sítio] da explosão. Com o estrondo fiquei com os ouvidos a zunir durante uns tempos mas saí sem a mínima beliscadura. Mais uma vez a sorte me acompanhou. Um cabo, o 2904, ficou desfeito. Só conseguimos encontrar-lhe a cabeça, a alguma distância! [ver, neste blogue, “P10105: Miserere”]

“S/ título”. © Carbar (Carlos A. T. de Barros, pintor guineense)

Coitados dos soldados. Antes do acontecimento pensavam que isto era um divertimento um bocado perigoso, agora exageram com o medo que os enche.
(…), tem calma. Por isto acontecer não é motivo para desesperarmos. (…). Muitos se hão-de safar e eu hei-de ser um deles. Para ser mais verdadeiro, posso ser um deles. Estes azares não acontecem todos os dias.
Às vezes chego a pensar que seria muito melhor não te contar estas coisas. Mas eu quero, embora causando-te alguma dor, que nunca duvides da verdade com que te escrevo.
(…). Fisicamente, estou óptimo. Psiquicamente, não posso dizer o mesmo. (…). Conheces a minha maneira de pensar, os princípios que defendo, (…). Perante o que está acontecendo já sabes quais as minhas reacções.
(…). Pela tua carta vejo que por aí também se morre, e de que maneira! (…). Soube cá do desastre de Sintra e cheguei a temer pelo teu pai [maquinista da CP, naquela altura em serviço na linha de Sintra].
Até sempre, meu amor. Muitos beijos do teu M.


Vale de Figueira, 11 Janeiro 1966
(… … …)
(…), então, o que se passa!? Ânimo, querido! Nenhum esforço será inútil, verás. (…). Será preciso não desanimar mas desanuviar o espírito, olhar sempre mais alto, convencidos de que valemos muitíssimo mais do que aquilo que, no presente, nos é permitido pôr em acção.
Há tanta coisa que nos espera, (…). Tanta coisa a descobrir e que nos pertencerá. (…). Oh meu querido, reage, teima em viver. (…). Na vida nem tudo são rosas mas também, como é natural, nem tudo são espinhos. (…).
Não voltes, (…), a dizer que sofro inutilmente. Nunca se sofre em vão, estou convicta desta verdade. É no sofrimento que se purifica a alma, que se descobrem as virtudes. E, depois de uma grande dor recompensada, a alegria renasce mais espontânea, mais sincera e pura. E a minha possível dor nesta época será sobremaneira recompensada. Depende de ti. Queres dar-me essa alegria? (…). Eu espero-te. Esperam-te a nossa vida em comum e os nossos sonhos, que se hão-de concretizar.
(… … …)
Corações ao alto! Vamos, meu amor. Nunca me lastimes. Isto te peço, encarecidamente. Nunca o esqueças. Amor paga-se com amor. Isso acontece. Estou contente e satisfeita. Estamos, portanto, quites!
Apetecia-me doidamente abraçar-te, beijar-te muito, muito, (…). (… … …)
Sorri um poucochito mais, meu querido … Um sorriso dos que são obra só tua. Ainda guardo nitidamente o teu último sorriso. Essa impressão jamais se apagará na minha memória. Sabes, quanta confiança essa recordação me incute, quantos sonhos ela me leva a idealizar! … Eu quero que não esqueças esse sorriso … Está bem?
(… … …)
Então ainda não recebeste uma encomenda enviada daqui? Deveria ter chegado no dia 31 próximo passado. Hoje segue também a “Seara Nova” do mês corrente.
Adeus, meu amor
N.

Foto de António Silva Pinheiro, sold. Atir. Inf. (CCaç1419) 


Bissorã, 13Jan66
(… … …)
Pelo último aerograma que te enviei adivinhaste com certeza o meu estado de espírito. É claro que tenho de reagir a estes acontecimentos. Olhá-los como acontecimentos normais desta vida, (…), para que os momentos livres que tenho se não transformem em angústia e martírio contínuos.
(…). Sei que é estúpido andar por aqui a vergar-me à ideia de que posso “desaparecer do mapa”. Tento reagir. Mas cá no fundo uma angústia espessa, concentrada, é um peso contínuo.
As tuas cartas têm um condão extraordinário para me aliviarem. (…) são um autêntico esbanjar de ternura, de confiança, de fé, de lucidez apaziguante, de alegria de viver, de calma. (…).
(… … …)
Isto por cá vai indo. Nada mais aconteceu depois da madrugada do dia 5. Esta guerra é assim. Num dia pode acontecer muita coisa. Depois, podem surgir dias e dias sem nada suceder.
Ontem saiu daqui a Companhia 643. (…). Deve regressar à Metrópole lá para o fim do mês. (…). Se tiveres oportunidade de assistir ao desembarque do Batalhão 645 (a que pertence a Comp. 643) poderás certificar-te do bom aspecto que levam, principalmente a malta da 643, aquela que eu conheço.
Já se safaram. (…). Terei a mesma sorte que eles? (…).
Muitos sacrifícios terei ainda de suportar. Mas a esperança, contigo a meu lado, não me abandona.
(…) Até sempre, minha querida.
M.
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Nota do editor:

Último poste da série de 10 DE ABRIL DE 2013 > Guiné 63/74 - P11369: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (11): Poema

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11369: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (11): Poema

1. Em mensagem do dia 23 de Março de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima primeira "Carta de Amor e Guerra". 


CARTAS DE AMOR E GUERRA

11 - POEMA

Não tenho a mínima ideia de ter feito este “NÓS”, a que chamei poema livre, até porque vejo nele alguma qualidade e beleza.
É que a minha expressão poética nunca passou da “cepa torta”. Adoro poesia mas não sou poeta no sentido de a criar.

Na carta para a namorada, ter-me-ia “armado ao pingarelho” escrevendo “Sou eu o autor”?
Não sei, talvez me tivesse expressado mal, talvez quisesse dizer que era o autor, sim, mas daquela compilação de diversas expressões literárias e da sua ordenação em jeito de poema. Vou mais por aqui.

Já naquela altura conhecia bem o método de fazer este tipo de composições “poéticas”, tinha tido formação nesse sentido e já me tinha servido dela, com algum sucesso, na iniciação à expressão poética dos meus alunos. E tenho uma vaga ideia de experimentar fazer o mesmo com os camaradas de quarto, em Bissorã.

É um método simples. Escolhe-se um tema e pede-se a cada aluno da turma que crie, livremente, uma curta frase ou expressão sobre esse tema. Depois analisam-se as diversas frases/expressões, retiram-se palavras supérfluas, escolhem-se e ordenam-se as ideias expressas transformadas em versos e faz-se assim um “poema”. É, neste caso, um trabalho colectivo de composição escrita e do qual não é raro saírem coisas lindas. Creio mesmo que em muitos dos meus alunos se instalou, assim, o bichinho do gosto pela poesia.


Bissorã, 7DEZ65

Um quarto de militares tem uma decoração “sui generis”: [fotos de] mulheres mais ou menos despidas, quadros pictóricos, frases célebres ou com um sentido mais ou menos relacionado com as actividades dos ocupantes. A decoração do meu quarto (meu e de mais três moços) tem um cunho intelectual que o torna um pouco diferente. No desejo de te dar a conhecer o ambiente em que vivo, vou transcrever-te o que, em grande plano, domina a decoração das paredes do quarto. Sou eu o autor. Aqui está, minha querida, o poema livre “NÓS”:

Igual pobreza duma vida limitada
Onde as palavras são o reflexo
E as lágrimas também
Da força perdida
Da força sonhada
O medo e a coragem de viver e de morrer
A morte tão difícil e tão fácil
Homens para quem a vida foi cantada
Homens para quem a vida foi negada
Homens reais para quem o desespero
Alimenta o fogo devorador da esperança.

Saudosamente, o abraço de sempre com todo o Amor do teu
M.

Cipriano Oquiniame: “Caos em Guiné-Bissau” 
Retirado, com a devida vénia, de “Artistas plásticos, pintores e escultores da Guiné-Bissau” em www.didinho.org
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Nota do editor:

Último poste da série de 20 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11282: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (10): À volta de uma fotografia

quarta-feira, 20 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11282: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (10): À volta de uma fotografia

1. Em mensagem do dia 15 de Março de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

10 - À volta de uma fotografia

[Ao início da manhã do dia seguinte à chegada da CCaç 1419 a Bissorã, um grupo ruidoso de jovens mulheres oferecendo os seus serviços de lavagem de roupa “atacava” a “casa dos furriéis” (como era conhecida uma vivenda no centro da vila, “herança” da CCaç 816, segundo julgo).

De entre essas mulheres fixei-me numa que sobressaía pela beleza, pelos cuidados postos na sua apresentação física (magnífica), pela calma e segurança na atitude e pelo brilho do olhar, que me confundiu. E ela percebeu a minha confusão, tenho a certeza!

 “Apanhado”, fiquei à sua espera enquanto ela cirandava na conquista de clientes e me dirigia um olhar furtivo, de vez em quando, como que a dizer “já estás no papo, já tratamos do assunto”. Embevecido, fiquei à espera a apreciar aquele comportamento, típico de alguém que sabia dos efeitos do seu uso. E foi “tiro e queda” quando se me dirigiu. Caí logo, fizemos logo contrato. Com fotógrafo perto, ia lá eu perder uma imagem daquele momento com aquela beleza! E saiu esta foto (foto 1).

Não é a primeira vez que me refiro a esta menina-senhora de há 47 anos. Os seus serviços de lavadeira foram impecáveis, o nosso relacionamento foi magnífico. Passei bons momentos com ela, no seio da sua família. “Honni soit qui mal y pense”, preciso sempre de dizer, pois o nosso relacionamento físico nunca ultrapassou as relações inerentes ao seu trabalho. Mas foi um relacionamento que me deixou boas lembranças.]

Foto 1: Bissorã, 24/10/1965. Linda, a minha lavadeira! 
© Manuel Joaquim 

Lisboa, 9-Dez. 1965

Queridito: 
É muito gira é, a tua lavadeira. Sabes escolher o que te convém e atrevo-me a afirmar que não te envergonharás de a teres a teu lado. Serve-te, não é verdade? Óptimo. 
Como facilmente depreenderás, vi a foto que enviaste à tua Mãe.[foto 1] (…), sem querer, instintivamente, senti um certo mal-estar como se, nesse momento, tudo me fugisse ao olhar-vos. 
Agora (…) reconheço, sem sombra de dúvida, que foi uma reacção descabida, uma reacção sem sentido que valha justificação. Em suma, uma reacção estúpida e indigna de mim. Mesmo assim, não deixo passar a oportunidade de te expor os meus pontos de vista sobre o assunto. 
Por que não enviaste à tua D. um exemplar da foto que enviaste à tua Mãe? Dirás que sou parvinha, que estou com ciúmes e a dar tanta importância ao que não a merece. Sou ciumenta mas posso perfeitamente afirmar que o que senti não foi de modo nenhum ciúme. (…). Senti-me um pouco desgostosa ao ser apanhada de chofre e por atribuir o teu procedimento ao facto de já não confiares em mim, de duvidares sobre qual seria a minha reacção perante a foto. Temias a minha reacção. Foi isso, meu querido?! 
Mas ouve-me, (…). Escuta-me e depois dirás se tenho ou não razão para ficar magoada. 
Ora, se não há nada de anormal, e eu acredito nisso, em contratares uma mulher para te tratar das roupas e do mais que te for necessário, em aproveitares uns momentos de folga para tirares umas fotografias, com que intenção me quiseste ocultar esse facto? (…).
Eu poderia agora, como medida de precaução, ficar de pé atrás, (…). Segundo minha opinião deverias também ter-me confiado essa “pose”. 
Há uma atenuante que ainda formulo para tornar mais branda, menos injusta a tua atitude. Dar-se-ia o caso de teres assim procedido por quereres evitar-me possíveis sofrimentos (…)? 
Mesmo assim, a minha conclusão ao analisar o teu procedimento foi esta: falta de confiança na tua N. Não sabias qual seria a minha reacção e, então, vá de ocultares-me o que poderia induzir-me em erro, levar-me a magicar, a imaginar algo com sentido completamente antagónico ao que a verdade representa. 
Espero e peço-te mesmo que nunca mais assim procedas. Por que não hei-de aceitar com agrado a tua presença junto de uma pretinha? Tanto mais que ela te é indispensável enquanto aí te retiverem! Aceito com certeza, meu amorzito. 
Há sempre uma certa tendência para exagerarmos certos factos, para procurar dar-lhes até um cunho de “maldade” quando se descobre que estão a correr em segredo. Isso desperta a nossa curiosidade e a nossa tendência para uma má interpretação. (…). 
E agora que me justifiquei, vamos pôr uma pedra sobre o assunto exposto. Não é motivo que valha a nossa discussão. 

(… …. ……) 

Para ti, os beijos e abraços que quereria dar-te neste momento. 
Sou a tua N. 


Bissorã, 12dez65 

(…) recebi hoje a tua última carta que, (…), provocou (…) um certo sorriso “malicioso” mas, ao mesmo tempo, também muito carinhoso. 
Com que então ficaste aborrecidita com uma fotografia toda pinocas, (…). 
(…) mandei-a para a minha Mãe, precisamente porque pensei que ela se iria divertir muito mais do que tu. E parece-me que foi isto mesmo que aconteceu. 

Começas por afirmar que não é questão de ciúmes mas, (…), cais em contradição com o que dizes à frente. Se calhar sou capaz de ficar por aqui a criar garotinhos mulatos. É que eu, sabes, gosto tanto da Guiné, adoro a Guiné, vai ser a minha futura pátria! 

Gostava de saber, minha querida, que género de controvérsias o caso poderia vir a provocar entre nós. (…). Julgas então que não te enviei a fotografia por pensar que ias ficar tão magoada que daqui poderia haver um rompimento dos laços que nos unem? 
(…). 
(…) afirmares a hipótese de ficares de pé atrás, como medida de precaução, (…) é “do arco da velha”. Oh D.! Não procures atenuantes para a minha atitude. Não te mandei uma foto igual porque não tinha mais nenhuma. Só isto. Como nem sequer pensei em enviar-ta. A que tinha estava destinada à minha Mãe. Mais nada. 
(… … …) 
Bem, como também afirmas, e eu corroboro essa tua afirmação, não sei onde está a importância do caso. Mas se aquilo que disse te levar a qualquer aflição, (…) peço-te encarecidamente que não te cales e que exponhas o que te aflige, (…). 
(… … ….). 
(…).Os beijos e abraços de sempre do teu M.

Foto 2: Mansoa, 1970, Lavadeiras.
Bela foto do camarada desta Tabanca Grande, César Dias, retirada com a devida vénia de http://bcac2885.com.sapo.pt/index.html
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 13 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11247: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (9): Saída de Bissau para Bissorã

sábado, 16 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11263: Memórias de Manuel Joaquim (10): Se em Bissau não "Tombe la Neige" pela certa "Tombe la Pluie"

1. Mensagem de Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 12 de Março de 2013:

Meus caros Luís, Carlos e Eduardo:
Também eu, um dia, fui soldado-letrista. Mas o resultado não foi brilhante. As suas repercussões não passaram muito para lá do meu umbigo!
Vai aqui a "estória".
Se nela acharem alguma piada para poder ser publicada, ficam ao vosso critério, que muito respeito, o modo e os possíveis cortes que porventura achem por bem fazer.
Um afetuoso abraço
Manuel Joaquim


MEMÓRIAS DE MANUEL JOAQUIM

10 - Tombe la pluie

Tenho uma “estória” sobre uma canção famosa de Adamo, a “Tombe la Neige”

Bissau, inícios de Setembro de 1965, Quartel de Sta. Luzia.

Tinha comprado, há pouco tempo, um rádio-gravador que, de imediato, se tornou um “companheiro” imprescindível. A primeira coisa que nele gravei foi o que me apareceu à mão, quatro canções de Adamo, de entre elas a “Tombe la neige” (Cai a neve), muito na berra naquela altura.


Numa noite chuvosa passada em serviço de “sargento de dia” na Casa da Guarda ao lado da Porta de Armas, ouvindo e reouvindo Adamo, achei piada à discrepância entre as palavras da canção “Tombe la neige” (Cai a neve) e a realidade do clima tropical quente e húmido que estava a suportar naquele momento. Ao som da chuva a cair logo surgiu um título alternativo, “Tombe la pluie” (Cai a chuva). E assim arranjei um belo motivo para me ajudar a passar a noite. Umas horas depois já tinha o rascunho de uma versão da letra, adaptada ao local onde vivia.

Tempos mais tarde pedi ajuda na messe de sargentos a um furriel que por ali via frequentemente a ler em francês e lá fizemos uma versão “definitiva” que depois tentei implantar nos momentos de convívio “cantoral” mas os resultados foram desanimadores. Só se percebiam uma ou duas vozes cantando a nova letra, o resto eram confusos “lalalás” da maioria. A maior parte do pessoal não sabia o suficiente de francês para apreender o texto e assim não se saía do básico “Tombe la pluie, lalalalala …lalalalala …”. Mesmo desmotivante.

Pensei, então, em arranjar uma versão em português mas o entusiasmo passou e o interesse foi-se diluindo na variedade de chamarizes existentes em Bissau para nos preencher os tempos livres. De vez em quando, na camarata, ao ouvir-se o original saído de algum aparelho, lá vinha um “tombe la pluie” ou um “e cai a chuva” sem continuação. E a chuva como tema da canção acabou por morrer.

Adamo foi substituído no gravador por outro(s) intérprete(s) e canções. A folha com esta nova versão em francês ficou perdida, dei por isso mais tarde, entre as folhas de um livro de Jorge Amado, “Mar Morto”, livro que emprestei ao furriel Henriques, camarada da CCaç 1419, aquando duma sua “viagem” de barco a Bedanda em serviço de segurança a um batelão de abastecimentos. Entretanto a estação das chuvas foi chegando ao fim, a CCaç 1419 saiu de Bissau para Bissorã e a letra de “Tombe la pluie” andou a “marinar” no “Mar Morto” que me foi devolvido já em Bissorã, exalando um forte e especial cheiro. É que o livro tinha viajado com o saco do bacalhau que a secção do Manuel Henriques levou para comer durante a viagem. As suas folhas ficaram de tal modo impregnadas que ficaram durante muitos meses a cheirar fortemente a bacalhau, de tal modo que o seu título ficou mesmo a condizer com o objecto, cheirava a “mar morto”.

Ao retomar o livro, encontrei dentro dele a folha com a “Tombe la pluie”, folha que tinha servido para o Henriques marcar a página de leitura. Foi guardada com uma leve esperança de ainda poder vir a ser utilizada na futura estação das chuvas para reavivar a canção com a malta de Bissorã. Qual quê! Tão quietinha ficou entre outros papéis que nunca mais me lembrei dela até uns largos anos mais tarde quando, ao procurar bases para a redacção de um texto sobre a guerra colonial para o semanário “O Jornal”, a encontrei.

Achei muita graça ao facto, até pelas memórias que me trazia. Ofereci tal “obra” à minha esposa, com um bom beijinho a condizer com os termos em que está redigida. E ela gostou muito! Até me sugeriu a compra do original “Tombe la neige” para lembrar melhor os passos da canção, coisa que eu fiz. E assim demos nova vida à “Tombe la pluie”. Ainda hoje, naqueles dias chatos de chuva, nos salta um “Tombe la pluie et mon coeur s’habille de noir”.

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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 25 DE NOVEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10722: Memórias de Manuel Joaquim (9): Na guerra, nunca dei um tiro!... (só dei um)

quarta-feira, 13 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11247: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (9): Saída de Bissau para Bissorã

1. Em mensagem do dia 10 de Março de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a nona "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

9. Saída de Bissau para Bissorã

Bissau, 23/Outubro/65 
Escrevo-te hoje porque, precisamente hoje, vou sair de Bissau. Irei para uma zona do interior, a minha nova e com certeza definitiva residência nesta malfadada Guiné. Vamos lá a ver o que me irá acontecer. Sem dúvida que a vida se vai tornar um bocado mais dura. Mas nem tudo são males. Lá também passarei horas descansadas. Brevemente te darei notícias mas é natural que antes do próximo avião isto não seja possível. Por isso te escrevo agora. É lógico que a correspondência se atrase mais um ou dois dias mas isto não é problema.

O facto mais importante aqui está. Ficarei a residir no “mato”. Mais uma grande experiência de vida. O perigo não é nenhum papão e tudo se há-de passar, minha amada N., da maneira mais agradável. Irei fazer por isso. Tem calma, não te exasperes. Tudo correrá bem. Seria ridículo minimizar o perigo mas o que também é certo é que é preciso ter muito azar para morrer. 

A hora do nosso reencontro há-de chegar. Não percas a esperança porque há razões para a sua existência. Uns vêm, outros regressam. Daqui a poucos dias há-de chegar, mais uma vez, uma carga de homens mas quase uma mesma quantidade regressará à metrópole. Lá para os primeiros dias de Novembro aí estarão e, se fores ao cais, verás que o seu aspecto é bom, convidativo à esperança num bom sucesso também do nosso lado.

Vê lá se procuras ocupar o teu tempo de maneira a não pensares muito na nossa situação. Leva a coisa como o acontecimento mais natural do mundo. Ocupa-te na leitura, no passeio, em qualquer actividade que te distraia. Não quero que a minha menina se enfie num canto a limpar as lágrimas e a transformar esta nossa separação num coro de lamentações.

Estas nada valem. E verás os dias passarem, as semanas correrem e, quando menos dermos por isso, estará esta minha comissão no fim. 

Espero ir-te mandando umas fotografias frequentemente para que talvez sintas a minha presença mais real. Estou bem como poderás ir verificando.

O tempo não é muito. Tenho de partir. Na próxima carta espero dar-te informações mais precisas sobre a minha localização. Agora não posso. 
(…). 

Apaixonadamente, sou o teu M. 
(…) 

Foto 1. Mansoa, 23/10/1965, a CCaç 1419 a caminho de Bissorã: uma breve paragem. 
Em primeiro plano, o fur. milº Manuel Joaquim. 
© Manuel Joaquim 


Bissorã, 31/Out./65 
(… … …) 
(…) como te prometi na última carta, eis-me a dar-te algumas impressões sobre a minha nova localização. A localidade onde estou aquartelado chama-se Bissorã. É uma vilazinha razoável. O mal é estar cercada pelos revoltosos. Situada no meio da selva está, como é lógico, cercada pelos “turras” (como se lhes chama cá) já que a selva é o refúgio deles. Na vila está-se razoavelmente [bem]. O pior é quando se sai. Cheguei cá no dia 23 e já apanhei um grande aperto (*). Para te estar aqui a escrever, tenho de me considerar um indivíduo de sorte. O pior é se ela me não acompanha até ao fim. 

Foto 2. Bissorã, vista aérea do centro da vila
Foto do cap. Carlos Oliveira, retirada com a devida vénia do “website” de Carlos Fortunato, leoesnegros.com.sapo.pt/

Outra coisa que me aconteceu, não perigosa mas bastante aborrecida: À vinda para aqui desapareceu-me aquele meu saco azul-escuro. Com ele foi a carteira com todo o recheio: dinheiro, todas as fotografias, as tuas e as minhas, inclusive uma colecção que cá tinha tirado e que tinha intenções de te ir enviando (já tinha começado), bilhete de identidade, o isqueiro que me ofereceste, roupas, livros, caneta, selos, cartas (por acaso nenhuma tua) e mais uma série de artigos de uso pessoal. Nunca mais o vi e quem sabe lá por onde ele já andará. Apesar de tudo, se os meus azares fossem tão grandes como este, oh felicidade, seria um indivíduo cheio de sorte. 

[No dia 23/10/1965, as condições de passagem do rio Braia não permitiam a passagem de viaturas pelo que se teve de fazer a transferência de carga entre elas, do lado de Mansoa para o de Bissorã e vice-versa. Destacado para fazer segurança ao acto desleixei os meus pertences. “Aquele saco azul” foi um chamariz para um fdp qualquer e o seu roubo causou-me alguns problemas, quer emotivos quer funcionais.]

Foto 3. “O local do crime”: estrada Mansoa-Bissorã, “ponte” de Braia, com o tabuleiro reconstruído em 1966. Ao fundo da foto, nota-se a torre de um fortim. 
 © Henrique Cabral: “Rumo a Fulacunda CC1420 Guiné 65/67” 

Foto 4. Fortim de Braia: construído para defesa da ponte

A situação é péssima. A morte é a nossa parceira do lado. É incrível como às vezes se consegue escapar (*). Tão inverosímil que chegamos a mirarmo-nos, a apalparmo-nos, pois não acreditamos na nossa incolumidade. A sensação que nos envolve ao estarmos num lugar, mudarmo-nos e passados segundos rebentar uma granada no sítio onde estávamos anteriormente, não se pode exprimir. Vermos as balas a furar o terreno junto a nós, fazendo saltar a terra para os olhos e não haver uma que nos acerte faz-nos parecer estar a sonhar. Mas não sonhamos porque de vez em quando lá caem alguns. 
Ficaríamos malucos se não sentíssemos uma acentuada indiferença pelo perigo e uma grande esperança em cada um de nós ser do número dos felizardos, dos que conseguem sair daqui inteirinhos. 
(… … …)

(…). Beijo-te. Com todo o meu amor por ti, minha querida, saudades do M. 

(*) [São referências à primeira operação feita, em Bissorã, pela CCaç.1419, três dias depois da sua chegada. Foi apoiada por um grupo de combate dos “velhinhos” (CArt. 643) de que fazia parte um membro ilustre desta Tabanca Grande, o Rogério Cardoso. Foi nesta acção que ele ficou gravemente ferido, atingido por uma granada de RPG que, milagrosamente, não explodiu mas causou-lhe uma grave fractura exposta do fémur esquerdo.]


Lisboa, 1-Nov. 1965

Foto 5. Fur. mil.º Manuel Joaquim: no centro de Mansoa, a caminho de Bissorã (23/10/65). 
© Manuel Joaquim 

Meu M. (…) adorei (…) esta fotografia que não me canso de admirar. És mesmo tu. É o meu M.! Oh querido, não calculas como fiquei contente. Agradeço-te a lembrança pelo prazer que me dá poder olhar-te e sentir, vamos lá, a tua presença mais real, poder fixar-te com a ternura, o Amor que te dedico. Muito e muito obrigada, queridito. (…). Pareces-me com muito bom aspecto pelo que pude avaliar pela foto. 

(…). Não sei se já recebeste a carta que te enviei 3ª feira mas é provável que isso não tenha acontecido porque já não te encontravas em Bissau. Desta vez recebi duas cartas com intervalo de dois dias apenas. Já começava a ficar atrapalhada. Também não é preciso muito para te atrapalhares, dirás tu. Em parte assim é. (…). 
Só a angustiante situação que nos obrigam a suportar me leva a este comportamento, a agir como se já não acreditasse em ti. Não foi isto que pensaste? Que eu não confio em ti, não acredito nas tuas promessas, em tudo o que me dizes? 
Isso já aconteceu. Agora estou muito acima, sou superior a tudo isso. A autoconfiança que já adquiri solucionou o meu problema, já não admito a hipótese, não penso sequer na possibilidade dum afastamento, no afrouxamento dos teus sentimentos e das nossas relações. Esta ideia parece-me mesmo descabida, como se fosse já impossível a separação entre nós. Mas o certo é que isso me dá uma certa comodidade, uma certa tranquilidade até. 
Só o perigo a que diariamente estás exposto me gera algumas preocupações. Só estarei completamente tranquila, calma, enfim a D. em cheio, quando o teu regresso definitivo for transformado em realidade, quando te vir pisar o solo de Lisboa, (…). 
(… … …) 
Olha querido, enviei-te por um sargento que aí chegou no último contingente a bordo do “Niassa”, uma pequena lembrança. Com certeza ainda a não recebeste. Eu disse-lhe que te encontravas em Bissau mas a verdade, pelo que me disseste nas últimas notícias, quando aí chegou já tu tinhas partido. Não sei se será possível descobrir onde te encontras e enviar para a tua nova morada ou então deverá devolvê-la. 
(… … …) 
Para ti vão as minhas carícias, os meus beijos e abraços, todo o meu Amor por ti. Adoro-te, meu querido. (…). 


Bissorã, 9-Nov. -65 
Recebi ontem a tua carta escrita aí em 1/Nov. Por aqui vês o tempo que a correspondência demora. Escrevi-te uma carta um pouco rígida mas, perante esta tua última carta, estou convencido de que ainda devia ter sido mais acutilante. Porquê? Precisamente porque achei uma diferença nítida entre as duas cartas. Recebes correspondência … escreves cartas razoáveis. Não recebes correspondência, atiras-te com frases disparatadas. Achas bem? Vamos lá a ver se daqui para o futuro nos entendemos. 
(… … …) 
Minha querida, tem paciência. A minha vida aqui não está muito segura mas não percamos a esperança. Um azar tanto acontece aqui como em qualquer outro lado. E eu hei-de regressar. Hei-de voltar. Quanto à encomenda que dizes ter-me mandado, ainda não apareceu. Deste o meu SPM ao tal sargento? Este como se chama e qual é o seu SPM? 
Desculpa escrever-te só este simples aerograma mas estou muito e muito cansado. Cheguei há pouco de uma “operaçãozinha” que me arrasou os nervos e o físico. Isto, com uma boa soneca, passa depressa. 
Apaixonadamente, os beijos e abraços do teu M. 
Saudades
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 6 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11199: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (8): A falta de notícias na retaguarda

quarta-feira, 6 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11199: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (8): A falta de notícias na retaguarda

1. Em mensagem do dia 2 de Março de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a oitava colaboração para a sua série "Carta de Amor e Guerra".

Meus queridos editor e co-editores Luís, Carlos e Eduardo:
Uns percalços vivenciais atrasaram o envio de mais um "item" desta série.
Este tema de hoje estava já alinhavado e, assim, foi o que mais depressa pude arranjar.
Vamos lá a ver se recupero aquele atraso que estou a sentir (não tenho mais nada pronto).
Receio que o tema de hoje seja "mixuruca" para muitos. Para mim não é mas, como sempre, respeito totalmente o v/ "criterioso critério".

Para o valioso "trio de ataque" deste blogue
Um grande abraço
Manuel Joaquim


CARTAS DE AMOR E GUERRA

8. A falta de notícias na retaguarda

Quando se fala da guerra colonial é normal referir o sofrimento dos combatentes mas não é comum falar-se, ao mesmo nível, da dor suportada pelos seus entes queridos (pais, avós, irmãos, namoradas, etc.).
Dizer que os combatentes, a maioria, ligavam o seu maior ou menor sofrimento ao nível de perigo que corriam, é excessivo? Acho que não. Até podiam sentir “folgas” no perigo, quer dizer, podiam passar um ou outro período mais ou menos longo em que a situação de periculosidade era como que esquecida. Acrescia ser também natural que as preocupações quanto aos seus entes queridos pudessem ser sublimadas pela ideia de que estes não corriam perigo algum a não ser de doença ou de acidente (em que, normalmente, não se pensa). Ideia esta que os podia levar a menosprezar o valor da sua comunicação. E isto aconteceu muitas vezes.

Na retaguarda a situação era diferente: quem ficou queria notícias frequentes do seu combatente querido, de modo a amenizar a sua insegurança quanto à verdade da situação. Vivia como se ele estivesse constantemente em perigo, isto é, nunca poderia saber se ele estava doente, ferido ou morto quando nele pensava ou quando para ele escrevia.

Ver, como eu vi, um monte de cartas dirigidas a quem tinha falecido umas horas antes, é coisa que não se esquece. Foi uma visão brutal que me ficou marcada para sempre. Hoje me penitencio pelo sofrimento que provoquei junto dos meus entes queridos com as minhas falhas em dar notícia. Tenho a certeza que teria mitigado algum do sofrimento que a minha ausência lhes provocava.
Termos alguém muito querido numa situação perigosa, sem notícias dele em tempo real e sem se poder fazer nada para o proteger, deve ser amargurante: sempre à espera, qual lotaria “a contrario”, ansiando que os números sorteados não nos contemplem com um “prémio” de desastre, qualquer que ele seja, desde a “terminação” à “taluda”.

Segue-se um exemplo, na parte que me diz respeito:

Vale de Figueira, 27. Set. 1965 
(… … …) 
Vou-me contentando com as tuas notícias (embora poucas) (…). Depois, se não dizes mais nada, (…), que hei-de eu fazer? Levar a mal e zangar-me? Não. Não seria razoável. Então que fazer? (…) analisar bem a situação em que te encontras para não me atormentar a imaginar, (…) problemas onde os não há. 
(… … …) 


Vale de Figueira, 5. Out. 1965 
(… … …) 
Temo a distância. E eu, (…) nem sempre sei (…) manter a calma, agir com condescendência e benevolência que sempre me foram peculiares para [com ] o teu procedimento, (…). Por vezes o sofrimento torna-nos duros, incomunicáveis e sobretudo incompreensíveis. Mas (…), continua a dar-me notícias quando e como te for possível. 
(… … …) 


Lisboa, 18 – Outubro – 1965 
( … … … ) 
As saudades são muitas, meu amor. É justamente quando preparo tudo para me dedicar à leitura ou para te escrever que o sossego e o isolamento do meu quarto avivam a lembrança de tudo o que me deixou. Essas recordações surgem mais nítidas, mais agudas, e fico liquidada. 
Ou sonho acordada contigo ou tenho tanta vontade (…) de correr para junto de ti que tudo aqui me parece odioso. Que ninguém me venha falar! Chego a ser cruel, violenta, mal-educada. Acabo sempre por chorar, por ficar abatida e enervada. Não sou tão forte como supunha e como tu imaginas. Sinto-me mesmo mais frágil, mais inútil do que nunca. Ora para que isso não aconteça é preciso que exija de mim mesma um esforço de vontade em grau mais ou menos heróico. (…). 
Mas eu vejo-te tão longe! Tu que és parte da minha vida. Tu que és complemento indispensável à continuidade da minha existência válida (…). 
(… … …). Meu Amor querido, (…), lutei para não deixar, para não te expor o que se estava passando comigo. Mas agora que estou sem notícias tuas é-me impossível resistir por mais tempo. 
(… … …)


Lisboa, 24-Outubro-1965 
Não sei porquê mas continuo sem notícias. Afinal, vives ou não vives meu M.? Há quinze dias que espero umas palavras tuas mas em vão. Já deixo de esperar para não sofrer cada dia mais desilusões. Não podes, ou não queres fazê-lo, é o que deduzo (…). 
(… … …) 
E já lá vão duas semanas, meu querido. (…) não acredito que não escrevas por de algum modo estares ressentido comigo. (…). Se algum problema surgisse, expor-mo-ias para que o discutíssemos e chegássemos a um possível acordo. Disso tenho a certeza. Mas também é certo que não deixo de estar preocupada. Mesmo com as tuas cartas semanais os dias sem ti parecem-me mais longos, sombrios, sem sentido. Agora (…), com falta de notícias, navego em mar largo sem rumo certo, vivo na escuridão.


Assim não. Não pode ser, meu querido. Não suporto esta situação desesperada em que vivo actualmente. (…) sem nada saber de ti, se isto assim continuar eu afirmo-te convictamente que não aguento. (…). 
Gostar – o simples facto de gostar de alguém – desperta poderes estranhos e emocionantes. Quanto mais gosto de ti, com mais confiança posso agir mas também mais te desejo ou, pelo menos, mais desejo algo que me fale de ti. 
Diz-me o que queres, querido! Farei tudo para te agradar. Nenhuma realização me parece impossível, não há derrotas que não possam ser superadas quando desejo, de corpo e alma, ajudar-te e buscar nessa ajuda força para mim, acreditar que a vida vale a pena ser vivida e essa crença ajudará a transformar isso numa realidade. Mas num momento tudo pode ser desfeito e todas as nossas esperanças, quais nuvens de fumo, dispersas pelo vento. 
(… … …) 
P.S. Suplico-te que me expliques o que se está passando. Quero saber a verdade. Sou a tua D.


Vale de Figueira, 8 - Nov. 1965 
(… … …) 
(…) a tua D. não vive o dia a dia alheia, insensível à dor de que são feitos os teus dias (…). É guerra. É sacrifício, incerteza em cada minuto que se segue. É duro como duras são as palavras que me dirigiste. E a guerra torna os homens duros, ásperos, insensíveis. Não era minha intenção criticar-te e parece-me que o não fiz. Aliás não havia razão que o justificasse. Compreendo muito bem que é impossível uma brevidade regular na expedição do correio. Nem tão pouco escreves quando queres mas apenas quando podes. Seria egoísta se não compreendesse isto mas tenho a certeza de que não o sou. (…). E muito menos insinuei afastamento ou esquecimento do teu lado. Só o teu mau humor poderia levar-te a deduzir isso. Não me lembro bem do que te disse mas mostrei-me preocupada apenas pelo facto de pensar que qualquer deficiência física poderia ter sido o motivo dessa falta de notícias. 
(… … …) 


Vale de Figueira, 9-Fevereiro. 1966 
Meu M. querido acho um pouco estranho não ter recebido notícias tuas (…). Esperava-as com ansiedade, (…). 
(… … …) 
Desculpa as minhas palavras de hoje, meu M. Estou descontrolada. Acredito que o atraso do correio não dependa de ti. (…). 


Lisboa, 1-Março-1966 
(… … …) 
(…), peço a tua benevolência para o facto de nem sempre saber controlar-me quando, por qualquer motivo, há um período mais longo sem informações tuas. 
(… … …) 


Vale de Figueira, 9-Março-66 
(… … …) 
Na nossa actual situação o que me interessa sobretudo é que semanalmente me dês testemunho de que ainda há vida nesse corpo tão massacrado, de que vais vivendo na esperança de ver chegar a hora do regresso. (…). (…) um “estou bem”, género telegrama, é uma felicidade para mim. É um lenitivo tão forte e um incentivo (…) para continuar a esperar. 
(… … …) 


Cacém, 4-Novembro-1966 
(… … …) 
(…) a preocupação e a angústia de que estou tomada ao riscar no calendário mais um dia, dias consecutivos, semanas, sem receber a retribuição dos meus contactos contigo. (…). É um período considerável sem receber notícias e não pode deixar de me afectar. 
(… … …) 


Cacém, 25.12.1966 
(…), com medo de uma decepção, rodo a chave na caixa do correio. Expectativa, enervação … mas zás! (…). Oh alegria, oh que felicidade, meu Amor. Que maravilhoso prémio de Natal quando os [dias] precedentes eram a escuridão, o silêncio. 
E o conteúdo será de molde a corroborar a alegria anteriormente manifestada, (…) ao encarar o envelope surpresa? 
Nervosamente (…) rasgo o envelope. Para a frente é que é o caminho (…). Os meus olhos buscam avidamente o final da carta. Talvez porque a maneira como estaria encerrada me daria já uma ideia do seu conteúdo. “Gracias”, meu M. querido. Estive feliz (…) no dia de Natal, na medida em que a felicidade é permitida e se pode viver longe dos que se amam. 
(… … …) 


Cacém, 16-Janeiro-1967
(… … …)
Acredito que nestas folhas de papel que semanalmente cortam a atmosfera transportadas num avião, voe cada um de nós para junto do seu Amor. (…). Eu iria agora mesmo, inteirinha, se pudesse ser transportada com um rótulo [selo?] de 2$50 na fronte.
Ah, meu Amor querido, cada vez com mais ardor te quero meu (…)

Técnica mista, Mario Coopé (pintor guineense). 
Imagem retirada de www.didinho.org, com a devida vénia.

Vê que até em sonhos sinto os teus contactos (…). Reflexo da necessidade insatisfeita que vivo de ti, motivada por esta maldita separação tão prolongada.
Se ainda sofresse de pudicícia exagerada diria que estava a ser tentada pelo Diabo. (…). Eu seria agora, aqui mesmo não tinha importância … (estou na cama), o mais completo diabrete.
Efusivamente, num frenesim de amor e de paixão que tu, agora, (…) me proporcionarias e eu correspondo, beijo-te (…).
(… … …)
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 27 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11163: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (7): E a morte apareceu

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11163: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (7): E a morte apareceu

1. Em mensagem do dia 22 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sétima colaboração para a sua série "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

7. E a morte apareceu

A minha carta de 5/10/1965, abaixo transcrita, deu origem a um outro texto meu já publicado neste blogue a 7 de janeiro de 2012: P9326. ”Manhã maculada”.

Todos os capítulos publicados até agora foram compostos com excertos de várias cartas. Como parceiros da correspondência, eu e minha esposa, temo-nos abstido de publicar coisas de carácter muito íntimo. E há ainda aquelas partes que, a nosso ver, não têm interesse e/ou valor suficiente para aqui serem publicadas. O que não quer dizer que não sirvam de apoio e consulta para um qualquer trabalho mais alargado que, no futuro, possa vir a ser feito por alguém interessado neste tema e nos seus conteúdos.

Desta vez há só uma carta, a qual vai quase na íntegra para poder dar uma ideia sobre a minha posição político-ideológica na altura em que foi escrita, posição com fortes reflexos no meu modo de ver e de sentir a guerra.

Está claro que seria esquisito, para não dizer muito estranho, que as nossas opiniões de hoje coincidissem totalmente com as de há quase 50 anos atrás sobre seja lá o que for. Não coincidem muitas vezes, como é natural. É por isso que vemos estes namorados como jovens que conhecemos muito bem nos anos sessenta do século passado, como alguém que já fomos e que já não somos. Somos como que seus espectadores tal como outros possíveis leitores destas cartas o poderão ser. Com a diferença de já termos “visto este filme e conhecermos bem o seu enredo e respetivas personagens.”.

É com muito prazer, e algumas vezes admiração, que nos recordamos de sermos aqueles jovens cheios de idealismo humanista a lutar contra o que consideravam errado na política e na sociedade da época, decididos a participar na construção de um mundo melhor onde a opressão e a exploração do homem pelo homem não pudessem ter lugar. Utopias? Sim, mas “pelo sonho é que vamos” e pelas utopias também temos de lutar mesmo sabendo que nunca alcançaremos os nossos objectivos. Mas não faz mal.

Somos os “mesmos, mas outros” e cá vamos fazendo caminho, já um pouco cansados das jornadas, com algumas cicatrizes e uma ou outra ferida aberta no corpo e no espírito. Não se pode é ficar parado, o caminho faz-se caminhando, “se hace camino al andar” disse o grande poeta sevilhano Antonio Machado:

“ (…) /caminante, no hay camino, / se hace camino al andar / Al andar se hace camino, / y al volver la vista atrás / se ve la senda que nunca / se ha de volver a pisar / (…)”

(Antonio Machado, “Campos de Castilla” : excerto do poema “Caminante no hay camino” ) … … …


Caminante no hay Camino por Juan Manuel Serrat

Bissau, 5 de Outubro de 1965
Minha querida, precisamente hoje recebi a tua carta de 27/Setembro. 
(…). Queria-te convencer de que preciso imenso das tuas cartas. (…) uma carta é um bálsamo refrescante e alentador. As horas mais felizes que se passam aqui são aquelas em que se tem a sorte de receber umas cartitas. Tenho a certeza que não imaginas o que é a hora da distribuição da correspondência. (…).


E eu cá continuo em Bissau. Sem dúvida que é muito melhor estar aqui que no mato. Alguns (poucos) advogam o contrário devido ao modo de vida militar que aqui se tem de seguir, (…). Somos sobrecarregados de trabalho com rondas contínuas, guardas e serviços análogos. Este trabalho, actualmente, de perigo não tem nada pois a zona está completamente pacificada, exteriormente é claro (…) [mas sinto que] prolifera a revolta, aquela revolta que se sente nos olhos e nas faces desta pobre gente.

A simpatia pelo movimento revolucionário é quase geral mas é preciso, também para este movimento, conservar a zona calma pois Bissau não deixa de ser um dos principais centros de actividade conspirativa que abarca principalmente a aliciação do povo, a captação de informações e o próprio reabastecimento dos revoltosos. Visto isto, a vigilância militar é contínua, mesmo arrasante, pelo menos para evitar o pior já que limpar esta zona é impossível. (…).

(…). Às vezes vamos fazer uma incursão até às zonas perigosas (…). O sibilar das balas inimigas (…) conduz-nos a uma vivência tão grande como grande é o perigo que corremos. (…). São momentos difíceis de definir.
O desejo de sobrevivência sente-se tão fortemente que eu – EU, que tristeza! – chego a sentir prazer em [poder] matar. Para mim são os momentos mais tristes que tenho passado. Mas o que é certo, infelizmente, é que estou metido numa “alhada” e embora chegue a pensar que devia levar um tiro, [que] merecia levar um tiro (as ocasiões hão-de ser muitas com certeza), tenho de me safar. 
A vida é tão preciosa! Aqui sente-se isto profundamente. E tu, meu amor, exiges a minha presença junto de ti. E a minha família também. É uma situação incrível esta, a minha. “Preso por ter cão e preso por não ter”.

Ah, aquele grito de mulher, aquele grito de dor, de impotência, de desespero e de aviso para os seus familiares e camaradas de luta! 

Ah, aquele grito que nunca mais me sairá dos ouvidos, que ecoou na selva ao momento da aurora, seguido de rajadas de espingarda automática! Ela sentiu que se acabava, mostrou-me como é grande o desejo de viver e antes de cair varada pelas balas gritou bem alto o aviso aos outros que, como ela, estavam sob o nosso cerco. (…). Perto dela ficou uma jovem de quinze a dezassete anos, viçosa, seminua, seios túrgidos, vigorosos, pintalgados de sangue – talvez filha. Manhã maculada! Manhã terrivelmente dolorosa. Infelizmente, manhã inesquecível. 

“Perto dela ficou uma jovem …” que hoje recordo com esta bela imagem de paz. 

Na foto: “Uma rapariga beafada entrega-se aos cuidados da cabeleireira nativa para realçar, ainda mais, a sua beleza.” 
Foto extraída, com a devida vénia, do livro “GUINÉUS” de Alexandre Barbosa, 3ª edição, 1968. Edição, foto e legenda do autor.

Quão estúpida e vergonhosa, horrível e criminosa é a guerra, minha querida N. O meu batalhão está aqui há dois meses. Tem dois mortos, três feridos muito graves e vários soldados com ferimentos leves. Um dos mortos era um furriel meu amigo, o Jaime Feijão, das Caldas da Rainha. A série iniciou-se. Quem virá a seguir? 

Não é bem a ideia da morte que me aflige mas o poder vir a morrer aqui por uma causa estúpida em defesa de princípios antinaturais e anti-sociais, em defesa daquilo que grandemente abomino. Só quem aqui anda é que pode ter uma ideia mais segura a respeito desta catástrofe nacional.

Com que direito se utilizam da minha vida para a guarda dos seus monopólios, para a sustentação das suas megalomanias? Acaso já fui alguma vez favorecido? E o povo é favorecido? E ainda por cima me vêm cá gritar, (…), que estamos em defesa de princípios sagrados - a defesa duma pátria católica e da própria religião! 
Ah, então isto é que é sagrado? Isto que se faz aqui desta maneira é que é sagrado? Se isto é coisa sacra … então quero que vão todos à merda com todo o seu sacratismo! Pulhas!

Oh grande Maximo Gorki, como tinhas razão!: Sagrado é o descontentamento que o homem sente por si próprio e a sua aspiração de se tornar melhor; sagrado é o seu ódio pelas velharias de uma existência de que ele próprio é responsável; sagrado é o seu desejo de aniquilar na Terra a inveja, a ambição desmedida, os crimes, as doenças, as guerras e toda a inimizade entre os homens; sagrado é o seu trabalho pela conquista da liberdade e da progressão social.

Não me venham agora cá com loas ensaiadas e pré-dirigidas, seus abutres infectos! 

Meu amor, penso que ficarás mais ou menos com uma ideia do que é o ambiente em que agora vivo e como, cá dentro, o teu M. reage. Exteriormente, só tenho de obedecer. Envergonho-me de ser carneiro mas, o que é certo, é que o sou. Aparentemente, faço parte do rebanho. Tive azar com os pastores. E o que é desesperante é que não há meio de nos unirmos e destruirmo-los à cornada. Peço que me desculpes pela crueza com que expus certas ideias. Talvez, falando assim, te fizesse sofrer um bocadinho. Mas, às vezes, a verdade dói. 

(…) isto no aspecto de sobrevivência vai bem. Muito bem até. Não há motivos para preocupações. Corre-se mais perigo a atravessar uma avenida de Lisboa do que estar aqui na zona onde actualmente habito. Acredita-me, minha querida. Não te preocupes, sim? E … ESCREVE!

Até à próxima! 
Com todo o meu amor, sou o teu M. Beijo-te.
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 20 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11122: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (6): Amor sofrido

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11122: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (6): Amor sofrido

1. Em mensagem do dia 6 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sexta colaboração para a sua extraordinária série "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

Eu e minha esposa temos sentido alguma emoção ao relermos a correspondência que está na base desta série “Cartas de amor e guerra” e, de vez em quando, damo-nos com uma lágrima ao canto do olho ou com um sorriso, por vezes trocista, perante o seu conteúdo: desejos, carícias, intimidades, zangas, ambições, opiniões de carácter político-social e religioso, vivências onde avulta o sofrimento provocado pela distância e pela guerra.

Recordamos dois jovens revoltados que fomos nós, jovens voluntariosos, solidários, confiantes e bonitos (!). Jovens socialmente intervenientes para quem olhamos com ternura e nostalgia e com aquela satisfação que nos apraz registar, debaixo do peso dos nossos 70 anos: éramos gente porreira!

Segue o sexto capítulo da série:


6. Amor sofrido

Bissau, 24-Agosto-65
 (… … …). Vai-te convencendo, meu amor, de que és capaz de suportar a nossa separação. Tira o melhor da vida que levas e peço-te, minha querida, que te lembres de que a vida (…) não é um ponto definido mas sim uma progressão (…). Peço-te encarecidamente que não estagnes. (…). Procura cultivar-te. (…). Só assim poderás encontrar em ti mais formas de beleza (…) em ti e no meio social e natural em que estamos envolvidos. (…). E há tanta coisa que nos pode levar ao encontro da beleza: (…). 
(… … …) 
 Ah, como gostaria de te ter aqui (…)! Apertar-te muito contra mim, beijar-te, beijar-te, dando livre curso ao nosso entusiasmo, à nossa sede de viver, de amar! 
(… … …).

Uma imagem da carta de Bissau em 24/8/1965: por vezes, as lágrimas deixam marcas.

Lisboa, 30/VIII /965 
 Querido: Avalio por mim o aborrecimento que te causou não teres à tua chegada uma carta para amenizar (…) abstrair-te um pouco dos problemas militares em que estás envolvido. (…). A distância é longa, as circunstâncias que nos obrigam a ela são as mais infames, (…). É preciso compreensão, tolerância de parte a parte para que essas dificuldades que surgem sejam superadas. 
Combinado, meu M.? 
 (… … …)
(…) [Aqui vai] toda a minha saudade, a angústia de viver assim longe de ti, tristeza, solidão, (…). 
A vida é bela? Duvido. Quero encontrar essa beleza. Ajuda-me querido. Eleva meu espírito (…), até à altura do teu. Eu quero acompanhar-te. Essa beleza que tu encontras na vida não se abre a meus olhos, é-me vedado descobri-la? Não. Creio que não, se o meu espírito desanuviar e eu deixar de ser pessimista. Para isso peço a tua ajuda. (…). 
Preocupo-me mais, muitíssimo mais, com as misérias humanas. (…). Não é de admirar que a juventude de hoje ao encarar estes problemas os sinta profundamente, (…) e nasce então o espírito de rebeldia, de revolta. 
(…) [O modo como] os governantes apregoam a defesa do Ultramar, a vitória das nossas tropas, não pode, nunca será compreendido pelos “homens de bem”, (…), enquanto tentarem defender causas injustas e de antemão já perdidas. 
(… … …) 
Sou uma jovem de 22 anos. Começo a viver (…) o flagelo a que nos submetem os (…) que nos regem. É um pouco tardiamente que o reconheço, confesso-o, mas a tempo suficiente para trabalhar, para fazer algo pelos que vierem, pelos que sofrem mais acentuadamente as consequências de um regime que não se cansa de apregoar ser o melhor, (…), que luta apenas pelo que nos pertence, o protector das classes menos abastadas, isto em teoria porque na prática é viva contradição. 
(… … …) 
Fazes 24 anos na próxima quarta-feira. Não me esqueço, meu querido. E, embora muito dificilmente, vou enviar-te uma recordação. Corro o risco de ela não te chegar às mãos mas de qualquer modo envio. Meu amor querido, eu estou contigo (…). Que poderemos nós fazer, em que poderemos melhorar a situação em que nos encontramos e em que tomamos parte obrigatoriamente?
(… … …).

Foto 1: D./ “N.” em 1965 
 © Manuel Joaquim

Bissau, Setembro-7/65 
(… … …) 
Um beijo (…) para achares um pouco de beleza neste gesto. Tu, que andas atarefada, um bocado pessimista à procura dessa beleza, repara neste meu gesto e vive este momento que é belo. 
Cá longe, não me esqueço de ti. Não de ti, figura, mas de ti, totalidade, com todas as tuas forças (…) em progressão. Sinto-te latente, cheia de vontade e esperança no futuro. (…). 
Mais um beijo, muitos beijos para ti, minha N.

Vale de Figueira, 13. Set. 1965 
Tenho de te pedir perdão se com a minha ausência de alguns dias contribuí para aumentar a tua solidão, se te fiz sofrer. (…). 
(… … …) 
A razão do meu silêncio, minha jóia querida? Vou expor-ta com a maior sinceridade. (…). Nestes últimos dias o trabalho na C.P. tem-se aglomerado. Os dias são extenuantes, com trabalho até às 19 horas todos os dias. (…). 
O fim-de-semana passado (…), aproveitei-o a passá-lo com a tua Mãe. (…) estive no teu Casal Novo, (…) um belo recanto, sem dúvida. (…). Ali espero que passemos juntos alguns dos nossos dias felizes. Regressei de lá no comboio da noite chegando a S.ta Apolónia de manhã, bastante fatigada. Não consegui escrever-te nesse dia porque o sono vencia-me. E, como já não apanhava o avião na 4ª feira, ficaste sem notícias oito dias. 
Este fim-de-semana (…). Saí com três colegas no rápido da manhã rumo ao Porto e só regressámos a S.ta Apolónia no comboio-correio da noite. Estou a escrever-te mas, de instante a instante, cai-me a caneta e fico-me a dormitar. 
(… … …) 
Enviei-te como recordação para o dia dos teus anos, (…), um isqueiro em embrulho registado como amostra sem valor já que te não era possível recebê-lo de outro modo. Diz-me se já te chegou às mãos. (…). Se não foi aberto pelo caminho, já tiveste tempo de o receber pois foi pelo serviço civil. 
(… … …)

Bissau, 14-Set.-1965 
Minha querida, (…). Pego no papel e não sei sobre que assunto te hei-de falar. Queria escrever-te muito mas uma certa preguiça intelectual parece estar a inibir-me de o fazer. Tu não te vais aborrecer, pois não meu amor? 
(… … …) 
E hoje é um daqueles dias em que, se estivesse contigo, estaria calado e limitar-me-ia a acariciar-te, a olhar-te, a viver a doce acalmia que muitas vezes respiro junto de ti. Num dia como hoje amar-te-ia silenciosamente (…). Seria simplesmente corpo vibrando ao contacto do teu corpo, (…). 
E aqui estou eu assim. Recebe-me. Possui-me … (…). 
(…). Cá continuo em Bissau. Saio mais ou menos uma vez por semana. Não posso dizer mal da “festa”! Fiquei deveras confundido com a tua lembrança. Não te agradeço. Beijo-te. Beijo-te muito, minha D. Vai aqui uma fotografia. Mas isto é só pose. (…) não há perigo. 
(… … …).

Foto 2. – “É só pose”, e que fraca pose! 
© Manuel Joaquim

Vale de Figueira, 18. Set. 1965 
(…). Num dia maravilhoso como o que hoje se apresenta apetece-me chamar-te até aqui, (…) dares-me a tua mão para seguirmos com rumo incerto através dos campos, respirarmos o ar puro, a beleza da natureza. O sol brilha intensamente, o céu azul dum azul límpido (...). 
Não posso fisicamente trazer-te para junto de mim nem, do mesmo modo, seguir para aí mas em espírito estou todinha junto do meu querido. (…). Estás contente? Então senta-te aqui junto de mim e vamos conversar. 
(… … …) 
A ideia que alimento de que já nada nos pode separar e que me ajuda a suportar esta situação, a encará-la até com optimismo e um pouco de bom humor, (…), essa ideia não pode ser fictícia! 
Mas deixemo-nos disto (…) agora não interessa. (…) interessa acima de tudo é não preguiçarmos, (…).
Inconscientemente, (…), vamos adiando, esperando para melhor oportunidade e melhor disposição para escrevermos uma carta. (…). E depois o celebérrimo “já não vale a pena” porque já não segue hoje ou o “não me apetece” vão preterindo a nossa vontade, aquilo que até há pouco tínhamos tão presente (…) fica esquecido no amontoado das nossas preocupações, (…). E nessa semana não há mesmo correio. Não quero (…) acusar-te, tanto mais que só esta semana é que a tua correspondência falhou. É de supor que seja atraso dos correios também. 
(…) estou preocupada com o que aconteceu. (…) não é um esquecimento (…) pois não meu M.? 
Recordo o dia 31 de Julho [data da partida para a Guiné] com saudade, acredita. Dia simultaneamente belo e triste. Maravilhosamente belo, horrivelmente triste. Li na firmeza do teu olhar, no ardor da tua despedida, toda a magnitude e pureza dos teus sentimentos, dum Amor que tantas vezes pus em dúvida, mesmo durante os últimos encontros. 
(… … …). 
Recebe-me. Acolhe-me nos teus braços (…). 
Nas situações mais críticas, (…), apoiados um no outro saberemos sempre estar unidos, física e ideologicamente. Haverá uma vontade, uma ideia a seguir. 
(… … …). Peço-te que não deixes de escrever. 
Meu amor querido, abraço-te e beijo-te amorosamente. Tua N.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 6 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11066: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (5): Às portas da guerra

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11066: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (5): Às portas da guerra

1. Em mensagem do dia 27 de Janeiro de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a quinta "Carta de Amor e Guerra" para juntar à sua série.


CARTAS DE AMOR E GUERRA

5. Às portas da guerra 

Bissau, [24] Agosto-65


(…), patinhando na lama e nas águas dos arrozais, encharcado, suado, com os raios solares faiscando e infiltrando-se no corpo com picadelas ferozes, patrulhando áreas à volta de Bissau, dizia eu, motivos tiveste para que eu ao regressar à calma do meu quarto do quartel não tivesse à mão palavras tuas a obrigarem-me a um colóquio reconfortante, a provocarem-me momentos diferentes que quebrassem a monotonia das horas passadas a contar os mosquitos pespegados na cal branca do tecto.
 (… … …) 
Tu és sem dúvida o meu traço de união com aquela vida que eu requeiro. Fazes parte dela, tens parte importante nela. Agora mais que nunca, não nos podemos separar. 
 (…). A ideia de um possível azar que me possa acontecer (…) poder-me-á conduzir (…), a um certo desprendimento motivado por um obcecante (…) “não seria melhor a separação?” (…) “seremos capazes de nos aguentar assim?”. 
(…) já terás pensado o mesmo. (…) minha querida, só nos resta a esperança. 
(…) para nem sequer se pensar em maus acontecimentos, terá de haver vida (…) que nos leve a esquecer a separação, que nos conduza a um tal estado de confiança que o derrotismo nada poderá contra esta fé radical em nós. 
(… … …) 

Bissau: “Do alto do depósito de água de Santa Luzia avista-se ao fundo o casario de Bissau e do Ilhéu do Rei.”
Foto e legenda de Henrique Cabral. © blog: Rumo a Fulacunda – Guiné 65/67.

 (…). Da maneira que isto está, se continuasse sempre em Bissau não correria perigo nenhum. O que acontece é que de vez em quando saio (…) a fazer uns patrulhamentos na região. Ainda não senti o perigo. (…). Como vês, até agora (…) tenho tido sorte. (…) já te disse noutra carta: é muito mais fácil, há de longe muito mais probabilidades de escapar do que de morrer. (…) a ideia de morte (…) não me preocupa. Preocupa-me muito mais a influência que esta minha estadia aqui poderá ter na minha vida futura. Como reagirei, (…) como olharei (…) os factos e os momentos passados nesta malfadada terra, (…) onde somos manipulados por cordelinhos sem tugir nem mugir, quais marionetas (…), para gozo (…) dos espertalhões da primeira fila, (…). 
Tanto de um lado como do outro isto acontece. Mas acredito que o sofrimento é maior do nosso lado. 
Serei eu capaz de me aguentar? Se tiver coragem, ah quanto ela é precisa, deverei conseguir. (…) é de meu interesse saber onde ponho os pés, ver bem com que linhas me coso, viver como observador, o mais possível como observador, continuamente em estado de alerta e de crítica, (…). 
A guerra é uma experiência valiosa, dolorosa experiência. (…). Nada a justifica. Mas às vezes a estupidez humana conduz os acontecimentos a tal estado que ela se torna inevitável. (…). Caídos no meio dela, os homens revolvem-se, põem a claro os seus sentimentos, os seus defeitos e virtudes, (…).
Em que redundará esta minha experiência? Espero, minha querida, resultados positivos.

Bissau, símbolo do poder: Praça do Império, monumento “Ao Esforço da Raça”. 
Vd. (*) Bilhete postal, ed. Foto Serra – Bissau. Coleção de Agostinho Gaspar. Imagem retirada do post 5928, blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


Bissau, Agosto-31/65

(…) até ver, tudo me tem corrido da melhor maneira. Com certeza que seria utopia da minha parte considerar que isto me poderá correr sempre assim. (…). O perigo espreita. (…). 
Isto aqui dá muito que pensar e, às vezes, até tem uma certa piada (…) humor negro. (…) certas coisas têm acontecido (…) me abstenho de as criticar aqui (…) por um certo nº de motivos – facilmente (…) depreenderás. (…). [vd. **]


Bissau, Setembro-7/65

 (…). Um mês já se passou. Foi fácil de passar mas (…) a nula vontade de cá estar torna os momentos difíceis. Procuro abstrair-me deste problema e tirar o melhor partido da situação. 
A maior parte dos dias passo-os[a], calmamente, no quartel aqui em Bissau. Lá vem um ou outro dia em que não sei se chego ao fim vivo, partido ou morto. Por ironia, estes são os que passam mais depressa. Vou para as operações suficientemente calmo. Talvez por verificar que morrer é a coisa mais simples, natural e fácil que existe. Vou para o jogo. E vou tentar jogar o melhor possível, esperando também um pouco de sorte. Confio nesta sorte e no meu sentido de jogo. Posso ter um azar? Posso. Mas isto pouco conta. Ninguém vai jogar sabendo antecipadamente que perde o jogo. 
Meu amor, vão ser dois anos difíceis de passar. Mas aguentá-los-emos firmemente. 
(… … …).

******

(*) - “Ao esforço da raça “

 Esta expressão diz tudo, até na incongruência do nome dado ao monumento. Naquele tempo já não se usavam oficialmente palavras como “império, colónia” e suas derivadas; tinham sido varridas do vocabulário oficial, por razões óbvias. O regime político vigente usava a expressão “um país multirracial” para definir Portugal e uma outra, mais comum, era “país uno e indivisível que vai do Minho a Timor”.

Sendo assim, nada melhor(!) do que ter um grande monumento “ao esforço da raça” implantado em frente da sede do poder político-militar da Guiné, no centro da principal praça de Bissau, a “Praça do Império”! Quando vi tal coisa fiquei a rir-me para dentro. Patético!

Seria possível que os ideólogos do regime não percebessem que uma coisa daquelas prejudicava a aceitação pelos guineenses da doutrina política que tanto se esforçavam por difundir? Pelos vistos era possível.

Se havia uma “raça esforçada” tinha de existir uma outra, preguiçosa e de pouco valor! E que esforço, tão grande e tão digno de ser elogiado, a “raça esforçada” tinha feito naquelas paragens africanas? O conceito “império colonial” não tinha já sido expurgado da Constituição Portuguesa? É fácil encontrar as respostas.

Sim, a grande maioria dos guineenses não saberia ler tal mensagem. Muito menos compreenderia o seu significado real mas compreendia bem outros sinais deste género, como depressa vim a verificar, sinais fáceis de encontrar em algumas atitudes e relações sociais, as quais em vez de ajudarem o governo a melhorar a situação política, social e militar, não, antes a pioravam.

O mais certo, também, era a palavra “império” pouco ou nada dizer a essa maioria da população. Mas havia uma minoria que tinha capacidade para retirar de tudo isto razões políticas de modo a reforçar e facilitar a sua luta contra a presença portuguesa naquela terra. Coisa que não deveria interessar ao poder político-militar português, penso eu!


(**) - Logo na minha primeira saída do quartel fui procurar um antigo companheiro com quem tinha convivido durante dois anos, o tempo que esteve em Portugal a completar o curso liceal já que na Guiné isso não era possível na altura.

Esperava vir a ter um encontro efusivo. Encontrei-o num café a conversar com três ou quatro amigos locais, brancos. Não quero dizer que fui mal recebido, quero dizer que esperava ser muito mais bem recebido.

Depressa senti a conversa a esgotar-se e o seu desinteresse em se referir à (minha) situação militar. E despedimo-nos com a promessa de ser ele a me contactar no quartel para convivermos um pouco.

Daí a três meses saí de Bissau. Nunca me apareceu e eu também nunca lhe apareci. Tornei a vê-lo aquando do meu regresso, 21 meses depois. Fui despedir-me ao seu estabelecimento. Andava muito atarefado a atender militares que, como eu, embarcariam no “Uíge” dali a poucos dias. Não quero fazer jogo de intenções mas o interesse que ele mostrou pelo que passei naquela terra foi nulo.

+++

Um dia, pelo meio da manhã, andávamos três furriéis a identificar as “capelinhas” de Bissau e entrámos numa delas. Ao fundo da sala estavam sentados três homens com ar “africanista”, as únicas pessoas ali além de nós. Sentámo-nos perto da saída e começámos a tomar qualquer coisa. Da sua mesa vinham sons indefinidos da conversa que a certa altura subiu de tom e se tornou mais animada, por vezes galhofeira. Ficou a ser possível ouvir alguma coisa do que diziam.

Percebemos que a conversa “metia” militares. Olalá, começámos disfarçadamente a afinar os ouvidos! “Periquitos” que éramos, ficámos curiosos. Que ouvimos?

Ouvimos uma crítica pública a atitudes de alguns militares combatentes. Julgavam eles que nós não ouvíamos? Acho que não se preocupavam com isso. No mínimo, manifestavam indiferença pela nossa presença. Éramos três furriéis fardados, eles sabiam que os podíamos ouvir e não se coibiram de continuar naquela galhofa. Achei aquilo uma provocação.

Um, que parecia o animador, gozava ironicamente com os medos dos combatentes, com as peripécias por que passavam durante as operações, com as suas dificuldades de adaptação, com as surpresas tidas ao depararem com certos hábitos culturais da população (dos “pretos”, ouvia-se), tudo acompanhado por boas risotas. Chegou-se ao cúmulo de se referirem pelo nome a um quadro militar, comparando a triste figura que diziam ele ter feito durante uma emboscada com a de um outro com as mesmas funções numa situação idêntica e que muito elogiavam.

Acho que saímos dali todos enjoados, eu saí.

Que motivos levavam alguma população branca das chamadas províncias ultramarinas a olhar assim para os militares, como seus meros serviçais a quem exigiam o máximo de sacrifícios, não os respeitando e gozando com as limitações de alguns?

Anos mais tarde vim a saber de comportamentos análogos noutros teatros de operações, mais graves do que este de Bissau, nomeadamente em Moçambique, onde se chegou mesmo ao conflito direto entre população branca e militares expedicionários.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 30 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11026: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (4): Um mal-entendido (?)