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sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15004: O segredo de... (24): Segredo desvendado (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 8 de Agosto de 2015:


Segredo desvendado*

Num certo dia, quando estávamos quase em fim de comissão, depois do jantar o capitão chamou-me, e disse-me:
- Mande preparar o pelotão para, pelas sete horas de amanhã, escoltar uma coluna de viaturas, para Farim.
- Qual a finalidade? - Perguntei-lhe.
- Trazer um envelope, com oitenta contos, para pagamento ao pessoal nativo.

De imediato tomei as medidas necessárias para que no amanhecer do dia seguinte tudo estivesse pronto para ir a Farim.

Acontecia que as lanchas da Marinha, que patrulhavam o rio Cacheu, acostavam muitas vezes no cais de Binta. Foi o que aconteceu naquela noite. Como tinha um bom relacionamento com os marinheiros, fui jogar cartas para uma das lanchas.

Em conversa normal, disse ao patrão da lancha que na manhã seguinte ia a Farim.
- Que vão lá fazer? - Perguntou-me.
- Buscar o dinheiro para pagar ao pessoal nativo. - Respondi-lhe.
- Se é só isso, - continuou ele ., nós damos-te boleia.

Aproveitei a disponibilidade dos marinheiros e combinei aparecer no cais, às sete horas do dia seguinte. Entretanto, avisei os furriéis no sentido de manter o pelotão pronto para sair, mas que isso talvez não fosse necessário.

Quando regressei, para dormir, o capitão não estava. Esfreguei as mãos de contente, pois não se podia queixar, ou acusar-me de não lhe ter dito.

Às sete da manhã, quando fui para o cais, ele dormia. Esfreguei de novo as mãos. Entrei na lancha, pelas nove horas levantei o dinheiro na secretaria do batalhão, e regressei a Binta, todo satisfeito, ao leme da lancha, feito turista.

Desembarquei, agradeci a gentileza aos marinheiros, e entreguei o dinheiro ao sargento da companhia. O capitão continuava a dormir.

Entretanto, o sargento mandou chamar os caçadores nativos, para proceder ao respectivo pagamento. O espaço onde funcionava a secretaria ficava ao lado do quarto do capitão. Quando chegaram para receber, os nativos fizeram barulho, e o capitão acordou, mas mal disposto.

Ainda em trajes menores, abriu a porta do gabinete e foi perguntar ao sargento:
- Mas que barulho é este? O que se passa aqui?
- Não se passa nada. Estou a pagar a este pessoal.

Sempre com voz exaltada continuou:
- O Gonçalves já chegou?
- Já, meu capitão. - Respondeu-lhe. Já me entregou o dinheiro.
- É um irresponsável. Não picou a estrada.

E mandou-me chamar.
Quando estava, já, na presença dele, vociferou um palavrão, e disse-me:
- É um irresponsável. Não picou a estrada.
- Não foi necessário. Fui a Farim, na lancha da Marinha.
- Não foi pela estrada?
- Não. Arranjei boleia.
- Desobedeceu a uma ordem! Isso é grave!
- Pois desobedeci. Mas a companhia tem falta de gasolina, e eu poupei.lhe algumas dezenas de litros. E poupei o pessoal, que anda cansado, até doente. Mais, a mais, no rio ainda não há minas.
- Vou dar-lhe uma porrada.

Naquele momento, a conversa ficou encerrada.
Ainda nesse dia, o sargento veio ter comigo, dizendo-me:
- Olhe que o capitão vai mesmo dar-lhe uma porrada.
- A sério?
- Sim, a sério. Já me pediu o RDM, para ver o castigo a aplicar.

Naquela altura, quase no fim da comissão, uma porrada era algo complicado. No entanto, disse ao sargento:
- Diga-lhe que eu até esfreguei as mãos, de contente, quando me falou no assunto. A tal porrada, não vai ser um castigo, mas sim um prémio.
- Um prémio?
- Sim, um prémio. Não terei mais de o aturar. Quer prémio melhor?

Não sei se o sargento trocou com o capitão mais alguma conversa, sobre o assunto. O certo é que os dias foram passando, e acabei por não sofrer porrada nenhuma.
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Notas do editor

(*) Outro segredo de Domingos Gonçalves no poste de 7 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14981: O segredo de... (22): O problema não eram os pecados, - os nossos segredos -. O problema acontecia quando quem mandava em nós desvendava os pecados (Domingos Gonçalves)


Último poste da série de 10 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14991: O segredo de... (23): Histórias escondidas com o rabo de fora (Mário Vitorino Gaspar)

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14981: O segredo de... (22): O problema não eram os pecados, - os nossos segredos -. O problema acontecia quando quem mandava em nós desvendava os pecados (Domingos Gonçalves)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 31 de Julho de 2015:

Prezado Graça:
Saúde, e boas férias.

O problema não eram os pecados, - os nossos segredos -. O problema acontecia quando quem mandava em nós desvendava os pecados.

Vou contar dois casos.
Um pecado acabou por ficar no segredo dos deuses, apesar da desconfiança da divindade. Outro não.

O caso que ficou no segredo, foi o seguinte.

As valas de Guidaje
Com a devida vénia a SPM 0018 - CCAÇ 3

Estava eu em Guidage, com o meu grupo de combate, numa altura em que o capitão estava de Férias, quando chegou lá uma coluna para me entregar a ordem para participar numa operação que decorreria na madrugada e manhã do dia seguinte, na zona do Dungal.
A escolta da coluna ficaria em Guidage, mantendo a segurança do destacamento durante esse período de tempo.
Através de um furriel que vinha nessa coluna, o colega, alferes, que se encontrava a substituir o capitão, enviou-me uma carta pessoal, (secreta) em que me dizia para não participar na operação por diversas razões, que na altura me informou, em virtude das quais me aconselhava prudência reforçada. Li a carta e queimei-a.
Na madrugada do dia seguinte saí com o meu grupo de combate em direcção ao Dungal, após pouco mais de uma hora de marcha simulei estar perdido, demos umas voltas pelo mato, recolhemos bananas numa tabanca abandonada, regressando de seguida a Guidage.
Como era normal, redigi o relatório, que via rádio, seguiu para o batalhão.
Não sei como, nem porquê, quando o capitão regressou de férias chamou-me ao gabinete para saber o que tinha acontecido naquele dia. Menti-lhe, claro. Mas jurei por Deus, que estava a falar verdade. Deixo aqui, e agora, a confissão do meu pecado.

Sobre o outro pecado falarei em breve.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14977: O segredo de... (21): O que custa(va) ser periquito numa terra como a Guiné (Ribeiro Agostinho, ex-Soldado da CCS/GG/CTIG)

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14820: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (12) - Reportagens da Época (1967): Coluna a Farim

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 18 de Junho de 2015:

Prezado Dr. Graça:
Saúde. Mais uma vez tomo a liberdade de remeter um pequeno texto que poderá ser publicado.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)

REPORTAGENS DA ÉPOCA

12 - Coluna a Farim

Dia 19 de Junho de 1967

Parti de Binta com o meu grupo de combate, e alguns nativos armados, numa escolta rotineira, como tantas outras que temos feito até Farim.
A coluna seguiu normalmente, e sem incidentes, até Canicó.
Ao atravessar essa tabanca abandonada, quando a estrada começa sensivelmente a descer, vi, não muito longe, levantar-se nos ares uma nuvem de fumo negro, e estranho.
Naquele local nada justificava o aparecimento daquele fumo.
Mandei parar a coluna de viaturas, deixei ficar metade do pessoal a manter a segurança dos camiões, e avancei pela estrada adiante, com os restantes soldados, para averiguar as causas daquele fumo insólito.

Binta, localizada na margem direita do Rio Cacheu, próximo da estrada Farim-Bigene. Vd. Carta da Província da Guiné - Escala 1:500.000

Ao fim de algumas centenas de metros, os homens que seguiam mais à frente vieram dizer-me:
- É uma viatura que está a arder.
- Uma viatura?
- Sim, uma viatura. - Confirmaram-me.

Segui adiante com bastante apreensão, e com todas as cautelas possíveis.
A dado momento começámos a ouvir gemidos, vindos ainda de certa distância.
Seguimos adiante.
O primeiro vestígio concreto de que algo de anormal se tinha passado, foi metade do pneu de uma viatura, desfeito no meio da estrada.
Algumas dezenas de metros, mais à frente, estava uma viatura, a arder.
De quando em quando, no meio do fogo detonavam munições.
Cautelosamente, fomo-nos aproximando.

Sob a viatura incendiada jazia, totalmente carbonizado, o corpo de um soldado, que só com muita dificuldade me apercebi de que era de um branco.
Ao lado da estrada, jaziam os corpos de três pretos mortos.
A gemer, desfeito em dores, encontrei o furriel H., do pelotão de morteiros, com o corpo todo coberto de pó, e desfeito pelos estilhaços.
Ali perto, escondidos entre as palmeiras, alguns nativos armados a manter a segurança.
Tropa branca, não se via nenhuma.

Depois, quando se aperceberam da nossa presença, apareceram alguns soldados brancos, bem como o alferes, comandante da coluna, que se dirigia para Binta.
O que ali estava não era uma força organizada, ou a escolta de uma coluna de viaturas, mas um grupo de homens vencidos, desmoralizados, que os turras, se o tivessem tentado, teriam dizimado, sem dificuldades, ou mesmo feito prisioneiros.
Mas ninguém decidia nada.

Perante aquele cenário, mandei avançar para junto do local, com toda a precaução, os meus soldados, que tinham ficado a guardar as viaturas, informei, via rádio, o comando do batalhão, sobre o que se tinha passado, recolhi os feridos, que mandei, de imediato, a toda a velocidade para Farim, e mandei carregar noutra viatura os cadáveres.

Entretanto, os meus homens passaram a pente fino todo o terreno à volta da estrada, e detectaram ainda uma mina anti-carro, que se fez explodir no local.
A mina que rebentou sob o rodado da viatura, bem com a que, depois, se detectou, era comandada à distância, através dum engenhoso sistema de fios.
Afinal, se eu tivesse saído de Binta alguns minutos antes, seria eu a sofrer a emboscada, e os efeitos da mina.

Entretanto, chegaram ao local os “roncos” de Farim, e um pelotão da companhia 1585, com a finalidade de verificar donde tinham vindo os turras, e efectuar a perseguição do grupo.
Quando tudo ficou resolvido dei ordem de marcha aos meus homens, e seguimos para Farim.
Regressei a Binta, fazendo a pé quase todo o percurso, e picando a estrada.
Estou, no entanto, horrorizado.
Doido.

Nunca tinha visto, nem me passava pela mente ver, um quadro humano tão horrendo, e sinistro.
Esta guerra mostra-nos todos os dias cenas diferentes, terríveis, que jamais se apagarão das nossas memórias.
Mas há momentos, que são demasiado sinistros, que escapam às leis da racionalidade, que todos preferiríamos não ter vivido.
Ainda hoje, a companhia de intervenção vai realizar uma operação, que terá por objectivo seguir o trilho que os turras deixaram no capim quando se retiraram, no fim da emboscada.
Só que, a esta hora, eles já estão bem longe, no interior do Senegal, a delirar de satisfeitos, com todo este sofrimento.
A vida não passa de uma grande loucura.

No regresso de Farim, dei escolta aos homens da secção de cinema, do Quartel-General, que vieram dar umas sessões em Binta, e em Guidage. À noite exibiram, efectivamente, um filme, mas não fui assistir. Estava ainda demasiado impressionado com as cenas reais, que de manhã tinha contemplado.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14698: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (11): Buruntuma

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14698: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (11) - Reportagens da Época (1967): Buruntuma

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 17 de Março de 2015:

Prezado Luis Graça:
Envio mais alguns dados, respeitantes aos últimos dias do mês de Junho de 1966, que poderão ser publicados.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

11 - Buruntuma

Dia 24 de Junho de 1966

Ainda cedo saí de Nova Lamego escoltando seis viaturas carregadas de géneros alimentícios.
Deixando para trás uma imensa nuvem de pó as viaturas fizeram-se à estrada.

Ao fim de três quilómetros uma viatura avariou-se e a coluna-auto imobilizou-se na estrada.
Impacientes, os soldados murmuravam:
- Raios partam as viaturas... Linda maneira de entrar na guerra...

Apoiando-os, um furriel insinuava, convencido:
- Sempre a mesma porra... Mandam-nos escoltar umas viaturas que já deviam estar na sucata. Isto é tudo uma porcaria...

Como não havia solução para a avaria mandei distribuir a carga que a viatura transportava pelas restantes, pedi o reboque para levar o camião avariado ao ponto de partida e segui viagem.

Em Piche juntaram-se à coluna duas viaturas militares e quatro civis.

No destacamento da Ponte do Caium esperava-me um pelotão da companhia de Buruntuma, que picou a estrada.

Sem qualquer incidente atingi Buruntuma pouco depois do meio-dia.

Estrada Nova Lamego-Buruntuma

Os cerca de quarenta homens que comandava praticamente nada almoçaram após a chegada.

Em Nova Lamego não nos distribuíram a ração de combate com a desculpa de que haveria uma refeição quente quando chegássemos a Buruntuma...
Em Buruntuma não havia a tal refeição quente porque não esperavam que chegássemos antes do almoço.
Valeu a todos a camaradagem da guarnição local e o desenrascanço imaginativo de cada um.

De tarde o capitão levou-me a casa de um comerciante branco que nos ofereceu Whisky com Água Castelo.
Diz-se que o homem é um ex-degredado que, após o cumprimento da pena, ficou por estas paragens.
O capitão de Buruntuma é um homem de aspecto pachorrento, alto e gordo, compreensivo e bondoso. Parece-me um homem inteligente e sensato.

O aquartelamento e a povoação localizam-se quase sobre a linha da fronteira com a República da Guiné-Conakry.
É a única povoação no raio de alguns quilómetros.

A guerra obrigou as populações ao abandono das tabancas de que, um pouco por todo o lado, ainda restam vestígios.
Uns retiraram-se mais para o interior do território português. Outros fugiram para o Senegal, ou para a República da Guiné-Conakry. É principalmente entre esses que fugiram, que os terroristas recrutam os seus combatentes.

À noite ouviu-se um tiro dentro do aquartelamento. Gerou-se alguma confusão mas, afinal, não se tratou de ataque do inimigo.


Dia 25

De manhã saí com duas secções e alguns “milícias” à procura de lenha para a cozinha do quartel. Carregaram-se, sem grande dificuldade, duas viaturas de madeira seca, utilizada na construção das tabancas abandonadas.
O ambiente que reina entre a tropa é bom.
O calor não deixa de ser um martírio mas o trabalho ao Sol não é muito.

À noite, pelas dez horas, não longe do arame farpado, ouviu-se uma explosão, talvez de granada de morteiro.
A tropa manteve-se serena e não aconteceu mais nada.
No entanto, basta isto para manter todas as pessoas num “stress” permanente, num ambiente de medo e angústia... São os nervos sempre à flor da pele...


Dia 26

Às quatro horas e meia da manhã o capitão acordou-me e deu-me ordem para mandar equipar o meu pelotão com a finalidade de abrir o itinerário até ao Caium.

Piquei a estrada de Buruntuma a Caium, escoltei uma coluna de viaturas de Caium, Buruntuma e de novo até Camajábá.
Pela manhã, quando nos dirigíamos ao Caium, ouviram-se rajadas de armas automáticas lá para os lados da fronteira.
Estes disparos têm um efeito psicológico bastante negativo. Obrigam-nos a uma tensão quase permanente.

Ao entardecer rebentou uma armadilha colocada pelas nossas tropas perto da fronteira.
Um alferes da guarnição local com o respectivo grupo de combate, reforçado por alguns dos soldados do meu grupo, comandados por mim, foi verificar as causas da explosão.
Junto do local das armadilhas, que não sei se era em território português, ou da Guiné-Konacry, encontravam-se duas vacas quase mortas. Com alguns tiros de G3, acabou-se-lhes com a vida.
Imediatamente, do outro lado da fronteira, bastantes armas pesadas começaram a disparar sobre Buruntuma, enquanto que, as armas ligeiras, alvejavam o terreno fronteiriço onde nos encontrávamos.

Cautelosamente conseguimos retirar do local, mais para o interior, sem, contudo, conseguir entrar no nosso aquartelamento que, durante cerca de uma hora, ficou sob o fogo cerrado das armas do inimigo.
Abrigados por um ligeiro declive do terreno, e pela protecção do arvoredo, sentíamos nos ares o silvar das granadas que, às dezenas, choviam sobre Buruntuma.
Aqui e além as explosões provocavam incêndios, principalmente nas casas dos nativos, cujo telhado era feito de capim.

Quase em simultâneo as armas de Buruntuma também abriram fogo. As bazookas e o canhão sem recuo vomitavam granadas ininterruptamente. Os morteiros cuspiam, para o outro lado da fronteira, os seus tenebrosos projécteis. Através das seteiras dos abrigos as metralhadoras consumiam centenas de munições. As armas ligeiras, os canos já aquecidos, disparavam, um pouco ao acaso, contra um inimigo que não tinham capacidade de atingir.
De um e outro lado era ensurdecedor o ruído da fuzilaria e o detonar das granadas.

Anoiteceu.

De ambos os lados começou a abrandar a intensidade do combate.
Lentamente, o silêncio foi caindo sobre a povoação martirizada. Era o fim de uma pequena batalha.

Cautelosamente, os soldados que estávamos fora do aquartelamento, longe da protecção dos abrigos subterrâneos, fomo-nos aproximando do arame farpado e entrámos no quartel.

Dirigi-me ao posto de socorros. Lá dentro, aguardando tratamento, já havia muitos feridos. Outros, brancos e negros, foram depois chegando.
O médico, que na vida civil era cirurgião, trabalhava afanosamente, ajudado pelos enfermeiros, extraindo estilhaços, colocando ligaduras, injectando soro... Só muito tarde deu por findo o seu trabalho.

Contabilizados os prejuízos verificou-se que havia três mortos entre a população e bastantes feridos tanto entre os soldados como entre os civis.
Para além disso o nosso sistema de transmissões estava inutilizado, as instalações danificadas e alguns indígenas tinham perdido as suas casas.

Trabalhava em Buruntuma um agente da PIDE que, através do sistema de transmissões particular, de que dispunha, alertou Bissau para o sucedido e pediu que fossem evacuados para o Hospital Militar os feridos mais graves.

Eram já altas horas da noite quando nós, os oficiais, nos fomos deitar.
No abrigo onde dormíamos comentavam-se os acontecimentos com alguma insensibilidade.

Já deitado, o capitão murmurava:
- Os filhos da puta não nos deixam em paz...

A guerra para ele era algo a que já estava habituado e pouco o impressionava. Quando em conversa se referia a acções de combate transmitia até a ideia de gostar das sensações da guerra.
Eu sentia-me de certo modo aterrorizado com a baptismo de fogo que, sem o desejar fui obrigado a receber.
Foi um baptismo sério e prolongado... E cheio de calor!...


Dia 27

A noite passou-se rapidamente.
Pela manhã, o que já era hábito na localidade, a tropa levantou-se cedo.
De tronco nu, os oficiais abandonaram o abrigo, subiram para o jeep, deram um volta pela tabanca para verificar os estragos causados pelo ataque, contemplaram as cinzas de algumas moranças dos nativos, as ruínas da capelinha da virgem onde os soldados costumavam rezar, as viaturas danificadas, as paredes das casas esburacadas pelos estilhaços das granadas, e dirigiram-se para o edifício da messe.

Enquanto tomavam o pequeno almoço, descontraído, o capitão comentava:
- O pior foi terem-nos causado bastantes feridos e haver mortos entre a população. Os prejuízos materiais podem remediar-se. São transitórios, superáveis. O sangue é que não tem preço. Mas chegará o dia em que eles (os terroristas) receberão o pagamento com os respectivos juros.

Os alferes apoiavam-no e expunham também os seus pontos de vista.
Espíritos calmos e frios, habituados, pela força das circunstâncias, à dureza da guerra, aqueles homens enfrentavam-na com a maior das naturalidades.
Foi no meio deles que a guerra me surpreendeu. Em nenhuma outra parte da Guiné eu teria, por certo, oportunidade de a sentir tão sinistra e tão dura.

*

A manhã ia alta.
O Sol surgia misterioso, quase triste, rompendo, a custo, num céu plúmbeo, carregado de vapores e neblina.

Ao longe, nos ares, sentiu-se um ruído, a princípio quase imperceptível, que foi aumentando de intensidade, até que no céu tristonho de Buruntuma se avistou a “Dornier 27”, a pequena aeronave que vinha proceder à evacuação dos feridos do ataque do entardecer anterior, para o hospital militar de Bissau.
Um pelotão de atiradores deslocara-se já do aquartelamento para a zona da pista de aterragem, que ficava muito perto do arame farpado, para que tudo decorresse com a segurança necessária.

Quando das imediações se transmitiu a ordem para aterrar, o pequeno avião começou a perder a altitude e iniciou a manobra de aterragem.
De repente, a avioneta começou a ser alvejada com rajadas de armas automáticas instaladas do outro lado da fronteira.
Avisado pelas transmissões das tropas terrestres o piloto tomou de novo altitude e manteve-se afastado da localidade.

Entretanto começou uma nova batalha. De ambos os lados os morteiros e as bazookas funcionaram de novo, os canos das espingardas voltaram a vomitar centenas de projécteis, e os tiros do canhão fizeram de novo tremer o céu e a terra.
As explosões sucederam-se por mais de uma hora martirizando, do nosso lado, a população e a tropa de Buruntuma, e do lado deles, República da Guiné-Konácry, a população civil e a tropa estacionada em Kadica, antigo posto fronteiriço.

E o funcionar das armas trouxe de novo a morte e mais sofrimento às povoações martirizadas.

De repente, quando a batalha parecia não ter fim, surgiram no céu dois bombardeiros da FAP, em auxilio das forças terrestres.
Eram os FIAT, aviões a jacto, que pela primeira vez fizeram a sua aparição no teatro de guerra da Guiné.
Os aviões salvadores sobrevoaram, a pequena altitude, a área do combate, e foi o suficiente para que o inimigo calasse as suas armas.

Entretanto, chegavam mais quatro aviões T6, que se mantiveram nos céus de Buruntuma até que os helicópteros e a “Dornier 27 levassem os feridos para o Hospital Militar.
Mais tarde soube que os aviões FIAT que sobrevoaram, naquela manhã, a tropa de Buruntuma, andavam ainda desarmados.
Bastou apenas o efeito psicológico dos seus voos rasantes para que o inimigo se retirasse.

As consequências do ataque foram graves. Tivemos um militar que morreu com os ferimentos causados pelos estilhaços de uma granada, dois alferes feridos, um dos quais com bastante gravidade, e bastantes feridos ligeiros.
Entre a população civil voltou a haver mortos e feridos.

*

Fixei, com dor, aquele corpo quase nu, mutilado e coberto de pó.
E senti pena, medo, tristeza, horror...Quantas coisas mais...
Ajudei a retirar do abrigo, que não abrigou nada, o corpo do soldado morto, e o sangue, ainda quente, tingiu-me as mãos...
E pensei na morte... A morte que todos pressentimos e adivinhamos à nossa volta, mas que não entendemos.
Li algures, ou alguém me disse ou ensinou, que a alma é igual à diferença entre o cadáver e o homem vivo. E que diferença avassaladora e enorme!...

Olhando a corpo inerte e ensanguentado do jovem soldado, assim de forma tão súbita e cruel arrancado ao fulgor da juventude e à vida ainda por viver, pensei:
- O corpo é o nada!... A sombra!... A miragem!... A ilusão!...
A alma é tudo!... Confunde-se com a vida!...
E dizem-nos tantas mentiras sobre a morte!...
Ensinam-nos que é isto... Que é aquilo...
E, afinal, o que será?
Ninguém sabe!...
É uma experiência individual, a última, da qual, que se saiba, ninguém regressa para dizer como é.
Acontece à nossa volta sob as formas mais bizarras
É o passar sereno e imperceptível... E é, também, convulsão e violência...
É suave como o lento apagar de uma ténue luz, e é rápida e fogosa quando chega montada no veloz projéctil cuspido por uma espingarda, ou no estilhaço quente de uma qualquer granada de morteiro...
Mas, é sempre ela... O fim... Ou, talvez, o princípio de uma realidade nova...
De uma realidade que todos desejam que nunca chegue... Que permaneça longe... Muito longe... Para além do tempo.
Mas, que me leva a estar aqui a martirizar-me com estes pensamentos, se não é com este tipo de ideias, ou de ilusões, que a vida se constrói? O mais importante é, efectivamente, pensar em viver... É pensar no hoje... No amanhã...No futuro que é preciso construir...


Dia 28 e seguintes

O major das transmissões, do Quartel-General, veio instalar um novo sistema de rádio.
Mandaram para cá, também, um pelotão de Cavalaria, com as auto-metralhadoras blindadas.
A tropa e os nativos iniciaram a construção de novos abrigos, e a melhoria dos já existentes.
Quem sabe...Talvez estejam para vir dias ainda piores...
Temos que estar preparados para o que der e vier... Buruntuma fica mesmo junto da linha de fronteira e os gajos não têm grandes dificuldades em se aproximar do aquartelamento para nos atacar.
Eles têm a protecção de um santuário.
Nós encontramo-nos em terreno descoberto.

*

Buruntuma esqueceu depressa aqueles dias terríveis e regressou a uma vida pacata e normal, feita do labutar diário dos seus homens, das orações balbuciadas em comum, na pequena mesquita, várias vazes ao dia, e da esperança em Alaah, o Deus que maioritariamente este povo adora.
As populações enterraram os seus mortos, com mágoa e preces, e embora vivendo no receio de um novo ataque, ao verificarem que chegavam mais reforços militares continuaram a confiar na protecção do homem branco.

De além fronteira, quando os ânimos se acalmaram, começaram a chegar algumas informações trazidas pelos nativos que se deslocavam ao nosso território.
Os ataques que sofremos tinham sido concretizados pelas tropas regulares da República da Guiné-Conakry, aquarteladas em Kadica. Mas, o preço que pagaram foi bastante pesado. Grande parte das suas instalações ficaram arrasadas pelo fogo dos nossos morteiros, e a guarnição, devido às pesadas baixas sofridas teve de ser imediatamente substituída.

Por outro lado, vendo quanto era frágil a protecção que o Governo de Conakry lhes garantia, as populações começaram a abandonar a zona fronteiriça, o que para as nossas tropas não deixou de ser negativo.
Com efeito, não havendo tabancas habitadas e movimento de pessoas, deixa de haver fluxo de informações sobre o movimento das forças da guerrilha e sobre a sua localização, o que dificulta a programação das nossas actividades.

A partir do ataque, como nas casernas e messes a protecção contra armas de tiro curvo (morteiros) era quase nula, todos os soldados passaram a dormir em abrigos subterrâneos.
À entrada dos abrigos, que mais não eram do que pequenos antros, improvisaram-se pequenas plataformas cobertas com panos de tenda, e todas as noites permanecíamos ali jogando as cartas e bebendo Whisky. Só mesmo quando os mosquitos se mostravam insuportáveis, ou os últimos cubos de gelo acabavam por derreter-se, ao mesmo tempo que o Whisky desaparecia da garrafa, cheios de sono, íamos dormir.

De noite, quando acordava, sentia os ratos, sem grandes cuidados, mexerem-se por entre os toros da madeira de que era feito o tecto do abrigo.
Pelas seteiras daquela espelunca, durante a noite, entrava uma aragem muito branda, ligeiramente fresca, que enchia de prazer o meu corpo seminu, estendido sobre a cama, que em simultâneo ia ficando coberto pelo pó que os ratos, ao deambular pelo tecto do abrigo, iam soltando do madeirame.

As noites passavam-se depressa e o despertar era sempre muito cedo.
Na messe, ao pequeno almoço, havia sempre café com leite condensado, chá gelado e pão com manteiga.
Ao meio da manhã era sempre costume fazer-se algum petisco.

De quando em quando, de jeep, fazíamos visitas à tabanca.
Era sempre o capitão a conduzir a viatura.
Ele andava sempre em tronco nu, muito à vontade, exibindo sem qualquer complexo os quilos de banha que se lhe escapavam dos calções, superiormente apertados por um cinto de lona.
Ele parava a viatura à porta das palhotas, recebia cumprimentos da população que o estimava, abraçava-se às bajudas que se lhe vinham sentar sobre os joelhos e, sempre a sorrir, o jeep superlotado de criançada, regressávamos ao quartel..

E foi assim que Buruntuma esqueceu os últimos dias de Maio de 1966, o terror e a morte, o sangue e as lágrimas, o desespero e o ódio, regressando a uma existência pacífica, despreocupada e feliz, da qual todos os homens sentem a fome.
Após uns dias de pesadelo, sombrios e sinistros, a gente boa e simples desta terra teve de novo a existência calma que merece.

As preces a Allah, o Deus que este povo adora, e a quem se reza muitas vezes ao dia, puderam de novo, serenamente, sair dos lábios destes muçulmanos bons e generosos, convictamente devotos.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14394: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (10): Operação Cernelha

terça-feira, 26 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14663: Filhos do vento (33): "Quando a guerra terminar, e a tropa se for embora, ainda hei-de ver por aqui alguns brancos a trepar às palmeiras", dizia-me um chefe de tabanca no meu tempo (Domingos Gonçalves, ex-alf mil, CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68)



Guiné > s/l> s/d [c. 1961/64] > "Trepando à palmeira para a recolha do vinho de palma. (eu nem com um cabo de aço de 20 mm, me atrevia a estar naquela posição àquela altura)"...


Foto do álbum do nosso "veteraníssimo" Joaquim Ruivo, ex-1º cabo mec obus 8.8, BAC (Santa Luzia, Bissau, out 61/ fev 64).

Foto (e legenda): © Joaquim Ruivo (2013). Todos os direitos reservados

1. Mensagem de Domingos Gonçalves (ex-alf mil,  CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68)

Data: 26 de maio de 2015 às 09:00
Assunto: Filhos da guerra/filhos do vento


Prezado Graça:

Antes de mais, saúde. Depois, envio a minha opinião sobre o assunto em questão (*.

Filhos do Vento? Filhos da Guerra?

O nome parece-me secundário. São filhos de portugueses. E é por serem filhos de portugueses que merecem a nacionalidade portuguesa.

Poderíamos invocar, reforçando o primeiro, outro argumento: os que nasceram antes de 25 de Abril
de 1974, nasceram em território português, administrado por Portugal. Também, por esta razão,
deveriam ter direito à nacionalidade portuguesa, caso a desjassem.

Serão muitos? Serão poucos? Ao certo ninguém sabe.

Recordo-me de ter escutado algures, da boca de um chefe de tabanca, o seguinte comentário:
"Quando a guerra terminar, e a tropa se for embora, ainda hei-de ver por aqui alguns brancos a trepar às palmeiras."

Não sei se a profecia se cumpriu, ou não. De qualquer modo, sejam eles brancos, negros ou mestiços,
penso  que deveriam ter direito à nacionalidade portuguesa.

Com um aqbraço amigo,

Domingos Gonçalves

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Nota do editor:

Último poste da série >  25 de maio de  2015 > Guiné 63/74 - P14659: Filhos do vento (32): Festival Rotas e Rituais, 2015: 22 de maio > Conferência "Filhos da Guerra": apontar o dedo ou dar a mão para ajudar? (Hélder Sousa / João Sacôto)

sábado, 21 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14394: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (10) - Reportagens da Época (1967): Operação Cernelha

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 17 de Março de 2015:

Braga, 15/03/2015Prezado Luís Graça:
Envio mais alguns dados, de vivências da Guiné, após sobre os mesmos terem passado 47 anos.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

10 - Operação Cernelha

Binta, 17/03/1967

São 15 horas. O Sol queima. A estrada até Guidage vai desfazer-se em pó.
Sinto medo.
A operação é arriscada.
Mesmo assim vou.
Todos vamos.

Em mim o temor e a esperança quase se confundem. Mas vou. Melhor, vamos.

Pouco depois das quatro horas da tarde a coluna partiu rumo a Guidage. O destino final chama-se Sambuiá.
 
Às dezoito horas chegou-se ao destacamento de Guidage.

Às 24, iniciou-se a marcha para o objectivo, seguindo pela estrada que vai por Facã, rumo à base turra de Sambuiá.
 
É a operação “Cernelha” que está em marcha.

Isto, de facto, não passa de uma tourada. De uma tourada que se repete muitas vezes, mas onde não se percebe muito bem quem são os touros, e quem são os toureiros. É que, às vezes, fica-me a sensação de que desempenhamos aqui um duplo papel: conforme as circunstâncias, tanto toureamos, como até somos toureados.


Dia 18

Pelas três da madrugada, entre Facã e a estrada de Bigene, fizemos uma pequena paragem para descansar.

A essa hora a artilharia de Bigene começou de novo a bombardear a zona onde ao amanhecer deveríamos actuar.

Mete impressão, durante o silêncio da madrugada, só quebrado pela voz da fauna selvagem, o ruído causado pelo detonar das granadas, que deixa, por breves momentos, um silêncio soturno e breve instalar-se em todo este mundo naturalmente belo, e bom.

Até os habitantes da selva sofrem com a guerra, que não respeita os seus habitats naturais, e o sossego de que deveriam beneficiar.

Após o rebentamento de cada granada, que as peças de artilharia disparam, cai sobre a selva um silêncio soturno, enorme, como que de protesto contra esta agressão, de que a própria natureza é vítima.

Pelas três e meia prosseguimos a marcha. Pelas quatro, atravessámos a estrada de Bigene.
Pelas cinco horas passou-se a ocidente da antiga tabanca de Sambuiá. Às seis horas atacou-se o objectivo.

Posições relativas de Binta / Guidage / Sambuiá

O fogo foi intenso, e prolongado. Durante cerca de meia hora as nossas armas, e as deles, dispararam um pouco ao acaso, orientadas mais pelo ruído dos tiros do adversário, do que pela localização de um objectivo concreto. Foi uma tempestade de tiros de armas ligeiras, de granadas de morteiro, de bazookadas e roketadas.

E não se conseguiu entrar na base do inimigo. Os gajos têm, ao que parece, abrigos subterrâneos, o que lhes permite uma boa defesa. Para além disso, ninguém conhece muito bem a localização da base.
Por certo que o local onde nos barraram a passagem com fogo bem conduzido e certeiro, está ainda a uma considerável distância do local onde pretendíamos chegar.

Só uma coluna de blindados teria condições para avançar no terreno, e conseguir alguns resultados, sem ficar sujeita a sofrer muitas baixas humanas. Porém, aqui, os únicos blindados que temos são feitos de carne e osso. Um material tão precioso quanto vulnerável.

As nossas forças sofreram dois mortos, pertencentes à milícia de Binta, e vários feridos, um dos quais com bastante gravidade. Os feridos pertenciam aos “roncos” de Farim.

Durante a retirada, quando fazíamos com paus, e folhas de palmeira, macas para melhor transportar os feridos e os mortos, detectámos uma emboscada dos gajos. Conseguimos abrir fogo primeiro do que eles, e não tivemos qualquer azar.

Pouco depois das nove horas fomos sobrevoados por uma avioneta. Era o comandante que, como de costume nestas ocasiões, vinha dirigir lá de cima os acontecimentos. Pelas dez horas apareceram os bombardeiros, a escoltar os helicópteros que vinham evacuar os feridos e os mortos.

Chegaram depois de estarmos à volta de quatro horas à espera deles. Se por acaso tivéssemos necessitado de apoio aéreo para sair do local onde se iniciou o ataque, bem tramados estávamos. O apoio aéreo é eficaz e moralizador para as tropas terrestres. Porém, raras vezes aparece a tempo e horas, nos locais onde faz falta.

O regresso a Binta fez-se pela estrada que segue de Bigene para Farim. Atravessou-se, a pé, o rio Sambuiá, dado que a ponte que era de madeira foi queimada, já lá vai muito tempo.
Junto à ponte de Boborim estavam as viaturas à nossa espera.

Esta operação, em que participaram as companhias 1546, 1547, 1585 e os “Roncos” de Farim, apenas deu porrada para a nossa Companhia, e para os “Roncos” que seguiam integrados na nossa unidade.

Logo que cheguei a Binta, apesar de fatigado, ainda fui sobrevoar Sambuiá, de avioneta, em missão de reconhecimento.

Mais uma vez fui e regressei.

Enquanto isto acontecer, todos os sacrifícios, e todos os riscos, serão sempre pequenos.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14361: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (9): Golpe de mão à casa de mato de Mampatás

sábado, 14 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14361: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (9) - Reportagens da Época (1967): Golpe de mão à casa de mato de Mampatás

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 10 de Março de 2015:

Braga,10/03/2015
Prezado Luís Graça:
Votos de boa saúde.
Depois, tomo a liberdade de enviar mais um pequeno têxto, que poderá ser publicado.

Um abraço amigo do
Domingos Gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

9 - Golpe de mão à casa de mato de Mampatás

Binta, 13/03/1967

De tarde, por volta das quatro horas, partiu rumo a Guidage uma coluna de viaturas, transportando dois grupos de combate da minha Companhia, sendo um, o meu, a milícia de Binta, e os “Roncos” de Farim. Lentamente, sob um sol maldito, envoltas em nuvens de pó, as viaturas levaram-nos até cerca de dois quilómetros de Guidage. Aí, na margem da estrada, ficámos à espera que a noite chegasse, enquanto as viaturas, escoltadas por um pelotão de morteiros, regressavam a Farim.
A população de Guidage não podia saber, antes do anoitecer, da nossa passagem pela localidade. Quando anoiteceu iniciámos, a pé, a marcha para Guidage.

No destacamento, comeu-se alguma coisa, planeou-se a operação, interrogou-se o guia e, pouco depois das 23 horas, iniciou-se a marcha para o objectivo, constituído pela casa de mato de Mampatás, situada a sul de Jeribâ, dentro do nosso território, a cerca de 200 metros da fronteira com o Senegal.

Dia 14

A marcha para o objectivo fez-se sem problemas, sempre pelo território senegalês,

Cerca das cinco horas e meia, a vanguarda da nossa força atingiu o objectivo. Abriu-se violento fogo sobre o mesmo e queimou-se tudo quanto havia para queimar. Capturaram-se três armas, entre as quais uma FBP portuguesa, bastantes munições, granadas de mão, fardas, livros de instrução do PAIGC, etc.
Estou convencido de que não se destruiu Mampatás, mas apenas uma pequena parte do acampamento inimigo, na periferia do mesmo.

Houve mortos confirmados, sem contar com duas mulheres, que terão morrido queimadas.
Por certo que havia lá, também, crianças (?) inocentes, que não têm nada a ver com isto, e que terão morrido queimadas.
É complicado, e difícil viver no meio desta guerra, onde muitas vezes a guerrilha se mistura com a população, ou se confunde com ela.

A retirada do local iniciou-se no meio de alguma confusão, como acontece quase sempre nestas situações.

A cerca de 500 metros esperava-nos uma emboscada dos gajos, que entretanto se tinham reorganizado. Eles fizeram algumas rajadas de armas ligeiras sobre a nossa força, mas sem consequências graves.

Quando já estávamos a uma distância razoável do objectivo, ele começou a ser bombardeado pela artilharia, a partir de Bigene. No ataque sofremos dois feridos, entre os quais o guia, um prisioneiro, que levou um tiro nas costas, e um Cabo da Companhia 1546.

O regresso a Guidage fez-se, também, por território do Senegal.

Pelas onze horas atingimos Guidage, onde se deslocaram dois helicópteros, para transportar os feridos para Bissau.

Depois iniciou-se a viagem de regresso a Binta.

Pelas oito horas da noite a artilharia de Bigene começou a bombardear a área de Sambuiá.

À noite, os furriéis, e bastantes soldados, andaram pelos domínios de Baco. Foi uma noite de bebedeiras. No fim de uma operação como a de hoje, talvez não haja nada melhor do que uma bebedeira para retemperar as forças, e esquecer o que se viu, e o que se ajudou a fazer. Directamente, os homens da Companhia até não fizeram nada de especial.
O grupo de assalto era, como quase sempre, constituído por tropa nativa. Eles são duros, aguerridos e destemidos. Mas, às vezes, também são demasiado selvagens.
Eles actuam sob as nossas ordens. Cumprem os objectivos que lhes traçamos. Vão onde os mandamos. E quando se chega a um local como o de Mampatás, ou qualquer outro do género, apenas há duas hipóteses: ou se incendeia, se mata, e se foge, ou se cai, e se fica no local, na trajectória dos tiros que o inimigo dispara, ou de qualquer estilhaço de granada, que o acaso faça explodir perto de nós.
Mas, os comandos nativos também são motivados, muitas vezes, pela ideia de saque.

Eles transportam com eles tudo quanto conseguem apanhar. O interesse nos bens abandonados pelos guerrilheiros mortos, ou em fuga, não deixa de ser para eles, e quase sempre, uma forte motivação.
Trata-se, geralmente, de despojos de guerra sem grande interesse material, pelo menos para nós, europeus. Mas para esta gente, habituada a um nível de vida muito baixo, sem padrões de consumo mínimos, as coisas mais insignificantes revestem-se de importância significativa.
Apressadamente, no fim do assalto aos acampamentos, ou bases terroristas, eles passam revista ao campo de batalha e transportam tudo o que podem.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14239: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (8): Guidaje 1967 - 10 de Fevereiro, ataque a Guidaje

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14239: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (8) - Reportagens da Época (1967): 10 de Fevereiro, ataque a Guidaje

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 8 de Fevereiro de 2015:

Amigo dr. Graça:
Saúde para si, e familiares.
Tomo a liberdade de enviar mais um pequeno cadeado feito de palavras, que poderá publicar .

Um abraço amigo.
Domingos gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

8 - ATAQUE A GUIDAJE

Binta, 10 de Fevereiro de 1967

Às quatro horas e meia da madrugada o cifra bateu à porta do capitão. Tinha chegado uma mensagem tipo relâmpago.

Desde as quatro horas da madrugada que o destacamento de Guidage estava a ser atacado

Quase de seguida o capitão chamou-me.

Embora já me tivesse apercebido do que se estava a passar, levantei-me e fui perguntar-lhe o que havia de novo.
Ele disse-me:
- Os gajos estão a bombardear Guidage, com bastante intensidade. Apesar da distância escutam-se aqui os rebentamentos.

Efectivamente, o silêncio da noite estava a ser quebrado, lá muito ao longe, pelo detonar das granadas, que as armas, nossas e deles, iam vomitando.
Era uma espécie de trovoada, muito surda, que a aragem branda, que soprava, ajudada pelo silêncio da madrugada, trazia até aos nossos ouvidos.

O capitão continuou:
- Prepare o seu grupo de combate para levar reforço ao destacamento, logo ao alvorecer.

Ainda durante a noite mandei acordar os soldados, e os furriéis, os condutores e os mecânicos, mandei carregar nas viaturas as munições necessárias para o que desse, e viesse, durante a viagem, e para repor o “stock” do destacamento.

Ao alvorecer tudo estava em condições de iniciar o movimento para Guidage.

Ao alvorecer iniciei a caminhada para Guidage, onde cheguei (chegámos) pelas nove horas.
Foi desolador o quadro que nos esperava.

Destacamento de Guidaje
Foto: © Albano Costa

A tabanca da população estava totalmente destruída pelo incêndio causado pelo bombardeamento. Era um panorama dantesco, que estava à nossa espera.

A população perdeu as casas, as roupas, algum dinheiro, que possuía, as reservas alimentares, e tudo quanto necessitava para levar uma vida pacata, despreocupada, e quase feliz.

Homens e mulheres, velhos, novos e crianças, todos estavam profundamente tristes.
Tudo a guerra lhes tinha levado, no escasso período de algumas horas.
Esta guerra, que é feita em nome do povo, e para garantir a liberdade, e o bem-estar desse mesmo povo, vai pouco a pouco destruindo os bens, as fazendas, e as próprias vidas, que a guerrilha diz representar e defender.

A ideia pode mesmo ser bonita.
Mas nada justifica que se destruam pessoas, ou se martirizem populações, em nome de uma ideia, que nunca poderá valer tanto como uma vida.

No rosto de toda aquela gente apenas aflorava um sentimento de revolta, e desespero, e uma tristeza muito grande.
Em escassos minutos, numa noite que nunca chegarão a esquecer, aquelas famílias perderam tudo! E perder tudo, mesmo para quem não tem poucas coisas para perder, é perder sempre muito.
Restou-lhes, pelo menos, a vida.
A vida para poderem continuar a sofrer, e a lutar por um mundo melhor.

Para além dos prejuízos materiais havia ainda a lamentar a morte de duas pessoas, e vários feridos com alguma gravidade.
A tropa que, por cúmulo da sorte, nem um beliscão sofrera, apresentava-se com um aspecto louco.
A guarnição não passava de um conjunto de homens desvairados, cheios de pavor, a deambular entre destroços.

Naquele dia, e àquela hora, apenas o desespero, e o desalento, afloravam no rosto melancólico de cada soldado.
O comandante do destacamento, sem me dizer uma palavra, levou-me ao edifício do comando, uma casa já meio arruinada, cujas portas e paredes estavam esburacadas pelos estilhaços, e mostrou-me um monte de invólucros de granadas de canhão, de morteiro, de munições de metralhadoras pesadas, e de armas ligeiras, que os soldados já tinham recolhido, nos locais de onde tinha sido desencadeado o bombardeamento, e disse-me:
- O ataque foi só isto, que estás a ver. Os tipos estiveram mesmo junto do arame farpado. Isto poderia ter sido um desastre enorme. Apesar de tudo, ainda tivemos muita sorte. Se eles tivessem melhor pontaria tinham arrasado não só a tabanca, mas também o aquartelamento. Assim, limitaram-se a destruir a tabanca, através do fogo que as explosões atearam ao capim dos telhados. Nas nossas instalações apenas acertaram com os primeiros tiros, causando-nos os estragos que estás a ver.

Enquanto se procedia à descarga das munições, que deviam ficar em Guidage, fui com ele dar uma volta pelo meio da tabanca destruída.

- A única palavra que encontro para descrever aquilo que vi chama-se: Desolação.

Depois de, através do sistema de transmissões, que não fora afectado, ter contactado o comando da companhia, e do batalhão, colocando-os ao corrente de tudo o que se passara, mandei a população preparar-se para abandonar Guidage, onde não tinha mais condições de alojamento, nem de subsistência.
Ainda antes do meio-dia, com a tropa a caminhar a pé, e com as viaturas superlotadas de crianças, mulheres e velhos, pus-me a caminho de Binta.
Se toda aquela gente caminhasse a pé, estaríamos perante a imagem um novo êxodo bíblico.
Assim, aquilo era uma caravana de pessoas apavoradas, cobertas de pó, escoltadas por um grupo de soldados receosos e cansados, pessoas que fugiam do inferno, e iam a caminho, talvez, de um purgatório temporário.

Em Guidage ficaram apenas alguns voluntários que, mesmo tendo perdido tudo, preferiram ficar com a tropa, na terra que, afinal, é a deles.

Para além do cansaço provocado por uma longa viagem feita quase sempre a pé, e sob um sol ardente, chegou-se a Binta sem mais problemas.
A população de Guidage, logo que chegou a Binta foi recolhida pelos familiares da mesma etnia.
Esta gente é toda muito solidária.
Enquanto há comida, comem todos.
Quando a comida falta, todos passam fome.

Depois, informei o capitão sobre tudo o que vi em Guidage, e sobre as condições em que a tabanca ficou, e dei por findo o meu trabalha de hoje.

Ao fim da tarde o capitão deslocou-se a Farim, em LDM para falar com o comandante do batalhão sobre as condições em que ficou Guidage, após o ataque.

Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14033: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (7): Guidaje 1967 - Assalto a Cumbamory - Operação Chibata

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14142: Notas de leitura (669): “Guiné 1968, o regresso dos heróis”, por Domingos Gonçalves, edição de autor, 2001 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
Desarma-nos, no conjunto dos seus trabalhos, Domingos Gonçalves e a sua frontalidade e o uso irrestrito das suas notas íntimas, redigidas com simplicidade, algo que certamente, durante décadas, não fazia parte das suas preocupações em dar à estampa.
É o caso deste seu terceiro e último livro, dedicado ao regresso, a partir de Binta.
Perpassa o sentimento de solidariedade, é tocante o seu jeito de balanço daqueles tempos ásperos. E os heróis são fundamentalmente aqueles soldados que correram todos os riscos entre Binta e Guidage, é para eles que vai a sua última e tão singela lembrança.

Um abraço do
Mário


Guiné 1968, o regresso dos heróis

Beja Santos

É tentador, quando reescrevemos com base nos nossos apontamentos as nossas memórias de combatentes, reconfigurar situações, polir o estilo, fugir às contumélias decorrentes de apreciações aos órgãos de comando, aos próprios camaradas, enfim, tudo parece guiar-nos para o embelezamento ou retoque das nossas notas, do que veio nas nossas cartas e aerogramas.

Quando se lê os escritos de Domingos Gonçalves, é bem percetível que aquele alferes que andou pelo Leste, por Binta e Guidage, não quer embelezar nem retocar e muito menos tornar as suas notas uma obra literária. Aliás, ele di-lo reiteradamente: “Não é pretensão do autor fazer literatura, apenas o move o intuito de transmitir mais um testemunho sobre o desenrolar da guerra colonial do teatro da Guiné". É exatamente isso que vai acontecer no volume “Guiné 1968, o regresso dos heróis”, por Domingos Gonçalves, edição de autor, 2001.

Neste terceiro e último livro respeitante à sua última comissão(*), Domingos Gonçalves reflete sobre o desencontro ainda existente entre uma parte fundamental da sociedade portuguesa e aqueles que combateram nos teatros africanos, entre 1961 e 1964: “Um dia virá em que o país, finalmente, se reconciliará com o seu passado e com a sua história, com dignidade e sem complexos de culpa. Existe ainda um certo inconsciente coletivo, doentio e com laivos de frustração, onde predomina uma cultura de intolerância, incapaz de ao menos admitir que se entenda a história, muito embora reprovando alguns dos que foram seus autores”.

Estamos em Janeiro de 1968, no primeiro dia, e ele escreve: “A Guiné será muito em breve para mim e para todos estes heróis que me acompanham como que um sonho que me aconteceu ontem” e volta a registar que foi à caça, apanhou algumas rolas. No dia seguinte compareceu a uma cerimónia religiosa de Mandingas. Volta a Guidage e deixa escrito que volta a estar de candeias às avessas com o comandante de companhia: “É um louco. Agora deu-lhe para martirizar o pessoal da secretaria com trabalho noturno. Como de costume, levanta-se perto do meio-dia. À noite dá-lhe para chatear toda a gente. Passa o tempo a berrar e a gritar". Viaja até Farim ao encontro do pelotão que ficará em Guidage no interregno da rendição. A tropa que estava em Guidage veio com ele para Binta, são homens esfarrapados, assiste a um grau de abandalhamento e desmotivação, isto quando o inimigo existe para além do rio. Já se fala em condecorações e louvores, o que verdadeiramente o preocupa é se o governo em Lisboa está devidamente informado sobre o evoluir da guerra. E chega a lancha Alfange, que os leva até Bissau, mas não foi uma viagem linear. A lancha chegou, desembarcaram os periquitos, subiu a CCAÇ 1546, em Farim entrou a CCAÇ 1548 e a CCS, voltaram a Binta, passadas umas escassas centenas de metros foram alvejados com bazucas e canhões, regressaram a Binta, permaneceram toda a noite a bordo da lancha. Não havia memória de ataques a embarcações da marinha tão perto de Binta.

Desembarcaram de novo em Binta e ao meio-dia dá-se um acidente, um cabo pegou numa granada de bazuca, a granada que caiu ao chão explodiu, o cabo sofreu ferimentos mortais e dois camaradas ficaram gravemente feridos e foram evacuados para o Hospital Militar em Bissau. Finalmente todo o pessoal regressou para a Alfange e ao amanhecer atracaram ao cais do Pindjiquiti. Chegara a hora das delícias em Bissau, mas ainda há trabalho, como ele anota no seu caderno: “Acompanhei vinte soldados a exame da quarta classe. Fizeram as provas escritas. A sabedoria deles não era muita, mas eu lá fui fazendo de espírito santo de orelha… Voltei com os soldados a exame. Hoje fizeram as provas orais. Passaram todos. Este diploma é a única coisa importante que levam desta terra”. Quando sabe que o BCAÇ 1887 recebeu um louvor coletivo, comenta: “Seria bem melhor que estes homens quando chegassem às suas terras pudessem contar com estruturas de apoio que os ajudassem a conseguir trabalho, a ter condições de acesso a cuidados de saúde, e a uma boa integração no meio social e familiar. As sequelas desta vida de sofrimento vão fazer-se sentir ainda por muito tempo, ou talvez para sempre. E não serão estes louvores a amenizar as suas consequências”.

Embarcam no Quanza. O seu pensamento vai para os que tombaram em combate, recorda os que adoeceram, os feridos em combate. E muito mais: “E lembrei-me de um povo rude e generoso, junto de quem vivemos, a quem a tropa ajudou a minorar os efeitos da miséria e do atraso em que vive, mas povo que nos ajudou, também, as vezes com enorme sacrifício, a viver os nossos tristes dias”. Nem durante a viagem desfalece a escrita: “Vi o sol nascer, com um brilho maravilhoso a pratear as águas do oceano em toda a dimensão do horizonte”; “o mar por estas paragens anda bastante agitado, sopra continuamente um vento bastante frio que se dirige para sudeste”; “o oceano assemelha-se a um grande lago, grande até não ter fim, onde todos vamos, serena e alegremente navegando, comove-me, até ao mais íntimo de mim mesmo, esta grandeza que não termina, este mundo de luz e mistério perante o qual sinto mais presente a minha pequenez que também não tem fim”.

E agora o desembarque, é uma algazarra indescritível, num ambiente festivo incomparável. E lavra a sua última página:
“Soldados desconhecidos, heróis de um império agonizante, quem será capaz, amanhã, de os recordar?
Aos mortos da CCAÇ n.º 1546, que tombaram pelas terras da Guiné, fica em homenagem ao seu sacrifício esta modesta página de um livro, que eles também ajudaram a escrever.
A partir do quartel da Amadora, a tribo muito unida que fomos espalhou-se rapidamente em todas as direções, num adeus de saudade. Que não seja uma separação para sempre. Que fique apenas a amizade construída na alegria e na dor de tantos longos dias que a tornam profunda e inesquecível.
Que ninguém mais esqueça o camarada que caiu a seu lado!
Que ninguém mais esqueça o amigo de todos os dias, junto de quem sofreu e lutou.
Se não fosse a Guiné e a guerra, enquanto conjunto de homens, nunca mais chegaríamos a existir…”.
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Nota do editor

(*) Vd. postes de:

29 de Dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14093: Notas de leitura (661): “Guiné 1966, reportagens da época”, edição de autor de Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887 (Mário Beja Santos)
e
2 de Janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14109: Notas de leitura (663): “O céu de Guidage”, por Domingos Gonçalves, edição de autor, 2004 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14132: Notas de leitura (668): “Honório Pereira Barreto”, escrita pelo médico Jaime Walter, e editada em 1947 pelo Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14109: Notas de leitura (663): “O céu de Guidage”, por Domingos Gonçalves, edição de autor, 2004 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
Há edições de autor que são memoráveis, nelas, sem qualquer hesitação, incluo este “O céu de Guidage”, notas diárias, ou quase, de um alferes que é lançado vários meses para um rincão fronteiriço, aonde afluem gentes e importantes, muito importantes, informações.
A região é palmilhada por gentes do PAIGC, por ali passam caminhos que levam para Sambuiá, para o Oio, está-se perto de Zinguichor.
E sentimos que este alferes Gonçalves para além de armadilhar e caçar e de querer tornar Guidage um sítio viável, é confrontado pelo animismo, pelo domínio ancestral do homem sobre a mulher, pelas permanentes visitações da doença e da morte.
Era assim Guidage em 1967, e nós acreditamos piamente que era assim, como Domingos Gonçalves a descreve e se descreve.

Um abraço do
Mário


O céu de Guidage

Beja Santos

Vamos agora dar um salto no tempo, estamos em Julho de 1967, altura em que Domingos Gonçalves passa a ser o comandante militar de Guidage. Das três obras que ele teve a amabilidade de me oferecer depois da sessão de lançamento do livro “Fafe na guerra colonial”, que decorreu em Fafe a 12 de Dezembro último, é o seu livro de que mais gosto, vê-se à légua que foi a missão que mais o marcou, por isso as suas notas são abundantes, a sua dor é por vezes imensa como imenso é o seu deslumbramento por aquele território junto ao Senegal, quase fora do mundo, onde ele adora caçar e constantemente se motiva para ter os seus homens igualmente motivados: “O céu de Guidage”, por Domingos Gonçalves, edição de autor, 2004, com a seguinte dedicatória: “A todos os soldados da CCAÇ n.º 1546, do BCAÇ n.º 1887, que estiveram no destacamento militar de Guidage, ou que por lá passaram”.(*)

Escreve no dia 12 de Julho de 1967: “Vou com os meus homens passar três ou quatro meses em Guidage. A estrada encontra-se num estado miserável. É uma manhã triste e sombria, que se esconde para além desta neblina”. As viaturas atascam-se, repetem-se os palavrões, foi uma viagem difícil e penosa, chegam a Guidage, o outro grupo de combate que vieram substituir inicia a viagem para Binta. Vaza para o papel: “Neste pequeno mundo eu sinto-me quase um rei, autoridade máxima deste reino constituído por cerca de dez hectares de terreno rodeado de arame-farpado onde habitam cercam de duas centenas de nativos. Eu sou o comandante das tropas aqui estacionadas, cerca de cinquenta homens”. Localiza Guidage, releva as suas vulnerabilidades, fala das picadas em muitíssimo mau estado. A Guidage chegam informações que depois são reencaminhadas para o Batalhão, trazem notícias que Amílcar Cabral anda a percorrer as bases e a apaziguar os ânimos, haverá tensões entre guineenses e cabo-verdianos. Vem gente do Senegal cumprimentá-lo. Há razão para isso: “Todos os dias passam por Guidage dezenas de senegaleses. Regra-geral, vêm comprar tabaco, sabão, azeite, tecidos, petróleo para iluminação, etc. Trazem também algum contrabando e algumas informações sobre a movimentação das forças do PAIGC”. O destacamento encontra-se num estado miserável, queixa-se da falta de militares: “Dos seis furriéis que devia ter aqui apenas tenho dois. Os soldados e cabos também são poucos. Por isso têm que fazer serviço todas as noites”. A 17 chega-lhe uma notícia muito importante: “Amílcar Cabral continua em Samine. Um grupo de 80 turras vai sair de Jeribã para Jagali Balanta. Transporta armas ligeiras, munições, quatro bazucas e dois morteiros. De Jeribã seguem para Sindina e depois para Sambuiá. Devem atravessar o rio Cacheu em Concolim”.

O ramerrão diário tem imprevistos, dois cadastrados, soldados em Guidage, tentarem fugir para o Senegal, foram apanhados já em território do Senegal. Por vezes, a natureza lembra-lhe a sua região: “Estes campos verdes de milho que cresce à volta de Guidage têm um pouco da verdura do Minho… E fazem-me olhar para muito longe. É a saudade!”. A pista de aviação estava inoperacional, ele decide pô-la em condições de voltar a receber os passarões de aço e chapa. Os senegaleses doentes chegam a toda a hora. A polícia senegalesa é vista a observar o território da Guiné portuguesa com binóculos. Chegam notícia de que Guidage vai ser atacada. Estamos em plena época das chuvas, o destacamento é um lamaçal. No fim desse mês de Julho, começa a colocar armadilhas em marcos fronteiriços e pontes adjacentes. Há um furriel responsável pelas informações que agride os nativos com frequência, a população teme-o: “Chamei-o ao meu gabinete, proibi-o de bater nos nativos. Não foi nada fácil convencê-lo. Refugiado no facto de ter um trabalho autónomo, sobre o qual apenas tem de prestar contas aos serviços de informação militar, de quem depende, entendia que podia fazer com a população o que muito bem lhe apetecesse”. O relacionamento da população com a tropa de Guidage melhorou muito.

Teme-se a qualquer momento uma flagelação, redobra a vigilância. As armadilhas começam a fazer o seu efeito, houve uma explosão, foram lá ver, encontraram um rapaz que não teria mais de quinze anos: “Pensando que estava mesmo morto, deixaram-no abandonado entre o capim, sem qualquer elemento que o pudesse identificar”. Para pasmo de Domingos Gonçalves, a população irá executá-lo. O alferes não pára de armadilhar e caçar. A população senegalesa queixa-se dos roubos de vacas pelos turras. Com a coluna de Binta, veio o capelão: “É um bom homem. Chamam-lhe o pardal espantado porque ele não para em lado nenhum. Aproveita todas as oportunidades possíveis para se deslocar de destacamento em destacamento. É uma pessoa muito piedosa sempre preocupada com o bem-estar dos outros”. Nos patrulhamentos, encontra vestígios de passagem dos guerrilheiros. As armadilhas vão rebentando, obra dos homens e da passagem dos animais, ele volta a armadilhar, não dá tréguas. Em 17 de Setembro, Guidage é atacada, não há feridos nem estragos a lamentar. De Binta, o capitão dá-lhe ordens para patrulhar e armadilhar e ele escreve: “Não vou. Não cumpro ordens estúpidas”. As tensões acentuam-se, os furriéis não se entendem uns com os outros, há imensas bebedeiras, as chuvas são abundantes, as informações que chegam a Guiadge são preocupantes, prepara-se um ataque em força, as carências são de toda a ordem, parece que tudo falta em Guidage.

Estes apontamentos de Domingos Gonçalves tocam-nos profundamente: um destacamento à beira do Senegal aonde afluem pessoas em carência, informações, onde se afina o instinto de sobrevivência, o resistir à solidão, o sentir-se o abandono, as vidas transtornadas à nossa volta, e então o ser humano levanta-se, comunga com a natureza e escreve-se sobre este respeito, com simplicidade e sinceridade: “As trovoadas aqui são cheias de grandeza. Tanto nos incutem medo como admiração. Quase me apetece afirmar que valeu a pena vir à Guiné só para observar estes espetáculos. É muito belo, em noites de trovoada, este céu de Guidage. Entretanto sobre a mesa do meu improvisado gabinete, os ratos brincavam com os papéis". Mas nesse mesmo apanhado de notas, ele escreve adiante: “De tarde, patrulhei a área de Fajonquito, onde encontrei vestígios da passagem recente dos turras, e onde recolhi um quico perdido por eles. Passei por Quenheto e caminhei, ainda, pela estrada do Dungal, onde deixei ficar três potentes armadilhas. Regressei pela linha de fronteira, passando junto do marco 124”.

O alferes tem que praticar justiça, agir como juiz de paz em casamentos desavindos, procurar, nesse escuro túnel cultural, agir com prudência, travar roturas, desinchar o mau estar. Já se passaram três meses, sonha-se com o regresso a Binta. Mas, por outro lado, sente-se incomodado por voltar à companhia do capitão (a quem ele chama Faruk). Pouco antes de regressar a Binta, no início de Novembro, escreve sobre o seu intérprete, a quem chama o Patron: "É um ingénuo, é um homem puro. Não fora aquela pura ingenuidade e ele seria bem capaz de ver que temos mais de demónios do que de anjos, e que a nossa terra apenas tem homens como os daqui, embora de cor diferente”. Despede-se de Guidage com tristeza, mas no dia 2 de Dezembro está de novo rumo a Guidage, vai substituir temporariamente um alferes que se deslocou a Bissau, e relata a operação “Chibata”, 170 homens, incluindo os Roncos de Farim e os Caçadores Nativos de Guidage, vão atacar Cumbamory, no Senegal, capturou-se armamento, as nossas forças sofreram quatro mortos. Detetaram-se cubanos no acampamento. Volta a armadilhar à volta do destacamento. A 23, está de regresso a Binta, e despede-se assim do leitor: “As terras de Guidage, e o seu povo ficarão cada vez mais longe de nós, perdidas na distância do tempo e da saudade”. Percebe-se como este céu de Guidage marcou Domingos Gonçalves para toda a vida.
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Nota do editor

(*) Vd. poste de 29 de Dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14093: Notas de leitura (661): “Guiné 1966, reportagens da época”, edição de autor de Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14095: Notas de leitura (662): Eu e a minha burra, sozinhos, mais a nossa própria sombra... Recordações da infância (Fernando Sousa, natural de Penedono, autor de "Quatro Rios e um destino")

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14093: Notas de leitura (661): “Guiné 1966, reportagens da época”, edição de autor de Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
O autor adverte-nos que não o move a intenção literária, quer que o leitor tome nota do que guardou nos seus apontamentos diários, em linguagem do tempo. Daí resulta uma leitura bem diferente das obras do estilo memorial, são pedaços de diário, é um jovem que se vê estar dotado de sólida formação moral, atento às prosápias de uma certa hierarquia militar, atento aos sofrimentos dos seus homens e que desabafa com os seus papéis depois de voltar de Beli e de Madina de Boé, aqueles pontos do mapa cujo abastecimento eram uma empreitada temível, com mortos e feridos em minas e emboscadas.
E ele pergunta à folha de papel: e para quê?
E depois desta itinerância pelo Leste, embarca para o Norte, vamos vê-lo a seguir como comandante em Guidage.

Um abraço do
Mário


A Guiné em 1966 aos olhos de Domingos Gonçalves

Beja Santos

Quando estive em Fafe, em 12 de Dezembro último, para participar no lançamento da obra coletiva “Fafe e a guerra colonial”, conheci o nosso camarada Domingos Gonçalves [foto à direita], tomei a liberdade de lhe pedir os seus escritos sobre a Guiné. Já chegaram, quero-vos dar conta do que eles encerram. O camarada Domingos Gonçalves nasceu em Serafão, Fafe, em 1942. Frequentou os estudos preparatórios no colégio dos Padres Capuchinhos e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa. Cumpriu o serviço militar de Maio de 1966 a Janeiro de 1968, em três volumes, baseando-se em apontamentos quase diários, descreve algumas das suas experiências. Avisa logo que não pretende colocar nas nossas mãos uma peça literária quer dar-nos um testemunho dos seus registos da época, tal qual.

O primeiro volume intitula-se “Guiné 1966, reportagens da época”, é uma edição de autor sem data. Tudo começa por um reencontro da malta da CCAÇ n.º 1546, e ele abre assim as hostilidades: “Compareceu o comandante do batalhão, alquebrado pelos anos, mas cheio ainda, de lucidez e vivacidade. Homem de ação, dinâmico e generoso, sabia merecer o respeito de todos os que dele dependiam. Compareceu o comandante da companhia, o homem que todos detestavam. Foi, enquanto comandante, uma pessoa em cuja alma a generosidade e o humanismo não tinham lugar. Porém, nada cura melhor que o tempo. Trinta anos foram suficientes para desfazer ressentimentos e apagar da memória a lembrança dos atos mais mesquinhos. Sem mágoa e sem desejos de vingança, na hora do reencontro, todos lhe estenderam a mão”.

Chegam à Guiné a 12 de Maio, do Uíge passaram para a Bor, rumo a Bambadinca, vão atormentados pela sede, chegaram ao destino já alta noite. Espojaram-se pelo chão, só na manhã seguinte é que haveria transporte para Nova Lamego. Feita a viagem, foram encaminhados para Piche, ali acantonam. A 21, escreve: “Dois pelotões da minha companhia abandonaram Piche, rumo a Nova Lamego, ali irão permanecer alguns meses”. Ele também devia seguir para Nova Lamego. Mas vemo-lo logo em Buruntuma, onde ele escreve a 26: “Piquei a estrada de Buruntuma a Caium, escoltei uma coluna de viaturas até Camajábá”. E habitua-se ao troar da artilharia entre Buruntuma e a Guiné Conacri. Chega uma DO 27, ao procurar aterrar foi alvejada com rajadas de armas automáticas, foi necessário chamar os Fiat. Comentará mais tarde: “Os ataques que sofremos tinham sido obra das tropas regulares da Guiné Conacri, aquarteladas em Kadica. Mas o preço que pagaram foi bastante caro. Grande parte das suas instalações ficaram arrasadas pelo fogo dos nossos morteiros”.

No início de Junho abandonam Buruntuma, regressam a Nova Lamego, a CCAÇ 1546 irá escoltar uma coluna de reabastecimento a Beli, no regresso sofrerão duas emboscadas; mais tarde haverá uma coluna de reabastecimento a Madina de Boé. Dias depois, seguem rumo ao Che-Che, escoltando uma coluna que vai até Beli, atravessaram o rio Corubal, pernoitaram na outra margem. Estamos no dia 10: “A poucos metros do cruzamento da estrada de Madina de Boé uma viatura fez explodir uma mina. O condutor quebrou uma perna e tivemos mais dois feridos ligeiros”. Só na manhã seguinte seguem para Beli: “A meio do percurso, uma viatura acionou outra mina-anticarro e verificaram-se mais dois feridos. Em Sutumaca rebentou outra mina anticarro e tivemos mais alguns feridos. Desta fez a viatura danificada ficou abandonada no local”. Mais adiante haverá uma emboscada, com mortos e feridos. E assim chegaram a Beli, que ele descreve: “Era uma pequena povoação perdida a Leste de Boé, isolada do resto do mundo durante a época das chuvas, guarnecida por um pelotão de atiradores de infantaria, homens que nunca entenderão a causa pela qual durante meses lá tiveram que permanecer esquecidos”. Voltam a atravessar o rio Corubal, uma viatura foi parar ao fundo do rio. A 20, estão já em preparativos para o reabastecimento Madina de Boé onde está a companhia n.º 1516 e ele comenta nas suas notas: “Um nome que apenas faz lembrar, a quem o escuta, o sofrimento de um grupo de homens valerosos que, estoicamente, ali vão permanecendo”. Tudo correu bem durante a ida e a volta.

No início de Junho estão de novo a caminho do Che-Che, procedem a um patrulhamento, nada a assinalar. Nas suas notas vai comentando o comportamento da seleção portuguesa no campeonato do mundo de futebol, Portugal vence a Hungria, a Bulgária e depois a Coreia do Norte. A 25, estão novamente de rumo a Piche, vão à terra dos Bucurés. Vaza nos seus apontamentos as suas inquietações e as dos outros, o alcoolismo está a trepar, os soldados da 1546 começam a dar sinais visíveis de desgaste. E voltam ao Che-Che, e ele escreve: “Entre Madina e o Che-Che detetámos três minas anticarro. Duas, convencionais, levantaram-se. Uma, de caixa em madeira, de modelo desconhecido, fez-se explodir no local. Ao atravessar novamente o Corubal, nova viatura caiu ao rio". Redobram as censuras ao comportamento do capitão, certa vez para castigar o cozinheiro levou-o no jipe e largou-o a cerca de vinte quilómetros de distância, na estrada de Sonaco. Toda a companhia protestou, houve zaragata brava, foram buscar o pobre do cozinheiro. No dia 21 de Setembro, vemo-lo em Farim, vem em serviço enquanto a companhia seguiu para o Enxalé onde vai efetuar a operação “Girandola”. A 11 de Outubro, deslocam-se para o Enxalé, é a operação “Granizo”, sem resultados, regressam a Nova Lamego, e depois são enviados para Fá, patrulham Mero, uma tabanca Balanta junto da margem esquerda do Geba, e no fim do mês seguem de novo para o Enxalé, novamente sem resultados. E seguem para o Xitoli, juntamente com tropas do Xime. Trata-se de uma operação até Galo Corubal, os guerrilheiros não ofereceram resistência, as nossas tropas incendiaram o acampamento e capturaram algum material, o regresso foi cansativo mas sem problemas. No fim de Novembro, saem de Fá e vão numa operação até Porto Gole. Seguem pela estrada entre Porto Gole e Mansoa, ficamos sem saber onde era o objetivo, entraram na base dos guerrilheiros à hora do almoço, foi um sucesso, capturaram algum armamento. Vai registando nos seus apontamentos alguns acidentes, coisas estúpidas e desgastantes. E em meados de Dezembro vão até ao Buruntoni, na região do Xime, voltaram a apanhá-los de surpresa, era a hora do almoço, entraram na maior surpresa na base da guerrilha, apanharam nove armas e incendiaram tudo. Com inocência, escreve: “O Buruntoni, enquanto mito, deixava de existir”. E seguem para Bissau, têm outro destino para cumprir depois daquela itinerância estranhíssima na região de Nova Lamego. Vão ficar instalados na fortaleza, passam o Natal em Bissau e no dia 26 seguem na LDG Alfange até Farim.

Estamos no dia 31, e ele escreve: “Estou convencido de que esta guerra em que andamos metidos dificilmente terá uma solução militar”. Assim chega ao termo o primeiro volume de apontamentos de Domingos Gonçalves da CCAÇ 1546 que, conjuntamente com as CCAÇs 1547 e 1548, pertencia ao BCAÇ 1887. Não há uma explicação sobre esta errância, sete meses na pura intervenção, desligados das outras companhias, não há uma só palavra sobre a sede do batalhão. O jovem Domingos Gonçalves é profundamente crítico da hierarquia e há uma virtude que ninguém lhe pode tirar: é praticamente um cronista anónimo, só lá para meio das suas notas é que sabemos que é alferes, isso tem a ver com os valores e princípios que defende, vemo-lo igualmente crítico perante o alcoolismo e a existência daqueles quartéis no Boé que eram meros destacamentos sem população, sacrificados à plena liberdade de ação dos guerrilheiros.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14082: Notas de leitura (660): “Crepúsculo de Sangue”, de Nelson Leal, Lugar da Palavra Editora, 2013 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14077: Conto de Natal (22): Uma bênção dos Céus (Domingos Gonçalves)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 17 de Dezembro de 2014:

Prezado Luís Graça
Para si, seus familiares e amigos, e para todos os que, colaboram, ou visitam, a TABANCA GRANDE, os mais sinceros votos de FELIZ NATAL, e de um ano de 2015 repleto de muitas coisas boas, em especial saúde.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves


CONTO DE NATAL

O senhor Joaquim era um homem pobre. Possuía, é certo, um pequeno casebre meio arruinado, que o abrigava da intempérie, e ao lado umas leiras estreitas, onde colhia, alguns produtos agrícolas, regados com suor, e lágrimas, que ajudavam a matar a fome à mulher, e aos filhos. Todavia, os cereais, - milho e centeio -, com que a mulher, em casa, fabricava o pão, tinha de os comprar aos lavradores da aldeia. Com o azeite, e com o vinho, passava-se a mesma coisa: tinha de os comprar.

Quando os proprietários da aldeia lhe davam a ganhar alguns dias, como jornaleiro, na época das colheitas, ou das sementeiras, vivia melhor. Quando isso não acontecia, a miséria em casa era uma realidade.

Possuía, também, algumas ovelhas, que ora pastoreava nas pequenas leiras, que eram terra sua, ora pelos montes da aldeia, nos terrenos dos lavradores mais tolerantes, pois havia alguns que não consentiam que a ovelha, ou a cabra, do pobre, comessem as ervas, ou o mato, que vicejavam nos seus terrenos.

Um dia reparou que uma das ovelhas andava prenhe, e ficou contente. Era uma bênção de Deus.
Em casa comentou com a mulher, e com os filhos:
- Que sorte a nossa! A cria vai nascer antes do Natal. Já temos garantido o dinheiro para comprar o bacalhau, e outras coisas boas. Mesmo que venda o anho mais tarde, lá para Janeiro, ou Fevereiro, o bendeiro fia de nós, pois sabe que temos um anho para vender.

Desabafava:
- Este ano até podemos dar uma esmolinha ao Menino Jesus.

O filho mais novo, que frequentava a catequese, para fazer a primeira comunhão, satisfeito, dizia para os pais, e para os irmãos:
- Quem leva a esmola para dar ao Menino, sou eu.

A ovelha que andava prenhe foi uma bênção caída do céu, um raio de esperança, prenúncio de uma ceia de Natal melhorada, para toda a pobre família.

Um certo domingo, no fim da missa da manhã, um rico lavrador da aldeia abordou o pobre homem, para lhe oferecer trabalho.
Disse-lhe:
- Queres-me roçar uns carros de mato, durante a semana que vem?
- Quero! – Respondeu-lhe, com ar feliz -. Posso-lhe roçar todo o que precisar.

Sempre que alguém lhe oferecia trabalho, não desperdiçava a oportunidade de ganhar algum dinheiro.

De seguida, foram os dois, - o lavrador e o jornaleiro -, ao monte ver o local onde crescia o mato que devia ser roçado.
Acertado o preço do trabalho a realizar, e a quantidade de mato que devia ser roçado, o jornaleiro pediu ao lavrador:
- Quando vier roçar o mato posso trazer as minhas ovelhas, e deixá-las a pastar aqui, nos seus terrenos, enquanto trabalho?
- Claro que podes. Deixa-as pastar, por aí, pois não me incomodo com isso.

Nos dias seguintes o homem levantou-se cedo, foi par o monte roçar o mato, e levou com ele as ovelhas. No fim da jornada de trabalho, conduzia-as para casa.
Porém, num certo fim de tarde, quando juntou os animais, para regressar a casa, reparou que lhe faltava a que andava prenhe.
Tinha desaparecido.

Desconsolado, chamou e voltou a chamar pelo animal, procurou à volta, mas da ovelha prenhe não havia rasto.

Quando chegou a casa, a chorar, disse para a mulher, e para os filhos:
- A ovelha prenhe desapareceu! Lá se foi a nossa ceia de Natal.

Uma onda de tristeza espalhou-se pelo rosto da mulher, e dos filhos. A esperança deu lugar ao desencanto. Todo o ambiente da família se alterou. Sem dinheiro, não podia haver ceia de consoada.
- Terá sido o lobo a comê-la? – Perguntou a mulher.
- O lobo, não, - disse-lhe -. Este ano ainda não apareceu por estes montes.

No meio de todo aquele desespero, apenas o filho mais pequeno, que ainda não tinha feito a primeira comunhão, repetia, confiante:
- Ela vai aparecer. O Menino Jesus vai trazê-la. Eu vou lhe pedir, e ele vai fazer o milagre.

No dia seguinte, pai e filhos foram, logo que alvoreceu, para o monte procurar a ovelha, cada vez para mais longe.
Mas, da ovelha prenhe não encontravam nenhum vestígio.
O pai, perdia a esperança. Só o pequerrucho insistia:
- Ela vai aparecer. O Menino Jesus vai fazer o milagre.

No dia seguinte, ajudado por alguns vizinhos, o pobre homem foi de novo procurar a ovelha, mas em vão.
Desanimado, por entre lágrimas, repetia:
- Lá se foi a minha ovelha, e o anho que trazia na barriga!

Onde antes reinava a esperança, agora imperava o desespero, e a tristeza.

Quando, ao fim da tarde, depois de muito procurar, já sem esperança regressavam a casa, o rapazito diz para o pai:
- Olha acolá uma ovelha! É a nossa, de certeza!

O pai olhou para o sítio que o filho lhe indicara, e exclamou satisfeito:
- Tens razão, filho! É a nossa ovelha!

E correu para ela cheio de esperança.

O dócil animal encontrava-se numa pequena leira, bastante perto da casa do pobre homem, onde nunca a tinham procurado.
Quando chegou ao local o homem verificou que a ovelha tinha dado à luz não um, mas dois lindos anhos, que estavam junto da mãe, que se entretinha a pastar algumas ervas.

Delirante, o pobre homem ergueu as mãos ao céu, e gritou agradecido:
- Graças a Deus! Graças a Deus!

Cheio de alegria, o filho mais pequeno gritou, também:
- Foi o Menino Jesus quem a trouxe! Foi ele que fez o milagre! Quem lhe vai dar a esmola, quando estiver no presépio, tenho de ser eu. Eu pedi-lhe, e ele trouxe-nos a ovelha.
- Está bem, filho! – Disse o pai -. Vais ser tu a agradecer-lhe.

E na casa do pobre homem, na noite de Natal, houve muita alegria, e ceia melhorada.

Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14056: Conto de Natal (21): Mãe, espero que vossemecê faça o presépio ao pé do forno de lenha (Mário Beja Santos)