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segunda-feira, 5 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17435: Os nossos camaradas guineenses (45): Encontro no LNEC com o Augusto Delgado, ex-Fur Mil da CCAÇ 18, hoje Engenheiro Técnico (Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)

 
Augusto Delgado e Hélder Sousa, Engenheiros Técnicos da Guiné-Bissau e de Portugal


ENCONTRO COM GUINEEENSE NO IV CONGRESSO DA OET

Na quinta e sexta-feira passados ocorreu em Lisboa, nas instalações do LNEC (Laboratório Nacional de Engenharia Civil), o IV Congresso da OET (Ordem dos Engenheiros Técnicos), que é a minha Ordem profissional.

Tal evento decorreu de modo muito satisfatório, segundo a minha opinião, com temas muito interessantes e com bastante participação, quer na assistência, quer nas intervenções.
Foram abordadas questões como a “Reabilitação, Revitalização e Regeneração urbana”, cruzando com a interrogação “E se houver um sismo em Portugal” a propósito de não se aproveitar para se enquadrar o “reforço anti-sísmico” no âmbito da “reabilitação”, também se debateu o “Plano Nacional de Segurança Rodoviária”, o aproveitamento do Montijo para aumento temporário da capacidade do Aeroporto de Lisboa, etc., sendo que um aspecto importante teve a ver com “A livre circulação de profissionais de engenharia no mercado global”.

É relativamente a este último aspecto que o assunto se cruza com a Guiné. Foi criada uma Entidade para agrupar os países de expressão portuguesa, concretamente a “Associação de Engenharia de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho” e, nesse âmbito, houve intervenções de pessoas do Brasil, de Cabo Verde, de Angola e da Guiné-Bissau.
A representação deste último País recaiu no Engenheiro Técnico Augusto Delgado, na qualidade de Presidente da Associação Guineense dos Engenheiros Técnicos que, na sua intervenção, teve oportunidade de dar conta da dificuldade que é exercer a actividade de modo sério, competente e responsável em face das (nossas) conhecidas ‘facilidades’ com que as mesmas se desenrolam no seu dia-a-dia, com a agravante das constantes mudanças de dirigentes e outros responsáveis.

Notou-se a sua dificuldade em se mover e fiquei a saber que tal se devia a um relativamente recente episódio de AVC que lhe deixou sequelas, com implicações ao nível dos seus membros inferior e superior, do lado direito, também na vista e um pouco menos na fala.

Consegui estar e falar um pouco com ele, o que não foi fácil, mas fiquei a saber que é “mancanha”, oriundo da zona de Bula/Có, fez o seu curso na Escola Industrial de Bissau (era um dos que estudava sob a luz da iluminação na então Praça do Império em frente ao Palácio do Governador), fez estágio na Lisnave, prestou serviço militar na tropa portuguesa, em 72/74, como Furriel Miliciano na CCaç 18, na zona de Aldeia Formosa (Quebo, actualmente).

Tirámos uma foto, que anexo.
Será que algum dos nossos membros desta “Tabanca” se recorda dele?

Hélder Sousa(*)
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Notas do editor

(*) - Hélder Valério de Sousa foi Fur Mil de TRMS TSF em Piche e Bissau, nos anos de 1970/72

Último poste da série de 18 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16213: Os nossos camaradas guineenses (44): Criada, em Bissau, a Associação dos Filhos e Viúvas dos Antigos Combatentes das Forças Armadas Portuguesas (AFVCFAP): presidente Suleimane Camará (Idrissa Iafa, jornalista, Rádio Pindjiguiti)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (38): De 10 a 31 de Julho de 1974

1. Em mensagem do dia 11 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma das suas Memórias, a 38.ª.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

38 - De 10 a 31 de Julho de 1974

Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 
(continuação)

JUL74/10 – (...). Continua a verificar-se o cessar-fogo tácito em todo o TO. Prossegue a mentalização das populações, militares e milícias africanos, como preparação para a Independência. Continua a notar-se a adesão ao PAIGC da população, especialmente dos mais jovens, notando-se por enquanto nos Homens Grandes uma certa reserva.

JUL74/11 – (...). Após a passagem por A. FORMOSA de um Furriel dos Comandos Africanos, começou a esboçar-se na CCAÇ 18 uma mudança de atitude quanto ao problema da entrega do armamento e passagem à disponibilidade. Embora ainda não tivessem sido recebidas directivas a este respeito, dentro da mentalização que se vem fazendo tem-se de facto notado ultimamente esta mudança de atitude.

JUL74/19 – (dos Factos e Feitos, pág. 31). A fim de assistir a uma reunião no Comando-Chefe, respeitante a contracção do dispositivo das NT e receber directivas, seguiu para BISSAU o Comandante.

Tendo sido recebidas as directivas para desactivação dos Pelotões de Milícias, foram reunidos no Comando do Batalhão, o Comandante do Batalhão, Comandante da Companhia de Milícias, assim como os respectivos Comandantes de Pelotão, a quem foi comunicado, em sequência da mentalização que se vinha fazendo do antecedente, a maneira como iria ser feito o seu desarmamento e as condições em que os referidos milícias continuariam a usufruir das suas regalias.

Após várias trocas de impressões ficou assente que se iniciava o respectivo desarmamento no dia seguinte. Quanto às populações que tinham armamento distribuído para colaborarem nas autodefesas, e para se proceder ao seu desarmamento, foram reunidos neste Comando todos os “Homens Grandes”, entre os quais se encontravam o Régulo IAIA e o CHERNO SECUNA.

JUL74/20 – Iniciou-se sem quaisquer espécies de problemas o desarmamento dos Pelotões de Milícia do Sector S-2.

JUL74/21 – Comandante regressou de BISSAU.


Das minhas memórias: 

21 de Julho de 1974 (domingo). Guerrilheiros do PAIGC em Nhala (novamente). 

[Salto as notas deste dia. Quero realçar a seguir, algumas fotografias que ajudam à compreensão da época que se vivia. (Julgava que já tinha sido claro a esse respeito). Estas fotografias são importantes, na medida em que mostram o contexto em que se faziam certos “disparates” (como vestir uma camisola com a cara do Amílcar Cabral, fazer-se fotografar ao lado do inimigo, etc.) que tanto chocam hoje os veteranos que não viram o fim da guerra. É devido a esse contexto que eu desvalorizo esses disparates e, se os compararmos, por exemplo, com o hastear da bandeira do PAIGC nos quartéis ou nas tabancas, quando Portugal continuava a manter ali a soberania, o que se dirá então? Chocante? Estou convencido que isto estava a acontecer um pouco por todo o lado na Guiné e, o que ontem era chocante, hoje banalizou-se, perdeu importância e não tem retorno].

Nesta data, 21-07-74, chegaram mais uma vez os guerrilheiros. Pediram autorização para dormirem na escola. Aí, hastearam a bandeira do PAIGC e, quando chegou a hora, procederam à cerimónia de arrear a bandeira. O único incidente passou-se comigo. O alferes do PAIGC no fim da cerimónia abordou-me (eu estava a fotografar), para dizer que quando estavam a entrar Nhala e nós procedíamos ao arrear da nossa bandeira, todo o bigrupo parou em sentido, mesmo os que ainda estavam fora do aquartelamento. Agora ali, eu não mandara pôr em sentido os soldados – e eram muitos – que assistiam ao arrear da bandeira deles... Achou que não houve retribuição nas honras à bandeira. Como se as honras devidas à bandeira de um país soberano, fossem as mesmas a prestar à bandeira de um partido que, oficialmente, ainda não passava disso.

[Era este contexto concreto o que se vivia e não outro, como ainda há dois ou três meses atrás. E que adiantava agora lembrarmo-nos que foram eles que feriram e mataram os nossos amigos e companheiros de armas? Tão despropositado como admitir-lhes que entrassem pelo aquartelamento adentro, à procura de quem lhes matou o familiar ou o camarada. Todos sabíamos que o nosso convívio com eles estava por dias apenas e, com maior ou menor frieza e distanciamento, tínhamos de lidar com eles sem conflitos desnecessários, sendo certo que era com eles que seriam tratadas as formalidades da entrega do território. 

Receio que tudo o que ficou dito possa parecer uma grande necessidade de justificação da minha parte. Deixo já claro: não o faria e não voltarei a abordar o assunto. Mas gostava, sinceramente, que quem não viveu aquele período inédito do fim da guerra, pudesse partilhar a minha informação, histórias e fotografias (mais as dos outros que “fecharam” a guerra), sem as tentar compreender à luz de um tempo passado. Mas, até a nós, o tempo novo, de tão novo e tão inédito, todos os dias nos surpreendia: nada estava previsto, pouco se conseguia planear e a maioria das situações eram resolvidas à medida que surgiam. Apenas as directivas superiores, quando chegavam, eram aplicadas sem empenhos imaginativos. 

Nota: As fotografias a cor, derivadas de slides, são minhas. As outras foram-me cedidas pelo meu amigo ex-Furriel Mil Trms José Roque, a quem agradeço]. 

Foto 1 – Nhala, 21-07-1974. Guerrilheiros do PAIGC na tabanca. Sempre muito disciplinados e contidos.

Foto 2 – Nhala, 21-07-1974. O Alferes Mil. Campos Pereira, actualmente Comandante da Companhia, circula pensativo por entre os guerrilheiros.

Foto 3 – Nhala, 21-07-1974. Alferes do PAIGC, Fur Mil Trms J. Roque e um guerrilheiro.

Foto 4 – Nhala, 21-07-1974. Alferes do PAIGC e alguns militares de Nhala trocando impressões.


Fotos 5 e 6 – Nhala, 21-07-1974. Bandeira do PAIGC hasteada junto à escola.

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Notas quase “telegráficas” dos meus últimos dias na Guiné.

20-07-1974 – Ainda não sei se terei de cancelar as férias. Os acontecimentos estão a evoluir rapidamente. (No dia seguinte anotaria que tinha sabido de Bissau que estava tudo pronto para viajar); temos já directrizes sobre a forma de entregarmos as instalações e os equipamentos ao PAIGC; recebemos ordens de desarmar as populações; o nosso armamento está ser limpo e encaixotado; o Comandante do Batalhão foi chamado a Bissau para receber instruções.

22-07-1974 – A Companhia de Mampatá já tem dois grupos em Buba que embarcam amanhã. Os outros dois em Mampatá, (...); continuam a sair companhias do teatro de operações (TO).

28-07-1974 – Sigo amanhã para Bissau. Em 1 de Agosto embarco de férias para a Metrópole; por aqui muita chuva; continuam a sair Unidades.

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Retomo a História da Unidade. 

JUL74/22 – Pelas 10h00 quando o Comandante e o Oficial de Operações se deslocavam para MAMPATÁ contactaram com GR/PAIGC, estimado em 40 elementos armados e que se encontravam estacionados junto do Reordenamento/ÁFIA, e cujo Chefe se encontrava em MAMPATÁ.
Contactado o mesmo neste Destacamento, em conversa cordial disse chamar-se RAYMO CHAMBU e obedecendo a ordens superiores, tinha saído há dois dias de KANSEMBEL para efectuar um patrulhamento a esta região, mas que nesse dia regressaria.

- Procedeu-se em A. FORMOSA à inauguração da Sala do Soldado, que tomou o nome de Sala “25 de Abril”.

JUL74/23 – Completou-se o desarmamento dos Pelotões de Milícia de CUMBIJÃ, A. FORMOSA, COLIBUIA, ÀFIA e MAMPATÁ.

- CART 6250 deixou o Subsector de MAMPATÁ, seguindo para BISSAU, via BUBA, para aguardar embarque para a Metrópole.

- A pedido de duas comissões organizadas por militares da CCAÇ 18, e Milícias, foi pedido a BISSAU autorização para os mesmos se deslocarem ao Comando-Chefe para tratar de diversos assuntos relacionados com o desarmamento dos militares e algumas regalias pecuniárias dos milícias. [Sublinhado meu, tal como seguintes].

- Com o desarmamento dos Pel Mil de BUBA e NHALA, completou-se o desarmamento de todos os pelotões de Milícia do Sector S-2.

JUL74/24As comissões da CCAÇ 18 e Milícias seguiram para BISSAU via fluvial.

(...).

JUL74/28 – Escalou A. FORMOSA o NORD ATLAS. Neste avião regressou a comissão da CCAÇ 18, que em reunião havida neste Comando relatou as suas diligências em BISSAU.

JUL74/29Apesar das diversas reuniões havidas com elementos da CCAÇ 18, estas mostraram-se na disposição de não entregarem o armamento, mesmo aqueles que conforme comunicação da 1.ª Rep/CTIG, acabaram o tempo normal de serviço e têm de passar à disponibilidade.

Presume-se que esta sua atitude esteja relacionada, não só com a vinda do Furriel Comando Africano a A. FORMOSA, como também com atitudes tomadas pelo PAIGC em algumas regiões já sob o seu controle. 

(...).

JUL74/31 – Esteve presente em A. FORMOSA uma delegação da 4.ª Rep/CTIG, chefiada pelos Exmos Majores PIRES AFONSO e COSTA PINTO, que veio tratar de assuntos relacionados com a desactivação de COLIBUIA e CUMBIJÃ em particular e duma maneira geral da desactivação do Sector S-2.

- Acompanhados do Comandante deslocaram-se a COLIBUIA e CUMBIJÃ e acompanhado do Oficial de OP/INF deslocaram-se a BUBA e NHALA.

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Eu já não iria assistir à desactivação de nada. A não ser à desactivação de mim próprio dali a um mês em Lisboa, bilhete na mão a sair de casa da tia no Restelo para o Aeroporto, telefone a tocar, não embarques, já regressaram todos, passou aqui um soldado de Coimbra em casa dos teus pais a avisar, que bom, podes voltar já para casa... [Uns segundos de silêncio, uma coisa a nascer-me no estômago, sem querer acreditar no que ouvia. A seguir, explodi]. Que bom, uma porra! Já pensaste que entregaram aquilo sem eu estar presente, vim sem me despedir de ninguém, vou lá deixar a roupa e o meu dólmen, os livros, os diários, o artesanato, o meu caixote de uísque, a minha pressão de ar 4,5, etc., etc. Que pulhice foi esta? Porque não me chamaram? E agora ainda tenho de pedir à tia que me deixe ficar para amanhã, a ver se descubro onde e quem me desactive de vez.

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Deixo algumas fotografias da viagem de Aldeia Formosa para Bissau, com paragem em Catió. Sem o saber, estava a fotografar aquelas terras pela última vez. Não precisam legendagem.







Fotos 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13.

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 9 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15728: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (37): De 1 a 8 de Julho de 1974

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15376: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (29): De 08 a 16 de Abril de 1974

1. Em mensagem do dia 14 de Novembro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 29.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

29 - De 8 a 16 de Abril de 1974

Da História da Unidade do BCAÇ 4513: O reconhecimento de Sua Excelência

ABR74/08 – (...) De Sua Excelência o General Governador e Comandante-Chefe, foi recebida uma mensagem, manifestando o seu apreço pelo esforço desenvolvido pelo pessoal empenhado na segurança e trabalhos das duas frentes de estrada A. FORMOSA-BUBA.


Das minhas memórias:

15 de Abril de 1974 – (segunda-feira) – A estrada. Sempre a estrada

Em carta para a Metrópole refiro a dado passo: “Neste momento estão, ao todo, 7 grupos de combate em Nhala. Três, para além dos da minha Companhia, devido às obras da estrada nova. As máquinas ficam no mato a cerca de 9km daqui e temos de pernoitar lá para as proteger. Ainda mais, junto a um corredor do PAIGC. Passam-se, assim, 26 horas fora do aquartelamento”.

Era mesmo assim. Depois do encontro das duas frentes de trabalho ocorrido no passado dia 7 e com as máquinas a operar cada vez mais longe, para além das picagens de manhã cedo e da protecção às obras ao longo do dia, ainda tínhamos que dormir no mato para proteger a maquinaria. Era necessário rodar os grupos de combate nestas rotinas. Daí o reforço da tropa em Nhala.

E como era dormir no mato, em campo aberto, quase em cima de um trilho do inimigo? E, já agora, como era a última refeição do dia em tais circunstâncias? Tentarei dar uma ideia a seguir. Antes, referir que a preparação, de véspera, para um dia tão longo, era feita com mil cuidados e muitas preocupações. A Engenharia construíra no local de pernoita um abrigo à superfície, apenas com terra, que parecia uma LDG com uma barreira de segurança que a dividia em duas. Era assim uma espécie de barca do inferno mas, para não associar o Gil Vicente a um empreendimento sem grandiosidade, chamar-lhe-ei “LDG” em terra.

Antes de escurecer instalávamo-nos na “LDG” e organizávamo-nos como num destacamento, de modo estratégico e com sentinelas toda a noite em rotação. Dada a proximidade da mata nas nossas costas, o que eu mais temia era um assalto. E nós éramos apenas um grupo de combate desfalcado. Instruía todos para essa eventualidade. Recordo bem que, a pensar nessa situação extrema, arranjei de véspera uma saca velha de farinha e nela carreguei seis ou sete granadas defensivas (um peso do caraças, para além das que sempre usei à cintura), e que foi a minha cabeceira no dia das fotografias que junto.

Da mata à nossa frente, muito para além da estrada, e onde por mais de uma vez foram vistos vultos em movimento na orla, o meu receio era a flagelação prolongada. Mas também essa hipótese foi acautelada com maior quantidade de granadas.

Outro receio fundamentado era que, de manhã, com a chegada dos novos grupos de combate e as viaturas que nos levariam de regresso, fôssemos atacados aproveitando a inevitável confusão e excesso de homens no terreno, como já ocorrera noutros locais. Mas nem de noite nem de manhã aconteceu nada. Também poderíamos ser emboscados na correria maluca de regresso a Nhala, duas ou três viaturas com um pelotão mal dormido, desacautelado de cuidados. Enfim, mesmo ao almoço não estávamos livres de nos engasgarmos e morrermos asfixiados com as salsichas da bianda...

Imagem de satélite do Google Earth (2013), com a devida vénia, onde realcei a branco a estrada de A. Formosa-Buba (1973-74). A linha que tracei do “carreiro” de Uane é aproximada e intercepta a estrada (círculo vermelho) a, mais ou menos, 9 km de Nhala. Do lado de Buba não recordo a localização dos carreiros. As imagens que se seguem referem-se a uma das dormidas no mato na zona do círculo vermelho. 

Foto 1: Abril de 1974 – Local de concentração das máquinas da Engenharia após mais um dia de trabalho. É aqui que iremos passar a noite para a sua protecção. Em primeiro plano, parte do pessoal de um grupo de combate da CCAÇ 18, creio, que estiveram com o meu grupo na protecção às obras durante o dia, e que agora se preparam para regressar a A. Formosa, deixando-nos sós. Vê-se uma White dos nossos camaradas da Cavalaria que os vão acompanhar. Tirando este bocadinho de terreno com sombras, onde até se podia fazer um piquenique, tudo em redor é inóspito e desolador. Um cenário de matas e terras revolvidas, quase apocalíptico. Em contraponto, o humor do pessoal parecia desenquadrado, como se não estivessem ali para o que se sabia. E quando assim era, significava que nada de mal nos acontecia. E não aconteceu.

Foto 2: Lamentavelmente desfocada, mas única, esta fotografia de mais alguns elementos do grupo de Cavalaria. 

Foto 3: Todo o pessoal abandona o local e regressa a A. Formosa. Esta White teve um dia uma fraqueza de ânimo mesmo à minha frente, em Nhala. Mais tarde contarei o episódio.

Foto 4: O meu grupo de combate dispersa-se e toma a última refeição do dia, antes de se abrigar para passar a noite. Que virá rápida. De pé, da esquerda para a direita: Furriel Oliveira, Rui Pereira, Furriel Pastor e 1.º Cabo “Tarouca”. Sentados: Manuel Gomes, à esquerda, e o Baptista à direita. O do centro não recordo o nome. 

Foto 5: O Furriel Oliveira faz a distribuição de água. 

Foto 6: Este é o Victor, andrajoso mas de grande carácter e bonomia. E safado. Foi preciso a película dos slides fazer o périplo Guiné-Metrópole-Espanha-Metrópole-Guiné, para eu perceber aquele riso sarcástico: tinha as calças rotas e uma exposição indecorosa. Na altura, com o cantinho de uma lâmina raspei do slide as indecências. Quer dizer, estraguei o slide.

Foto 7: O grande e eficiente bazuqueiro do grupo, “Mafra” (por ser de lá). Ao fundo vê-se o 1.º Cabo maqueiro, Custódio. 

Foto 8: O Alferes António Murta a dar corda a uma lata de feijoada, creio. O que recordo bem é que no final do repasto comi duas ou três mangas apanhadas ali próximo (Samba Sabali?). Fora o conselho de alguém para que passasse a noite sem ter frio... 

Foto 9: Rapazes do melhor que havia, e eram muitos no meu grupo. Da esquerda para a direita: José Gomes, “Mafra”, Victor e Osório (de costas). O Osório é de Coimbra e encontrei-o uma vez, para alegria de ambos. Pena que não tenha fotografado a totalidade do grupo, mas nem sei se tinha película para todos. Nem os custos eram como os de hoje.

Foto 10: O Sol ainda não espreita. Uns dormem, outros vigiam. Eu recomeço a fotografar. Esta imagem foi captada da barreira que divide em dois o grande abrigo: “LDG” em terra, lado do morteiro. E de Nhala.

Foto 11: Ainda do lado do morteiro, com o pessoal já despertar. A humidade nos ossos ficaria ainda por muito tempo.

Foto 12: O lado oposto da “LDG” com o “posto de comando” em primeiro plano, onde se vê o Furriel Oliveira a tomar o pequeno-almoço junto à minha cama. Na minha cabeceira é visível o cordão da saca das granadas defensivas. Felizmente, teria de carregar com elas de novo no regresso. Próximo, vê-se o “posto de rádio”, com o operador ainda a dormir. Lá para onde o nevoeiro ainda tudo cobre, a meia dúzia de quilómetros, fica Mampatá.

Foto 13: Em tempo de guerra também se limpam armas, e o Fur. Oliveira esmera-se. Está na hora de “desembarcar” e montar guarda às viaturas que entretanto chegarão para nos levarem de regresso a Nhala. Não tarda, a nossa tranquilidade vai ser perturbada pela chegada, sempre caótica, dos grupos que nos virão render em jornada igual. Mas a nossa alegria vai ser muita ao vê-los chegar. Por nós, está cumprida a missão.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Poste anterior de 10 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15348: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (28): De 01 a 7 de Abril de 1974

terça-feira, 7 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14844: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (10): De 20 a 22 de Maio de 1973

1. Em mensagem do dia 3 de Julho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 10.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

10 - De 20 a 22 de Maio de 1973

20 de Maio de 1973 – Da História da Unidade BCAÇ 4513:

20 - A CCAÇ 18 e a CART 6250 patrulham e reconhecem uma das diversas tabancas de NHACOBÁ. Permanecem ali e cerca das 20h00 são flageladas com Morteiro 82, sem consequências.

- O Comandante interino do Batalhão deslocou-se a NHACOBÁ para apreciar a evolução dos trabalhos de estrada.


Do meu diário – notas curtas.

20 de Maio de 1973 – (domingo). Mampatá.

Mampatá. Serviço ao aquartelamento. O problema de se comandar uma Companhia (?). O camarada Esteves foi evacuado para Aldeia Formosa por suposta fractura no ombro, motivada por lançamento de dilagrama.
[Recordo uma manhã em que um alferes de Mampatá se levantou cedo para ir com o grupo para os lados de Cumbijã, tendo eu ficado na cama mais um bocado. Quando me levantei estava a passar para Aldeia Formosa uma evacuação e, na altura, disseram-me que se tratava do alferes saído há pouco para o mato e que dormia no mesmo “quarto” que eu. Não recordo o nome Esteves].

Dia sem incidentes (?) na “frente”, apesar do estado psíquico das NT. (Vários dias a dormir no mato e a comer ração de combate). Casos de insolação tratados em Aldeia Formosa. Pessoal excitado por longa permanência no mato não tem energia, mas quer por tudo entrar em Nhacobá. Soube-se que os “cabeças” pretendem que se entre lá de qualquer forma. Na retaguarda há expectativa, ansiedade e revolta muda. Grupos dos “velhinhos” com cerca de 18 dias além da comissão normal. Vão ter muito que esperar.

Recebi à noite directiva de Aldeia Formosa para avançar com o meu GC e com o GC “velhinho” da CCAÇ 3400, para Cumbijã. Um grupo de Colibuia passa a substituir o meu na segurança à retaguarda. Más perspectivas para amanhã.

Hoje, dia sem incidentes. Apenas à noite o rumor distante dos obuses.


21 de Maio de 1973 – Da História da Unidade BCAÇ 4513: 

21 - Forças da CCAÇ 18 estabelecem contacto IN armado de AAutm, RPG e MORT 60 tendo sofrido 1 morto, 1 ferido grave e 2 feridos ligeiros e causado 5 mortos ao inimigo.

- Às 21h15 a CCAV 8351 e a 3ª CCAÇ são flageladas em NHACOBÁ com MORT 60 e 82 e RPG da direcção (GUILEGE 3 D 5-36/3 E 4-34/2 E 7-38) sem consequências.

- O CMDT INTº do Batalhão deslocou-se a NHACOBÁ para apreciar a evolução dos trabalhos de estrada.


Do meu diário – notas curtas: 21 de Maio de 1973 – (segunda-feira). Cumbijã.

Cumbijã. Em princípio ainda não é desta vez que iremos para a frente (Nhacobá). O meu grupo ficou hoje aqui em Cumbijã de reserva e o grupo “velhinho” da CCAÇ 3400 de Nhala ficou de serviço.

Hoje os grupos na frente entraram em Nhacobá e houve recontro grave: morreu um soldado da 18 (Aldeia Formosa) e houve vários feridos graves, entre eles, um alferes com estilhaços na garganta.

O dia foi cansativo e aqui as condições são más: esta base, erguida a punho pela 51, não estava preparada para tanta tropa. Penaliza os que estão de passagem e, mais ainda, os que nos hospedam e tiveram de a construir. Contamos passar cá mais um dia. À noite Guilege foi atacada bem como Nhacobá, onde ainda não temos tropas fixas. Pela primeira vez ouvi tão perto um ataque de canhão e morteiro. Durou uns quinze minutos, tendo entrado em acção, como resposta, os obuses de Cumbijã, assim como o 14 de Colibuia.

Foto 1: 1973 - Cumbijã: Eu, acabado de chegar com o meu grupo de um patrulhamento onde cacei uma galinha-do-mato. E deixei fugir o seu par... Esse camuflado tresandava e, se me rio, deve ser a pensar no jantar melhorado.

Foto 2: 1973 - Cumbijã: Após um temporal, soldados da minha Companhia (2.ª CCAÇ) junto de coisas pessoais destruídas.

Foto 3: 1973 - Cumbijã: O alferes A. C. P. observa os estragos com o pessoal.

Foto 4: O alferes A. C. P. (e o alferes T. B. por trás dele), tentam animar o pessoal.

[Quando entrei em Cumbijã pela primeira vez, em data anterior a esta, foi-me explicado no terreno por um camarada da CCAV 8351, como foi erguer e ocupar aquele espaço agreste, traiçoeiro e minado, quase encavalitado nos terrenos do PAIGC: ia ser, e foi, o aquartelamento mais próximo de Nhacobá, e essa proximidade conferiu-lhe um alto risco de confrontos e flagelações. Isso teve custos altos, inclusive de vidas humanas, mas não afectou o ânimo dos que esticaram o arame farpado, abriram valas, ergueram postos de vigia e acomodações, estando sempre prontos para a sua defesa e para as incursões a que eram obrigados um pouco por toda a zona. Daí que, desde o primeiro dia, tivesse ganho um sentimento de admiração e respeito pelos Tigres de Cumbijã e em especial pelo seu comandante, Cap. Vasco da Gama que, soube eu na altura, tanto era capaz de dizer “não” aos seus superiores na defesa da sua Companhia, como era capaz de a galvanizar para a realização daquilo que, de facto, tinha de ser feito. Perturbava-me reparar que, apesar disto tudo, a “51” – como nós a chamávamos – não era poupada nas missões conturbadas daquela época. Às vezes parecia-me que era bem ao contrário. Aliás, é justo referir que de igual modo aconteceu com os “Unidos de Mampatá” (CART 6250) e com a CCAÇ 18 de Aldeia Formosa com quem, mais de uma vez, partilhei o chão de Nhacobá sob a inclemência das flagelações. Não digo isto, hoje, para ser agradável a quem quer que seja, mas porque é de toda a justiça que o diga, e por ter sabido sempre que o acolhimento que me dispensaram e aos demais grupos de reforço, quer em Mampatá quer em Cumbijã, foi o melhor possível para aquelas circunstâncias.

Esta época difícil marcou-me para sempre. Na qualidade de “periquito” e posto pela primeira vez perante tropa com esta tarimba, - experimentada e sacrificada -, (devo referir que a CCAÇ 3400 de Nhala nos confessou que tinha passado toda a comissão sem problemas), comecei a pôr-me “em guarda”, endurecendo e preparando-me para tudo. Foi por estas alturas e nos tempos que se seguiram que comecei também a conhecer-me melhor. [Grande confissão!]. Fui descobrindo, aos poucos, coragens ignoradas - daquelas que, devido às situações, não dá para confundir com fanfarronices ou bravatas -, maior sentido de responsabilidade e, até, maluqueiras de que não sabia ser capaz. Muita dessa “renovação” da personalidade e amadurecimento, ficou-me até hoje. Para o bem e para o mal].


22 de Maio de 1973 – (terça-feira) – Cumbijã

Hoje o meu grupo de combate ficou de serviço ao aquartelamento mas, por falta de pessoal, teve que fazer também de reserva. O pessoal está a ficar esgotado e desmoralizado: refeições fora de horas, excesso de trabalho, excesso de calor e falta de higiene. Ninguém tem outra roupa para vestir, nem um simples sabonete e uma toalha. Nem dinheiro: do que trouxe, já emprestei ao meu pessoal mais 1.500$00.

Hoje entrámos em Nhacobá para trazer o pessoal da Engenharia e as tropas que lá se encontravam. Aquilo é pequeno [? A base militar e a tabanca não era um conjunto pequeno], e bem no interior da floresta, com uma enorme bolanha do outro lado (oposto ao da nossa entrada). A orla da mata do outro lado da bolanha e na nossa frente, não controlamos. É daí que flagelam as tropas em Nhacobá.
Agora está tudo calmo, embora inspire respeito e recomende precauções. Os soldados já trouxeram de lá recordações (roncos), galinhas, cabras e fruta, só falta trazer o arroz que se encontra em grande quantidade em recipientes toscos.

Meteu-me bastante pena [!] ver a maquinaria revolver aquelas terras, destruir as galerias, abrigos e instalações subterrâneas na parte militar. Para ali se fazer mais um destacamento nosso. É evidente que o interesse é só estratégico e talvez estejam a pensar prosseguir com a estrada que ali chegou, para destinos mais ousados: talvez o Unal ou mais além, tudo controlado pelo PAIGC.

À noite, mas desta vez mais cedo, houve novo ataque IN com canhões aos locais de ontem. Mais uma vez, as nossas peças a responder.

Foto 5: 1973 - Nhacobá: Um aspecto da tabanca bem no interior da floresta e o alferes A. C. P.

Foto 6: 1973 - Nhacobá: Aspecto da tabanca vendo-se alguns recipientes onde guardavam o arroz.

Foto 7: 1973 - Nhacobá: Abrigo antiaéreo subterrâneo camuflado por um “telhado” de palhota.


 Fotos 8 e 9: 1973 - Nhacobá: Entrada de abrigos pouco antes de serem destruídos pelas máquinas da Engenharia.

Foto 10: 1973 - Nhacobá: Orla da mata junto à grande bolanha. À esquerda o Furriel J. C. a comer com o Furriel M. C.


Fotos 11 e 12: 1973 – Nhacobá: Vista da grande bolanha a partir da orla da mata. Era do outro lado, na orla que se vê ao fundo, que os guerrilheiros nos atacavam, sobretudo com canhões e morteiros, sempre que nos pressentia em Nhacobá.

(Continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14813: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (9): 16 a 19 de Maio de 1973

terça-feira, 30 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14813: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (9): De 16 a 19 de Maio de 1973

1. Em mensagem do dia 25 de Junho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

9 - De 16 a 19 de Maio de 1973


16 de Maio de 1973 (quarta-feira) - Tudo é instável e provisório

O meu Grupo de Combate entrou de serviço às 6 horas da manhã. Entreguei-o à responsabilidade dos meus furriéis e, aproveitando uma coluna, fui a Aldeia Formosa pedir contas ao Cap. J. C. Cmdt de Operações) e falei também com o Major D. M. para saber qual a nossa futura situação e para me arranjar o armamento necessário. Fiquei a saber que não continuaremos aqui em Mampatá depois da “grande operação” (3 dias), [BALANÇO FINAL], e que o armamento só me será entregue à tarde, porque chegará num avião (Nord-Atlas) por volta das 17 horas. Fiquei para almoçar lá, regressando a Mampatá quase de noite com uma escolta e trazendo 2 morteiros de 60 mm e 2 bazucas (LGF).

Em Aldeia Formosa reina a confusão, devido ao do excesso de tropas e, talvez, falta de organização, tudo por causa da “grande operação”. Será o objectivo da “operação” a entrada em Nhacobá? [Naquela altura ainda era uma base do PAIGC e respectiva tabanca]. “O problema das estradas”: focar e desenvolver. [Nunca cheguei a desenvolver o tema mas, neste caso, não tinha muito que saber: alguém traçou uma estrada que vinha de Mampatá, passava por Colibuia e Cumbijã e entrava Nhacobá adentro. Estrada estratégica e de custos humanos muito elevados. Mas não tinha nada que saber!...].

À noite, uma trovoada colossal e bastante chuva. A trovoada é mesmo por cima de nós e eu estou sentado sozinho no alpendre da messe de sargentos enquanto eles, lá dentro, jogam às cartas, creio. Mas eu estou a precisar disto. Parece que estas descargas eléctricas me ajudam a descarregar a minha própria tensão. Por vezes cai um raio mais próximo e, nesses instantes, deixo de ver tudo à minha volta, enquanto o trovão ribomba com tal fragor que parece estremecer a terra e pulverizar tudo. De repente, um raio cai na minha frente sobre uma árvore enorme nos limites da tabanca, a não mais de cem metros. No clarão produzido ainda dá para perceber uma projecção de fogachos a partir do centro da árvore e o som de madeira a rachar. Quase a tactear, com a vista baça, saio dali e junto-me aos demais no interior. Chega de terapia. É um risco muito alto continuar lá fora.

1973 – Mampatá numa tarde de paz. Nem ciclones, nem tiros

17 de Maio de 1973 (quinta-feira) – Entrada em Nhacobá.

Da História da Unidade do BCAÇ 4513 transcrevo, eliminando algumas abreviaturas, a actividade operacional relativa a este malfado dia, pois que, por falta de informação concisa e disponibilidade de tempo, as notas do meu diário são parcas. É uma descrição tão sucinta e seca, - certamente como deveria ser -, mas que bem poderia descrever uma excursão lúdica da rapaziada a Nhacobá. Todavia, tratou-se de um verdadeiro embate militar, quer pela acção da CCAV 8351 no terreno, quer pelo impacto e significado em toda a zona : entrou-se em Nhacobá e expulsou-se o inimigo. Antes de transcrever, devo referir que só conheci a História do BCAÇ 4513 muito recentemente, mais de 40 anos depois do regresso e por gentileza do nosso camarada e Grã-Tabanqueiro Antero Santos (CCAÇ 18-Aldeia Formosa), a quem estou muito reconhecido. Interessante como só agora, ao lê-la, fiquei a conhecer detalhes e ocorrências passadas ali à minha frente mas que, naquela altura, de grande movimento e confusão, escapavam à corrente de informações passadas de boca em boca. Talvez por isto, noto algumas discrepâncias entre a referida História da Unidade e os meus escassos apontamentos. Ou nem só por isso:

“Para cada acontecimento os testemunhos divergem segundo as simpatias e a memória de cada um”. (Tucídides – historiador grego, 460 a.C. / 395 a. C.).


Da História da Unidade:

“17 (de Maio) – OPERAÇÃO “BALANÇO FINAL”. — Forças da CCAV 8351 atingem NHACOBÁ e capturam 13 elementos da população (7 homens, 2 mulheres e 4 crianças) e 1 SIMONOV. Às 12h00 e às 12h15 estabelecem-se contactos com Grupo IN estimados em cerca de 40 elementos, tendo as NT sofrido 3 feridos graves e 3 feridos ligeiros. O IN sofreu 4 mortos e vários feridos prováveis. Capturou-se 1 SIMONOV e material diverso.

- Este Grupo IN ao fugir encontra-se com a 3.ª CCAÇ. Estabelecido o contacto as NT sofrem 1 ferido grave e 5 feridos ligeiros e causaram 4 mortos confirmados, vários feridos prováveis e capturam 1 RPG, 3 espingardas KALASHNIKOV e diverso material.

- Devido a forte temporal, o NORD-ATLAS que veio efectuar a evacuação, manteve-se na pista de A. Formosa durante toda a noite e só ao alvorecer descolou.

- O CMDT INTº do Batalhão deslocou-se a Nhacobá para apreciar a evolução dos trabalhos da estrada”.



Do meu diário:

Hoje, e até às 18 horas o meu GC continuará de serviço em Mampatá. Acordei com mais dois camaradas alferes de Mampatá, ao som de obuses (15 a 20 minutos), por volta das 5 horas da manhã. Mesmo no decorrer do dia não soube se tinham sido as NT a “embrulhar” ou a baterem zona, mas teve decerto a ver com a posterior entrada das NT em Nhacobá.

Soube que o camarada T. B. e restante pessoal em Colibuia não conseguiram dormir toda a noite, por causa das águas das chuvas. Colibuia não tem condições.

À tarde passaram aqui em Mampatá duas Chaimites a toda a velocidade, com feridos para Aldeia Formosa. Houve “contactos” com o IN entre Cumbijã e Nhacobá, tendo havido 5 mortos turras (a História da Unidade diz 4) e captura de material.

À noite um tornado limpou todo o pó aqui da zona e depois choveu muito. Com o vento caiu o telheiro das oficinas auto em cima de uma Berliet.

1973 – Emissor Regional de Mampatá e o marco do correio

18 de Maio de 1973 – (sexta-feira) – Nhacobá ainda a “arder”.

Da História da Unidade:

“18 (de Maio) – Novo contacto IN da CCAV 8351 que sofreu 1 morto, 1 ferido grave e 1 ferido ligeiro. O IN fugiu desconhecendo-se se com baixas.

- O CMDT INTº do Batalhão deslocou-se a Nhacobá para apreciar a evolução dos trabalhos de estrada”.


Do meu diário:

Chuva gelada durante muito tempo. Hoje o meu Grupo vai fazer serviço de apoio à retaguarda (das acções em Nhacobá). Consta de percursos em viaturas entre Aldeia Formosa e Nhacobá e retorno a Aldeia Formosa, para escoltas e demais serviços, sempre que as situações o exijam.

Às 6 horas da manhã, aqui em Mampatá, entrámos na coluna que já vinha de Aldeia Formosa, com destino a Cumbijã, com o meu pelotão distribuído por uma Berliet e um Unimog. A coluna estendia-se por não sei quantos quilómetros e, em todo o percurso, nunca consegui ver a cauda e a cabeça da coluna ao mesmo tempo: muitas viaturas, muita tropa, muita Engenharia e muita pressa em acabar a estrada para Nhacobá. À chegada a Cumbijã soubemos que durante a madrugada tinha havido novo contacto da 51 do Cap. V. da G. com grupo IN: tivemos 2 mortos (a História da Unidade refere 1) e vários feridos. A situação era grave (em Nhacobá) e por isso a maquinaria da Engenharia foi já muito tarde para a “frente”. Durante todo o dia não parei senão para comer, pois a escolta a viaturas com feridos e a outras viaturas para Aldeia Formosa, e as idas ali para trazer material e rações de combate para os grupos da “frente”, não me deram descanso. a)

À noite doía-me a cabeça e estava cansado. Regressámos a Mampatá todos exaustos.

a) – Julgo que foi neste dia que assisti a uma cena terrível, passada com um dos evacuados de Nhacobá. Não tenho registos sobre isso, pelo menos nesta sequência cronológica, mas também não dava para registar tudo: eram demasiadas coisas. Mas aquela imagem nunca mais se me apagou da memória: na confusão de gente que entrava e saía da mata, muitas viaturas paradas, algazarra, enfim..., surgiu um soldado negro, provavelmente da CCAÇ 18, com um soldado branco às costas que berrava e esperneava como um louco ou como uma criança magoada mas com a força de um touro. Vinha mesmo enlouquecido. O resto não recordo, mas deve ter sido metido numa Chaimite e evacuado para Aldeia Formosa.

Certamente fiz a escolta dessa evacuação, que era uma coisa muito “engraçada” para me dar cabo dos nervos: as duas Chaimites arrancavam e eu, para as proteger, seguia atrás delas mas, quando chegavam a Aldeia Formosa, eu ainda estava a chegar a Mampatá. É certo que em caso de ataque no trajecto, eu aparecia logo com o meu grupo, mas... Mas que me irritava, irritava. Ou seria apenas a mania de contestar as ordens que vinham de cima? Digo isto agora, sei lá...

1973 – Mampatá e a estrada, ao fundo, que leva a Colibuia, Cumbijã e Nhacobá.

19 de Maio de 1973 – (sábado)

Hoje o meu Grupo ficou numa “pedreira” a proteger as obras da estrada e as máquinas da Engenharia, entre Cumbijã e Nhacobá. A estrada leva um grande avanço e as máquinas não têm descanso, mas a estrada só está alcatroada até Cumbijã. Regressámos a Mampatá às 14 horas. Dia sem incidentes.

(Continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (8): Início de Maio de 1973 – Os devaneios e a crueza da guerra

terça-feira, 24 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13327: Agenda cultural (326): Dia 21 de Junho de 2014, RI 14, Viseu; lançamento de "QUEBO - Nos confins da Guiné", livro de autoria de Rui A. Ferreira, TCor Ref (Carlos Vinhal)

1. No passado sábado dia 21 de Junho de 2014, no Regimento de Infantaria 14 de Viseu, pelas 10 horas da manhã, já muitos ex-combatentes da CCAÇ 1420, CCAÇ 18 e ex-militares que passaram pelo RI 14, assim como muitos dos seu familiares, se concentravam na Parada para assistirem ao lançamento do livro de Rui Alexandrino Ferreira, Quebo - Nos confins da Guiné.

Na Parada do RI 14, entre os presentes alguns elementos da CCAÇ 18 comandada pelo ex-Capitão Rui Ferreira. Do nosso Blogue, na foto vêem-se: Carlos Vinhal Leça da Palmeira), Vasco da Gama (Buarcos), Antero Santos (Avintes) e António Pimentel (Figueira da Foz)

RI 14 - Viseu - 21 de Junho de 2014: Neves Ferreira, Vasco da Gama, Carlos Vinhal, Luís Nascimento, Lima Santos, Miguel Pessoa e Belarmino Sardinha


RI 14 - Viseu - 21 de Junho de 2014 - O Antero Santos reencontrou dois camaradas da CCAÇ 18. Ao lado Luís Nascimento e Carlos Vinhal

O tempo que mediou até à abertura da sessão serviu para um convívio informal, cujo tema de conversa era o nosso Rui, como é tratado pela totalidade das pessoas que com ele se cruzaram na Guiné ou naquele Quartel.

Já muito perto das 11 horas surge o Rui, acompanhado por duas pessoas que o ajudavam a caminhar entre os presentes que de algum modo se queriam aproximar dele. Qual Cristiano Ronaldo, foi a custo que chegou à Mesa de Honra, sem que pelo meio tivesse que parar para abraçar quem dele se conseguia aproximar...


...como foi o caso do co-editor do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, ali presente

O reconhecimento...

...e o abraço

Esperando não esquecer ninguém, o nosso Blogue estava representado pelos seguintes tertulianos: Antero Santos e esposa; António Pimentel; Belarmino Sardinha e esposa; Carlos Vinhal e esposa; Luís Nascimento; Manuel Lima Santos; Marques Almeida; Miguel e Giselda Pessoa; Valentim Oliveira; Vasco da Gama; Victor Barata e Xico Allen.

A sala estava repleta de assistentes que foram ouvindo atentamente os diversos intervenientes.

RI 14 - Viseu - 21 de Junho de 2014 - Vista parcial da sala completamente cheia

RI 14 - Viseu - 21 de Junho de 2014 - Miguel e Giselda Pessoa, e mais à direita, Antonieta e Belarmino Sardinha

RI 14 - Viseu - 21 de Junho de 2014 - Na assistência Dina Vinhal e Fernanda, esposa do Antero Santos

RI 14 - Viseu - 21 de Junho de 2014 - Em primeiro plano o nosso tertuliano Luís Nascimento

RI 14 - Viseu - 21 de Junho de 2014 - O camarada Vasco da Gama espreita o livro acabado de comprar. A seu lado o Antero Santos e o Xico Allen. Ainda perceptíveis, atrás, Belarmino Sardinha e esposa. 

RI 14 - Viseu - 21 de Junho de 2014 - Dois resistentes ex-combatentes da Guiné: TCor Rui Ferreira e Cor Pilav da FAP Miguel Pessoa

RI 14 - Viseu - 21 de Junho de 2014 - A Mesa era composta pelo representante do Comandante do RI 14; Major-Gen Pezarat Correia, amigo pessoal do Rui, que também apresentou o livro; Rui Ferreira, o autor, e pelo representante da Palimage, editora do livro

A sessão abriu com as palavras de boas-vindas em nome do Comandante do RI 14.

RI 14 - Viseu - 21 de Junho de 2014 - O representante da Pamilage salientou, na sua intervenção, que o TCor Rui Ferreira é um autor querido desta Editora, e que este seu segundo livro vai ser também um êxito. 

 RI 14 - Viseu - 21 de Junho de 2014 -  O Major-General Pezarat Correia durante a sua intervenção

O Major-General Pezarat Correia, que na Guiné foi superior hierárquico do agora TCor Rui Ferreira, na sua intervenção salientou a amizade que os une de há longos anos. Tinha sido convidado só uns dias antes, mas não podia recusar este pedido para falar do livro. Recordou momentos hilariantes, já que o Rui é um homem com um sentido de humor apurado, sempre pronto para pregar partidas a superiores e inferiores. Salientou as suas qualidades de combatente, aliadas a uma capacidade inata para o comando de homens, levando-os a cumprir com êxito as missões mais perigosas.

Do livro, disse sem rodeios que o que está escrito, tirando as possíveis e inevitáveis imprecisões próprias do tempo já passado, é o retrato de uma comissão de serviço, à frente da CCAÇ 18, numa zona difícil (Quebo / Aldeia Formosa), numa altura em que a guerra da Guiné começava a agudizar-se.

Seguiram-se diversas intervenções a cargo de ex-militares da CCAÇ 1420, onde o Rui serviu como Alferes, nos anos de 1965 a 1967; da CCAÇ 18, comandada pelo Rui, então Capitão, nos anos de 1970 a 1972, e do RI 14, onde o Rui serviu como Tenente-Coronel.

Houve momentos de grande emoção quando se lembrava as qualidades humanas do autor do livro, e de boa disposição quando eram lembradas as patifarias que este homem protagonizava. No desporto, no aspecto social, na dedicação aos homens que comandava, a ponto de ser padrinho de casamento de não se sabe de quantos. Relataram-se factos que dignificaram o combatente, o comandante, o camarada e o homem que foi e é o Rui.

RI 14 - Viseu - 21 de Junho de 2014 -  O Rui quando agradecia as palavras que lhe foram dedicadas

Por último falou o Rui. Uma intervenção cheia de humor e emoção.
Estranhou que entre tantos amigos que tomaram a palavra, só lhe tivessem dedicado elogios, e embora ele tivesse pedido para não dizerem muito mal dele, nem um lhe descobriu um defeito, só qualidades.

Agradeceu as palavras a ele dedicadas, ressalvando ter sido esta a derradeira manifestação pública a que se submete, já que a sua debilitada saúde não permite tantas emoções. As pessoas ali reunidas por sua causa deram-lhe uma alegria enorme. Camaradas de todas as patentes e classes, de todos os tempos e locais por onde passou, estiveram a seu lado no lançamento do seu segundo livro.
Salientou que o RI 14, onde estávamos reunidos, será para sempre a sua Unidade, a sua segunda casa, onde cada camarada é pelo menos um amigo, senão mesmo um membro da família.

Por que a saúde do Rui não permitiria o esforço suplementar de uma sessão de autógrafos, o livro tem uma dedicatória e a assinatura impressa.

Assim, passou-se para a sala de jantar onde nos esperava um excelente almoço.
Entradas variadas, sopa, Rancho (muito bem confeccionado), fruta e doce, acompanhado de bom vinho.

Havia muita animação ao fundo da sala porque o rei da festa estava bem disposto. Não há fotos do almoço porque tendo sido servido de pé, não dava muito jeito fazê-las.

Cerca das 15 horas foi o convívio dado por terminado.
Não temos dúvidas de que foi um dia memorável para o nosso Rui.

Texto de Carlos Vinhal
Fotos: Dina e Carlos Vinhal

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"QUEBO - Nos confins da Guiné"

Detalhes:
Autor: Rui Alexandrino Ferreira
Coleção: Imagens de Hoje
Género: Crónica de guerra (colonial)
Ano: 2014
ISBN 978-989-703-110-6
Idioma: Português
Formato: brochura | 368 páginas | 16 x 23 cm
PVP: 19 Euros


Descrição
“Há uma característica da liderança que considero o tempero decisivo capaz de conferir virtude a determinados atributos de comando que, sem ela, podem tornar-se excessivos e transformar-se em defeitos perversos. Refiro-me ao bom senso, o equilíbrio moderador que impede que a coragem resvale para temeridade gratuita empurrando os seus homens para riscos desnecessários, que evita que o culto da disciplina dê lugar ao autoritarismo desumano, que a tolerância resvale para o laxismo, que o gosto pela decisão rápida caia na precipitação, que o excesso de ponderação conduza à hesitação. O bom senso confere sangue frio nas situações de pressão emocional, presença de espírito quando à volta se instala a ansiedade. É uma virtude que, normalmente se adquire com a idade, com a experiência, com a dimensão da responsabilidade. Mas, apesar da sua juventude, o Capitão Rui Alexandrino Ferreira aliava ao seu entusiasmo contagiante uma notável dose de bom senso, o que lhe permitiu aplicar a sua coragem, o seu sentido de disciplina, o seu gosto pela decisão, na medida e no sentido convenientes. Não estou a fazer um elogio fácil. Não devemos nada um ao outro nem pretendemos nada um do outro. Estou apenas a registar uma opinião madura e consolidada, que é a minha”.
Pedro Pezarat Correia


Autor
Rui Alexandrino Ferreira nasceu no Lubango, Angola, em 1943. 1964 - Integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império.
1965 - Rende, na Guiné-Bissau, um desaparecido em combate.
1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau.
1973 - Regressa a Angola em outra comissão.
1975 - Retorna a Portugal. 1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir.
É, ainda, autor do livro Rumo a Fulacunda, sobre a temática da Guerra Colonial, na Guiné, editado pela Palimage em 2000

(Com a devida vénia a Palimage)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13303: Agenda cultural (325): JERO e o "Verão Total" da RTP 1, amanhã, 19 de Junho de 2014, em Alcobaça (Miguel Pessoa)